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Horta comunitária e Psicologia Social: um relato de experiência

Community garden and social psychology: an experience report

Huerta comunitaria y psicología social: un relato de experiencia

Resumo

A experiência profissional aqui relatada se refere à prática de estágio supervisionado em Psicologia Social e Comunitária, desenvolvida no ano de 2017, junto a um grupo intergeracional de horta comunitária. O trabalho foi realizado em uma instituição de assistência social de um município do interior do estado de São Paulo. Tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano e fomentar a formação grupal entre seus participantes, as atividades práticas desenvolvidas na horta foram entendidas e organizadas como atividades-meio para a promoção do desenvolvimento e constituição grupal. O grupo intergeracional realizou ao longo do ano mais de trinta encontros semanais nos quais, além das atividades práticas na horta, também ocorreram rodas de conversa, discussão de curtas metragens, dinâmicas grupais, dentre outras. Destacamos como principais resultados desta intervenção entre os participantes do grupo: a aprendizagem de variadas técnicas de cultivo; o fortalecimento das relações interpessoais entre si; o desenvolvimento da autonomia e auto-organização do coletivo; e a constituição deste como importante rede de apoio para seus integrantes.

Palavras-chave:
Psicologia Social; grupo; horta comunitária; estágio

Abstract

The professional experience reported refers to the practice of supervised internship in Social and Community Psychology, developed in 2017, with an intergenerational community garden group. The work was carried out in a social assistance institution in a municipality in the interior of the state of São Paulo. With the objective of promoting human development and fostering group formation among its participants, the practical activities developed in the garden were understood and organized as means-activities to promote group development and constitution. Over the course of the year, the intergenerational group held more than thirty weekly meetings in which, in addition to practical activities in the garden, there were also conversation circles, discussion of short films, group dynamics, among others. We highlight as main results of this intervention observed among the group members: the learning of various cultivation techniques; the strengthening of interpersonal relationships; the development of group autonomy and self-organization; and its constitution as an important support network for its members.

Keywords:
Social psychology; group; community garden; internship

Resumen

La experiencia profesional aquí relatada se refiere a la práctica de pasantía supervisada en Psicología Social y Comunitaria, desarrollada en 2017, con un grupo intergeneracional de huerta comunitaria. El trabajo fue realizado en una institución de asistencia social de un municipio del interior del estado de São Paulo. Con el objetivo de promover el desarrollo humano y promover la formación de grupos entre sus participantes, las actividades prácticas desarrolladas en el jardín fueron entendidas y organizadas como medios-actividades para la promoción del desarrollo y constitución de grupos. A lo largo del año, el grupo intergeneracional realizó más de treinta encuentros semanales en los que, además de actividades prácticas en el jardín, también hubo ruedas de conversación, discusión de cortometrajes, dinámicas de grupo, entre otros. Destacamos como principales resultados de esta intervención entre los participantes del grupo: el aprendizaje de diferentes técnicas de cultivo; el fortalecimiento de las relaciones interpersonales entre ellos; el desarrollo de la autonomía colectiva y la autoorganización; y su constitución como una importante red de apoyo para sus miembros.

Palabras clave:
Psicología Social; grupo; huerta comunitaria; prácticas

Introdução

A experiência profissional aqui relatada se refere à prática de estágio supervisionado em Psicologia Social e Comunitária do curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Bauru/SP. O trabalho, desenvolvido ao longo de mais de 30 semanas no ano de 2017, tratou-se de uma intervenção junto a um grupo intergeracional de horta comunitária sediado em um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), instituição de assistência social da Secretaria do Bem-Estar Social (SEBES) do mesmo município. Para melhor compreensão do caminho teórico-prático traçado ao longo do ano, bem como do objetivo definido para a intervenção, apresentamos uma breve retomada histórica da consolidação da Psicologia Social e Comunitária no Brasil.

A década de 60 no Brasil foi marcada por intensos confrontos entre o Estado, unido às forças capitalistas, versus a classe trabalhadora lutando pela garantia de suas necessidades básicas. Para além das práticas extremamente violentas, torturas físicas e psicológicas, assassinatos e diversas outras formas de atentado à vida e à dignidade humana, a ditadura civil-militar das décadas de 60, 70 e 80 acarretou também um quadro generalizado pelo país de fome, miséria, desemprego, analfabetismo e proliferação de doenças diversas. Esse quadro expressou-se de forma acentuadamente cruel nas comunidades pobres e periféricas das grandes cidades do país. É nessa conjuntura política e social que surge e se firma no Brasil a chamada psicologia comunitária (FREITAS, 2007FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia (social) comunitária: práticas da psicologia nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 54-80.).

De início, intimamente ligados à educação popular e alfabetização de adultos na periferia, proposta por Paulo Freire, os psicólogos adentram as comunidades com objetivos e práticas de caráter educativo e pedagógico (LANE, 2007LANE, Sílvia Tatiana Maurer. Histórico e fundamentos da psicologia comunitária no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 17-34.). Ao final da década de 60 e início dos anos 70, ao mesmo tempo que ocorre o acirramento das políticas de vigilância e da suspensão de direitos essenciais, há também o fortalecimento dos movimentos populares, tais como as ligas camponesas, o movimento operário e a militância política de trabalhadores da educação e saúde. Freitas (2007FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia (social) comunitária: práticas da psicologia nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 54-80.) e Andery (1989ANDERY, Alberto Abib. Psicologia na comunidade. In: LANE, Silvia T. M.; CODO, Wanderley (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 203-220.) explicam que os profissionais inseridos na comunidade assumem então o papel específico de psicólogos, trabalhando como voluntários por meio de práticas como organização e mediação de rodas de discussão sobre o contexto político-econômico e as necessidades da população; levantamento das condições de vida na comunidade; assistência psicológica gratuita; participação conjunta nas mobilizações políticas; luta na saúde mental para superação do paradigma manicomial e institucionalizante; desenvolvimento e fortalecimento grupal de mulheres e jovens; trabalho junto a instituições populares. O psicólogo passa a atuar de modo crítico, a fim de romper e superar o modelo médico, assistencialista, higienista e adaptativo da psicologia predominante no período, “buscando com isso uma deselitização da profissão, de modo que as práticas vão ganhando uma significação política de mobilização e de transformação sociais” (FREITAS, 2007FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia (social) comunitária: práticas da psicologia nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 54-80., p. 60). É em contexto de expectativas de abertura democrática na década de 80 que o trabalho até então não oficializado dos psicólogos nas comunidades ganha atenção, e é somente na década de 90 que a chamada Psicologia Social marca a vinculação do psicólogo às instituições públicas de prestação de serviços para a comunidade em geral e, especialmente, às instituições ligadas à saúde, como, por exemplo, postos de saúde, instituições penais ou ligadas ao cuidado de menores e instituições de assistência social (FREITAS, 2007FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia (social) comunitária: práticas da psicologia nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 54-80.).

Ao assumir o compromisso teórico e político com a Psicologia Social e Comunitária, é imprescindível ao psicólogo desenvolver e fortalecer a unidade grupal entre os moradores da comunidade, seja por meio do trabalho com grupos de crianças, jovens, mulheres, homens, idosos, seja com grupos intergeracionais. Nas palavras de Freitas (2007FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia (social) comunitária: práticas da psicologia nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 54-80., p. 73), a Psicologia Social e Comunitária “utiliza-se do enquadre teórico da psicologia social, privilegiando o trabalho com os grupos, colaborando para a formação da consciência crítica e para a construção de uma identidade social e individual por preceitos eticamente humanos”. Martín-Baró (1989MARTÍN-BARÓ, Ignacio. Sistema, grupo y poder: psicología social desde Centroamérica II. El salvador: UCA, 1989., p. 206), importante referência teórica da Psicologia Social e dos processos grupais, define o conceito de grupo como “aquela estrutura de vínculos e relações entre pessoas que canaliza em cada circunstância suas necessidades individuais e/ou os interesses coletivos” (tradução nossa). Dito de outro modo, um grupo é uma estrutura de vínculos interpessoais com objetivos de satisfazer às necessidades individuais e/ou coletivas de seus membros.

A teoria de Martín-Baró (1989)MARTÍN-BARÓ, Ignacio. Sistema, grupo y poder: psicología social desde Centroamérica II. El salvador: UCA, 1989. sobre processo grupal também indica a tipologia prevalente de relações sociais estabelecidas entre os membros de um grupo, quais sejam: vínculos de natureza primária - vínculos interpessoais para fins de satisfação de necessidades pessoais afetivas; vínculos de natureza funcional - relações sociais resultantes de relações de trabalho para fins de satisfação de necessidades sistêmicas; e vínculos de natureza estrutural - unidade entre proprietários e entre não proprietários dos meios de produção com fins de satisfação dos interesses da classe a que pertencem. Entendemos que um trabalho crítico e emancipador em Psicologia Social e Comunitária deve, ao fortalecer a coesão grupal e lhe conferir maior grau de consciência, fortalecer também os vínculos de natureza funcional entre seus participantes para, quando possível, transformá-los em vínculos primários.

Freitas (1998FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Inserção na comunidade e análise de necessidades: reflexões sobre a prática do psicólogo. Psicologia e Reflexão Crítica [online], v. 11, n. 1, p. 175-189, 1998. https://doi.org/10.1590/S0102-79721998000100011
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) sintetiza o papel do psicólogo social e comunitário defendendo que, para uma práxis essencialmente humanizadora, crítica e política, o profissional deve, ao adentrar a comunidade, assumir que: são as necessidades reais da população que devem orientar a definição, a posteriori, dos objetivos da intervenção; o trabalho deve ser coletivo e democrático, promovendo a autonomia e o desenvolvimento da consciência crítica dos envolvidos; o psicólogo possui um saber específico que deve orientar sua atuação, de modo a colocar-se como um mediador no processo de formação grupal e humanização. Como mostraremos ao longo do texto, tais pressupostos foram adotados por nós como essenciais à nossa organização e prática.

Como apontado anteriormente, o trabalho em Psicologia Social e Comunitária aqui relatado ocorreu em um grupo intergeracional de horta comunitária. Apresentemo-lo brevemente. As hortas comunitárias se originam, na maior parte das vezes, em terrenos não utilizados, geralmente de pequeno e médio porte, localizados nos bairros mais periféricos das cidades. Os responsáveis pelo cultivo e cuidado com a horta são famílias das comunidades ao redor, principalmente famílias em condição de vulnerabilidade socioeconômica que encontram nas hortas comunitárias uma fonte - extra ou única - de geração de renda. Como explicam Monteiro e Mendonça (2004MONTEIRO, Denis; MENDONÇA, Marcio Mattos de. Quintais na cidade: a experiência de moradores da periferia do Rio de Janeiro. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, v. 1, p. 29-31, 2004. Disponível em: Disponível em: https://orgprints.org/id/eprint/19941/ . Acesso em: 18 jul. 2017.
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), o plantio ocorre de forma não tradicional, distinto dos canteiros retangulares mais conhecidos, prezando-se pela máxima utilização do espaço e pelo cultivo de maior variedade de plantas alimentícias e medicinais. Além das plantas mais conhecidas e tradicionais, é comum também o cultivo das chamadas Plantas Alimentícias Não-Convencionais, as PANCs - como a taioba, capuchinha, zebrina, beldroega, ora-pro-nóbis, dentre outras -, ricas fontes de vitaminas, proteínas e fibras, das quais se utilizam todas as partes - raízes, talos, folhas, rizomas, sementes e flores.

É importante destacar que, para além de uma fonte de alimentos, as hortas comunitárias também são locais privilegiados de desenvolvimento da sociabilidade humana e promoção da qualidade de vida de seus participantes (SILVA et al., 2011SILVA, Leandro Batista da; ASSIS, Edson Bento de; SEABRA Jr., Santino; PIZANO, Roberval Emerson; BENEVIDEZ, Edineuza Maria; MAGALHÃES, Josiane. Projeto Comunidade Feliz: horta comunitária e atividades interdisciplinares com idosos. Horticultura Brasileira, v. 29, n. 2, p. 445-450, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.abhorticultura.com.br/EventosX/Trabalhos/EV_5/A4255_T6096_Comp.pdf . Acesso em: 18 jul. 2019.
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). Por meio das atividades coletivas na horta e tendo em vista alcançar o objetivo comum assumido individual e coletivamente, o grupo de trabalho torna-se um grupo mediado por relações afetivas. Retomando Martín-Baró (1989)MARTÍN-BARÓ, Ignacio. Sistema, grupo y poder: psicología social desde Centroamérica II. El salvador: UCA, 1989., portanto, as hortas comunitárias são espaços em que os sujeitos estão inicialmente ligados por vínculos funcionais com considerável potencial para se requalificarem em vínculos primários.

Tendo em vista, portanto, materializar uma práxis humanizadora, política e democrática, e compreendendo o grupo em sua dinâmica e historicidade, o objetivo definido para a intervenção foi o de promover o desenvolvimento humano e fomentar a formação grupal considerando as atividades na horta como atividades-meio para tal. Para isso, a metodologia para a concretização das atividades descritas a seguir se pautou no desenvolvimento de uma intervenção participante - baseando-nos na compreensão de pesquisa participante proposta por Severino (2013SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2013.) - e ancorou-se nos estudos de Martín-Baró (1989)MARTÍN-BARÓ, Ignacio. Sistema, grupo y poder: psicología social desde Centroamérica II. El salvador: UCA, 1989. sobre os processos grupais brevemente apresentados na Introdução. Na teoria deste autor, encontrou-se as ferramentas teóricas e práticas necessárias para organizar intervenções que pudessem fortalecer os vínculos entre os participantes do grupo, satisfazer suas necessidades como grupo e como indivíduos e ainda possibilitar, para além da relação de natureza funcional entre eles, o desenvolvimento de relações de natureza primária para a satisfação de necessidades afetivas. Assim, buscou-se fortalecer a identidade grupal por meio da atividade do grupo, fomentando também o desenvolvimento da consciência grupal e da constituição de uma totalidade una e diversa do coletivo da horta.

Para analisar os dados apreendidos ao longo da intervenção, procedeu-se a uma abordagem qualitativa, conforme explicado por Severino (2013SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2013.), visto que as observações e vivências registradas necessitavam ser compreendidas em seus aspectos contextual, relacional e interpretativo, de modo a evidenciar as transformações processuais dos vínculos pessoais e modos de interação entre os membros do grupo da horta.

O grupo intergeracional e a horta como mediação para o desenvolvimento humano e formação grupal

A horta comunitária contou com a participação assídua de cerca de cinco pessoas de idades variadas (de 12 a 65 anos, aproximadamente) e com a participação esporádica de cerca de outras cinco pessoas ao longo do ano, todas em condições socioeconômicas muito precárias, residentes do bairro no qual se localizava a instituição e que faziam uso, em alguma medida, dos serviços de assistência social oferecidos por ela. O grupo contava ainda com alguns voluntários que participaram ministrando oficinas, com os estagiários e a psicóloga local. Em ambos os papéis, assumimos no grupo não a função de líderes, mas sim de mediadores e facilitadores da dinâmica e organização grupais, atuando de modo a promover a autonomia e auto-organização do grupo.

Os encontros semanais duravam cerca de duas horas e seguiam a seguinte estrutura: os primeiros 10 ou 15 minutos eram destinados ao acolhimento dos participantes, momento em que compartilhávamos como cada um passou sua semana; após todos chegarem, os estagiários escreviam na lousa, de acordo com as propostas e decisão coletiva do grupo, o roteiro de tarefas do dia. Tal roteiro geralmente se iniciava com o trabalho prático na própria horta (rega, colheita de alimentos, plantio de sementes e mudas, adubação e outras tarefas de manutenção da horta), seguido por alguma atividade de desenvolvimento pessoal e grupal (rodas de conversa sobre temas geradores para o grupo - por exemplo: uso, abuso e dependência de substâncias químicas, o papel ocupado pela mulher na sociedade, condições precárias de trabalho, questões raciais, diferenças culturais entre gerações -, dinâmicas grupais, uso de curtas-metragens e outras mídias como desencadeadores de discussões, dentre outras), e era finalizado com um lanche servido pela instituição, o qual, sempre que possível, era preparado com ingredientes retirados da própria horta. A seguir, apresentamos com maiores detalhes a descrição e objetivos de algumas das atividades realizadas ao longo do ano.

Atividade - Elaboração de uma tabela de rega da horta. Descrição: diálogo com o grupo para definição de dias/horários em que cada participante poderia ficar responsável por ir até a instituição e regar a horta. Objetivos: definir diferentes responsáveis para a rega da horta de modo que tal tarefa não se restringisse ou sobrecarregasse nenhum participante; criar a necessidade de uma responsabilidade para com a horta de modo que esta pudesse fazer parte do cotidiano dos participantes para além de somente encontros semanais do grupo.

Atividade - Passeio de mapeamento pelo bairro e distribuição de bombas de sementes nos terrenos baldios. Descrição: caminhada pelos arredores da instituição guiada pelos participantes da horta (e moradores do bairro). Objetivos: conhecer melhor o bairro a partir da ótica dos participantes do grupo - os moradores mais antigos, as principais dificuldades enfrentadas pelos moradores, os pequenos estabelecimentos comerciais, o prédio da escola, (inexistência de) opções de lazer, etc.; resgatar a história do bairro; fazer um mapeamento das árvores frutíferas e demais vegetais plantados nos arredores da instituição; distribuir as bombas de sementes feitas em um dos encontros anteriores do grupo nos terrenos baldios encontrados.

Atividade - Visitas domiciliares. Descrição: estagiários e psicóloga da instituição combinavam previamente com o participante (ou ex-participante) da horta um dia/horário em que poderiam fazer-lhe uma visita domiciliar; chegado o dia da visita, estagiários e psicóloga se encaminhavam à casa do participante levando algum produto da horta (mudas, frutas, flores) para lhe oferecer como presente do grupo. Objetivos: conhecer de modo mais próximo a moradia, a história de vida e o cotidiano dos participantes da horta; conhecer os principais motivos que levavam os participantes a participar do grupo ou os principais motivos que o fizeram desistir de participar; caso necessário, convidá-lo para retornar ao grupo; e conhecer possíveis demandas que poderiam ser trabalhadas no contexto grupal.

Atividade - Amigo secreto de mandala. Descrição: sob orientação dos estagiários (com domínio da técnica de elaborar mandalas artesanais de barbante), cada integrante do grupo confeccionou individualmente uma mandala de barbante a ser entregue ao seu amigo secreto durante confraternização no último encontro do grupo do ano. Objetivos: proporcionar um momento de descontração no grupo; promover o desenvolvimento de vínculos afetivos e relacionamentos interpessoais; promover o desenvolvimento da coordenação motora; finalizar as atividades do ano com a elaboração e compartilhamento de uma lembrança física e afetiva do grupo da horta.

Atividade - Dinâmica “formas de contato”. Descrição: pedimos a todos os participantes que andassem pela sala de modo aleatório e, conforme cruzassem uns com os outros, se cumprimentassem de acordo com a solicitação feita pelos estagiários - o primeiro cumprimento somente com o olhar; após mais um tempo de caminhada pela sala, cumprimento com aperto de mão seguido de outras formas, tais como toque de cotovelos, toques de quadril, toques de bochecha, finalizando com abraços. Objetivos: proporcionar um momento de descontração no grupo; promover a aproximação física entre participantes, estagiários e psicóloga; promover o desenvolvimento de vínculos afetivos e relacionamentos interpessoais. Sobre essa atividade, um comentário adicional: a primeira vez que tal atividade foi realizada foi em meados do mês de abril, apenas algumas semanas após o estágio se iniciar. Nesse momento, a receptividade dos participantes à dinâmica proposta foi pouca, uma vez que muitos apresentavam resistência ao contato físico e à aproximação afetiva com os demais. Passadas algumas semanas, repetimos a dinâmica com mais pessoas, e foi possível notar menor resistência entre os sujeitos do grupo, que se mostravam agora mais confortáveis ao contato físico interpessoal. Essa dinâmica foi repetida mais duas vezes no segundo semestre do ano, e todas a pedido dos próprios participantes, que então passaram a executá-la de modo mais receptivo e afetivo.

Além das atividades acima descritas, é importante também ressaltar que, sempre que os estagiários e/ou a psicóloga local identificavam situações de conflito interpessoal entre os participantes (seja por motivos ligados diretamente à horta - como uma discussão acerca do local mais adequado para se plantar determinada muda -, seja por motivos alheios à horta - como discussões geradas por emissão de opiniões divergentes acerca da inserção da mulher no mercado de trabalho), estes intervinham na situação com o objetivo de mediar a relação e auxiliar na resolução do conflito/discussão/desentendimento, fomentando o respeito às opiniões divergentes e prezando pela manutenção/fortalecimento do vínculo entre os envolvidos.

Resultados: conquistas e dificuldades na concretização da horta como instrumento de humanização

Após 32 semanas de intervenções intencionalmente planejadas e mediadas, os resultados alcançados, os quais apresentaremos agora, foram inúmeros e surpreendentes, organizando-se em dois eixos: Desenvolvimento pessoal dos participantes e Desenvolvimento das relações interpessoais e consolidação da organização grupal.

Desenvolvimento pessoal dos participantes: aprendizagem de técnicas de cultivo urbano pelos participantes e reprodução de tais técnicas em suas residências/hortas pessoais; desenvolvimento da coordenação motora a partir do trabalho direto na horta e por meio das dinâmicas e atividades manuais realizadas ao longo do ano; diminuição da timidez e aumento da autoconfiança ao se expressar para um pequeno público.

Desenvolvimento das relações interpessoais e consolidação da organização grupal: surgimento de objetivos comuns e compartilhados entre os participantes em relação à horta; fortalecimento e estreitamento das relações interpessoais entre os membros (transformação dos vínculos funcionais em vínculos primários); participantes mais afetuosos entre si (incluindo mais demonstrações verbais de carinho e até mesmo cumprimentos com abraço e beijo); mais brincadeiras entre os participantes; respeito às opiniões contrárias; expressão de sentimentos de discordância e/ou desconforto de forma educada e assertiva; diminuição da quantidade de fofocas entre os participantes; desenvolvimento da autonomia do grupo (principalmente para tomada de decisões coletivas e em relação à organização necessária ao trabalho na horta); aumento da cooperação entre os sujeitos na realização das atividades definidas pelo grupo e, consequentemente, aumento da produtividade.

Também foi possível perceber, por meio das transformações no grupo, que este se tornou uma importante rede de apoio aos seus integrantes: os membros passaram a solicitar ajuda uns aos outros para resolução de dificuldades de suas vidas pessoais, para além das dificuldades da horta; quando um participante faltava sem avisar, os demais buscavam descobrir o motivo de tal falta e, se necessário, ofereciam ajuda segundo suas possibilidades; quando um membro demonstrava estar triste, desaminado ou preocupado ao longo do encontro, o grupo ouvia atentamente seus relatos e o acolhia, ajudando-o a encontrar alternativas possíveis para a superação de sua dificuldade.

Os resultados positivos descritos acima não foram alcançados sem dificuldades. Ao longo do ano também nos deparamos com diversas situações que, além de dificultarem nosso trabalho, por vezes o limitaram, dentre as quais destacamos: estrutura física precária da instituição (sala de reuniões pequena - o que nos impedia de realizar algumas dinâmicas e atividades - e pouco espaço para guardar os materiais utilizados na horta); não repasse de verba da instituição ao grupo, o que inviabilizava a compra de materiais necessários ao nosso trabalho; e a burocratização excessiva do trabalho do psicólogo na assistência social, dificultando, por exemplo, a realização de encontros fora da instituição.

Algumas características do próprio grupo também se impuseram como dificuldades a serem superadas, tais como: a variabilidade na quantidade de participantes e na composição do grupo, dificultando o estabelecimento de um plano anual de atividades; a participação de sujeitos em diferentes faixas etárias e em diferentes períodos do desenvolvimento, tornando mais difícil a organização de atividades que atendessem às características físicas e sociais de todos; e diferenças de crenças e valores entre os membros, que, acompanhadas de dificuldades na expressão de opiniões contrárias, acabavam por gerar desentendimentos e pequenos conflitos interpessoais. Buscamos, ao longo de nossa prática, superar tais dificuldades por meio do diálogo e de ações discutidas, decididas e organizadas coletivamente entre todos os participantes - o que nos levou à conquista dos resultados já apresentados.

Por fim, faz-se importante destacar também o desenvolvimento profissional e pessoal dos estagiários como um importante resultado alcançado. O trabalho na horta nos proporcionou novas relações interpessoais e, principalmente, apropriações decorrentes da experiência concreta de atuação junto a grupos, dentre as quais destacamos: apropriação de métodos de planejamento e organização dos encontros; aprendizagem prática sobre dinâmica grupal; aprendizagem sobre técnicas de cultivo, PANCs, agroecologia e alimentação alternativa; capacidade de síntese para elaboração de relatórios; desenvolvimento de autoconfiança diante de situações inesperadas; capacidade de mediação de conflitos interpessoais; compreensão da organização interna da assistência social; e compreensão de características particulares às comunidades periféricas. Acreditamos que tais aprendizagens requalificaram profundamente nossa relação com a profissão, tornando-nos mais críticos, éticos e comprometidos socialmente.

Considerações finais

Ao se inserir na comunidade, o psicólogo se depara com uma polarização inicial: de um lado o profissional da psicologia, suposto detentor do conhecimento científico e acadêmico e, de outro, a comunidade, vivendo em situação de miséria, violência, desrespeito e marginalização (FREITAS, 1998FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Inserção na comunidade e análise de necessidades: reflexões sobre a prática do psicólogo. Psicologia e Reflexão Crítica [online], v. 11, n. 1, p. 175-189, 1998. https://doi.org/10.1590/S0102-79721998000100011
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). Orientamos nossa atuação buscando superar a posição de aparente superioridade acadêmica, de supostos sujeitos do saber, e superar práticas de caráter assistencialistas e tutelares, tendo em vista uma práxis coletiva e promotora de desenvolvimento humano.

Passamos por um período histórico caracterizado por uma crítica e preocupante conjuntura política: estamos perdendo direitos conquistados a duras lutas e sofrendo constantes ataques à dignidade e integridade humanas. Nesse contexto, a união e a organização grupal fazem-se cada vez mais necessárias ao fortalecimento pessoal e coletivo, mostrando-se como condição primeira ao enfretamento das imposições reacionárias de um governo que a cada dia aprofunda mais a divisão das classes sociais. Buscamos ao longo de todo o ano realizar um trabalho coletivo e verdadeiramente democrático, compartilhado com o grupo, que atendesse às suas necessidades concretas e contemplasse a particularidade de cada sujeito. Considerando as transformações na dinâmica grupal e as transformações pessoais de cada participante - incluindo estagiários -, ousamos afirmar que nossa intervenção concretizou o objetivo definido previamente, promovendo o desenvolvimento humano e consolidando a constituição grupal.

Referências

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  • FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Inserção na comunidade e análise de necessidades: reflexões sobre a prática do psicólogo. Psicologia e Reflexão Crítica [online], v. 11, n. 1, p. 175-189, 1998. https://doi.org/10.1590/S0102-79721998000100011
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  • FREITAS, Maria de Fátima Quintal de. Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia (social) comunitária: práticas da psicologia nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 54-80.
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  • SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2013.
  • SILVA, Leandro Batista da; ASSIS, Edson Bento de; SEABRA Jr., Santino; PIZANO, Roberval Emerson; BENEVIDEZ, Edineuza Maria; MAGALHÃES, Josiane. Projeto Comunidade Feliz: horta comunitária e atividades interdisciplinares com idosos. Horticultura Brasileira, v. 29, n. 2, p. 445-450, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.abhorticultura.com.br/EventosX/Trabalhos/EV_5/A4255_T6096_Comp.pdf Acesso em: 18 jul. 2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2019
  • Revisado
    24 Mar 2021
  • Revisado
    11 Out 2022
  • Aceito
    10 Nov 2022
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