Open-access A inserção do espaço geográfico de Milton Santos na matriz althusseriana de interpretação da totalidade social: uma estrutura como as outras?

Resumo

O presente artigo pretende investigar algumas das aproximações teóricas possíveis entre proposições de Santos sobre o espaço geográfico e o esquema interpretativo althusseriano. Principalmente, a discussão gira em torno da seguinte questão: até onde se poderia chegar empreendendo uma leitura de certas proposições de Milton Santos pelas lentes do marxismo estrutural? Chega-se à conclusão de que, como suporte necessário à historicização das estruturas sociais, o espaço assume importância ímpar para a análise da realidade: sua consideração sugere um encaminhamento da contradição entre história e estrutura, permitindo contemplar a diacronia e a contradição presentes em cada formação socioespacial. Destarte, assim como a análise do lastro althusseriano de certas elaborações de Milton Santos ajuda a iluminar certos pontos de sua obra, também a obra de Santos pode contribuir largamente com as teorizações do marxismo estrutural, ressaltando papel do espaço na construção de um arcabouço analítico capaz de desvendar as determinações do presente.

Palavras-chave: espaço geográfico; estrutura social; Milton Santos

Abstract

The present article intends to investigate some of the possible theoretical approximations between Santos’ propositions about geographic space and the Althusserian interpretation. Mainly, the discussion revolves around the following question: How far could one go by reading certain propositions by Milton Santos through the lens of structural Marxism? It is concluded that, as a necessary support for the historicization of social structures, space assumes unique importance for the analysis of reality through an Althusserian prism: its consideration suggests a forwarding of the contradiction between history and structure, allowing to contemplate the diachrony and contradiction present in each socio-spatial formation. Thus, just as the analysis of the Althusserian ballast of certain elaborations by Milton Santos helps to illuminate certain points of his work, Santos’ work can also contribute largely to the theorizations of structural Marxism, highlighting the role of space in the construction of an analytical framework capable of unravelling the determinations of the present.

Keywords: geographic space; social structure; Milton Santos

Resumen

Este artículo pretende investigar algunas de las posibles afinidades teóricas entre las proposiciones de Santos sobre el espacio geográfico y el esquema interpretativo althusseriano. Principalmente, la discusión gira en torno a la siguiente pregunta: ¿hasta dónde se puede llegar al emprender una lectura de ciertas proposiciones de Milton Santos a través de la lente del marxismo estructural? Se llega a la conclusión de que, como soporte necesario para la historización de las estructuras sociales, el espacio adquiere una importancia única para el análisis de la realidad: su consideración sugiere abordar la contradicción entre historia y estructura, permitiendo la contemplación de la diacronía y contradicción presente en cada formación socioespacial. De esta forma, así como el análisis de la inspiración althusseriana de ciertas elaboraciones de Milton Santos ayuda a iluminar ciertos puntos de su obra, la obra de Santos también puede contribuir en gran medida a las teorizaciones del marxismo estructural, destacando el papel del espacio en la construcción de un marco analítico capaz de desentrañar las determinaciones del presente.

Palabras-clave: espacio geográfico; estructura social; Milton Santos

Introdução

Em certa parcela da obra teórica de Milton Santos - especialmente textos escritos entre meados dos anos de 1970 e 1980 - há notável inspiração estruturalista. Em especial, como observado por Moraes (2013), são perceptíveis traços do marxismo estrutural. Termos como estrutura, sistema, variáveis e elementos não são raros em obras como Espaço e método ( 2008a) e mesmo no clássico Por uma geografia nova ( 2002a): a realidade é concebida como totalidade estruturada, resultante da interação do conjunto das estruturas sociais, dentre as quais figuraria o espaço geográfico. Talvez se possa dizer, inclusive, que foi este o principal (nunca o único) arcabouço teórico de que o autor lançou mão, à época, para sustentar filosoficamente o espaço como categoria de análise e dimensão da realidade dotada de papel ativo: não seria mero reflexo, mas uma estrutura social como as outras.

Entretanto, ao passo que permanece ao longo de toda sua produção teórica a busca por reafirmar o espaço na teoria social crítica - para usar a expressão de Soja (1993) - e legar um arcabouço metodológico voltado para apreensão da realidade social partindo do espaço, o estruturalismo perde força como fonte de sua sustentação filosófica: naquela que é considerada a grande sistematização de sua teorização sobre o espaço ( SANTOS, 2002b), há uma terminologia - talvez se possa dizer - mais autoral, além de uma influência mais perceptível do existencialismo. Vale ressalvar, entretanto, que não se trata de postular a existência de um corte epistemológico na trajetória intelectual de Milton Santos, separando definitivamente o autor de Por uma geografia nova (2002 a ) daquele de A natureza do espaço ( 2002b). Na verdade, concordamos com aqueles que enfatizam as continuidades.

Também, não se trata aqui de reduzir esta ou aquela fase de sua obra, sempre profunda e nuançada, à filiação a uma corrente teórica: suas produções, desde sempre, como se sabe, costumam recorrer a distintas referências teóricas, amarradas de maneira consciente e original, em consonância com sua característica e ímpar erudição. Como resumido por Contel (2014), a riqueza e complexidade dos autores trabalhados por Santos tornam inexequível a tarefa de definir uma escola teórica à qual o autor pertence; isto posto, é em Por uma geografia nova, publicado originalmente em 1978, e em textos teóricos contemporâneos a essa obra, que o autor incorpora mais intensamente discussões de autores de formação marxista. Neste sentido, vale destacar que o marxismo estrutural esteve particularmente em voga nos anos 1960, quando viveu sua “explosão” ( Dosse, 1993). Durante grande parte dessa década, Santos esteve exilado na França - berço do althusserianismo -, trabalhando nas universidades de Toulouse, Bordeaux e Sorbonne ( Contel, 2014) e tornando praticamente certa a hipótese de Pedrosa (2018, p. 437), segundo a qual, já nesta ocasião, Santos teria estabelecido contato com o marxismo estrutural. Além disso, vale destacar que as ideias dessa corrente não se restringiram ao mundo francófono: foram particularmente bem recebidas no ambiente intelectual estadunidense, que o geógrafo brasileiro frequentou na década de 1970, momento em que “se dedica ao estudo sistemático do marxismo, o que leva a supor um eventual aprofundamento no estruturalismo marxista” ( Pedrosa, 2018, p. 437). É nessa década que Santos publica os dois principais textos que servirão de base para nosso exercício teórico: seu clássico texto propondo a categoria de formação socioespacial, em edição da Antipode de 1977, e o já referido (e também clássico) livro Por uma geografia nova, em 1978, que talvez possa ser considerado a representação mais completa do projeto intelectual do autor nessa época.

Como apontado por Contel (2014), é possível identificar em Por uma geografia nova um motivo condutor bem delineado, em nome do qual Santos mobiliza referências diversas (dentre as quais figuram autores do marxismo estrutural): a busca por definir o Espaço Geográfico. O livro é dividido em três partes: a primeira delas dedicada a fazer um balanço da Geografia moderna, analisando criticamente uma série de vertentes e escolas do pensamento geográfico, chegando à conclusão de que a Geografia encontrava-se viúva do Espaço; como consequência, a segunda parte é dedicada justamente a definir o Espaço Geográfico, sendo o momento em que o autor mais intensa e diretamente dialoga com o marxismo estrutural, chegando a definir o Espaço como uma estrutura ou instância social como as demais comumente listadas por essa corrente do pensamento; por fim, na terceira parte são tiradas algumas consequências dessa definição de Espaço para a construção de um arcabouço teórico crítico em Geografia, intenção que marcará também obras posteriores do autor.

Isto posto, indicamos que a reflexão aqui proposta não tem por objetivo empreender uma leitura exaustiva da obra de Milton Santos, de parte dela, nem mesmo do livro Por uma geografia nova. Antes, o escopo da análise aqui empreendida é restrito e bem definido: se é verdade que em parcela da obra do autor há um diálogo mais intenso com o marxismo estrutural, há aí uma aproximação merecedora de maiores investigações e que está longe de ser esgotada, embora não raro seja notada e/ou mesmo discutida ( Duncan; Ley, 1982; Grimm, 2011; Moraes, 1993; Moreira, 2015; Peet, 1998; Pedrosa, 2013; Silva; Voigt, 2021). Dentro desse quadro, a pretensão é justamente a de ressaltar alguns desses possíveis pontos de contato. Mais do que isso, trata-se também de abrir uma discussão sobre como a teoria do espaço que o autor propõe poderia ser incorporada, no limite, ao esquema do marxismo estrutural. O motivo condutor da reflexão é o seguinte: até onde se pode chegar empreendendo uma leitura de certas proposições de Milton Santos pelas lentes do marxismo estrutural? Sua pergunta subsequente: o espaço geográfico pode ser considerado estrutura social em termos althusserianos?

Adiantando a conclusão à qual chega o presente artigo, entendemos que o edifício teórico do marxismo estrutural é compatível com contribuições fundamentais de Milton Santos para pensar o espaço geográfico. Mais que isso: o espaço enquanto dimensão da totalidade social se faz fundamental na apreensão da realidade concreta e imprescindível para ultrapassar o nível abstrato-formal ao qual a discussão sobre estruturas sociais é legada caso estas não sejam historicizadas. Neste sentido, o espaço - através da categoria de formação socioespacial - funciona como uma espécie de suporte necessário à historicização das estruturas, impondo condições às práticas sociais estruturadas do presente mediante formas herdadas de momentos anteriores de modo que tomá-lo enquanto tal, como algo diferente de estrutura, não implica em prejuízo à consideração de seu papel ativo - ou seja, a compreensão de que o espaço não é mero receptáculo ou reflexo das estruturas sociais, desempenhando antes um papel ativo na evolução da dinâmica social ( Santos, 2002a, p. 186). Esperamos esclarecer melhor essas indicações ao longo da exposição que segue.

Para tanto, tomamos como fonte primária a parcela da obra de Milton Santos em que o autor mais dialoga com a referida corrente teórica. Como observa Moraes (2013), e já referido aqui, trata-se dos textos de método escritos entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Mais especificamente, além dos materiais já referidos - o livro Por uma geografia nova ( 2002a) e o artigo sobre a categoria de formação social ( 2005) -, nossa análise passou também pelos livros Espaço e método ( 2008a) e Metamorfoses do espaço habitado ( 2008b). Quanto ao marxismo estrutural, valemo-nos principalmente das assertivas contribuições de Saes (1998a; 2014; 2016) e Boito Jr. (2007; 2016) no encaminhamento de certas ambiguidades contidas nos trabalhos originais da corrente althusseriana.

A matriz althusseriana da totalidade social

De início, tratemos de delinear alguns dos pontos do arcabouço teórico que lança as bases para nosso empreendimento. Pode-se dizer que a matriz interpretativa da totalidade social, conforme a corrente althusseriana, corresponde a uma perspectiva ampliada de modo de produção. É uma perspectiva ampliada porque deixa de restringir-se à economia (ao modo de produzir, stricto sensu) para abarcar, também, a política e a ideologia (Boito Jr., 2016). Neste sentido, modo de produção e totalidade social aparecem como sinônimos, correspondendo a uma realidade estruturada, na qual “economia, política e ideologia são níveis, instâncias orgânicas, articuladas entre si segundo leis específicas” ( Althusser, 2005, p. 24).

Assim, uma consequência importante dessa concepção é notada por Saes (2014, p. 3): o esquema infraestrutura/superestrutura - no qual o segundo termo seria determinado pelo primeiro - “cede lugar a uma pluralidade de estruturas, cujo relacionamento é mais complexo que o relacionamento unilateral entre base e topo”. Ou ainda, conforme Dosse (1993, p. 339), pode-se dizer que “Althusser substituiu a vulgata mecanicista da teoria do reflexo por uma totalidade estruturada na qual o sentido é função da posição de cada uma das instâncias do modo de produção”.

Milton Santos (2002 a ), por sua vez, parece intentar, na segunda parte de Por uma geografia nova, justamente a elevação o espaço à categoria de estrutura social. Reportando-se aos “que consideram a sociedade como um sistema ou uma estrutura”, marxistas ou não marxistas, o autor critica-os pela generalizada omissão ao espaço na listagem das instâncias componentes dessa totalidade estruturada ( Santos, 2002a, p. 177). Vale dizer, ainda, que o autor chega a citar autores de destaque vinculados ao grupo althusseriano, como Charles Bettelheim e Marta Harnecker, justamente para apontar, em ambos, a omissão quanto ao espaço na listagem de instâncias/estruturas sociais ( Santos, 2002a, p. 178-179).

Seriam justas essas críticas? Entendemos que sim, se inseridas na esteira da crítica à subestimação do espaço geográfico pela teoria social crítica ( Soja, 1993). Ou seja: não há, nesses autores, como de resto em grande parte da herança marxista, um tratamento detalhado do espaço enquanto dimensão ativa da realidade social, problema que Milton Santos pretende encaminhar. Entretanto, a inclusão do espaço ao esquema althusseriano deve ser proposto tomando-o como uma estrutura tal qual as demais? Quais as consequências de tomá-lo enquanto estrutura social? Há maneiras de ressaltar seu papel ativo como dimensão da realidade social, dentro da matriz interpretativa do marxismo estrutural, sem considerá-lo ele mesmo uma estrutura social? Para levantar as bases da tentativa de resposta às questões, torna-se central a definição do conceito de estrutura segundo a corrente teórica aqui adotada.

Antes, entretanto, vale desde já anunciar nossa suposição: o espaço pode ser considerado uma estrutura no sentido geral do termo - ou seja, aquele sentido comum a abordagens ditas estruturais em ciências humanas, de modo que a consideração do espaço como estrutura social, sugerida por Santos (2002 a ), é adequada e condizente com seus propósitos. Entretanto, não se enquadra exatamente como uma estrutura social nos termos específicos do marxismo estrutural. Vale dizer que esse entendimento não pressupõe a indicação de um suposto equívoco na obra do autor. Isto porque levar ao limite uma teorização sobre o espaço mantendo estrita fidelidade ao arcabouço althusseriano não esteve entre seus propósitos. Afinal, constatar a existência de inspiração do marxismo estrutural na obra de Santos não implica em que seja a única, nem em que seja absoluta. Deste modo, nossa proposta resta como um exercício teórico retrospectivo, empreendido com a única finalidade de promover o debate teórico e indicar possíveis aproximações.

Também vale ressaltar que, conforme entendemos, a rejeição do enquadramento do espaço geográfico como estrutura social não implica em anulação da consideração de seu papel ativo, nem impede de tomá-lo como um fator ou fato social que incide e condiciona as ações e o funcionamento das estruturas propriamente ditas. Antes, uma solução para o enquadramento do Espaço - dotado das propriedades destacadas por Santos - no arcabouço do marxismo estrutural é encontrada na própria obra do geógrafo brasileiro, através de sua categoria de formação socioespacial. Como será demonstrado adiante, tomar o Espaço como algo diferente de estrutura justamente realça aspectos inovadores contidos nas formulações de Milton Santos.

Estrutura social: sentido comum e específico

É a partir do século XIX que o conceito de estrutura passa a ser incorporado às ciências sociais, o que se dá pela obra de autores tão distintos quanto Spencer, Marx, Durkheim e Radcliffe Brown. Conforme Dosse (1993), o conceito de estrutura social

traz implícitas algumas idéias subjacentes, tais como: totalidade, interdependência das partes, auto-regulação e transformação. Dir-se-ia que esse conjunto de termos constitui e reúne os vários autores que discutem a sociedade como sendo determinada por causas positivas, exteriores aos indivíduos, sendo o comportamento humano uma resultante de leis dos processos sociais. ( Minayo, 2001, p. 8).

Neste mesmo quadro, para Firth (1983, p. 35), a estrutura social “compreende as relações das partes com o todo, o arranjo no qual os elementos da vida social estão ligados”. Mais do que isso, seria “o recurso analítico que serve para compreender como os homens se comportam socialmente” ( Firth, 1983, p. 36), remetendo à ideia geral de que a estrutura social pode ser considerada algo que se impõe aos indivíduos, condicionando suas práticas sociais.

Isto posto, neste nível mais geral, entendemos que o espaço geográfico poderia ser sustentado enquanto uma estrutura social: seu funcionamento está condicionado a uma totalidade e suas partes constituintes aparecem de maneira interconectada e interdependente. Neste sentido, uma abordagem do espaço enquanto realidade estruturada aparece de forma particularmente clara em Espaço e método: nela, o espaço é descrito como um sistema de sistemas ou sistema de estruturas e são listados os diversos elementos e variáveis de cuja interação resultaria a dinâmica socioespacial ( Santos, 2008a ).

Ademais, e entendemos ser este um dos objetivos aos quais Milton Santos (2002 a ) dedica a segunda parte de seu clássico Por uma geografia nova, o espaço também assume um papel ativo, ou seja: como as outras estruturas sociais, o espaço geográfico também se impõe aos indivíduos de modo inescapável, contribuindo para moldar ativamente os rumos da sociedade. Numa formulação conhecida: o espaço não é mero receptáculo sobre o qual se desenrolam os eventos, mas um fator ou fato social que condiciona as ações. Vale dizer que estamos de acordo com Santos no que acreditamos ser uma das mais bem-sucedidas propostas de reafirmação do espaço na teoria social crítica ( Soja, 1993), que o autor constrói ao elevar o espaço geográfico ao status de categoria filosófica pela via de considerá-lo justamente uma estrutura ou instância social, termos que o autor parece usar de maneira intercambiável.

Entretanto, se por um lado a acepção mais geral do termo estrutura social permite abrigar o espaço geográfico (posto que se impõe aos indivíduos e pode ser lido enquanto realidade estruturada), entendemos que, no sentido específico do termo adotado pela corrente althusseriana, essa associação figuraria como indevida.

Já foi dito, na seção anterior, que o aspecto central da contribuição althusseriana para nosso exercício aqui empreendido é a percepção ampliada de modo de produção, correspondendo a uma totalidade social estruturada. Mas o que são exatamente as estruturas conforme essa acepção? Para contornar as longas discussões a respeito do conceito de estrutura nos textos da escolha althusseriana - uma vez que não há definição consensual e absoluta - lançaremos mão aqui principalmente da interpretação cuidadosa de Saes (2014, p. 4), que fornece uma síntese que nos parece acertada: para o autor, uma estrutura consistiria “no sistema de ideias que se impõe às práticas de um determinado tipo, enquadrando-as e confinando-as dentro de certos limites”, atuando, assim, “como o guia ideológico de uma prática de certo tipo, permitindo sua reprodução constante e assegurando sua durabilidade no tempo histórico”.

Têm-se, portanto, que as estruturas fornecem a base fundamental de valores que informam as práticas sociais. Em outra formulação, pode-se dizer que a ação de determinado indivíduo é condicionada pelos valores próprios do lugar ocupado por ele em determinado conjunto de relações sociais. É essa a tese da determinação estrutural ( Boito Jr., 2016). Ao mesmo tempo, a estrutura não existe senão justamente nas práticas dos indivíduos portadores das relações sociais. Neste sentido, as práticas são os suportes das estruturas. Ou, como posto por Motta (2014, p. 56), as estruturas são estruturantes das práticas (na reprodução) ao mesmo tempo em que não deixam de ser estruturadas por estas (na transformação).

Chega-se assim à celebre tese de que a história é um processo sem sujeito. Para além do alvoroço que a postulação causou em certos círculos marxistas, quer dizer tão somente que, em conformidade com o Marx materialista, a dinâmica histórica é dada por imperativos que escapam aos indivíduos: é dada antes pelas estruturas que informam as ações dos agentes coligidos enquanto grupos funcionais. Neste sentido, a tese da determinação estrutural aparece principalmente como um antídoto às concepções voluntaristas que enxergam os indivíduos como dotados de pleno livre-arbítrio, imunes às sanções ideológicas que emergem como efeito das estruturas.

Isto posto, entendemos que dar ênfase às estruturas que lançam as bases para a reprodução do modo de produção capitalista não implica necessariamente em determinismo ou fatalismo. Benton (1984, p. 214) propõe que as estruturas não sejam vistas como algo que se impõe de fora aos homens, e sim como algo que se incorpora à visão de mundo dos indivíduos. Neste sentido, podemos remeter à noção de ideologia. Para Therborn (1987, p. 13), sua função consiste basicamente na “ modelación de la forma en que los seres humanos viven sus vidas como actores conscientes y reflexivos en un mundo estructurado y significativo. La ideología funciona como un discurso que se dirige o - como disse Althusser - interpela a los seres humanos en cuanto sujetos”. Seguindo outra ressalva de Benton (1984, p. 214), vale dizer que as estruturas não devem ser vistas necessariamente como constrangedoras das possibilidades de ação dos indivíduos, mas também como fornecedoras de possibilidades de ação. Como exemplo, podemos pensar como Boito Jr. (2016, p. 166), para quem as relações jurídicas e ideológicas do modo de produção capitalista podem contribuir para a organização da luta reivindicativa da classe operária. Pensando nesses termos, a associação direta da explicação estrutural ao determinismo ou fatalismo é difícil de ser sustentada ( Benton, 1984, p. 214).

Vale dizer, ainda que de passagem, que Milton Santos (2002 a , p. 95) parece partilhar com os althusserianos a tese da determinação estrutural: o autor lembra que a própria noção de sociedade organizada pressupõe “a precedência das práxis coletivas, impostas pela estrutura da sociedade e às quais se subordinam as práxis individuais”. Ainda para Santos (2002a, p. 96), o espaço seria “ resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais”.

Matriz convencional e matriz alternativa

E quais são essas estruturas condicionantes das práticas sociais? Quantas são? Vale dizer que a leitura mais usual da proposta teórica do marxismo estrutural corresponde a uma fórmula trinitária, compreendo as estruturas econômica, jurídico-política e ideológica ( Harnecker, 1973). Além disso, haveria uma espécie de hierarquia ordenadora das relações entre as estruturas: uma delas (a econômica) seria a determinante em última instância, na medida em que outorgaria às demais estruturas seu lugar na matriz da totalidade social, com uma delas assumindo o posto de sobredeterminante em dado modo de produção ( Motta, 2014). Como se vê, é uma discussão um tanto intricada e que repõe em novas bases um certo economicismo.

Entretanto, se essa é a versão oficial da matriz interpretativa da totalidade social dessa corrente teórica, Saes (1998 a ) observa uma versão alternativa, presente principalmente nas pesquisas concretas dos epígonos do marxismo estrutural: nesta matriz alternativa, pensa-se num esquema de implicação recíproca entre as estruturas, dispensando a discussão sobre uma suposta hierarquia ou sobredeterminação: todas se condicionam reciprocamente, cada qual mantendo sua autonomia relativa. Deste condicionamento recíproco é que emergiria a dinâmica reprodutiva de um dado modo de produção.

Outra implicação dessa matriz alternativa é a exclusão da estrutura ideológica. Como apontado por Saes (1998 a ), a ideologia não pode ser considerada como uma estrutura à parte, como as outras, na medida em que é antes efeito das estruturas. Afinal, já foi dito que o efeito das estruturas é conceder a base de valores que orientará a ação dos agentes em suas práticas. Ora, essa base de valores não é outra coisa senão ideológica. Neste sentido, a ressalva de Saes está de acordo com certas postulações do próprio Althusser (2017. p. 58), para quem “a ideologia se introduz em todas as partes do edifício e constitui esse cimento de natureza particular que garante o ajuste e a coesão dos homens em seus papeis, suas funções e suas relações sociais”.

Dito isso, resta que a referida matriz alternativa corresponde a uma fórmula binária, compreendendo as estruturas econômica e jurídico-política e tendo a ideologia como reflexo de ambas sobre as práticas dos agentes-suportes. Neste sentido, a estrutura econômica capitalista, por exemplo, condiciona a prática econômica dos agentes, impondo aos destituídos dos meios de produção a necessidade de submissão ao assalariamento, ao passo que impõe aos proprietários o jugo da concorrência intercapitalista e os imperativos da lei de valorização ( Belluzzo, 1980; Rubin, 1980).

A estrutura jurídico-política do capitalismo, por sua vez, como apontado por Poulantzas (2019), estende formalmente os direitos (em especial o direito à propriedade) a todos os indivíduos, tratando como iguais os desiguais e contribuindo assim para desintegrar a identidade de classe dos agentes do processo produtivo. Ao mesmo tempo, a forma de organização burocrática do aparelho estatal faz com que este apareça ideologicamente como um ente neutro, representante dos interesses de toda a sociedade, aglutinando em torno de si justamente os agentes atomizados pelo direito burguês ( Saes, 1998 b ; Boito Jr., 2019).

Disso constata-se a referida condição de interdependência e condicionamento recíproco entre as estruturas sociais. A estrutura econômica capitalista não resiste sem o reforço ideológico advindo das “normas e valores do Estado capitalista [que] permitem a reprodução incessante da inserção relativamente pacífica dos trabalhadores no processo de produção/exploração capitalista” ( Boito Jr., 2019, p. 8). Inversamente, a estrutura jurídico-política capitalista também depende da existência de uma estrutura econômica capitalista, tendo na preservação desta sua razão de ser, e sendo os agentes hegemônicos da estrutura econômica capitalista aqueles em melhores condições para exercer o poder político em prol de seus interesses.

Cabe ainda aqui uma última ressalva: certamente as duas estruturas, compreendidas pela referida matriz alternativa, não esgotam as dimensões da realidade social. Há práticas artísticas, filosóficas, científicas, religiosas etc. que correspondem a aspectos fundamentais da vida social e são irredutíveis às estruturas econômica ou jurídico-política. Como conciliá-las ao esquema aqui exposto? Aqui, mais uma vez, cremos que Saes (2014, p. 6) fornece uma solução pertinente: a distinção teórica entre estrutura e instância. Ao passo que as estruturas articuladas fornecem a base fundamental de valores que garantem a reprodução da vida social, as instâncias se configuram e se desenvolvem, como tipos específicos de práticas, justamente a partir desse sistema de valores estabelecidos pelas estruturas. Ou seja, as instâncias são aspectos fundamentais da vida social, embora tributárias do sistema básico de valores fornecidos pela articulação das estruturas sociais. Assim, ao passo que Santos (2002 a ) emprega os termos estrutura e instância de maneira alternada, como sinônimos, entendemos que distingui-los é aqui válido: afinal, estamos aqui lançando mão de uma matriz interpretativa da totalidade social baseada no marxismo estrutural, e essa distinção (entre estrutura e instância) não prejudica a proposta, a ser sustentada adiante, de inserção do Espaço nessa matriz partindo da categoria de formação socioespacial e não dos conceitos de estrutura e/ou instância.

É digno de nota que, no presente texto - ao fazer uso da ideia de matriz alternativa -, estamos recorrendo principalmente a uma leitura atualizada da corrente althusseriana, que incorpora depurações e avanços feitos por comentadores e continuadores da obra do filósofo francês e seu grupo. Estas leituras alternativas e contemporâneas do marxismo estrutural não estavam, naturalmente, acessíveis a Santos quando da redação de seus textos aqui analisados. Pontos do althusserianismo questionados e encaminhados pela vertente aqui adotada, como as ideias de sobredeterminação e determinação em última instância pelo econômico - rejeitados, vale dizer, por Santos (2002a) - eram usualmente vistos como intrínsecos a esse arcabouço teórico. Sendo assim, entendemos que recorrer a essa leitura alternativa do marxismo estrutural - mesmo que seja diferente daquela versão predominante à época do contato de Santos com a corrente - apresenta as vantagens de encaminhar alguns pontos rejeitados pelo próprio geógrafo brasileiro. Ademais, mantém fidelidade a uma concepção mais geral da totalidade social como resultante da articulação de uma pluralidade de esferas, essencial para o desenvolvimento de nossa argumentação, a seguir, sobre como o espaço poderia ser inserido a esse esquema interpretativo através de proposições encontradas na obra de Santos.

As estruturas sociais e o espaço geográfico

A esta altura da exposição, cremos já haver elementos suficientes para afirmar que o espaço geográfico não se enquadra como estrutura social - nem instância - no edifício teórico althusseriano. Como foi exposto, estruturas são aquelas que fornecem a base de valores fundamentais de uma determinada forma de organização social e assim condicionam as práticas de determinado tipo (e. g. a estrutura econômica condiciona a prática econômica). Em implicação recíproca, as estruturas (econômica e jurídico-política) do capitalismo contribuem para assegurar a reprodução da totalidade social capitalista. Ainda, as estruturas não possuem existência concreta senão através de seus agentes-suporte (isto é, indivíduos cujas práticas reproduzem determinado padrão de relações sociais). Ora, o espaço é diferente. Em primeiro lugar, o espaço existe por si, concretamente: suas formas são dotadas de autonomia de existência ( Santos, 2008 b , p. 59). Ademais, seria difícil argumentar pela existência de um certo tipo de prática espacial que sustentaria uma estrutura. Há certamente práticas no espaço. Todas as práticas, aliás, se dão no espaço, mas motivadas por valores cuja base ideológica é fornecida pelas estruturas sociais propriamente ditas. Afinal, os objetos não são dotados de autonomia de significação ( Santos, 2008a, p. 59), estando os valores dos objetos geográficos dados segundo a estrutura socioeconômica específica de dada sociedade ( Santos, 2008b, p. 73).

Isto posto, passemos a um segundo ponto: considerar o espaço como algo diferente de estrutura conforme os parâmetros althusserianos não implica em prejuízo na consideração de seu papel ativo. Em primeiro lugar, há os limites de se pensar apenas nos termos das estruturas de um modo de produção. Até aqui, a discussão versava sobre conceitos contidos num nível elevado de abstração. Afinal, o conceito geral de modo de produção ampliado (ou todo social estruturado) de que lançamos mão, assim como a breve descrição das estruturas econômica e jurídico-política do modo de produção capitalista, são conceitos que designam objetos abstrato-formais não existentes na realidade senão historicizados e espacializados. Para tanto, faz-se necessário o recurso a um outro nível de abstração mais concreto, capaz de apreender as determinações particulares das formações sociais realmente existentes ( Althusser, s.d.). Afinal, é apenas “no nível mais concreto do conceito de formação social que as particularidades históricas de uma determinada sociedade pode ser caracterizadas” ( Lazagna, 2017, p. 30-31). Como colocado por Boito Jr. (2016, p. 168): “o conceito de formação social trata da maneira como um determinado modo de produção vigora numa sociedade historicamente determinada, podendo (...) comportar elementos econômicos, políticos e sociais de modos de produção anteriores ao capitalismo”.

Ou seja, mesmo que na enorme maioria das formações sociais do ocidente predominem estruturas capitalistas - isto é, um estado capitalista, um conjunto de direitos liberais e a divisão dos agentes econômicos entre assalariados e capitalistas -, há diferenças entre as realidades internas a cada formação. Certamente a referência ao conceito de modo de produção capitalista é necessária, posto que as determinações deste permitem explicar aspectos fundamentais das totalidades concretas nas quais suas estruturas predominam. Entretanto, as especificidades de cada realidade concreta emergem como consequências da história de cada formação social: as estruturas predominantes sobrepõem-se a outras, coexistentes, e às heranças de modos de produção pretéritos. É a categoria de formação socioespacial “que permite a análise do que é singular a cada país e que, vista como um partido de método, pode evitar comparações descontextualizadas entre os diferentes Estados-nação” ( Grimm, 2011, p. 161).

Mais que isso, no plano das estruturas de um modo de produção estamos no nível da reprodução e da sincronia: não há espaço para contradições, afinal, trata-se de estruturas mutuamente implicadas na reprodução de determinado padrão social ( Saes, 2016). Entretanto, essa reprodução não é linear, mas ampliada, assumindo a forma de desenvolvimento em espiral: ainda que as estruturas tendam a se reproduzir indefinidamente, há um subjacente desenvolvimento progressivo das forças produtivas ( Saes, 2016, p. 129). Este, por sua vez, pode fazer emergir efeitos contraditórios de desestruturação da totalidade social. Assim é que podemos dizer, com Boito Jr. (2007, p. 53), que a contradição não está na estrutura, mas em seus efeitos. Para usar diretamente as palavras de Balibar (1980, p. 254), de cujos insights os autores supracitados se valeram para tratar sobre a questão da transição, “a contradição não é, pois, originária, mas derivada”. Assim, os processos em direção à superação de um modo de produção só podem ser observados com referência a cada formação social, nível de abstração que permite avaliar a operação concreta das estruturas e seus efeitos potencialmente contraditórios em totalidades sociais historicamente determinadas. Sendo assim, a categoria de formação social (ou formação socioespacial, como será indicado) “ se refiere a la combinación particular y concreta, esto es, um orden espacial de objetos, paralelo a un orden económico, social, político, cultural y simbólico”, conformando um “ conjunto articulado de órdenes [que] atribuye un valor propio a las cosas, hombres y acciones” ( Silveira, 2014, p. 153).

Isto posto, fica clara a centralidade do conceito de formação social para a análise da realidade concreta. E é exatamente neste nível que, conforme entendemos, o espaço pode ser adequadamente inserido como dimensão fundamental da realidade social. Neste sentido, retomamos as contribuições do próprio Milton Santos ao debate sobre formações sociais: para o autor, “nenhuma outra categoria poderia ser mais adequada ao estudo do espaço, porque essa categoria permite que não nos afastemos da realidade concreta” ( Santos, 2002a, p. 213). Dentro deste quadro, Santos (2005, p. 32) sustenta o espaço enquanto categoria fundamental para a correta assimilação das determinações de uma formação social, sendo que “a unidade da continuidade e descontinuidade do processo histórico não pode ser realizada senão no espaço e pelo espaço”, de tal modo que “a evolução da formação social está condicionada pela organização do espaço”.

Tendo autonomia de existência, as formas espaciais (ou objetos geográficos) restam para além dos processos que as criaram, passando a, inevitavelmente, condicionar as ações futuras ( Santos, 2002a). Uma estrutura predominante em determinada formação social opera sobre um suporte espacial historicamente determinado: sendo um acúmulo desigual de tempos, o espaço apresenta simultaneamente objetos cujas criações remontam a momentos distintos e valores motrizes distintos. Assim, a lógica predominante em dado momento não pode fazer tabula rasa da história pretérita de dada formação social, posto que suas heranças estão inscritas no espaço e condicionam as novas ações ( Santos, 2002a, p. 182). Deste modo, seguindo orientação de Santos (2002a; 2005), passaremos a nos referir à formação social como formação socioespacial, posto que o espaço geográfico é sua dimensão fundamental.

Sendo assim, talvez possamos dizer que o espaço geográfico é o suporte necessário às estruturas historicizadas. Com essa caracterização não se rejeita seu papel ativo. Pelo contrário: como já referido, o espaço e suas rugosidades condicionam a operação concreta das estruturas em dada formação social. Mais que isso, a categoria de formação socioespacial permite confrontar a sincronia da estrutura social operante no sentido de sua perene autorreprodução com a consideração dos efeitos potencialmente contraditórios da reprodução ampliada, abrindo margem para a consideração da diacronia. Entendemos ser esse um sentido muito razoável para a afirmação de Santos de que o espaço suprime as possibilidades de oposição entre estrutura e história ( Santos, 2005, p. 31). Como uma âncora na realidade, o espaço enquanto “componente fundamental da totalidade social” ( Santos, 2005, p. 33) permite pôr em perspectiva histórica e concreta conceitos que do contrário restariam num plano abstrato. E, neste sentido, “ la formación socioespacial es una categoría que podría llevarnos a la superación de dialécticas incompletas como tiempo-espacio o sociedad-naturaleza, basadas en la lógica de los conceptos puros” ( Silveira, 2014, p. 156).

A chave para estabelecer, conforme a leitura proposta, a interface entre as estruturas (e esferas sociais) e o espaço geográfico, entendemos estar justamente no caráter híbrido deste. Afinal, diferente da configuração territorial, composta apenas pela materialidade, o espaço é o conjunto de objetos mais as ações que se realizam sobre estes objetos ( Santos, 2008 b , p. 78). Assim, se os objetos enquanto formas materiais dispõem de uma existência autônoma, seu funcionamento só pode ser compreendido com referência às práticas sociais que atribuem significação às materialidades ( Santos, 2002a ,p. 187; 2008b, p. 58-59). Sendo assim, o espaço deve ser corretamente apreendido a partir dessa relação intrínseca das formas espaciais com as funções e significações que lhe são atribuídas em dado momento.

Se “a sociedade estabelece os valores de diferentes objetos geográficos, e os valores variam segundo a estrutura socioeconômica específica dessa sociedade” ( Santos, 2008a, p. 73), então as práticas sociais, as ações (condicionadas pelas estruturas), são o ponto nevrálgico em que as determinações das estruturas sociais se impõem ao espaço, ao mesmo tempo em que as rugosidades do espaço-testemunho imprimem sua marca no delineamento da dinâmica social, ao transportar para o presente determinações herdadas de momentos anteriores. É desta forma que as estruturas e relações sociais dominantes em dado período entram em contato com “um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente” ( Santos, 2002a, p. 153), constituindo um momento de um processo cuja resultante é a evolução da totalidade concreta, a formação socioespacial.

Considerações finais

Em linhas gerais, pode-se dizer que a presente leitura se insere em certa tradição geográfica que toma as contribuições do marxismo estruturalista para, partindo delas, pensar o espaço geográfico. Como colocado por Benach (2012, p. 291), “ si Althusser había concentrado sus esfuerzos en teorizar las relaciones entre estructuras, los geógrafos marxistas intentaron hacer lo propio pensando las relaciones entre modos de producción y espacio”. Entretanto, a ideia aqui contida difere essencialmente de uma das mais famosas propostas de linhagem althusseriana em estudos espaciais, que é aquela exposta em A questão urbana. Em que pese as grandes contribuições e avanços representados pela obra, o empreendimento de Castells (2020) parece ser principalmente o de projetar sobre o espaço as determinações das estruturas sociais. O que nos permite desviar dessa leitura é justamente a tentativa de manter fidelidade à proposta essencial de Milton Santos: a de conceder papel ativo ao espaço geográfico, não o entendendo apenas como um espelho da sociedade, mas como fator determinante no desenvolvimento desta. Nesse quadro, o entendimento aqui proposto do espaço como algo diferente de estrutura social não ecoa velhas acusações de suposto fetichismo espacial, como a encontrada em Souza (1988).

Discordamos de Silva e Voigt (2021), segundo quem o saldo das contribuições teóricas de Santos em seus diálogos com o althusserianismo - pensando principalmente na releitura da categoria de formação social e seu destaque ao papel das formas espaciais no delineamento da evolução social - teria como ponto de chegada um definitivo afastamento e incompatibilidade das propostas do geógrafo brasileiro em relação ao marxismo estrutural. Pelo contrário, nós defendemos aqui que estes mesmos pontos da obra de Santos são, na verdade - como procuramos argumentar ao longo de todo o texto -, compatíveis com uma matriz de interpretação da totalidade social baseada no marxismo estrutural. Isso não quer dizer, frise-se, que o autor não recorresse a outras correntes teóricas em suas elaborações à época, nem que não subscrevesse a todas as posições inerentes ao marxismo estrutural - é inegável que Santos sempre foi crítico da ideia de uma sobredeterminação do econômico, por exemplo -, mas tão somente que esses afastamentos e/ou discordâncias não são insolúveis e não confrontam o mais fundamental de uma compreensão crítica estrutural da realidade. Mais do que meramente compatível, entendemos que as contribuições de Santos tratadas neste artigo (justamente a categoria de formação socioespacial e a defesa do papel ativo das formas espaciais) permitem avanços fundamentais que podem contribuir para a apreensão da realidade partindo de uma matriz interpretativa de inspiração althusseriana.

Assim, concordamos com Pedrosa (2018, p. 445) quanto a que Santos incorporou contribuições do althusserianismo como ferramentas para fortalecer a geografia crítica brasileira, mas não se limitou a meramente reproduzir ideias importadas, retrabalhando conceitos e proporcionando contribuições altamente originais e valiosas, como é o caso do conceito de formação socioespacial. Peet (1998. p. 127) também dá destaque à categoria de formação socioespacial enquanto exemplo de elaboração original de Santos resultante de seu diálogo com o marxismo estrutural.

Vale frisar - mesmo sob risco de repetição - que a consideração do espaço como algo diferente de estrutura no arcabouço althusseriano não reflete um juízo de que sua importância como dimensão da realidade social seja menor. Antes, advém do fato de que não se enquadra na significação de estrutura conforme essa corrente do pensamento: diferentemente das estruturas sociais da matriz althusseriana, o espaço - ainda que apenas em parte - existe autonomamente ( autonomia de existência das formas geográficas) e não corresponde a um tipo específico de práticas sociais. É justamente sua especificidade enquanto híbrido, com suas formas existindo autonomamente, mas sendo necessariamente animadas e significadas pelo conjunto das ações, que torna necessário ao espaço uma outra categorização, que justamente ressalte suas particularidades. E, neste sentido, é como suporte necessário à historicização das estruturas sociais - ou formação socioespacial - que o espaço assume importância ímpar para a análise da realidade pelo prisma do marxismo estrutural: sua consideração sugere um encaminhamento da contradição entre história e estrutura, permitindo contemplar a diacronia e a contradição presentes em cada formação socioespacial, mas que restariam ocultas caso a análise se restrinja ao nível abstrato-formal.

Vale ressaltar, também, que a proposta de tomar o espaço como suporte necessário às estruturas não pressupõe considerar equivocada a atribuição de um status de estrutura social ao espaço geográfico, como sugerido, por exemplo, na segunda parte de Por uma geografia nova ( 2002a). Isso porque, caso julgássemos dessa forma, estaríamos cobrando do autor um compromisso junto aos pressupostos althusserianos que em nenhum momento é firmado. Deste modo, não estamos propondo retificações à obra do autor: tratou-se antes de um exercício teórico específico, consistindo em ler parte de suas contribuições à luz do esquema interpretativo althusseriano, buscando levar esta aproximação ao limite. Tratou-se, portanto, de um empreendimento teórico retrospectivo, com o objetivo de promover o debate teórico.

Assim, no presente artigo procurou-se tratar sobre um aspecto da obra de Milton Santos que está longe de ser esgotado: sua aproximação teórica e seu diálogo com a corrente do marxismo estrutural, perceptível sobretudo em suas obras teóricas de meados das décadas de 1970 e 1980. Vale ressaltar a importância de futuras discussões a este respeito: mesmo que se entenda obras posteriores do autor - pensando aqui sobretudo em A natureza do espaço ( 2002b) - como sistematizações mais completas e acabadas de seu projeto intelectual de teorização sobre o espaço geográfico, a recuperação e análise de suas propostas precedentes permanece relevante. Como indicado por Nobre (2018), obras anteriores ao esforço maior de sistematização do pensamento de grandes autores guardam interesse por conter, potencialmente, o gérmen de outras leituras possíveis, permitindo iluminar certos aspectos de sua obra que, de outra forma, restariam opacos.

Neste sentido, e com o propósito de avançar - ainda que pouco - na proposta de investigar as relações de certas discussões de Milton Santos com a corrente do estruturalismo marxista, foi proposto no presente artigo um exercício teórico específico e consciente de suas limitações. Destarte, conforme explicado na última seção, chegou-se à conclusão de que não há incompatibilidade entre o esquema althusseriano de interpretação da totalidade social e a concepção do espaço geográfico como dotado de papel ativo. Mais que isso, o espaço, por meio da categoria de formação socioespacial, corresponde a uma dimensão fundamental da realidade cuja análise é imprescindível para a correta apreensão da realidade concreta. Neste sentido, assim como a análise do lastro althusseriano de certas elaborações de Milton Santos ajuda a iluminar certos pontos de sua obra, também a obra de Santos pode contribuir largamente com as teorizações do marxismo estrutural, ressaltando o papel do espaço na construção de um arcabouço analítico capaz de desvendar as determinações do presente.

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  • Declaração de Financiamento
    O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio à pesquisa da qual resultou este artigo (Processo 2021-05752-7), bem como ao financiamento da versão em inglês do mesmo (Processo 2022/03409-6).

Editado por

  • Editor do artigo:
    Fabio Betioli Contel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2021
  • Aceito
    12 Ago 2023
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