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A pé e com fé: brasileiros no Caminho de Santiago

RESENHAS

Antônio Mendes da Costa Braga

Universidade do Vale do Paraíba – Brasil

CARNEIRO, Sandra de Sá. A pé e com fé: brasileiros no Caminho de Santiago. São Paulo: CNPq/Pronex: Attar, 2007. 277 p.

Uma primeira questão passível de ser relacionada ao livro A Pé e com Fé: Brasileiros no Caminho de Santiago, de autoria da antropóloga Sandra de Sá Carneiro, pode ser construída antes da leitura do mesmo. Trata-se da ausência no mercado editorial brasileiro de publicações de estudos produzidos a partir do campo acadêmico, notadamente das ciências sociais, que tenham como objeto o tema abordado. Logo, como afirma Pierre Sanchis na apresentação,

é possível que estudos futuros passem a nos revelar outros matizes do Caminho e da prática peregrina. É certo, em todo caso, que aquele aqui exemplarmente relatado entrega-nos [ ] uma chave preciosa para entender [ ] dimensões irrecusáveis na religião contemporânea. (p. 16).

A essa observação de Sanchis permito-me acrescentar que a obra de Sandra de Sá Carneiro começa a preencher um vácuo no espaço das publicações produzidas no campo acadêmico brasileiro1 1 No que se refere aos estudos acadêmicos que foram publicados no Brasil sob a forma de livro – e que tem o Caminho de Santiago como tema – tenho conhecimentos apenas do livro de Francisco Singul, O Caminho de Santiago: a Peregrinação Ocidental na Idade Média, publicado pela Eduerj (Rio de Janeiro) em 1999, sendo que se trata de um livro que, como o título sugere, analisa o fenômeno numa perspectiva histórica (focando na Idade Média), além de ser uma obra traduzida do espanhol. Isto é, foi originalmente produzida a partir do campo acadêmico espanhol. que tem o rico e expressivo fenômeno das peregrinações do/no mundo ocidental contemporâneo como tema de estudo, e dentro do qual o Caminho de Santiago pode ser tomado como um dos paradigmas.

A emergência e expressividade do fenômeno das ("novas formas de"2 2 O uso das aspas aqui tem o objetivo de construir uma hipérbole, precisamente exagerando o caráter de "novidade" dessas novas formas de peregrinação, posto que, como muito bem demonstra Sandra de Sá ) peregrinações contemporâneas – notadamente na sociedade brasileira – e que tem o Caminho de Santiago como um evidente modelo de referência, é algo que já foi apontado inclusive por esta mesma autora num outro estudo, apresentado sob a forma de artigo (Carneiro, 2004). Trata-se de um fenômeno que vem se explicitando na "criação" ou "recriação" de novas rotas de peregrinações no Brasil, tendo o Caminho de Santiago como um modelo. Podemos citar como exemplos o Caminho do Sol (São Paulo), o Caminho da Luz (Minas Gerais), o Caminho das Missões (Rio Grande do Sul), os Caminhos de Ibiapina (Paraíba), dentre outros.

Vale também observar que temos importantes estudos sobre romarias, publicados em língua portuguesa, como Arraial: Festa de um Povo: as Romarias Portuguesas (Pierre Sanchis, 1983), Cavaleiros do Bom Jesus: uma Introdução às Religiões Populares (Rubem César Fernandes, 1982) e O Sertão das Romarias: um Estudo Antropológico sobre o Santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia (Carlos Alberto Steil, 1996). Contudo esses estudos, ao trazerem importantes contribuições para o debate acadêmico sobre as peregrinações – de tal monta que a própria Sandra Carneiro utiliza-se de alguns desses autores e suas respectivas obras como interlocutores privilegiados –, assim o fazem a partir de objetos de estudos que, grosso modo, podem ser identificados como modalidades de peregrinações claramente populares. Isto é, trata-se de estudos baseados em pesquisas realizadas em contextos onde os principais atores das peregrinações – os romeiros – são em sua grande maioria pertencentes a camadas ou grupos populares. Os peregrinos do estudo de Sandra Carneiro, por outro lado, são provenientes das camadas médias da sociedade brasileira.

Creio que o fato de os agentes envolvidos no primeiro caso o denominarem de romaria, enquanto os agentes envolvidos nos rituais analisados por Sandra Carneiro o denominam de peregrinação constitui algo extremamente significativo. Significativo inclusive no sentido geertziano de "que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu" (Geertz, 1989, p. 15). Ou, noutros termos, contrastando o estudo desta autora com as outras obras já citadas fico a pensar se, em certa medida, o ser romeiro e o ser peregrino não os estariam remetendo a formas até certo ponto relativamente distintas de serem e se perceberem enquanto tais e em relação aos sentidos e interpretações que eles dão às romarias e peregrinações.

Nisso reside uma das grandes qualidades do livro de Sandra de Sá Carneiro: o estilo discursivo, a qualidade do material empírico e das chaves interpretativas oferecidas pela autora nos permitem uma relação reflexiva com este seu texto. Aspecto esse que se inicia já no seu escopo de interessar-se por um ator social – os peregrinos brasileiros do Caminho de Santiago – que, numa primeira apreciação, mais superficial (anterior à leitura do livro), poderia dar a impressão de ser um objeto de estudo que teria pouco a responder sobre questões extremante importantes relativas tanto aos fenômenos religiosos contemporâneas quanto ao fenômeno das peregrinações em específico.

Dentro do quadro de referência e análise construído pela autora, como já foi dito, é possível perceber que há primeiramente uma diferença de perfil sociocultural e econômico entre os peregrinos que fazem o Caminho de Santiago e o de romeiros como aqueles estudados por autores como Steil (1996) e Fernandes (1982), dentre outros. Daí que, confrontando os estudos sobre romarias supracitados com o livro de Sandra Carneiro constatamos, principalmente entre os capítulos 3 a 5 de A Pé e com Fé, que os brasileiros que realizam o Caminho de Santiago e que se identificam como peregrinos são em sua ampla maioria provenientes dos segmentos médios da nossa sociedade, apresentando nível educacional e perfil socioeconômico claramente distintos da maioria dos romeiros que usualmente são os atores das mais expressivas romarias populares brasileiras, como Aparecida, Juazeiro do Norte, Bom Jesus da Lapa, Trindade e outras.

Em suma, já na escolha de seu objeto, a autora nos coloca diante de um outro tipo de peregrino, relativamente diferente daquele que encontramos em estudos como os de Sanchis, Steil e Fernandes, e mesmo do clássico livro de Victor e Edith Turner, Image and Pilgrimage in Christian Culture (Turner; Turner, 1978). Há claras diferenças de caráter sociológico entre os "romeiros" estudados por esses autores e mesmo os Turner em contraste com os "peregrinos" estudados por Sandra de Sá Carneiro, sendo que tais diferenças terminam se relacionando a certas diferenciações de caráter mais antropológico. Deixo claro, todavia, que a autora não estabelece esse tipo de discussão – a questão dessas diferenças – em seu livro. Contudo, inserindo nesta resenha uma questão que não está explicitamente dada no livro em questão, embora seu conteúdo a possibilite, assim o faço para por em evidência a pertinência do objeto de estudo de A Pé e com Fé e de como este livro se insere num debate mais amplo relativo ao fenômeno das peregrinações/romarias, muito contribuindo.

Nesse caso, se, como propõe Pierre Sanchis, o livro de Sandra Carneiro nos oferece determinadas chaves interpretativas que nos possibilitam compreender melhor certas dimensões da religião contemporânea, ele também traz novas questões para o universo de estudos sobre as peregrinações religiosas, notadamente o brasileiro, mas não exclusivamente.

Um exemplo de como as chaves interpretativas oferecidas pela autora oferecem novas questões para esse universo de estudos é a presença de certos discursos e percepções dos peregrinos e que gravitam em torno da idéia de que o Caminho de Santiago seria marcado por um "pluralismo". Pluralismo dentro do qual, por exemplo, um mesmo peregrino pode transitar e acionar tanto práticas religiosas de um catolicismo mais tradicional e institucional quanto experiências claramente vinculadas a uma religiosidade do self, marcada pela ausência de mediadores do religioso e que usualmente são identificadas como práticas religiosas new age. Pluralismo que leva o peregrino a perceber sua relação com o "sagrado", o "divino", como algo que é ao mesmo tempo transcendente e imanente. Pluralismo que se expressa na diversidade e diferenças culturais daqueles que realizam o Caminho, posto que são provenientes de diferentes países, mas que durante a travessia do Caminho são vivenciadas a partir da identidade comum de "peregrino" que, ao mesmo tempo em que promove a vivência de uma série de experiências através das quais eles compartilham entre si sentimentos como solidariedade, fraternidade, compaixão, etc.,3 3 É extremamente pertinente e ao mesmo tempo muito sugestivo neste estudo de Sandra Carneiro a forma como ela demonstra que momentos de communitas (Turner; Turner, 1978) fazem parte da travessia do Caminho. E nesse caso, levando em consideração os dados oferecidos pela autora em confronto com outros estudos sobre peregrinações, numa freqüência e intensidade aparentemente muito maior do que nas romarias populares contemporâneas. também os leva a sentirem-se e perceberem-se como "cidadãos do mundo".

Contudo, como coloca a autora, "o pluralismo de que falam os peregrinos não é a simples coexistência de muitas visões de mundo. Implica também a crença de que outras perspectivas podem igualmente ser plausíveis" (p. 171). Segundo ela, passa por aí uma das principais forças de atração do Caminho de Santiago para aqueles que se propõem a serem seus peregrinos. Essa força está

em sua permanente "recriação" e "reinvenção", capaz de incorporar a diversidade do campo católico e mesmo de ressignificá-lo como também de responder a outras demandas "religiosas" ou não, de diferentes agentes e instituições, que o transformaram no símbolo máximo da comunhão entre diferentes culturas, ao longo de sua história. O que lhe confere uma abrangência transnacional e multicultura.(p. 258).

As contribuições desse estudo de Sandra de Sá Carneiro para o debate sobre a religião e o religioso no mundo contemporâneo e o fenômeno das peregrinações em particular vão além desses que citei aqui. O que fiz foi eleger algumas das suas contribuições a fim de apontar para o fato de como é bem-vinda a esses campos de estudos essa sua contribuição.

Concluo esta resenha com um fato que me chamou à atenção e que creio que seja resultado de algo que vai além de uma mera coincidência: o livro de Sandra de Sá Carneiro é uma versão revista de sua tese de doutorado, defendida em 2003. Um ano depois, em 2004, foi impressa a primeira edição de Reframing Pilgrimage: Cultures in Motion, coletânea de texto organizada por Simon Coleman e John Eade. Nessa coletânea Coleman e Eade (2004) propõem, na introdução e nas chaves interpretativas adotadas nos casos ali pesquisados, uma nova agenda para os estudos sobre peregrinações, e que parte da idéia de que elas, enquanto uma forma específica de viagem, são uma das muitas formas de mobilidade cultural deste nosso início de século XXI.

Chamou-me a atenção o fato de que Reframing Pilgrimage e A Pé e com Fé são livros que, de certa forma, foram produzidos ao mesmo tempo, e que o livro de Carneiro já incorpora, ao seu modo, as propostas de Coleman e Eade. Coincidência? Não sei!

Prefiro pensar que o universo dos estudos antropológicos conspira a favor daqueles que realizam um bom trabalho etnográfico, calcando suas análises num dialogo intenso das teorias nativas com uma literatura antropológica de qualidade, como nos sugere Mariza Peirano (1995). Acredito que A Pé e com Fé é um excelente exemplo de como isso pode ser realizado.

Carneiro no seu livro, trata-se na realidade de um fenômeno que ao mesmo tempo em que se sustenta numa tradição de longa duração assume um caráter atual – "novo" – através dos vários tipos de apropriações e (re)significações que os agentes e agências envolvidas no fenômeno da peregrinação a Santiago de Compostela dão às suas ações, performances e usos e atribuições (e disputas) de sentidos em torno dos signos, símbolos, mitos, narrativas, etc., referentes ao Caminho e à peregrinação.

  • CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá. Novas Peregrinações Brasileiras e suas Interfaces com o Turismo. Ciências Sociais e Religião, ano 6, n. 6, Porto Alegre: Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul, p. 71-100, 2004.
  • COLEMAN, Simon; EADE, John (Org.). Reframing pilgrimage: cultures in motion. London: Routledge, 2004.
  • FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução às religiões populares. São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: LTC, 1989.
  • PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
  • SANCHIS, Pierre. Arraial: festa de um povo: as romarias portuguesas. Lisboa: Dom Quixote, 1983.
  • SINGUL, Francisco. O Caminho de Santiago: a peregrinação ocidental na Idade Média. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.
  • STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • TURNER, Victor; TURNER, Edith. Image and pilgrimage in Christian culture New York: Columbia University Press, 1978.
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    No que se refere aos estudos acadêmicos que foram publicados no Brasil sob a forma de livro – e que tem o Caminho de Santiago como tema – tenho conhecimentos apenas do livro de Francisco Singul,
    O Caminho de Santiago: a Peregrinação Ocidental na Idade Média, publicado pela Eduerj (Rio de Janeiro) em 1999, sendo que se trata de um livro que, como o título sugere, analisa o fenômeno numa perspectiva histórica (focando na Idade Média), além de ser uma obra traduzida do espanhol. Isto é, foi originalmente produzida a partir do campo acadêmico espanhol.
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    O uso das aspas aqui tem o objetivo de construir uma hipérbole, precisamente exagerando o caráter de "novidade" dessas novas formas de peregrinação, posto que, como muito bem demonstra Sandra de Sá
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    É extremamente pertinente e ao mesmo tempo muito sugestivo neste estudo de Sandra Carneiro a forma como ela demonstra que momentos de
    communitas (Turner; Turner, 1978) fazem parte da travessia do Caminho. E nesse caso, levando em consideração os dados oferecidos pela autora em confronto com outros estudos sobre peregrinações, numa freqüência e intensidade aparentemente muito maior do que nas romarias populares contemporâneas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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