Resumos
Analisa o vínculo entre o biológico e o social estabelecido por Josué de Castro em seus estudos da alimentação. Estão em evidência: primeiro, como o autor introduziu os princípios da dietética moderna, ao tempo em que desvendava a fome e a subalimentação nas regiões brasileiras, com vistas a configuração da política alimentar nacional; segundo, como ampliou o debate, dando visibilidade à dinâmica dos estados e aos rumos políticos de um mundo em demolição, em que fome e alimentação eram parte intrínseca da distribuição espacial do poder. Na conjuntura pós-Segunda Guerra Mundial, os princípios dietéticos de quantidade, qualidade, harmonia e adequação foram transpostos como princípios-guia da sociedade sem fome em escala planetária.
alimentação; nutrição; fome; sociedade
This article analyzes the links between the biological and social spheres established by Josué de Castro in his studies of alimentation. First it looks at how the author introduced modern dietary principles at the same time that hunger and malnutrition were unveiled in parts of Brazil, aiming at the configuration of a national alimentation policy. Second, at it examines how he expanded the debate, giving visibility to the dynamics of states and the political direction of a world that was being dismantled in which hunger and alimentation were an intrinsic part of the spatial distribution of power. In the postwar scenario the dietary principles of quantity, quality, harmony and adequacy were transposed as the guiding principles for a society without hunger at the global scale.
alimentation; nutrition; hunger; society
ANÁLISE
Quantidade, qualidade, harmonia e adequação: princípios-guia da sociedade sem fome em Josué de Castro
Eronides da Silva Lima
Professora do Departamento de Nutrição Social e Aplicada. Instituto de Nutrição/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Apéria, 30/302. 21940-000 Rio de Janeiro - RJ - Brasil. eronideslima@terra.com.br
RESUMO
Analisa o vínculo entre o biológico e o social estabelecido por Josué de Castro em seus estudos da alimentação. Estão em evidência: primeiro, como o autor introduziu os princípios da dietética moderna, ao tempo em que desvendava a fome e a subalimentação nas regiões brasileiras, com vistas a configuração da política alimentar nacional; segundo, como ampliou o debate, dando visibilidade à dinâmica dos estados e aos rumos políticos de um mundo em demolição, em que fome e alimentação eram parte intrínseca da distribuição espacial do poder. Na conjuntura pós-Segunda Guerra Mundial, os princípios dietéticos de quantidade, qualidade, harmonia e adequação foram transpostos como princípios-guia da sociedade sem fome em escala planetária.
Palavras-chave: alimentação; nutrição; fome; sociedade.
Em momento de crise extrema como este que atravessamos, temos que enfrentar a dura verdade dos fatos e concordar com o grande Romain Rolland de que "a mentira heróica é uma covardia e que só há um heroísmo no mundo: é ver o mundo tal qual é e amá-lo assim mesmo". É nesta ordem de idéias, com a convicção que devemos todos trazer nossa cooperação pessoal para disciplinar, no bem da humanidade, as tremendas forças sociais em choque na hora presente, que apre-sentamos aos homens de boa vontade do mundo - principalmente aos dirigentes políticos, intelectuais e aos cientistas, este documento que resolvemos chamar de Livro negro.
Josué de Castro, O livro negro da fome
Diante da vastidão e profundidade da obra do autor, não é tarefa simples apreenderseu núcleo de sentido - a fome e a alimentação. O percurso feito até hoje foi marcado, de certa forma, por expressões e abordagens da fome relacionada aos estágios de desenvolvimento/subdesenvolvimento econômico-social, e pouco se tem atentado para a questão do próprio fio condutor que estabelece o marco dessa relação: o que é alimentação e nutrição, em sua concepção? Que princípios orientavam a sociedade sem fome por ele idealizada? É preciso lê-lo com mais atenção neste ponto. Para iniciar, a epígrafe acima é sugestiva, por tornar visível o centro da motivação que inspirou toda a sua trajetória como intelectual público.
Isso fica evidente a partir da estréia do primeiro livro, O problema alimentar brasileiro (Castro, 1934), em um contexto sombrio, como descrevia o jornal Diário Carioca: "1934 - Um anno tragico para a humanidade. Guerras, Revoluções, terremotos e attentados assignalaram singularmente os ultimos doze mezes". A matéria registrava que aquele ano havia sido um dos mais dramáticos dos últimos tempos depois da Primeira Grande Guerra e destacava, entre os diversos casos listados, o desfecho mais contundente: em agosto morria o presidente Hindemburg e Hitler tornava-se o supremo chefe dos alemães. Tudo acontecia logo após a 'limpeza nazista' em que ele ordenou a execução de numerosos chefes indese-jáveis. Falava-se em uma nova guerra (Um ano tragico..., 29 dez. 1934).
Quanto ao Brasil, o mesmo jornal trazia à tona a crise engendrada pela República Velha e mostrava os conflitos violentos na capital da República, chamando a atenção para as sucessivas notícias de suicídios (Suicídios..., 16 nov. 1934).1 1 A matéria apresentava dados da tabela comparativa da Diretoria Geral de Comunicações e Estatística da Policia Civil do Distrito Federal referente ao ano de 1933, onde se lê que, de 318 tentativas de suicídio, 139 foram fatais, sendo 101 homens e 38 mulheres, que por vários meios deram fim à vida. Em retrospectiva do ano em foco, denunciava os descalabros da cultura política clientelista e seus danosos efeitos, mas apontava "perspectivas optimistas" com a revolução de 1930.2 2 Sobre a Revolução de 1930, ver Fausto, 1983. Em face dos novos rumos dados pelo governo de Getúlio Vargas, o povo brasileiro tinha motivos sobejos para se manter otimista e acreditar que, em pouco tempo, seríamos senhores de uma posição econômica invejável no mundo (Perspectivas..., 16 dez. 1934).
Concomitantemente, o Jornal do Brasil havia registrado o impacto da crise na alimentação do povo, com a matéria "Frutas baratas e frutas-caras", na qual descrevia o cenário do custo de vida no mercado da capital da República: diante das bancadas, todas as classes sociais, "desde a cozinheira negra, até a senhora da alta sociedade", percorriam pacientemente o mercado e não se cansavam de 'chorar' o preço das mercadorias (Frutas baratas..., 31 mar. 1934).
Assim, em meio às hostilidades internacionais que sinalizavam uma nova guerra mundial e em clima de agitação e esperança no âmbito interno, o ano de 1934 expirava com novos e velhos desafios, que levaram Castro a tecer respostas à indagação: "É racional o nosso regime alimentar?" (É racional..., 3 nov. 1934). Não se falava explicitamente da fome, mas a questão pedia solução: "Qual o regime alimentar que devemos seguir?". Essa pequena nota da imprensa trazia ao público brasileiro os capítulos da obra Alimentação, publicado em 1934 pelo médico e professor argentino Pedro Escudero, influente iluminador em seus estudos iniciais (Qual o regime..., 4 nov. 1934).
Nesse sentido, é forçoso registrar uma primeira observação relevante: o olhar que revela precisa afastar-se de uma visão romântica do passado e sublinhar os avanços e limites dos princípios dietéticos de Castro, olhando para o futuro. A mesma indagação sobre "Qual o regime alimentar que devemos seguir?" perpetua-se no imaginário presente, ocupando manchetes de destaque nos meios de comunicação. Exemplo disso é a matéria de capa da revista Época, sob o título "A bilionária e confusa indústria da dieta" (A bilionária e confusa..., 27 mar. 2006). Em meio a controvérsias teóricas, anuncia-se uma multiplicidade de fórmulas alimentares e propala-se uma nova revolução alimentar sob a égide da biotecnologia, no momento em que avança a biologia molecular. Ao tempo em que se institui a produção de alimentos transgênicos, forja-se uma transformação do estatuto da espécie humana: a identidade inscrita no corpo (Prodi, 1993; Moser, 2004).
Fato é que os modos de conhecimento mudam continuamente enquanto "novas realidades emergem, novas relações são feitas, novas formas linguísticas vão sendo produzidas" (Prodi, 1993, p.127). Como assinala Carneiro (2003, p.29), "a história da alimentação é a história da luta contra a fome. A história da fome é interligada com a história da abundância". O balanço da produção historiográfica da alimentação, realizado por esse autor, demonstrou como, no Brasil e no mundo, as abordagens sobre o assunto se modificaram ao longo dos tempos, a partir de múltiplos pontos de vista. Isso encontra ressonância na visão de Campello (2 fev. 1936), de que a ciência da nutrição tem em si a experiência de todas as épocas, de todos os povos e de todos os países. Desse modo, Rezende (2004, p.178) tem razão quando pondera: "É importante seguir esse percurso e encarar as transformações no modo de se pensar a comida, uma vez que elas refletem as mudanças das sociedades e reafirmam a idéia de que comida e sociedade são elementos sem dúvida imbricados".
Disso resulta a segunda observação relevante: é estéril discutir os princípios dietéticos de Castro fazendo um recorte apenas biológico, porque o modelo alimentar proposto não somente estava imbricado nas sociedades, mas trazia em si a concepção de uma sociedade sem fome, como se verá adiante. É certo que elegeu a fisiologia como ponto de partida, no livro O problema alimentar brasileiro (Castro, 1934), com prefácio de Pedro Escudero. Mas é também notório que, no conjunto de sua obra, conceituou a fome e a alimentação em sua dupla face como objetos de interesse das sociedades, retirando-as do âmbito médico. Como o problema era de interesse vital para as nações, para que se obtivesse um profícuo conhecimento de sua essência era necessário recorrer aos referenciais de diversos saberes, deixando de lado os modelos terapêuticos.
Há consenso na literatura recente que o interesse pela abordagem dos determinantes sociais sobre as doenças retrocedeu com o surgimento da microbiologia e das pesquisas epidemiológicas, só ressurgindo, nas décadas de 1920 e 1930, sob a perspectiva da causalidade múltipla. Tal revitalização é visível na obra de Castro e instiga o leitor a indagar o que havia de revolucionário na concepção da sociedade sem fome, sob os princípios dietéticos da racionalidade alimentar, ou se seus estudos e pesquisas se aproximavam mais das reformas racionalizadoras da época.
Seguindo a linha de raciocínio, a tese "mal de fome e não de raça", formulada pelo autor no livro Alimentação e raça (Castro, 1936), é exemplar como irreverência explícita contra a canonização dos métodos disciplinares em voga. Essa foi uma marca da sua originalidade como pensador, dado que a assimilação de conceitos de diversos campos do saber, para o estudo da alimentação e da fome, se confrontava com a fragmentação dos saberes em ascensão na vida acadêmica, proporcionando novos conhecimentos de aspectos obscuros desse tema considerado 'tabu'. Foi assim que elegeu, como objeto de reflexão teórica e prática, desde as condições de vida e alimentação das classes operárias de Recife, à organização econômica de produção, passando pelas políticas públicas do setor.
A hipótese mais debatida é que ele visava encontrar uma razão estrutural que organizasse os diversos fatores envolvidos na produção da fome, realizando o diálogo interdisciplinar sob a orientação do método geográfico e retirando os obstáculos que o impediam de iluminar a "questão da relação entre o biológico e o social". No entanto, à medida que se avança na leitura das últimas publicações, nota-se que não se deve apenas aos méritos da interdisciplinaridade o que de mais valioso se pode extrair do conjunto da obra. A indisciplinaridade se apresenta como o ensinamento maior do diálogo estabelecido pelo autor na construção do conhecimento de uma tríade de elementos indisciplinados - a fome, a alimentação e a sociedade -, adotando aqui a fértil idéia de Sevalho e Castiel (1998). Enfim, o que configurou o pensamento de Castro foi a capacidade de estabelecer relações globalizadoras: a ênfase ia do nacional, no livro Geografia da fome (Castro, 1946b), ao universal, na Geopolítica da fome (Castro, 1968a, 1968b), marcando decisivamente o início de sua trajetória internacional.
No esforço de alcançar todos os elementos que tal construção exigia, Castro fez o mapeamento geográfico das condições alimentares do Brasil e do mundo. Precisava estar à altura dos novos tempos, estabelecendo um contato com a realidade global, seus problemas e conflitos. Para isso, era preciso ir além de uma configuração teórica da alimentação e da fome, externalizando as idéias e intervindo nos assuntos cotidianos do mundo político e econômico.
À luz das conclusões inferidas, reuniu os elementos para uma macropolítica de desco-lonização social e forneceu os princípios-guia da sociedade sem fome. Dessa forma, colocava em evidência o valor da sua obra e, ao se aproximar da realidade mundial, assumia o peso da prova, afirmando que a fome foi a grande descoberta de meados do século XX.
Portanto o grande desafio ético-político está na interpretação do modelo alimentar proposto como fruto da época, a começar das demandas da sociedade brasileira em cujo ambiente nasceu. Para efeito deste artigo, dar-se-á ênfase a alguns traços fundamentais de seis livros que sintetizam bem os termos do debate pelos quais a fome e a alimentação adquiriram expressão como dimensões próprias das organizações sociais. São eles O problema alimentar brasileiro (1934), Alimentação e raça (1936), A alimentação brasileira à luz da geografia humana (1937), Geografia da fome: a fome no Brasil (1946) e Geopolítica da fome, volumes 1 e 2 (1968a, 1968b).
Em outras palavras, na análise estarão em evidência, primeiro, como o autor introduziu os princípios da dietética moderna, delineando o conceito de racionalidade alimentar, ao tempo em que desvendava a fome e a subalimentação nas diversas regiões brasileiras com vistas a um objetivo prático - a configuração da política alimentar nacional; segundo, como ampliou o debate, dando visibilidade à dinâmica dos Estados e os rumos políticos de um mundo em demolição, em que a fome e a alimentação eram parte intrínseca da distribuição espacial do poder.
Em suma, o objetivo desta exposição é explicitar a forma como o autor estabeleceu o íntimo vínculo entre o biológico e o social, transpondo os princípios dietéticos na concepção da sociedade sem fome em escala planetária, que culminou na criação, em Paris (1957), da Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam).3 3 A Ascofam foi criada com o apoio e cooperação de um grupo de personalidades internacionais: Padre Joseph Lebret, Abbé Pierre, Albert Schweitzer, Raymond Schevein, Loui Maire, Kuo-Mo-Jo, Paul Martin, Loy Bpyd Orr, Tibor Mende, René Dumont e Max Habitch. Sobre a sua plataforma doutrinária e os projetos apresentados e implementados, ver Castro, 1960.
Quantidade, qualidade, harmonia e adequação: princípios dietéticos da alimentação racional e a geografia da fome no Brasil
Como parte da arquitetura do método, a fisiologia era o pré-requisito para a construção das bases científicas do conceito de racionalidade alimentar. O primeiro postulado científico desse conceito estava na evidência de que o antecedente do fenômeno vital era sempre um fenômeno químico, e que a energia potencial dos alimentos era a primeira fase do sistema de transformações que sofria a energia no organismo vivo. Era possível prever as variações desses fenômenos, orientar e modificar sua marcha de acordo com as necessidades individuais e obter o máximo de rendimento vital à luz do estudo da bioenergética, conforme as variações que as condições climáticas imprimiam ao habitante dos trópicos. As despesas do organismo podiam ser calculadas com base no metabolismo basal e no metabolismo de trabalho, considerando-se também o metabolismo da digestão e as variações de idade, sexo, constituição corporal, estado de alimentação e clima (Castro, 1934). Isso sugere que, no início da produção, havia forte preocupação em determinar, previamente, o normal e seus verdadeiros limites de variação, enquanto se exploravam a natureza e os efeitos da fome e da subalimentação.
Para Castro, a noção biológica do que seja alimento variava necessariamente de acordo com as concepções do momento, com as verdades de cada etapa científica. Reconhecia que do conhecimento da bioenergética de Lavoisier e Laplace brotou a concepção cartesiana da máquina viva, em que o alimento era concebido como fonte de energia.4 4 A reflexão passa inicialmente pela química, que foi proeminentemente uma ciência francesa. Seu verdadeiro fundador, Lavoisier (1743-1794), publicou o fundamental Tratado elementar de química no mesmo ano da Revolução Francesa. No entanto foi no século XIX que a química deu um salto revolucionário: Lavoisier descobriu que a respiração era uma forma de combustão, estabelecendo a relação entre a produção de calor e utilização de oxigênio do organismo (Hobsbawm, 1981). Os princípios da bioenergética de Lavoisier traziam embutidos o postulado de que os seres vivos estavam sujeitos às leis gerais da natureza e que suas manifestações eram expressões físico-químicas. Com isso surgia o período físico-químico da nutrição humana. Como adepto da fisiologia, Laplace foi colaborador de Lavoisier nas pesquisas sobre a respiração e sobre o calor animal e desenvolvia a visão determinista que tinha como conseqüência a redução da qualidade à quantidade, que está aplicada na identidade essencial do normal e do patológico (Canguilhem, 1990). No entanto, advertia que, embora essa definição de alimento fosse completa para os fisiologistas dos finais do século XIX, ela não satisfazia na sua época, depois que surgiu o conceito de vitamina, ampliando-se o conhecimento das doenças de carência: o raquitismo, o escorbuto, o beribéri, a xeroftalmia e a pelagra, enfermidades conhecidas de longa data, quando ainda não se conheciam as vitaminas.
Segundo Veloso (1940, p.159), o descobrimento das vitaminas na alimentação humana data de 1911. Foi o médico polonez Casemiro Funk que, em investigações sobre a etiologia do beribéri, encontrou no farelo de arroz certa substância que administrada aos beribéricos os curava rapidamente. As sucessivas descobertas permitiram definir as vitaminas como ligações orgânicas que, em pequeníssimas porções, deviam ser introduzidas no organismo a fim de facilitar a conservação e a reprodução celulares e ao mesmo tempo garantir a função normal dos órgãos.
De Funk até os nosso dias a história da vitaminas pode, com efeito, ser escrita com as mais belas letras do alfabeto. Já se tem hoje admiravelmente catalogados os alimentos mais ricos em vitaminas, através de análises e dosagens criteriosas; há ótimas classificações de vitaminas; conhecem-se a maior parte das suas fórmulas químicas; a influência que exercem o sol, os raios ultra-violetas e certas glândulas endócrinas sobre as vitaminas; ... Talvez que em futuro próximo surjam até as vitaminas da alegria, da moral, do entusiasmo, vitamina do ódio e ... que sei mais! Porque a vitamina do amor já existe. Não é a vitamina E?5 5 A esse respeito ver também Peregrino Junior, 1936.
Além disso, na nova era da nutrição, que ampliava o conhecimento das doenças de carência, os estudos fisiológicos deveriam incluir o clima como primeira variante da relação entre o homem e o meio geográfico. Em extensa matéria publicada no Diário Carioca (Castro, 19 jul. 1936), destacava a supremacia da espécie humana na aclimatação às variantes meteorológicas do ambiente, criando seus artifícios técnicos como a casa, o abrigo e o vestuário. A alimentação era o mais esquecido desses fatores e, no entanto, é através da nutrição que o clima atua mais fortemente sobre o homem.6 6 A tese da aclimatação defendida por Castro encontra-se detalhada em Castro, 1946a. Para compreender melhor como a noção de clima e as teorias aclimatacionistas influenciaram os estudos da geografia médica e os higienistas desde o século XIX ver também Caponi, jan.-mar. 2007.
Foi então quem primeiro documentou suas conclusões sobre a forma como o clima interagia com a fisiologia do homem dos trópicos, procedendo à determinação do metabo-lismo basal de 15 habitantes de Recife (PE). A partir do cálculo da cifra média de 33,8 calorias obtida em seu estudo, definiu que o metabolismo basal dos brasileiros era de 10% a 30% menor do que o dos habitantes dos climas frios e temperados ou dos climas quentes, considerando a constante fisiológica padrão de Dubois: 39,7 calorias. Ficava posta a primeira indicação para a determinação da quota de energia da alimentação, em virtude da intensidade dos fatores que compunham a temperatura efetiva das diversas regiões do país.
O segundo elemento do meio que interagia com o metabolismo orgânico do homem era o trabalho, o que implicava a necessidade de calcular uma taxa energética adicional referente às várias ocupações habituais, representadas em calorias despendidas por hora em determinadas atividades. Com esta equação, Castro (1934) estabelecia, também, o biotipo médio brasileiro, homem, com 40 anos de idade, pesando 60kg, com 1,62m de altura, sapateiro, trabalhando oito horas por dia e que gastava 2.769 calorias diárias. No livro A alimentação brasileira à luz da geografia humana (Castro, 1937), ele aprimorava os estudos fisiológicos desenvolvidos sobre o metabolismo basal e chegava a uma definição classificatória da categoria trabalho, como segue: trabalho sedentário (intelectual, alfaiate); trabalho leve (sapateiro, encadernador); trabalho moderado (pintor, carpinteiro) e trabalho pesado (ferreiro, serrador de madeira).
Foi Quetelêt que, na Bélgica, iniciou o movimento biométrico. Ao estudar em 1843 as variações da estatura do homem, constatou a existência de um polígono de freqüência que tendia para uma curva em sino semelhante à curva binomial de Gauss. A distribuição dos resultados de medida aquém e além do valor médio garantia que a média gaussiana era uma média verdadeira. Entre um grande número de homens cuja estatura variava dentro de limites determinados, aqueles que mais se aproximavam da estatura média eram os mais numerosos. A esse tipo humano Quetelêt deu o nome de homem médio (Canguilhem, 1990).7 7 Canguilhem (1990) destaca as críticas de Maurice Halbwachs, em 1912, ao determinismo de Quetelêt. O determinismo estava em admitir que os fatos físicos que dependiam do meio e os fatos fisiológicos inerentes aos processos de crescimento se entrecruzavam de modo independente um do outro na constância desse processo. No entanto, na espécie humana a estatura era inseparavelmente biológica e social. Sendo assim, a freqüência estatística não traduzia apenas uma normatividade vital, mas também uma normatividade social.
Nessa perspectiva, Castro fechava o cálculo de 2.800 calorias como padrão da quota alimentar diária recomendada para o nosso homem, alertando que não bastava, para que a alimentação fosse 'perfeita', que ela contivesse o total energético necessário às despesas do organismo. Considerando que só a parte absorvida podia ser utilizada e constituía o "coeficiente digestivo", era preciso que essa alimentação fosse formada por quantidades satisfatórias e em determinadas proporções mútuas das várias espécies de nutrientes: proteínas, gorduras, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e água. A ração energética do homem que executava trabalho mediano no clima característico local devia fornecer as seguintes proporções desses elementos: 20% a 30% do total de calorias em matérias protéicas, o que equivalia a 1g de proteína por quilo de peso do indivíduo adulto, 20% a 30% em gorduras, e os 50% restantes em hidratos de carbono.
Se o conceito cartesiano de máquina viva fornecia a Castro elementos para o conhecimento das despesas energéticas humanas, o alimento era a fonte das receitas orgânicas e elemento de interação entre o homem e o ambiente. O conhecimento da sua composição química e suas funções fisiológicas permitia classificá-los em alimentos energéticos, alimentos plásticos e alimentos reguladores. O valor energético era de ordem quantitativa e se encontrava nos alimentos ricos em hidratos de carbono e nas gorduras. O valor plástico e regulador era de ordem qualitativa e se encontrava nos alimentos ricos em proteínas, vitaminas e minerais.
Com isso estavam lançados os quatro princípios dietéticos que imprimiam sentido ao conceito de racionalidade alimentar, em linguagem científica moderna: quantidade, qualidade, harmonia e adequação. A quantidade foi definida pela suficiência calórica da ração alimentar para repor as perdas energéticas do organismo; a qualidade, pela variabilidade de alimentos e o seu teor de nutrientes, o que permitia operar com esquemas de substituição e equivalência; a harmonia, pela proporcionalidade entre os nutrientes e o valor calórico total; e, finalmente, a adequação, pelo respeito à individualidade.
Um dado importante nessa visão era o de que não bastava saber a quantidade de homens que produziam, mas também a sua qualidade. O novo homem brasileiro assim concebido adquiria o porte biofísico médio, sob a marca da robustez, da vitalidade e da eficiência, por um processo de revitalização alimentar feita em bases científicas, racionais. O que distinguia esses estudos fisiológicos da alimentação da fase físico-química anterior era, exatamente, a perspectiva de reposição, ao homem, da qualidade negada. Sob a perspectiva da revitalização biológica, a doutrina racial de Gobineau não possuía um estatuto de ciência e, além disso, estava fora do lugar, pois éramos todos mestiços e não cabia entre nós a definição do tipo racial puro. Era pela alimentação que se fazia a valorização eugênica do homem e o aperfeiçoamento da raça.8 8 Para Ortiz (1986), a doutrina racial de Gobineau ( Essais sur les inégalités des races humaines, 1853-1855) foi aceita no Brasil, onde ele marcou passagem como amigo do imperador Pedro II. Do arianismo, os brasileiros endossaram a teoria da degenerescência latina (traduzida nas críticas aos portugueses como os mais atrasados dos europeus), resultante da indolência e da imoralidade.
No livro A alimentação brasileira à luz da geografia humana (Castro, 1937), o autor retomava os dados do inquérito alimentar realizado com a classe operária de Recife, em 1935, demonstrando que as 500 famílias estudadas, num total de 2.585 pessoas, consumiam apenas feijão, farinha, charque, café e açúcar, e a maior parte delas (81%) consumia também pão. Sendo esse o regime habitual da família operária, era fácil deduzir o regime alimentar individual: "cada indivíduo se alimenta de 62grs de albumina, 310grs de hidrato de carbono e 13grs de gordura, num total energético de 1.646 calorias. ... inegavelmente um regime insuficiente, incompleto e desharmônico" (p.135).
Ao comparar com os inquéritos realizados em São Paulo por Almeida Junior (set. 1935) e Souza, Cintra e Carvalho (1935), em classes sociais diferentes, Castro (1937) concluía que tanto o inquérito do norte quanto os de São Paulo mostravam que, nas duas regiões, a alimentação era sempre inadequada, mesmo em classes de situação econômica relativamente boa. Assim, nas zonas mais desenvolvidas as falhas residiam nos déficits qualitativos parciais, sendo os mais freqüentes o de albuminas de alto valor biológico e a carência mineral, em cálcio e ferro, que era mal de todo o Brasil - e dos mais temerosos.
O quadro, que se repetia em todos os recantos da nossa terra, demonstrava que, em tais condições de nutrição, nenhum povo poderia ser forte, não importando qual fosse a sua raça. Assim, no livro em foco havia um objetivo prático: a correção desses defeitos alimentares, para a qual impunha-se "previamente um zoneamento do nosso território, dividindo-o em cinco regiões, correspondendo cada uma delas a um tipo de alimentação usual, e característico" (Castro, 1937, p.148).
O autor definiu cinco tipos de ração alimentar padrão para cada região brasileira, assegurando que todos mantinham as proporções de alimentos que julgava conveniente e com total calórico capaz de cobrir as despesas energéticas normais do organismo. Considerava que o valor econômico da ração alimentar racional estava em poder-se fixar o salário-mínimo e determinar as quotas proporcionais das despesas familiares. De fato, os dispositivos legais que definiram o salário-mínimo constituíram o primeiro passo da implantação da política alimentar estatal. Em janeiro de 1936 foi promulgada a lei 185, que formava as Comissões de Salário Mínimo (Brasil, 1936) e em 1º de maio de 1940 era assinado o decreto-lei 2.162 (Brasil, 1940a) instituindo o salário-mínimo em todo o país. O segundo passo foi a criação do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), em 1940, que implementou o programa da assistência alimentar aos trabalhadores e suas famílias, através dos restaurantes populares e postos de subsistência, e ações de educação alimentar (Brasil, 1940b). Essa política sofreu amargos abalos com o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, em virtude de seu impacto na produção agrícola e na elevação dos preços dos gêneros, o que impôs restrições de racionamento a toda a sociedade e agravou severamente a fome no país.
A esperança inicial que se depositara no governo Vargas parecia sufocada pela decepção. Na matéria "A rendição dos bárbaros", o Diário Carioca anunciava o fim da guerra, com a rendição de Berlim aos italianos nos campos de batalha. Entretanto havia o sentimento de que a guerra continuava aqui, como denunciava o jornal: "Era de se esperar que, passada a guerra, imediatamente as autoridades responsáveis pela fome do povo cuidassem de abastecer suficientemente o mercado, liberando a venda de mercadorias de primeira necessidade, como o açúcar e a carne". Lamentava o jornal ter de noticiar que a permanência da guerra não se dava por um conflito armado, mas pela batalha contra o bem público (A rendição..., 3 maio 1945).
Reiterava-se a conveniência de se restabelecer o sufrágio direto para a eleição de presidente da República e demais instâncias políticas para a recomposição democrática do país, mas o tumultuado processo eleitoral resultou na deposição de Getúlio Vargas, anunciada à nação no dia 30 de outubro do mesmo ano (Getúlio deposto..., 30 out. 1945). Com isso, deslanchou-se uma campanha de difamação do Saps pela imprensa e o desmonte das instituições responsáveis pelo abastecimento de alimentos, generalizando-se as práticas criminosas do câmbio negro, que deixavam a população à mercê dos aproveitadores e geraram intenso movimento de revolta popular e estudantil.
Em tal conjuntura, Castro consolidaria o conceito de fome, com a publicação do livro Geografia da fome: a fome no Brasil (Castro, 1946b). Para que uma região geográfica fosse considerada área de fome seria necessário que as deficiências alimentares que nela se manifestavam incidissem sobre a maioria dos indivíduos que compunham seu efetivo demográfico, a saber: a Amazônia, a Zona da Mata, o Sertão, o Centro e o Sul. Com esse livro, traduzido em mais de vinte idiomas, o autor superava os inquéritos realizados em formas parciais e chegava à descrição exaustiva das diversas paisagens. Reiterando os princípios fundamentais da dietética, assinalava que, para entender os principais defeitos da alimentação da Amazônia, era preciso analisá-la de acordo com os modernos conhecimentos de nutrição.
À luz dos parâmetros científicos, o regime das classes pobres de Belém era de apenas 1.800 a 2.000 calorias diárias, quando a literatura universal recomendava 3.000 para grupos humanos em atividade de intensidade média. No entanto, Castro (1946b) assinalava que tal situação não era tão drástica, considerando que o metabolismo basal do homem da Amazônia era cerca de 20% do total calórico das cifras do standard universal. Sob a ação modeladora do clima, baixavam não só o chamado metabolismo basal, mas também as despesas de trabalho. Com as 2.000 calorias que cada indivíduo ingeria diariamente, conseguia-se cobrir as despesas básicas e realizar-se um pouco de trabalho. Ritmo e produção eram retardados como recursos de defesa orgânica, para que os nativos não morressem de fome.
Os defeitos qualitativos eram mais graves, pois se tratava de uma alimentação incompleta, com deficiência de elementos nutritivos das mais variadas categorias: proteínas, sais minerais e vitaminas. O déficit protéico resultava da quase ausência das fontes de proteínas animais provenientes da carne, do leite, do queijo e dos ovos, deficiência que se revelava no crescimento reduzido e na estatura abaixo do normal dos componentes da população amazônica. Em decorrência da subnutrição (fomes específicas em numerosos princípios essenciais) ocorriam, em parte, os altos coeficientes de mortalidade infantil. Em Manaus esse coeficiente chegava à cifra de 239 crianças entre mil, quando nos Estados Unidos era de 46 por mil, na Noruega, 38 e na Nova Zelândia, 32.
Era no interior da organização do sistema econômico produtivo que se constituíam os hábitos alimentares que caracterizavam as diferentes cozinhas regionais, com seus alimentos típicos e defeitos correspondentes. Ao contrário da Amazônia, a pobreza de alimentos no Nordeste açucareiro não podia ser explicada à base de razões naturais, pois as condições, tanto do solo quanto do clima regional, sempre foram as mais propícias ao cultivo certo e rentável de uma infinidade de produtos alimentares.
Segundo ele, dos processos culinários indígenas, poucos se fixaram no panorama da cozinha regional, além do preparo de pamonha, canjica de milho, beiju, farinha de mandioca e paçoca. Outra influência favorável - mais expressiva e enobrecedora dos hábitos alimentares dessa região - foi, sem nenhuma dúvida, a do negro, a do escravo negro importado da África, em cujas regiões de origem tinha obtido, pelo cultivo de variadas plantas, um regime alimentar dos mais saudáveis. Como povo de tradição agrícola do tipo de sustentação, o negro reagia contra a monocultura de forma mais produtiva do que o índio. Desobedecendo às ordens do senhor, plantava às escondidas seu roçado de mandioca, batata-doce, feijão e milho. Nesse enfoque, a fome não se definiria tanto com base nas deformações inerentes aos arranjos culinários, mas na opressão do latifúndio.
Na cozinha nordestina, o coco entrava numa infinidade de preparações culinárias: feijão de coco, peixe de coco, arroz de coco, vatapá, canjica, pamonha, mungunzá, doce de coco, cocada e outros pratos e doces de fama universal. O coco, assegurando 25% de gordura, garantia a quota desse nutriente na dieta, enquanto o caju fornecia a vitamina C. Nisso residia a superioridade da alimentação litorânea sobre a da zona propriamente da mata, ou melhor, da cana. A despeito disso, sobreviviam as interdições (tabus) que se projetavam no pouco uso de frutas e verduras, estas consideradas 'comida de lagarta'.
Se as manifestações clínicas específicas da desnutrição do Nordeste não eram aparentemente das mais alarmantes, o mesmo não se dava com suas conseqüências indiretas: o baixo rendimento do trabalho e a elevada mortalidade infantil, a qual, entre mil nascimentos, vitimava 457 crianças em Aracaju, 443 em Maceió e 352 em Natal. Outro índice ligado a essa situação alimentar era a mortalidade por tuberculose, que nas capitais do Nordeste era três a seis vezes maior do que no resto do país. Salvador (BA), Fortaleza (CE) e Recife (PE), situadas na Zona da Mata, apresentaram respectivamente os índices de 345, 302 e 359 por cem mil habitantes, em 1939. A alta mortalidade global e o fato de que mais de 50% dos óbitos ocorriam antes dos trinta anos de idade completavam o quadro caótico da evolução demográfica dessa região (Castro, 1946b).
O sertão apresentava um novo tipo de fome, inteiramente diferente. Não mais a fome atuando de maneira permanente, condicionada pelos hábitos de vida cotidiana, mas se apresentando episodicamente em surtos epidêmicos: surtos agudos de fome durante as secas, intercalados ciclicamente com períodos de relativa abundância nas épocas de normalidade. Eram epidemias de fome global, quantitativa e qualitativa, alcançavam com incrível violência os limites extremos de desnutrição e inanição aguda e atingiam indistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do eito, homens, mulheres e crianças.
É digno de nota que, nesse modelo explicativo, acentuava-se uma tendência dualista em torno da existência de dois brasis, cuja evolução social (e alimentar) se fazia em função de dois pólos produtivos: o moderno e o arcaico.9 9 A respeito das teses dualistas em torno da existência de dois brasis, ver Sodré, 1963 e Fausto, 1983. Ao contrário das áreas anteriormente descritas, a área central e a área do sul foram consideradas, pelo autor, áreas de deficiências alimentares discretas e menos generalizadas. Não eram áreas de fome no sentido rigoroso do termo, mas sim áreas de subnutrição, desequilíbrio e carências parciais, restritas a determinados grupos ou classes sociais. A esse respeito, o ganho elucidativo está em captar, da forma mais ampla possível, a trajetória do pensamento do autor, assinalando que, no contexto da Guerra, a região deixou de existir em si mesma. Havia leis cuja escala ultrapassava a dimensão do lugar. Sob as condições da economia mundial, a alimentação e a fome eram fenômenos marcados por elementos diversos que caracterizavam e definiam as regiões, como segue.
Fome, alimentação e poder no mapa mundial da Geopolítica
O livro Geopolítica da fome, cuja primeira edição foi lançada em 1951, ampliou o debate da fome nacional para o campo internacional. Coincidentemente, o autor já ocupava o cargo de membro do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) desde 1947 e tornou-se seu presidente em 1951.
Nesse percurso pôde constatar de perto que o mundo vivia uma fase revolucionária da história, em que fome e alimentação eram parte intrínseca da distribuição espacial do poder. Um dos traços significativos da oitava edição do livro é que, no deslocamento produzido, a geopolítica era definida não como "uma arte de ação política na luta entre os Estados" e, sim, "como método de interpretação da dinâmica dos fenômenos políticos em sua realidade espacial" (Castro, 1968a, p.27). Isso lhe permitia correlacionar a crise biológica e a crise política. Para ilustrar a importância da geopolítica naqueles tempos, em matéria do Jornal do Brasil, "A propósito do comando único", Mário Travassos (7 mar. 1946) comentava:
O fator geográfico cada dia se torna mais preponderante nas decisões do Governo, seja qual for o plano de que se trate. No plano político essa preponderância chegou a criar a Geo-Política, o mais recente dos desdobramentos da ciência geográfica moderna. Ao passo que a Geografia política é estatística, a Geo-Política exprime a própria dinâmica dos Estados, os rumos políticos traduzidos pelas características geográficas. Dessas, o espaço e a posição constituem as linhas mestras, estruturais da Geo-Política.
Sob esse aspecto, Castro assinalava que as duas guerras e as revoluções russa e chinesa foram apenas manifestações aparentes ou sintomas da revolução em marcha. Em seu conceito de revolução, a palavra era empregada para expressar um processo de transmutação histórica pelo qual ocorria a substituição de um mundo de convicções sociais por outro diferente, no qual os valores sociais anteriores já não tinham significação. Nessa transmutação destacava-se certa prioridade dos problemas humanos, incluindo a preocupação com os problemas de proteção e revalorização biológica. Esse fato já ficara evidente na Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira convocada pelas Nações Unidas, em 1943, que reuniu técnicos de 44 nações com o fim de planejar medidas conjuntas para atenuar a fome em seus países.
A situação alimentar pós-guerra atingiu proporções alarmantes no mundo. O Diário Carioca, na matéria "Fome e desemprego para milhões de homens", divulgada no dia de Ano-Novo de 1946, relatava que naquele momento a Europa enfrentava uma fase terrível, com milhões de pessoas desalojadas e desempregadas, enquanto outros milhões se submetiam a uma prova de resistência às moléstias e à fome, que só poderiam ser vencidas com um aumento considerável dos abastecimentos de alimentos, combustíveis e medicamentos, durante os próximos meses (Fome e desemprego..., 1 jan. 1946).
Em março do mesmo ano, o presidente Truman dava o tom benevolente da marca imperialista, ao anunciar ter ordenado a mobilização completa e imediata de todos os recursos dos Estados Unidos a fim de vencer a guerra contra a fome em todo o mundo. Se fosse necessário aos norte-americanos voltarem ao racionamento alimentar, para conservar dez ou 15 milhões de pessoas no exterior livres da fome, isso seria feito (Mobilização de recursos..., 13 mar. 1946).
Nesse cenário pró-reconstrução mundial, Castro (1968a) afirmava a sua fé na racionalidade científica como ordenadora e disciplinadora dos sistemas sociais em choque, acentuando: "Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos é exatamente o pouco conhecimento que temos do problema em conjunto como um complexo de manifestação simultaneamente biológica, econômica e social" (p.55).
Em oposição à teoria de Malthus, desencavada naqueles dias, argumentava que o problema da fome mundial não tinha origem numa produção limitada por coerção das forças naturais, mas era, antes, um problema de distribuição. A fome e a guerra não obedeciam a qualquer lei natural; eram, na realidade, criações humanas. Detalhou no livro Geopolítica da fome a forma como o fenômeno da fome se manifestava, em intensidade e extensão, nas diferentes coletividades. Reafirmava, no plano global, o mesmo conceito de fome já firmado internamente, pois o objetivo era analisar a fome coletiva, aquela que atingia endêmica ou epidemicamente grandes massas humanas. E referia-se não somente à fome total, em geral limitada às áreas de extrema miséria, mas também ao evento mais flagrante e grave, em conseqüências numéricas, da chamada fome oculta. Pela falta de determinados princípios nutritivos indispensáveis à vida, grupos inteiros da população se deixavam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias: "A fome oculta constitui hoje forma típica da fome de fabricação humana" (Castro, 1968a, p.82).
Não obstante admitisse que esse drama era intrínseco às relações de poder na estrutura dos Estados globais, em seu estudo pretendia situar o homem acima dos partidos e dos preconceitos políticos. A verdade científica era o único partido no qual o problema da fome adquiria forma humana. Isto sugere que a fome não seria suprimida por alguma ideologia em si, mas pelo esforço suprapartidário de construção de um mundo sem fome, posto que, na visão do referido autor, ela era o estopim das revoluções e das guerras. Era preciso analisar os meios potenciais, a fim de dominar a fome dos determinismos geográficos e transformá-los no que chamou de "possibilismos sociais".
Dessa forma Castro estudou, ao lado dos problemas da produção, os da distribuição e utilização racional dos alimentos, "tratando das possibilidades geográficas que o homem aproveitou, mas também daquelas que ele não aproveitou ou malbaratou" (Castro, 1960, p.4). Submeteu à análise tanto as forças produtivas a serem postas em jogo, como as relações sociais que deviam ser estabelecidas para uma redistribuição eqüitativa dos meios de subsistência entre os componentes dos diferentes grupos humanos: "Só assim haverá uma esperança de vivermos num mundo limpo das negras e infamantes manchas demográficas da fome. Só assim deixará de existir uma 'Geografia da fome'" (p.75).
Reafirmava que a superioridade ou inferioridade racial nada tinham a ver com a raça, sendo produtos exclusivos da ação modeladora dos alimentos. Era a fome crônica e endêmica em escala universal o traço mais característico da miséria reinante no mundo. Nesse aspecto, sua distribuição espacial começava pela América Latina, onde o drama era mais contundente, dele participando um número maior de personagens - cerca de noventa milhões de indivíduos, que correspondiam a dois terços do total das populações que ali viviam. No plano causal, a distorção mais evidente, nessa área, tinha sido o atraso da agricultura em relação ao progresso industrial, atraso em grande parte centrado no arcaísmo das estruturas agrárias, o que constituía fator de contenção do ritmo de expansão industrial. Logo, a fome não passava de uma manifestação típica do subdesenvolvimento (Castro, 1968a).
Na América do Sul havia dois setores de fome: o setor A, de alimentação extremamente defeituosa, em que se associava a fome quantitativa com as insuficiências qualitativas específicas; e um setor B, com condições alimentares menos graves, em que apenas existiam as fomes específicas em certos princípios nutritivos, sendo o regime alimentar quanti-tativamente suficiente. O primeiro abrangia Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Chile, noroeste e extremo sul da Argentina, a metade ocidental do Paraguai e a metade norte do território brasileiro. O segundo, as terras do Centro-Oeste e do Sul do Brasil, o território paraguaio situado a leste do rio Paraguai, o Uruguai e a região do nordeste da Argentina (Castro, 1968a).
A título de ilustração, destaco algumas passagens do livro Geopolítica da fome (Castro, 1968a) referentes aos modelos alimentares de determinadas regiões, nos quais o autor imprimia uma lógica causal à manifestação da fome no planeta: "Com populações que apresentam aspecto de desnutrição intensa e em grande escala - verdadeiras áreas de fome - encontramos na América inglesa duas áreas bem caracterizadas e que merecem, por isso, atenção especial: a área das Índias Ocidentais Britânicas e a área do sul dos Estados Unidos da América - o velho Sul agrário" (p.182).
A escassez de alimentos e as deploráveis condições de nutrição das Índias Ocidentais eram conseqüência direta do defeituoso sistema de exploração colonial que os ingleses desenvolveram nessas terras. Não obstante as variantes locais/regionais, os desequilíbrios alimentares estavam historicamente centrados no consumo de substâncias amiláceas, sob a forma de cereais, tubérculos e raízes. Os alimentos plásticos, como a carne, o leite e os ovos, praticamente não participavam da alimentação do povo, assim como não entravam também os vegetais frescos: "Assim, em Jamaica os alimentos básicos são o inhame, a batata-doce, a mandioca e a fruta-pão, enquanto que, em Trinidad, se consomem principalmente arroz polido, ervilha seca e derivados de côco. Em Barbados, onde as condições alimentares são das mais alarmantes, a dieta é normalmente constituída de arroz, batata-doce, inhame, cebola, chá e açúcar (Castro, 1968a, p.183).
Esse era o exemplo mais típico de como um grupo humano motivado pelos interesses de lucro imediato era capaz de depredar a riqueza natural e transformar regiões ricas em áreas de miséria e de fome. Mas foi a realidade do sul agrário dos Estados Unidos que causou maior perplexidade. Castro considerava 'chocante' ver incluída entre as áreas de fome toda uma região geográfica desse celeiro mundial, abrangendo uma extensão superior a de muitos países. Neste ponto cabe perguntar se havia, então, uma ordem simbólico-ideológica subjacente aos sistemas de produção capaz de se sobrepor às vidas orgânicas.
Não era de surpreender que a velha Ásia também se inserisse no panorama mundial da fome, considerando-se as quatro regiões estudadas pelo autor: o Extremo Oriente, compreendendo a China e o Japão, o Sudeste Asiático e a Índia. Neste continente, ele estudou primeiro a China, depois a Índia e o Japão. Por fim, analisou a fome na África, Europa Oriental e Ocidental, incluindo França, Espanha e Alemanha (Castro, 1968b).
Na impossibilidade de detalhar aqui todas as regiões, merece destaque a ênfase atribuída pelo autor ao modelo agrícola chinês, pois era nele que repercutia com mais intensidade uma questão central na Geopolítica da fome: a transformação produtiva das calorias vegetais em calorias animais, naquele momento histórico em que emergiam as bases científicas modernas de um novo modelo alimentar sintonizado com o desenvolvimento industrial em curso. Preconizava-se o consumo de uma dieta mista, na qual os alimentos de origem animal adquiriam valor e expressão, em detrimento de uma alimentação exclusiva de vegetais. "Que seria, então, do chinês se se desse ao luxo de transformar as calorias vegetais em calorias animais?" - era a pergunta que fazia Castro (1968b, p.219).
Segundo ele, enquanto os viajantes ilustres eram recebidos no Oriente com várias 'iguarias', os inquéritos levados a efeito nas zonas rurais da China apresentavam milhões de indivíduos que, durante toda a vida, apenas dispuseram, para suas refeições, de um único alimento - o arroz: "Trata-se de uma dieta exclusivamente de origem vegetal, excessivamente reduzida e extremamente monótona ... . Dedicando-se quase que exclusiva-mente à agricultura e plantando alimentos altamente energéticos como o arroz, o trigo e o milhete, o chinês não alcança, nem assim, uma ração média de 2.250 calorias diárias" (Castro, 1968b, p.218-219).
Esses tipos de dieta, insuficientes e incompletos, resultavam na fome crônica das populações, em suas variadas formas, como produtos de uma lógica econômica que determinava uma produção, além de insuficiente, especializada em um número limitado de alimentos vegetais. Sofriam os chineses, antes de tudo, de fome quantitativa - da falta de energia em suas dietas para as necessidades básicas e de trabalho, sendo o ritmo e o rendimento de trabalho do chinês dos mais lentos e baixos do mundo. A fome de proteínas manifestava-se em variados aspectos. O primeiro sinal era a baixa estatura da maioria dos chineses, aumentando do sul para o norte, à medida que aumentava a proporção de proteínas nas dietas.
Disso resulta a primeira constatação significativa na Geopolítica da fome: à parte as diferenças, a fome, aqui e no resto do planeta, decorria de um rearranjo global nos sistemas produtivos agrícolas que haviam instalado o latifúndio e consolidado a monocultura de índole colonizadora. Embora os Estados apresentassem contornos diferenciados em suas estruturas político-produtivas, assemelhavam-se em suas deficiências alimentares: o ínfimo consumo de carne, leite, ovos, frutas, legumes e verduras, que perpetuava o ciclo vicioso da miséria.
Em termos comparativos, ainda que o autor se surpreendesse com a fome no sul agrário dos Estados Unidos, destacava os avanços do modelo alimentar americano e de outros países, como Nova Zelândia e Austrália. A existência de melhores condições alimentares nesses países levava à segunda constatação significativa: nessas regiões ocorria um verdadeiro declínio populacional, que equilibrava o número de nascimentos em relação ao de mortes. Portanto o fator explicativo para a superpopulação chinesa estava no baixo teor de proteínas completas de origem animal na dieta habitual, que tornava os grupos atingidos mais férteis. Por esse prisma, fornecia a base biológica para apoio de sua teoria - a teoria da fome específica como causa de superpopulação -"de produtos humanos fabricados em excesso e de qualidade inferior" (Castro, 1968a, p.3).
Em síntese, nas seis obras consultadas foi possível visualizar, em linhas gerais, a forma como se distribuía a fome no Brasil e no mundo, bem como a precariedade alimentar, caracterizada pela deficiência do consumo de carne, leite ovos, frutas e verduras, fenômeno atribuído ao latifúndio e à prática da monocultura, que uniformizavam um padrão de consumo aquém das exigências biológicas dos grupos humanos em situação de vulnerabilidade social. Dessa forma, pode-se supor que a determinação dos princípios dietéticos - quantidade, qualidade, harmonia e adequação - nutria de sentido o conceito de racionalidade alimentar, com vistas a estabelecer a primazia da revitalização biológica, em face da ordem simbólica vigente nos sistemas sociais em crise, que não hesitava em eliminar vidas humanas pela fome.
Quantidade, qualidade, harmonia e adequação: princípios-guia da sociedade sem fome10 10 A seguinte citação de Bobbio (1997, p.72-73) é sugestiva para analisar a dimensão sociopolítica da obra de Castro e sua inserção social como intelectual público: "Creio ser suficiente dizer que por ideólogos entendo aqueles que fornecem princípios-guia, e, por expertos, aqueles que fornecem conhecimentos-meio. Toda ação política, como de resto qualquer outra ação social ... tem necessidade, de um lado, de idéias gerais sobre os objetivos a perseguir ... a que chamei acima de 'princípios' e que poderiam ser chamados de 'valores', 'ideais' ou mesmo 'concepções do mundo'; e, de outro, de conhecimentos técnicos que são absolutamente indispensáveis para resolver problemas para cuja solução não basta a intuição do político puro, mas se fazem necessários conhecimentos específicos que só podem ser fornecidos por pessoas competentes nos diversos campos singulares do saber".
Neste tópico destaco o modo como Castro transpôs os princípios dietéticos em princípios-guia da sociedade sem fome, acenando para o mundo a justa dimensão do seu empreendimento. A ciência da nutrição abria novos caminhos no processo civilizatório, e era por meio dela que pretendia dar sua "cooperação pessoal para disciplinar, as tremendas forças sociais em choque" (Castro, 1960, p.13), universalizando o estreito vínculo entre o corpo biológico e o corpo social.
Advertia, de partida, que a sociedade sem fome só se poderia concretizar com a instauração de uma economia humanizada, posto que era "preciso, antes de tudo, procurar extirpar do pensamento político contemporâneo esse conceito errado da economia como um jogo, no qual devem existir sempre uns que tudo percam para que outros tudo ganhem" (Castro, 1968b, p.385). A idéia de Castro era fazer da economia um instrumento de distribuição equilibrada dos bens da terra, para que ninguém pudesse defini-la, como "a ciência das misérias humanas", como o fizera anteriormente Karl Marx.
Não se conclua, com isso, que os postulados de Marx tenham sido privilegiados na definição dos princípios-guia da sociedade sem fome. Tampouco tais princípios pareciam enquadrar-se nas reformas racionalizadoras de cunho assistencialista da época. Nas palavras do autor, a intenção era colaborar para uma macropolítica humanizadora, capaz de 'disciplinar' as forças sociais na perspectiva da 'emancipação coletiva'. De fato, tal meta se impôs como a razão substantiva de todo o seu investimento teórico e prático, podendo-se indagar: de que tipo de emancipação ele estava falando? A realização universal das necessi-dades físicas dos famintos? Uma emancipação geral do gênero humano? Em que medida os princípios dietéticos guias da sociedade sem fome se configuravam em dispositivos propul-sores de uma economia mundial humanizada, capaz de dar o salto para a emancipação?
Foge ao escopo deste artigo esgotar questões tão complexas e abrangentes. Porém, extraindo o que há de mais visível no livro Geopolítica da fome, vê-se que o primeiro princípio dietético transposto na concepção da sociedade sem fome foi o da 'quantidade'. O primeiro objetivo a conquistar era o aumento da produção mundial de alimentos por meio da ampliação as áreas cultivadas e do uso adequado destas, e da conseqüente elevação da produtividade per capita e por unidade de área, contando-se com os novos recursos técnicos da ciência agrícola. Daí a noção de larga visão política, por parte daqueles que viam na agricultura um serviço de saúde pública. Uma vez que a agricultura fosse pensada em tais termos, a única consideração importante quanto à produção de alimentos deveria ser a conveniência da saúde coletiva, ficando em plano inteiramente secundário as considerações de ordem econômica. O próprio uso de uma alimentação bem equilibrada reduziria muito a necessidade mundial de usar substâncias antibióticas ou protetoras da saúde.
No entanto, a idéia do aumento da produtividade dos alimentos trazia aspectos controvertidos. A ciência química introduzia o uso dos fertilizantes químicos na agricultura, o que implicava transpor o segundo princípio dietético na concepção da sociedade sem fome - o da 'qualidade' nutritiva da produção. Se as disponibilidades de fertilizantes químicos não eram motivo de preocupação - uma vez que os Estados Unidos já haviam garantido a produção alimentar de guerra utilizando uma média anual de cerca de 12 milhões de toneladas do produto -, o mesmo já não se podia dizer quanto à eficiência do seu uso para manutenção da saúde do solo, da qualidade nutritiva da produção e da saúde das populações alimentadas com tais produtos (Castro, 1968b).
Castro confrontava dois pontos de vista: o do doutor E.L. Bishop, que via no uso dos fertilizantes artificiais o meio mais econômico de promover a constante restauração dos solos e a progressiva melhoria das condições de nutrição humana; e o do falecido cientista inglês Sir Albert Howard, que julgava a medida um verdadeiro atentado da civilização, contra a saúde dos solos, das plantas e dos homens. Com sua longa experiência em agricultura na Índia, esse cientista preconizava que a salvação estaria na volta aos processos agrícolas mais naturais e, principalmente, no uso dos adubos naturais, oriundos de diferentes fontes de matéria orgânica (Castro, 1968b).
Perante essas posições opostas, Castro (1968b) indicava uma solução conciliatória, que associava o emprego de ambas as técnicas agrícolas. O uso de hormônios do crescimento e inseticidas poderia assegurar o aumento da produtividade de alimentos, sem prejuízo da qualidade. Além disso, não era só no aumento da produtividade do solo que os homens podiam encontrar novas disponibilidades para seu abastecimento alimentar com qualidade nutritiva e variedade. Também nas águas - mares, rios e lagos - havia uma fonte extraordinária de alimentos. Ademais, a tecnologia já permitia criar peixes, moluscos e crustáceos em viveiros ou tanques artificiais, com elevados rendimentos: "O emprego dos hormônios de crescimento, a inseminação artificial, a semeadura de adubos nas águas psicícolas, para aumento do valor nutritivo de seus produtos são métodos que podem ser postos em prática para multiplicar de muito o rendimento das águas em alimentos" (p.401).
Em sua visão, estava em curso uma revolução tecnológica de considerável impacto emancipador, capaz de suprir as necessidades quantitativas e qualitativas dos alimentos, desde que se fizesse uso adequado de todos os recursos potenciais de que a natureza dispunha. As evidências permitiam anunciar uma 'geografia da abundância', dado que, enquanto a primeira Revolução Industrial baseara-se na aplicação da mecânica às indústrias manuais, a segunda se caracterizava pela extensa aplicação dos métodos científicos às indústrias de toda espécie, para a solução dos problemas de produção.
Entretanto é fato inconteste, hoje, que os danos socioambientais e à saúde humana, decorrentes da modernização agro-industrial, podem atingir níveis inversamente proporcionais aos anunciados benefícios da 'geografia da abundância'. Posto como o único modelo de produção possível, reduz-se o dilema à discussão conciliatória entre teor nutritivo da produção e metas de produtividade, ocultando-se a verdadeira dimensão dos danos à saúde coletiva, à segurança alimentar e ao ambiente, principalmente nos países em desenvolvimento e nos de economia de transição, que respondem pelo consumo de cerca de 25% da produção mundial de agrotóxicos (Peres, Moreira, 2003).11 11 Sobre os danos socioambientais da agroindústria e a contaminação de alimentos, ver também Altvater, 1995, Bulll, Hathaway, 1986, Madeley, 2003 e Conway, 2003. Vale lembrar que o apelo massivo atual das instituições de saúde e da mídia à escolha de uma alimentação saudável em momento algum demonstra preocupação com os riscos da contaminação venenosa dos alimentos, além de omitir do público qualquer informação sobre o problema.
Enfim, embora para Castro a produtividade fosse a chave da questão, ela devia ser encarada em termos de uma economia humana, dado que o desenvolvimento econômico mal-orientado era desviado de sua finalidade social. Foi nesse ponto da Geopolítica da fome que ele propôs a indissociabilidade de dois princípios dietéticos tidos, por ele, como princípios-guia da sociedade sem fome. Concebidos como elementos propulsores da economia humanizada, o princípio da 'harmonia alimentar' estava necessariamente vinculado à 'harmonia social', que deveria ser alcançada pelo equilíbrio das forças sociais. O princípio da 'adequação alimentar' implicava a capacidade de as sociedades distribuírem eqüitativamente os alimentos, realizando as necessidades físicas dos povos famintos e aumentando o poder aquisitivo das populações marginais, para que se atingisse o consumo em massa, equilibrando o fiel da balança. Nesses termos, a emancipação postulada visava proporcionar não só os 'bens de necessidades', mas também os 'bens de dignidade' que as consciências famintas reclamavam.
Essa lógica regia o pensamento sociopolítico do autor, com vistas a assegurar não somente o alimento para todos, mas também a paz mundial. "Se isto ainda não ocorreu, é que, ao lado da população em massa, não se procurou promover o correspondente consumo em massa, que daria o necessário equilíbrio a uma economia humanizada" (Castro, 1968b, p.384). No item "Emancipação colonial e reciprocidade de interesse econômico", do livro em foco, fica claro que o princípio da harmonia social poderia ser levado a efeito mediante a convergência de três domínios de forças interdependentes: desenvolvimento da cooperação entre os países, substituição dos conflitos de interesses pela reciprocidade e integração dos países coloniais à economia mundial. Era assim que se poderia suplantar a ordem vigente nas sociedades em crise, instituindo novas relações sociais movidas pela cooperação, reciprocidade e integração. "O desenvolvimento encarado aqui é o desenvolvimento integral e harmônico, isto é, ao mesmo tempo econômico, técnico, social e humano, permitindo a valorização dos recursos e das possibilidades" (Castro, 1960, p.99).
Sua visão objetiva dos fatos parecia mesmo se distanciar do plano simbólico-ideológico que engendrava o comércio da fome. Esclarecia que a economia humana emancipadora da qual falava não se realizaria primordialmente sob as regras do comunismo oriental nem sob a lógica da ganância do lucro do capitalismo ocidental. Para ele as diferenças entre esses sistemas não constituíam muros intransponíveis, pois havia um denominador comum entre ambos: o interesse pelo homem e pela 're-humanização' da cultura.
Nas duas grandes estruturas econômicas que lutam pela supremacia universal ... parece-nos uma evidência de que não existem, no momento atual, dois mundos em luta irreconciliável, mas apenas, dois pólos diferentes dum só mundo. Dois pólos sociais com diferenças e peculiaridades que não criam, contudo, distâncias intransponíveis maiores do que as existentes entre as condições materiais dos dois pólos físicos da Terra (Castro, 1968a, p.53).
É prematuro fazer qualquer inferência sobre tal idéia sem uma análise da concordância do autor com a visão de Romain Rolland, naquele momento pós-1945, em que os Estados europeus haviam sido divididos em dois blocos. No limite, importa registrar que, no mapa da geografia da abundância, constituíam mercados potenciais a América Latina, a África e o Extremo Oriente, que aguardavam para entrar em ação na economia global. A expectativa era de que seus habitantes, uma vez bem alimentados, pudessem produzir o suficiente para atingir um nível de vida coerente com as possibilidades técnicas do mundo moderno, qual seja: "O ideal seria buscar-se um entendimento nesse campo das necessidades vitais, que permitisse amplo aproveitamento das reservas do mundo, consolidando a economia de todas as nações e promovendo o levantamento dos níveis de vida de toda a humanidade" (Castro, 1968b, p.414).
Nesse sentido, tudo dependia também da forma como as potências coloniais encarassem a nova realidade do mundo. Uma vez se transformando em grandes mercados consumidores, aquelas potências poderiam "cooperar substancialmente para a estruturação de uma economia mais equilibrada, absorvendo os excedentes de determinados produtos das áreas altamente desenvolvidas" (Castro, 1968b, p.415). Em tal enfoque, o problema do planejamento econômico nos países subdesenvolvidos era, basicamente, o de contingenciar recursos escassos entre objetivos concorrentes e escalonar sua utilização de maneira eficiente.
Assim, a substituição de uma economia colonial por uma economia cooperativa, na qual os conflitos de interesses cederiam espaço à reciprocidade, era o pré-requisito para a conquista da harmonia social e da paz. Afinal, Castro (1968b) dizia acreditar nos destinos da humanidade, nos frutos da revolução social em curso e na força construtiva da cooperação humana. Não mais se encontraria, na sociedade sem fome, a dramática questão da sobrevivência biológica, alcançando-se, então, o mais elevado estágio social. Esse é, de fato, um ponto revelador do pensamento do autor e dá margem a interrogações atrativas. Do modo como expunha tais idéias em sua época, convém ao menos lembrar que a entrada das potências coloniais na economia global, transformando-se em grandes mercados consumidores, não implicava necessariamente a conquista do equilíbrio social. Parafraseando Rodrigues (1999), assim como não pode haver predadores a ponto tão extremo de eliminar totalmente as presas de que se nutrem, as sociedades coloniais não podiam sair das relações intersocietárias globais sem que se envenenassem a si próprias com as toxinas de que seriam supostamente beneficiárias.
Com efeito, para Castro a instauração da sociedade sem fome esbarrava exatamente numa questão crucial: saber se a realização da economia humanizada se daria efetivamente no tempo limite dos que sofriam de fome, visto que a adequação distributiva e a harmonia social extrapolavam muito os limites dos recursos técnicos e científicos. Essas possibilidades dependiam de um imenso 'se', e isso implicava ponderar a utopia dos homens de ciência. Havia muito o que lutar contra o que ele chamou de 'apatia humana':
Suponhamos que os cientistas venham a descobrir tudo isso. Como poderão os fazendeiros, em todo o mundo muitos deles ignorantes, ser educados a tempo? E como poderão os industriais do mundo, muitos deles egoístas, quando não também ignorantes, ser impelidos nessa direção? Eis o ponto nevrálgico do problema ... Dentro destas contingências políticas, o problema da vitória contra a fome ultrapassa os limites da capacidade dos homens de ciência e dos técnicos (Castro, 1968b, p.407).
Mas, para apaziguar esses 'vírus anti-sociais', recomendava um antídoto - o conhecimento -, do qual brotariam a liberdade e a sabedoria. Apostava na educação como a bússola libertadora que humanizaria a economia e venceria o espectro da fome, libertando os grupos humanos do estigma do medo que os oprimiam. "Somos, pois, otimistas e vemos nas fricções e agitações sociais dos nossos dias sinais de novos tempos, quando será finalmente alcançada a difícil vitória sobre a fome, vitória capital para a estabilidade social dos grupos humanos" (Castro, 1968a, p.68).
O importante a reter do exposto é que como expert e ideólogo, o autor concentrou na plataforma doutrinária de criação da Ascofam, em 1957, toda a expectativa de concretização dos princípios-guia da sociedade sem fome. Indicou os meios e recursos materiais e pedagógicos que privilegiavam a realização de duas ações essenciais consubstanciadas numa ampla rede de projetos: primordialmente, a difusão dos conhecimentos da alimentação e da nutrição para a formação de agentes multiplicadores dessa causa em nível mundial e, concomitantemente, a implementação de projetos nacionais e locais que deveriam impulsionar as políticas produtivas e distributivas de alimentos, de modo a dar novo rumo à ordem econômica e social do mundo pós-guerra.
Considerações finais
Desta leitura, é possível extrair de imediato dois posicionamentos: um comemorativo, movido pelo gesto de reverência a um dos mais influentes fundadores do campo da nutrição; o outro, não menos reverente, mas movido pela indisfarçada vontade de esquentar o 'motor' da história, acrescenta outras questões ao conhecimento produzido, sobretudo quanto ao alcance sociopolítico do empreendimento de transformação social em prol da realização universal das 'necessidades físicas' e da 'dignidade' dos famintos da terra.
A reflexão pode tomar rumos que não cabem nos limites destas breves considerações e demandam outros estudos. Entretanto, como pessoa que vivenciou a fome de dentro e a violência da pobreza em terra conterrânea, é mister atiçar o debate e, entre tantas outras questões possíveis, apontar duas delas para futuros desdobramentos: em que medida os princípios dietéticos traçados sob a razão lógica da ação sobre os corpos biológicos prescindiam de espaço para a discussão de dimensões não-biológicas da alimentação, no enfrentamento da crise intensa vivida pelos povos famintos? E, uma vez que o autor falava para os dirigentes políticos, patrões, intelectuais e cientistas com vistas à instauração da sociedade sem fome, fica posta a segunda questão: em que medida a conquista da emancipação coletiva mediante uma integração postulada de cima para baixo prescindia de ações e estratégias pedagógicas de emancipação política daqueles povos, de forma a transcender seu olhar culturalmente treinado?
Não basta querer integrar para emancipar. As relações sociais que regem os sistemas econômicos produtivos encontram ressonância na cultura, aqui entendida como amálgama das múltiplas determinações da vida social, o que pressupõe não apenas a existência de um comércio da fome, mas também de uma ordem simbólico-ideológica historicamente dinâmica, que dá suporte aos limites de tolerância à miséria. Subjacente ao modo capitalista de produção há uma forma capitalista de pensar o alimento e o corpo pois, como lembra Madeley (2003, p.28), há uma "idéia de tratar o alimento do mesmo modo que qualquer outro produto - como cestas de lixo ou latas para conservas, por exemplo". As realidades bioético-culturais representam a unidade necessária da esfera estritamente fisiológica, o mundo físico, o capital cognitivo e as formas convencionais das relações sociais de produção. É nessas fronteiras que o corpo se situa e trava a grande batalha pela plenitude da vida.
Posto que a educação foi concebida, por Castro, como a bússola libertadora que disciplinaria os conflitos sociais da época, a emancipação coletiva assim postulada descurou do preceito de que os povos famintos não eram papéis em branco. Era preciso que se trouxessem também, para o ato pedagógico, elementos de intensa vitalidade e dinamismo presentes na construção de sentidos e estratégias existentes na interioridade desses povos, de modo a serem superados por expressões coletivas mais elaboradas e profundas que permitissem situá-los no mundo em que viviam, despertando energias de transformação. Em que consiste, afinal, a educação libertadora?
O tema permanece atual. A história se repete e produz novas gerações ainda mais pobres e famintas, na escala de mais de 20% da população do mundo em desenvolvimento. A difícil tarefa nos próximo 25 anos será garantir que elas e os milhões de outras que, pelas projeções atuais, estarão fora do mercado sejam bem alimentadas (Conway, 2003).
Sendo a cidadania ativa um requisito indispensável para se iniciar o processo de emancipação, e considerando que tal emancipação coletiva dos famintos nunca será doada de fora - nem de cima -, por ser conquista própria, há que admitir, em acordo com Negt e Kluge (1999, p.313), que eles precisam de um duplo processo de aprendizagem que ultrapasse o conhecimento dos princípios alimentares: "assimilação de sua própria história e formação maciça da capacidade de discernimento para tudo que é estranho".
AGRADECIMENTOS
Meu sincero agradecimento à professora doutora Tânia Elias Magno, da Universidade Federal de Sergipe, pela decisiva sugestão na escolha do tema do estudo. Estendo também o agradecimento à professora doutora Anna Maria de Castro, pela leitura do texto inicial e final do artigo e os comentários emitidos, que muito ajudaram a consolidá-lo.
NOTAS
Recebido para publicação em agosto de 2007.
Aprovado para publicação em dezembro de 2007.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Mar 2009 -
Data do Fascículo
Mar 2009
Histórico
-
Aceito
Dez 2007 -
Recebido
Ago 2007