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Janelas do Santa Tereza: estudo do processo de reabilitação psicossocial do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (SP)

Santa Tereza windows: a study of the psycho-social rehabilitation process at the Psychiatric Hospital in Ribeirão Preto, São Paulo

Resumos

Trata-se de um estudo de caso sobre o processo de reabilitação psicossocial do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (HPRP) - o Santa Tereza - cujo objetivo é apreender as possibilidades e limites enfrentados por esta realidade, no que tange ao projeto Pensões Protegidas. Fizemos uso da observação participante e aplicamos entrevistas semi-estruturadas aos moradores das pensões e à equipe multiprofissional que acompanha o processo. Os resultados obtidos desvelam um movimento diferente do estilo hospitalocêntrico, uma vez que articula uma negação institucional. Por fim, consideramos a contribuição do projeto Pensões Protegidas do Santa Tereza para o repensar do saber/fazer sobre a condição dos chamados doentes mentais.

história da psiquiatria no Brasil; desinstitucionalização; reabilitação psicossocial; pensão protegida


This is a case study of a psycho-social rehabilitation process taking place at Santa Tereza, a psychiatric hospital in Ribeirão Preto, whose objective is to understand possibilities and limitations implied in the rehabilitation process within Pensões Protegidas (Protected Homes) project. The basic strategies for the present study involved participative observation and interviews with individuals living in such homes as well as with the multi-professional staff working in the process. The results reveal a kind of orientation quite distant from the hospital-centered trend, since they reveal remarkable tendency towards deinstitutionalization. Finally, the author emphasizes the contribution of Pensões Protegidas Project at Santa Tereza for the better understanding of the so-called mentally ill.

history of psychiatry in Brazil; deinstitutionalization; psycho-social rehabilitation; protected homes


Janelas do Santa Tereza: estudo do processo de reabilitação psicossocial do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (SP)

Santa Tereza Windows: a study of the psycho-social rehabilitation process at the Psychiatric Hospital in Ribeirão Preto, São Paulo

Trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (Eerp-USP), 1998. Apresentado no 52º Congresso Brasileiro de Enfermagem — 10º Congreso Panamericano de Enfermería, em Florianópolis (SC), em outubro de 1999.

Jacileide Guimarães

Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de

São Paulo (Eerp-USP)

Rua Amador Bueno, 1372 casa 1

14010-070 Ribeirão Preto — SP Brasil

cfrutuoso@zipmail.com.br

Toyoko Saeki

Professora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto,

Universidade de São Paulo (Eerp-USP)

Rua Afonso Schimidt, 695/74

14090-470 Ribeirão Preto — SP Brasil

GUIMARÃES, J. e SAEKI, T.: 'Janelas do Santa Tereza: estudo do processo de reabilitação psicossocial do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (SP)'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(2), 357-74, jul.-ago. 2001.

Trata-se de um estudo de caso sobre o processo de reabilitação psicossocial do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (HPRP) — o Santa Tereza — cujo objetivo é apreender as possibilidades e limites enfrentados por esta realidade, no que tange ao projeto Pensões Protegidas. Fizemos uso da observação participante e aplicamos entrevistas semi-estruturadas aos moradores das pensões e à equipe multiprofissional que acompanha o processo. Os resultados obtidos desvelam um movimento diferente do estilo hospitalocêntrico, uma vez que articula uma negação institucional. Por fim, consideramos a contribuição do projeto Pensões Protegidas do Santa Tereza para o repensar do saber/fazer sobre a condição dos chamados doentes mentais.

PALAVRAS-CHAVE: história da psiquiatria no Brasil, desinstitucionalização, reabilitação psicossocial, pensão protegida.

GUIMARÃES, J. e SAEKI, T.: 'Santa Tereza windows: a study of the psycho-social rehabilitation process at the Psychiatric Hospital in Ribeirão Preto, São Paulo'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(2), 357-74, July-Aug. 2001.

This is a case study of a psycho-social rehabilitation process taking place at Santa Tereza, a psychiatric hospital in Ribeirão Preto, whose objective is to understand possibilities and limitations implied in the rehabilitation process within Pensões Protegidas (Protected Homes) project. The basic strategies for the present study involved participative observation and interviews with individuals living in such homes as well as with the multi-professional staff working in the process. The results reveal a kind of orientation quite distant from the hospital-centered trend, since they reveal remarkable tendency towards deinstitutionalization. Finally, the author emphasizes the contribution of Pensões Protegidas Project at Santa Tereza for the better understanding of the so-called mentally ill.

KEYWORDS: history of psychiatry in Brazil, deinstitutionalization, psycho-social rehabilitation, protected homes.

11Santa Tereza —, subvencionado pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, surgiu na primeira metade da década de 1940, no momento em que a crítica à psiquiatria brasileira girava em torno da superlotação dos ainda poucos, novos e já degradantes hospícios existentes no Brasil. Sob a interpretação de que a assistência psiquiátrica estava mal porque os hospitais estavam abarrotados de pacientes, o Santa Tereza veio compor o cenário do fenômeno de desafogamento do macro-hospital psiquiátrico de São Paulo: o Hospício de São Paulo, posteriormente conhecido como o Juqueri, modelo deste gênero para a América Latina. Segundo Cunha (1986), no Brasil de fins do século XIX, a tônica era o "progresso" respaldado pela centralização de poder, que fez emergir, nas duas últimas décadas deste século, a construção de fábricas e, simultaneamente, dos hospícios, que conotavam "simbolicamente o 'progresso' que se expandia rapidamente". Nesse contexto, em 1898 o Juqueri foi fundado em São Paulo, capital, como instituição-modelo a propósito das relações político-econômicas de disciplinarização da vida urbana, em geral, e de tratamento da loucura, em particular. Com o decorrer do tempo e por razões historicamente determinadas, o Juqueri perder-se-ia como excelência, posto que, os "argumentos que justificavam, no final do século XIX, a proposta unificadora e centralizadora estavam afastados e superados", no início do século XX. A crítica da superlotação dos hospícios, que impulsionou a "criação de colônias e hospícios espalhados por todo o interior do estado", desde fins da década de 1920 até a de 1950, "retirou do Juqueri sua condição de primeiro e único" (Cunha, 1986). Já na segunda década do século XX, a crítica ao hospício brasileiro paradoxalmente faz proliferar este mesmo modelo, agora revestido pela ideologia da descentralização que, embora aparentemente antagônica à centralização, não é contraditória do ponto de vista da padronização do saber/poder psiquiátrico. Ambas são versões de uma mesma ideologia dominante que subsidia e é subsidiada pelo discurso médico psiquiátrico incipiente. Conforme Cunha (op. cit.), trata-se das "estratégias de passagem do indivíduo para a sociedade como objeto central da medicina mental". Isto ocorre no momento conveniente: a expansão do modelo de sociedade capitalista que, aliado ao higienismo e posteriormente ao eugenismo alienista, não prescinde de uma população 'disciplinada' no sentido ordeiro do termo. O Juqueri já não era o único. Retomemos a história de "um dos filhos, considerando-se que os hospitais psiquiátricos privados, no estado de São Paulo, são todos, ou na sua grande maioria, filhos do Juqueri, como também o são os públicos" (Figueiredo, 1988). Gonzalez et al. (1995) assim se referem ao Santa Tereza: Esta denominação surge com o nascimento do hospital em 1944, devido às suas instalações ficarem nas proximidades da Estação Santa Tereza da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro (Saeki, 1994). A partir de 2001, o hospital passou a se chamar oficialmente Hospital Santa Tereza de Ribeirão Preto.

Introdução

Apalavra janela (conforme Ferreira, 1986) provém do latim e é o diminutivo de janua, que significa porta. Janelas, além de plural de janela, significam popularmente "os olhos", e "janeleiro" é aquele que costuma estar na janela, namoradeiro, ou seja, que está olhando, vislumbrando um outro lugar, uma outra situação. Portanto, janela como diminutivo de porta pode, na medida do que ainda não é, tornar-se saída: os olhos que estendem uma ponte entre o que se é e o que se poderá ou se quer ser; o que se tem e o que se quer ter. Como o exercício de enamorar-se por alguma coisa, a vontade de viver o melhor, embora inusitado, para os moldes da instituição psiquiátrica.

Esta compreensão pode ser associada à vista bonita que temos das janelas do Santa Tereza, estando no interior do Núcleo de Convívio, com os que fazem parte de um projeto de reforma na psiquiatria, hoje considerados "elite" pelo "pessoal do pátio", quando se referem a alguns trabalhadores do Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (HPRP).

Apostando nessas janelas/possibilidades, acreditamos na transformação, ainda incipiente, que faz elites, mas que se torna realidade e cresce, fomentando a construção de uma ética comprometida, no dizer de Pitta (1996), uma ética de solidariedade.

Resgatamos o processo de institucionalização do Santa Tereza, e nos detemos no processo de desinstitucionalização iniciado na década de 1980, ao que chamamos de Janelas do Santa Tereza, em alusão à designação de Ferreira (op. cit.).

Partindo do pressuposto de que estamos tratando do processo de reabilitação psicossocial de um macro-hospital público, submetido às políticas públicas de saúde mental, norteamos nosso estudo em direção à discussão dos pólos de interesse historicamente contextualizados — hospitalização e desinstitucionalização —, segundo o pensamento brasileiro de tradição basagliana.

A reforma psiquiátrica brasileira inscreve-se nesse processo como condição mediadora, cujo maior desafio é tornar-se uma conquista e não uma concessão, assim contribuindo para a construção de avanços na atuação da assistência em saúde mental no Brasil, o que acontecerá com a ação dos trabalhadores comprometidos com uma transformação qualitativa dos serviços. Esta ação renova-se enquanto conquista e não concessão, uma vez que se reveste da defesa e da aplicação prática de uma ética imbuída de sentido político, isto é, comprometida com os interesses micro e macroestruturais dos sujeitos inseridos em uma comunidade.

A prática, com responsabilidade e reflexão crítica, contextualizada, talvez seja suficiente para nos ensinar sobre esta ética, à revelia do "discurso competente" que, conforme Chauí (1989), é o discurso proferido segundo a ideologia dominante e por isso também dominante, "ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem. ... O discurso competente é o discurso instituído." Em detrimento deste discurso pronto e a favor da ética de que falamos, Aranha et al. (1993) dizem que, embora não seja simples, é possível e até inevitável o questionamento deste discurso acabado — pronto, instituído, ideológico, morto — e a construção do discurso contra-ideológico — móvel, pensante, instituinte, vivo. Trata-se da superação do discurso pautado na reprodução de "setores insuspeitáveis: na educação familiar e escolar, nos meios de comunicação de massa, nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias".

Um projeto de reabilitação psicossocial desmistificador traz de novo esta perspectiva de superação, de enfrentamento sem teoria acabada a priori, como uma fenda que possibilita a articulação entre o pensar e o agir. A perspectiva de 'estar na janela', vislumbrando a construção de um futuro instituinte e não instituído.

A exemplo de Basaglia et alii (1985), sobre "a porta aberta da instituição aberta", onde "a porta aberta age, portanto, também sobre o psiquiatra como tomada de consciência de seu grau de escravidão diante de um sistema social que se mantém graças a executantes ignaros e silenciosos", acreditamos que as Janelas abertas do Santa Tereza, tanto reais quanto simbólicas, convidam os trabalhadores e os usuários dos serviços em saúde mental à participação e superação da história do manicômio.

"Primeiro vem o sol, depois vem a chuva..."

Parafraseando uma moradora do Núcleo de Convívio do Santa Tereza, ao falar de um fenômeno não tão natural, podemos dizer: primeiro veio o Juqueri, depois veio o Santa...

O Hospital Psiquiátrico de Ribeirão Preto (HPRP) — o

22versão contestatória que preconiza a redução do espaço asilar, o fortalecimento do espaço terapêutico reabilitador e conseqüente estímulo à criação de vínculos extra-hospitalares para os internos. A redução do espaço asilar do Santa Tereza conta com as experiências do Núcleo de Convívio, da Vila Terapêutica, das Pensões Protegidas, das Foi dentro do próprio Santa Tereza que na década de 1980 os trabalhadores desta instituição encamparam o questionamento sobre a desinstitucionalização da assistência para além da reestruturação propugnada pelo reformismo da psiquiatria brasileira.

33Residências Assistidas e da nova perspectiva de articulação dos serviços em saúde mental na comunidade, que fundamenta todos esses projetos. O Núcleo de Convívio foi instaurado em 1983, de forma experimental, e validado no ano seguinte, atendendo um grupo de 15 a vinte pacientes "crônicos masculinos". Posteriormente, passou a ser uma unidade mista, localizada em uma casa dentro do próprio hospital, porém, afastada do seu centro e aos cuidados de uma equipe multidisciplinar do HPRP. Em 1987, foi implementada a Vila Terapêutica, constituída por cinco casas com infra-estrutura básica, construídas em forma de vila, dentro do hospital, em uma área também afastada das suas instalações centrais, com capacidade para quatro moradores por casa, supervisionadas por uma equipe multiprofissional que mantém um membro efetivo como referência para cada morador. Com o objetivo de fortalecer a contratualidade dos moradores, a experiência da vila incentiva vínculos extra-hospitalares através de atividades como passeios ao centro comercial da cidade, movimentação bancária e aquisição de bens materiais desejados, viabilizando, a exemplo do Núcleo de Convívio, as possibilidades contratuais concretas de satisfação e inserção dos moradores na comunidade. Segundo Gonzalez et al. (1995), o projeto Pensões Protegidas surgiu a partir dos resultados satisfatórios obtidos com a Vila Terapêutica, onde os moradores demonstraram colaboração e interesse na mudança. Busca-se a reinserção não só dos hábitos e costumes sociais nos pacientes, mas também a reinserção geográfica, instalando-se na cidade e preconizando a desmistificação do estigma dos pacientes através da redução do vínculo institucional, ao mesmo tempo que incentivando vínculos extramuros. Após negociações de ordem legal, iniciadas em 1988, e com o apoio da sociedade civil, em abril de 1992 este projeto foi aprovado pela consultoria jurídica da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e posto em prática em setembro daquele mesmo ano com a primeira Pensão Protegida. Atualmente são três casas que abrigam no máximo quatro pessoas cada, localizadas em bairros diferentes da cidade com o propósito de evitar a formação de localidades (guetos) manicomiais. As Pensões Protegidas são unidades localizadas fora do espaço asilar, na comunidade, cujo objetivo é proporcionar abrigo aos ex-pacientes egressos do HPRP, abandonados sociais, sem sintomatologia psiquiátrica grave. Também contribuem para a ampliação do espaço concreto na busca da vinculação extra-hospitalar destes ex-pacientes com participação da comunidade. Os pensionistas, moradores das Pensões Protegidas, são os ex-pacientes do hospital que permaneceram asilados por longos períodos, por razões essencialmente não-médicas, ausência de recursos sociais de apoio, abandono familiar e comprometimento de sua capacidade produtiva (idem, ibidem). Para Alves (1996), é flagrante a dívida social impagável para com as pessoas internadas por longo tempo nos hospícios brasileiros, causada pela ausência de políticas públicas que as beneficiem, formando a chamada "clientela cativa, sendo que dos cerca dos 77 mil leitos em hospitais psiquiátricos (do Brasil), estima-se que vinte mil encontrem-se ocupados por clientela dita 'cativa', ou seja, pessoas que, sem necessidade de permanecer internadas, estão impossibilitadas de alta por falta de apoio familiar e social". Assim, o projeto Pensões Protegidas do Santa Tereza favorece o debate e contribui para a transformação da prática psiquiátrica, uma vez que se encontram asiladas, somente nos serviços públicos, 2.500 pessoas. Estas, somadas às dos serviços privados, alcançam a margem dos dez mil, apenas no estado de São Paulo (Secretaria de Estado da Saúde, HPRP, 1998). Segundo avaliação da diretoria do HPRP (1998), o projeto Pensões Protegidas inova em relação às práticas anteriores porque: rompe com a exclusividade das internações e fortalece a necessidade de serviços fora da instituição; possibilita a desvinculação do usuário com o hospital; busca resgatar mais os aspectos positivos dos pacientes, vistos a priori como pessoas e não apenas pacientes; viabiliza-se de forma menos onerosa, uma vez que o custo da assistência dispensada ao pensionista é reduzido, se comparado com o asilar (o custo por paciente-dia institucionalizado, conforme referência de fevereiro de 1998, é de R$52,56, enquanto o custo por pensionista-dia equivale a R$10,21); amplia a condição de cidadania através da alta e incentivo à desvinculação hospitalar/vinculação comunitária e a perspectiva de independência socioeconômica devido à articulação entre o projeto e os serviços da comunidade. Como deficiência mais significativa foi identificada a dependência de políticas públicas para alocação dos escassos recursos, porém a conquista mais importante é a possibilidade concreta de inserção social de uma clientela asilada, o que é positivo do ponto de vista técnico, administrativo e econômico. O Santa Tereza conta hoje (1998) com três Pensões Protegidas geridas por sociedades civis filantrópicas sem fins lucrativos, contratadas pelo estado através de processo licitatório público. A vivência dos pensionistas é acompanhada por um orientador (um por pensão protegida) e os serviços gerais contratados são supervisionados por uma equipe multiprofissional do Santa Tereza. O atendimento em saúde dá-se através da rede ambulatorial do município. Os orientadores são pessoas voluntárias da comunidade que se dispõem a articular a vivência dos pensionistas ao acompanhamento da equipe do hospital. Para fins de interlocução, os orientadores participam de reuniões periódicas no HPRP com a equipe que coordena o projeto. Vale salientar que esta trajetória percorrida pelo Santa Tereza foi, enquanto processo, cerceada por avanços e retrocessos que atestam ainda hoje a atualidade da verificação de Saeki (1994), no que tange à existência simultânea de bolsões institucionais com características manicomiais e espaços em prol da superação do asilo. Estudo realizado por Zerbetto et alii (1999), sobre a desinstitucionalização, segundo a experiência do Movimento de Luta Antimanicomial de Ribeirão Preto, demonstra que o Santa Tereza é considerado locus de importante reflexão e ação, em que as Pensões Protegidas são constituintes de discretas transformações no sistema de saúde mental do município, com o que concordamos, pois cremos que contribuem para construir uma outra história da assistência em saúde mental, que pode ser tanto mais terapêutica quanto mais ética e tanto mais real quanto mais comprometida com a condição dos chamados doentes mentais em via de desinstitucionalização. As Residências Assistidas são imóveis da Cohab de Ribeirão Preto, locados por ex-pensionistas que assumem o orçamento imobiliário. Trata-se de uma fase "pós-pensão protegida", onde o ex-interno do HPRP dispõe de condições psicossociais de autogestão, sem mediação institucional (manicomial). O Santa Tereza conta, hoje, com três Residências Assistidas em funcionamento.

um macro-hospital fundado em 1944, com o objetivo explícito de diminuir a população de pacientes existentes no Juqueri, e com instalações físicas adaptadas de um certo Patronato Agrícola que sediava o 3º Batalhão da Força Pública do estado de São Paulo, a 6km do centro da cidade de Ribeirão Preto, com 48 alqueires de área, 17.000m2 construídos e 1.513 internados no ano de 1967.

O Santa Tereza começou funcionando como "sucursal do Juqueri de onde foram removidos doentes e transferidos funcionários" (Saeki, 1994): os doentes, para desafogar o Juqueri; os funcionários, devido à dificuldade de novas contratações de pessoal, possivelmente atrelada ao acesso das longínquas acomodações do hospital e ao esgar do medo fortemente dissipado pela doença e pelo doente mental (Foucault, 1993). Posteriormente, além de desafogar o Juqueri, o Santa Tereza passou a atender o município e região, o que contribuiu para o seu próprio processo de superlotação.

Estudo realizado por Contel et alii (1971) sobre as funções asilar e de renovação da população hospitalizada no Santa Tereza, durante o ano de 1969, verificou "o fato de o hospital funcionar em regime de superlotação, onde, com pequenas variações, para cada alta ocorrida corresponderá uma nova internação", concluindo-se que, naquele ano, em termos numéricos, o hospital caracterizou-se "mais pela função de asilo do que pela função de renovação da população hospitalizada", sendo a função asilar caracterizada pelo acúmulo dos anos de permanência real do paciente no hospital.

Na década de 1960, o socorro à superlotação dos asilos vem da privatização da saúde mental. Os internos do Santa Tereza foram redistribuídos pelos hospitais particulares da região, o que não impediu essa instituição de "adentrar a década de 1970 com mais de mil pacientes", havendo a necessidade de novas medidas para a solução dessa problemática (Saeki, 1994).

Os filhos do Juqueri também sofreram e muitos ainda hoje sofrem, uns mais flagrantemente, outros de forma mais velada, com a superlotação dos hospitais psiquiátricos. A crítica estrutural à superlotação prevaleceu, favorecendo o crescimento do "arsenal" de hospícios brasileiros até fins da década de 1970. No início da de 1980, sob o efeito da redemocratização do país, do I Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental e da visita de Franco Basaglia, articularam-se os discursos e o enfrentamento crítico à política nacional de saúde mental (Figueiredo, 1988).

Vale salientar que na década de 1980 a sociedade brasileira passou por questionamentos que caracterizaram uma fase de efervescente transição, ou seja, de um regime de ditadura militar de extrema repressão política, imposto durante 21 anos (1964-85), para o chamado processo de redemocratização do país. Nesse contexto, os movimentos sociais, até então rigorosamente reprimidos, articularam-se, fortalecendo suas bases e representações. No âmbito da psiquiatria, isto se deu através do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) e da repercussão da experiência basagliana, decisivos para o recrudescimento do processo de reforma psiquiátrica brasileira, tanto na vertente contestatória quanto na mantenedora-modernizadora.

No período citado, conforme Delgado (1992), a reforma do asilo e a ambulatorização caracterizaram os esforços reformadores da psiquiatria em todo país. Mas nem mesmo este reformismo conseguiu evitar a realidade crítica da superlotação e da ineficiência da assistência psiquiátrica. Sobre este aspecto, o autor considera que "é próprio dos ambulatórios psiquiátricos estarem superlotados, com demanda reprimida vários meses à frente, e serem ineficientes para o manejo das situações clínicas mais complexas, como as psicoses" (idem, 1998).

Em 1989, o projeto de lei 3.657-A, de autoria do deputado federal Paulo Delgado (PT-MG), que dispõe sobre a superação progressiva dos hospitais psiquiátricos e regulamentação das internações, foi o divisor de águas entre defensores e opositores do repensar da psiquiatria brasileira. Naquela década, o Santa Tereza testemunhou uma outra crise do hospital psiquiátrico, com características diferentes da vivida pelo Juqueri meio século atrás. Não era mais a queda de um macro-hospital passível de herdeiros-adeptos, mas a queda de um modelo que funcionava iatrogenicamente, sobre o qual já se tornara notória a grande limitação de possibilidades terapêuticas.

A década de 1990 testemunhou acontecimentos importantes para a psiquiatria, dentre os quais podemos destacar a conferência realizada em novembro de 1990 em Caracas, na Venezuela, da qual resultou a Declaração de Caracas, que preconiza a reestruturação da assistência psiquiátrica do continente americano, cujo marco conceitual versa sobre a superação da tendência hospitalocêntrica e o resgate dos direitos dos doentes mentais. No Brasil, esta conferência repercutiu favoravelmente, acelerando a solução reformista (Basaglia, 1985), que determina uma ampliação estratégica no financiamento da saúde mental pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, "os serviços substitutivos passaram a ter remuneração sempre 20% superior à do serviço tradicional, o hospital psiquiátrico" (Gouveia, 1997). Paralelamente, aceleravam-se também os movimentos e experiências de desinstitucionalização da psiquiatria, endossados pela atuação do MTSM — por uma sociedade sem manicômio — e da Luta Antimanicomial.

A propósito da solução reformista, Basaglia (1985) adverte sobre os riscos de outros interesses devidos à obrigatoriedade de reestruturação do hospital psiquiátrico frente "à impossibilidade de continuar excluindo o doente mental enquanto problema... na realidade tenta-se agora integrá-lo nesta mesma sociedade". No livro citado, Gilli (1985) discorre sobre a pressão do sistema geral perante o sistema institucional tradicional, como, por exemplo, o hospital psiquiátrico, dizendo que essas instituições são malvistas perante a economia de mercado porque constituem um sistema produtivamente inoperante: "A pressão do sistema geral diante do hospital psiquiátrico destina-se, assim, a obter uma maior eficiência: maior número de altas, doenças mais curtas, resultados mais seguros."

Sob tais vociferações (do ponto de vista dos interesses mantenedores da instituição) e/ou sobre o engatinhar da prática psiquiátrica contestatória no país (do ponto de vista dos interesses questionadores da instituição), o Santa Tereza, a exemplo de outros hospitais psiquiátricos brasileiros, dá início à sua reestruturação tendo como orientação a

Janelas do Santa Tereza

O método que utilizamos foi o estudo de caso, com o objetivo de apreender a especificidade do processo de reabilitação psicossocial do Santa Tereza, no que tange ao projeto Pensões Protegidas. Inicialmente, encaminhamos solicitação à Comissão de Ética Médica (CEM) do hospital para efetuarmos as entrevistas, obtendo autorização, com a exigência de resguardarmos os artigos 123 e 127 da CEM, que versam sobre a anuência dos envolvidos quanto ao uso do gravador, para registro dos dados e sobre a necessidade de protocolarmos a pesquisa junto ao corpo deliberativo do hospital. Seguindo tais orientações, a pesquisa foi protocolada sob número 003156-HPRP, em 14 de agosto de 1998, data da aprovação.

Do total de dez pensionistas, sete (70%) participaram desta análise e dentre o total dos trabalhadores que compõem a equipe de acompanhamento do Projeto (sete), apenas quatro (57%) foram por nós entrevistados. Estes números demonstram a indisponibilidade de contatar o total dos sujeitos envolvidos no processo investigado, devido às suas alegações de horários de trabalho e de outros compromissos, não dispondo de tempo para participar das entrevistas. O critério para inclusão na pesquisa era representar um dos pólos investigados, ou seja, ser pensionista ou trabalhador da equipe multiprofissional deste projeto.

Utilizamos para coleta de dados a observação participante e entrevistas semi-estruturadas, que foram gravadas e transcritas com o consentimento dos participantes. Cada entrevista teve duração aproximada de cinqüenta minutos, sendo os trabalhadores da equipe entrevistados no próprio local de trabalho e os pensionistas em suas casas, ou seja, nas pensões.

Procedemos à análise segundo o pensamento brasileiro em saúde mental, de tradição basagliana, tendo como ponto principal a compreensão ético-política de desinstitucionalização. Transcrevemos os relatos procurando tecer interlocução com a literatura estudada e com considerações possíveis, a partir do nosso olhar. Identificamos, para preservação do anonimato dos entrevistados, os pensionistas com a letra P (de pensionistas) e os trabalhadores da equipe em saúde mental do Santa Tereza com TSM (de trabalhador de saúde mental), seguidos de um número seqüencial (1, 2, 3 etc.). Para efetuarmos a análise, partimos do pressuposto de que todo processo engendra em seu bojo possibilidades e limites sobre o que buscamos apreender ao olhar dos participantes do projeto Pensões Protegidas do Santa Tereza, tais possibilidades e limites desse projeto.

Moradores do projeto Pensões Protegidas do Santa Tereza

O projeto Pensões Protegidas conta atualmente com três casas localizadas em diferentes bairros da cidade de Ribeirão Preto, abrigando cada uma delas, no máximo, quatro moradores, que possuem em média 27 anos de hospitalização e 57 anos de idade.

Os moradores do projeto quando questionados sobre o fato de terem morado no hospital e agora estarem residindo em uma "casa na cidade", responderam unanimemente que notaram diferença de um lugar para o outro; sendo que seis (85,7%) disseram que esta mudança significou desenvolvimento — "possibilidades" — apesar das dificuldades — "limites".

Como "limites" citaram o acúmulo dos pertences (móveis e eletrodomésticos) de três ou quatro pessoas para uma só casa; a falta de conhecimento dos lugares para sua locomoção e a "soberba que parte das pessoas da rua têm" (P-2). Trata-se do preconceito das pessoas com o chamado doente mental, asilado ou não, visto que o estigma deste diagnóstico rotula a existência de quem o portou: "Dificuldade é que estamos muito abarrotados com tudo isso aqui, porque eu fui comprando tudo, e todos foram comprando para quando mudarmos para a casa da Cohab" (P-1). Este depoimento mostra a perspectiva de autogestão psicossocial referida pela pensionista, quando manifesta o desejo de, posteriormente, mudar-se para a Residência Assistida, onde espera encontrar maior autogerência e desvinculação institucional.

Os limites ou "dificuldades" dos moradores dividem-se basicamente em estruturais e ideológicos. Os estruturais referem-se à escassez de imóveis, o que ocasiona a "superlotação" das pensões com o acúmulo de bens materiais de três ou quatro pessoas em uma só casa (geladeiras, televisores, fogões etc.). Os limites ideológicos podem ser internos ou externos. Os internos partem do pessoal do próprio hospital — o que será discutido adiante — e os externos são aqueles advindos da comunidade, como, por exemplo, "a soberba", a visão estigmatizante do paciente psiquiátrico como doido, irresponsável. Em detrimento dessa visão, o orientador age mediando o impacto das relações extramanicomiais. Segundo os moradores, as conquistas no âmbito ideológico externo, ou seja, na comunidade, alcançaram maior êxito do que as estruturais. Isto ocorre devido ao aspecto econômico determinante e à dependência de deliberações das políticas públicas de saúde que caracterizam os limites estruturais, enquanto que os ideológicos relacionam-se à predominância da cultura manicomial que vem sendo transformada a expensas das experiências exitosas de desinstitucionalização no Brasil e em outras localidades.

A via de enfrentamento das "dificuldades" encontradas parece-nos intrinsecamente relacionada com o modo de organização do sistema de saúde e com as verbas destinadas ao mesmo. O modo de organização pautado em um modelo descentralizado de saúde, com ênfase na interação na comunidade, e a viabilização real de verbas para essa finalidade corresponderiam à superação dos limites estruturais e ideológicos, pois só assim teríamos recursos humanos e materiais em condições de operacionalização favorável à desinstitucionalização ético-política e assistencial. Sabemos que essa via, embora propugnada pela Convenção de Caracas (1990), encontra muitos obstáculos pela pretensão de mudanças nos aspectos convencionais de política, economia e cultura a que está habituado o modelo hospitalocêntrico.

Com relação às possibilidades ou "desenvolvimento", os pensionistas mencionaram: o inter-relacionamento com outras pessoas "normais"; a superação do esgar do medo; ir e vir sem vigilância; responsabilizar-se por seus próprios atos e exercer seu direito de cidadania (já tão desgastado nos "discursos reabilitadores"):

Viver no meio de muitas pessoas, ir pela rua e não ser apanhado pela polícia, ter documentos, mostrar sua identidade, porque, antigamente, pegava um paciente doente mental na rua, aí pronto, já pegava a polícia e levava pro Santa Tereza (P-3).

Encontrar o pessoal na rua, e eu sou que nem eles, não sou diferente, ninguém ter medo, pensando que é doente (P-4).

Ter liberdade. A gente vai dormir a hora que quer. A hora que quer não que eu tomo remédio às vinte horas que é às oito da noite. Mas aí o dia que a gente quer ficar até mais tarde na televisão, a gente fica. E aí a gente sai, a gente areja a cabeça (P-5).

Cidadania é ser cidadão da cidade... é sair, ter liberdade, não tem aquela pessoa que pune a gente, que tá ali: a gente não pode sair para lugar nenhum. Fica punindo a gente. E a gente tendo cidadania, a gente tá na liberdade. A gente não pode fazer tudo que a cabeça dá, tudo o que a cabeça manda a gente fazer a gente não faz, mas a gente é livre. A gente não tem ninguém atrás da gente: você não vai ali, você não vai lá, faz isso, faz aquilo (P-5).

A noção de cidadania, segundo os pensionistas, atrela-se à idéia reiterada enfaticamente de liberdade, podendo estar relacionada à condição anterior — hospitalocêntrica — limitada aos muros da instituição e conseqüente confinamento.

Com relação ao questionamento sobre seu retorno para o hospital, todos responderam negativamente ("Não. Deus me livre! Pra lá eu não quero voltar mais, Deus me livre"). Notamos o alargamento do mundo vivido pelos pensionistas que, mesmo encontrando obstáculos, optam pelo seu enfrentamento em vez do retorno ao condicionamento manicomial, distinguindo o mundo de dentro e o mundo de fora do hospital e desejando viver os novos desafios que fazem a experiência extramuros.

Slavich (1985) destaca, como maior desafio na desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos, a construção da margem de liberdade, que consiste na possibilidade de autogerência da própria vida, onde a contestação individual é o grande avanço. Sobre esta perspectiva é possível estabelecermos um elo com o depoimento a seguir, em que o pensionista expõe seus gostos e indaga sobre os gostos de outrem:

Eu ligo meu rádio, toda vida gostei de música, lá no Santa (na Vila Terapêutica) e aqui. Eu distraio mesmo com meu rádio. Elas têm mania de ir em baile, vai no baile, come um salgadinho e corre vêm embora, nem dança nem nada, nem diverte. Isso que é o divertimento delas. Eu não sei que distraimento é esse que vai no baile às 6:00h e volta 7:30h da noite (P-2).

Os discursos apreendidos denotam a superação do asilo e a luta por uma transformação da condição dos pacientes psiquiátricos, que antes participavam apenas marginalmente, até de suas próprias vidas, e agora tornam-se sujeitos falantes. Talvez seja esta a margem real — aparando-se as instrumentalizações ideológicas do processo — de poder verdadeiramente conquistado pelos pacientes psiquiátricos, pois assim abre-se a possibilidade da disseminação entre eles da descoberta da contradição entre a instituição e o doente. Deflagra-se a crise do modelo hospitalocêntrico e da lógica que inviabiliza o sujeito social participativo, podendo esta crise acelerar a transformação do referido modelo (Slavich, 1985).

A possibilidade de participação efetiva — seja individual e/ou coletiva, sobre a própria vida e acontecimentos externos — da pessoa acometida por sofrimento psíquico é o fundamento sobre o qual se baseia esta investigação: podemos considerar que a experiência das Pensões Protegidas tem contribuído para a lenta retomada do poder de contestação individual de pacientes asilados por longo período de tempo.

Os resultados levam-nos a verificar que o Santa Tereza, através das Pensões Protegidas com o preceito de desvinculação institucional e simultânea vinculação pessoal-social do morador, vem contribuindo para a reconstrução da sua contestação individual enquanto micropoder e para a desconstrução do macropoder do institucionalismo psiquiátrico e assim para a reinvenção dos serviços de saúde mental e redefinição do usuário desses serviços.

Considerando a perspectiva de processo, apreendemos como potencializador das "possibilidades" a mesma via de enfrentamento dos "limites": a transformação do modo de organização de uma lógica hospitalocêntrica para uma rede de assistência comunitária de abordagem psicossocial e a efetivação dessa transformação, através do destino de verbas e prioridades, levando à superação dos limites e ao fortalecimento das possibilidades identificadas, que contribuem para um favorável enfrentamento da condição do paciente asilado.

Equipe de trabalhadores em saúde mental do programa Pensões Protegidas do Santa Tereza

O projeto Pensões Protegidas é acompanhado por uma equipe multiprofissional, composta por dois diretores (um técnico e outro administrativo), um psiquiatra, um enfermeiro, um assistente social e dois terapeutas ocupacionais que atuam em parceria com o orientador de cada pensão e com a rede municipal de saúde. No que tange a essa equipe, buscamos apreender o significado advindo de ser participante do processo e as possibilidades e limites vivenciados.

Com relação à significação, foi unânime a satisfação dos trabalhadores envolvidos. A este respeito dizem que, embora seja um trabalho muito difícil porque exige tempo e recursos, é gratificante presenciar os resultados positivos:

Ver os moradores conversando um com o outro, com a equipe — porque no início eles nem conversavam entre si; o resgate da cidadania, virar gente e já começar a pedir, falar, ter voz, isso também anima a gente, porque a gente vê resultado positivo. Apesar de muito difícil, a gente tem visto resultado. Eles já reclamam, antes só balançavam a cabeça, hoje têm opinião própria (TSM-2).

O depoimento ajuda a avaliar o benefício da margem de liberdade e da contestação individual, já citados (Slavich, 1985), com relação ao ganho para os pacientes há muito tempo asilados, que hoje "reclamam", quando antes "só balançavam a cabeça" (P-1).

Agora eles são gente. Aqui (no Santa Tereza) eram esquecidos, eram ignorados, número não sei quanto ou registrados por apelidos. Então a gente começa aqui uma fase inicial de tirar a documentação. Você precisa ver que interessante, como eles se sentem gente de ter na mão aquela identidade, de ter conta em banco, de ter o benefício (financeiro). Agora lá fora, é andar de ônibus, ir ao banco, porque aí já vai até sozinho. Conversa com vizinho, pede ajuda quando precisa. É difícil, mas a gente vê resultado sim (TSM-2).

Eu fico muito satisfeita. Eu tenho uns colegas que trabalham na mesma função que a minha em outros locais e eles não percebem isso, eles falam: esse hospital não muda. Então eu conto para eles que o nosso trabalho é diferente. Eles não gostam do local onde trabalham porque não tem nada de novo e aqui preenche a gente ver as mudanças nos pacientes. No início eu achava que não teria esse resultado, mas agora estou vendo que tem mesmo. Hoje eu vejo que tem uma mudança, só que colegas meus que trabalham em pavilhões não vêem isso. Foi um processo de resgate de identidade, quer dizer: há quantos anos estavam aqui e ninguém nunca descobriu o registro civil destas pessoas. Esse processo mexeu com todos nós, começou outra vida, outro trabalho (TSM-3).

Ainda sobre a significação, obtivemos discursos comprometidos com a solidariedade em resgatar pessoas marginalizadas pela exclusão psicossocial — "agora eles são gente" — e comprometidos com a satisfação profissional por fazerem algo que contribui, favoravelmente, com os que necessitam da assistência em saúde mental.

Com relação às possibilidades e aos limites, os relatos oscilaram, em ambos os casos, entre considerações centradas em questionamentos políticos e outras voltadas para uma neutralidade pautada em justificações lineares do processo.

Como "possibilidades", a equipe destacou: vontade política com relação ao comprometimento da direção da instituição em encampar o processo; a inserção geográfica das pensões na comunidade; o acolhimento da comunidade; a solidariedade pela superação da resistência gerada com a cultura manicomial; as mudanças positivas do comportamento dos ex-asilados; o fato de desenvolver trabalhos junto a grupos menores de pacientes; a desvinculação hospitalar dos ex-asilados através do seguimento dos serviços da comunidade; o benefício financeiro; o fato de os pensionistas estarem fora do hospital e inseridos cotidianamente na comunidade, com vizinhos e usufruindo de serviços como padaria, supermercado, igrejas.

Trata-se basicamente do processo de desinstitucionalização do ex-paciente psiquiátrico e da retomada gradual ao mundo externo, através da sua inserção geográfica e sociopolítico-cultural, através do uso dos serviços comunitários, com vista à ampliação do poder contratual do pensionista. Esta ampliação torna-se o indicador sensível/passível de verificação da legitimidade da reabilitação de fato e não apenas da solução reformista travestida, posto que "o que seria reabilitar senão reconstruir, aumentar o poder contratual do usuário? Criar as condições de possibilidade para que um paciente possa, de alguma maneira, participar do processo de trocas sociais?" (Kinoshita, 1996).

No que tange aos "limites", os trabalhadores da equipe do HPRP citaram: a cultura manicomial fortemente disseminada, o que gera resistência ao processo por parte de funcionários e pacientes-internos; a escassez de casas para instalação de lares abrigados (casas da Cohab) para que haja transferência dos pensionistas para as mesmas, deixando as pensões para outros moradores do Santa Tereza, e assim sucessivamente; o acompanhamento esporádico, assistemático: "falta um acompanhamento sistemático, porque o pessoal acompanha enquanto tem problema" (TSM-2); o forte vínculo hospitalar dos pensionistas, devido à longa permanência no hospital.

Cheguei aqui (HPRP, década de 1960), fiquei assustadíssima porque era um 'campo de concentração'. Era um pátio masculino e outro feminino, não é como agora, que já tem pequenos pavilhões, individualiza mais. Então isso aqui atualmente (o processo de reabilitação psicossocial) é um resultado significativo, você vê que o pessoal já tem o seu canto, já se conhece melhor, vive em grupo, sai sozinho, faz compra, vai ao baile (TSM-2).

Uma limitação é a cultura manicomial, muito antiga: que tem que morar aqui dentro, que é uma loucura pôr lá fora, que aqui não falta comida, não falta nada e lá fora tem bandido, a gente escuta isso dos próprios funcionários (TSM-3).

A vontade política ajuda e facilita porque tem um grupo que tem vontade e quer que as coisas melhorem, mas a grande maioria não, acha que tem que ser como está e queixa-se muito, isso dos funcionários (TSM-1).

Aqui os fios condutores, a ética e a cidadania, esbarram nas dificuldades de uma sociedade muito desigual e tradicionalmente institucional. Seus integrantes recomeçam, todo dia, um trabalho rigoroso de conquista de direitos, muitos já garantidos em teoria.

O processo "constrói-se desconstruindo-se", evidenciando avanços, recuos e ainda muita distância entre a teoria e a prática, no âmbito da saúde e saúde mental brasileira. Mas essa distância pode potencializar a transformação, através da construção do discurso contra-ideológico pautado em uma ética de solidariedade que contribua para a aproximação entre esses pólos.

A equipe de trabalhadores do Santa Tereza identifica a reinserção psicossocial dos pacientes como um resultado positivo e propulsor do processo. E que a existência de dificuldades limita o alcance e a velocidade das conquistas, mas não impede o movimento que contribui para uma nova forma de assistência em saúde mental.

Conclusão

Tecer considerações finais significa situar o contrato estabelecido entre o observador (tanto o autor, quanto o leitor), o objeto de estudo e o objetivo proposto. Situar tal contrato sobre o processo de reabilitação psicossocial do Santa Tereza significa falarmos de uma história nova da assistência psiquiátrica. Esta inscreve-se, a exemplo das experiências congêneres de âmbito nacional, em uma perspectiva em que não se pode omitir os limites, mas também não se pode negar as discretas, porém significativas, possibilidades reais, que têm contribuído para a redistribuição do princípio básico de cidadania, enquanto ampliação do poder contratual e da margem de liberdade dos chamados doentes mentais.

Podermos constatar vias reais de desinstitucionalização hoje na psiquiatria local e nacional é o que nos faz acreditar na possibilidade da reconstrução da assistência em saúde mental e o que nos impulsiona a lutar por ela. A reconstrução dialética da prática negada, alterada e superada, em que potencializa a ação em prol da satisfação das partes envolvidas e do poder contratual dos pacientes psiquiátricos.

Esta reconstrução pauta-se, imprescindivelmente, em um olhar que transcende a especificidade técnica, mas a esta se alia construindo um pensar/fazer que além de técnico é também ético-político e, assim pode e deve ser solidário e responsavelmente comprometido.

As Janelas do Santa são seus olhos... antenas que delineiam o processo de reabilitação psicossocial dessa instituição, um dos filhos do Juqueri, que hoje soma-se à mudança de paradigma que busca a negação de qualquer atavismo institucional. Esta transformação constrói-se não mais desafogando instituições, muros de concreto e argamassa circunscritos em áreas predeterminadas à margem da cidade e cidadania, mas desafogando pessoas dos muros do abandono e da violência, desafogando-as "da dor dos sofrimentos e decepções a que somos todos susceptíveis" (Mattos, 1989).

Em janeiro de 1979, Marilena Chauí citou Drummond quando concluía a apresentação do livro de Ecléa Bosi (1994), reiterando o voto contra a opressão que afoga os "socialmente pequenos". Voto que oportunamente aqui resgatamos e também reiteramos, como que "refazendo o caminho que uma outra palmilhara, e que encheu seu coração de alegria ao ouvir, num canto esquecido de todos, uma voz que também se lembrava" (idem, ibidem).

As Janelas do Santa, hoje, contribuem para a construção deste caminho que, refeito, encherá o coração de alegria de muitos que por tanto tempo lá estiveram — e de muitos que ainda estão — num canto esquecido de todos.

Recebido para publicação em março de 2000.

Aprovado para publicação em junho de 2000.

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    Santa Tereza —,
    subvencionado pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, surgiu na primeira metade da década de 1940, no momento em que a crítica à psiquiatria brasileira girava em torno da superlotação dos ainda poucos, novos e já degradantes hospícios existentes no Brasil. Sob a interpretação de que a assistência psiquiátrica estava mal porque os hospitais estavam abarrotados de pacientes, o Santa Tereza veio compor o cenário do fenômeno de desafogamento do macro-hospital psiquiátrico de São Paulo: o Hospício de São Paulo, posteriormente conhecido como o Juqueri, modelo deste gênero para a América Latina.
    Segundo Cunha (1986), no Brasil de fins do século XIX, a tônica era o "progresso" respaldado pela centralização de poder, que fez emergir, nas duas últimas décadas deste século, a construção de fábricas e, simultaneamente, dos hospícios, que conotavam "simbolicamente o 'progresso' que se expandia rapidamente".
    Nesse contexto, em 1898 o Juqueri foi fundado em São Paulo, capital, como instituição-modelo a propósito das relações político-econômicas de disciplinarização da vida urbana, em geral, e de tratamento da loucura, em particular. Com o decorrer do tempo e por razões historicamente determinadas, o Juqueri perder-se-ia como excelência, posto que, os "argumentos que justificavam, no final do século XIX, a proposta unificadora e centralizadora estavam afastados e superados", no início do século XX. A crítica da superlotação dos hospícios, que impulsionou a "criação de colônias e hospícios espalhados por todo o interior do estado", desde fins da década de 1920 até a de 1950, "retirou do Juqueri sua condição de primeiro e único" (Cunha, 1986).
    Já na segunda década do século XX, a crítica ao hospício brasileiro paradoxalmente faz proliferar este mesmo modelo, agora revestido pela ideologia da descentralização que, embora aparentemente antagônica à centralização, não é contraditória do ponto de vista da padronização do saber/poder psiquiátrico. Ambas são versões de uma mesma ideologia dominante que subsidia e é subsidiada pelo discurso médico psiquiátrico incipiente. Conforme Cunha (op. cit.), trata-se das "estratégias de passagem do indivíduo para a sociedade como objeto central da medicina mental". Isto ocorre no momento conveniente: a expansão do modelo de sociedade capitalista que, aliado ao higienismo e posteriormente ao eugenismo alienista, não prescinde de uma população 'disciplinada' no sentido ordeiro do termo.
    O Juqueri já não era o único. Retomemos a história de "um dos filhos, considerando-se que os hospitais psiquiátricos privados, no estado de São Paulo, são todos, ou na sua grande maioria, filhos do Juqueri, como também o são os públicos" (Figueiredo, 1988).
    Gonzalez
    et al. (1995) assim se referem ao Santa Tereza:
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    versão contestatória
    que preconiza a redução do espaço asilar, o fortalecimento do espaço terapêutico reabilitador e conseqüente estímulo à criação de vínculos extra-hospitalares para os internos.
    A redução do espaço asilar do Santa Tereza conta com as experiências do Núcleo de Convívio, da Vila Terapêutica, das Pensões Protegidas, das
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    Residências Assistidas
    e da nova perspectiva de articulação dos serviços em saúde mental na comunidade, que fundamenta todos esses projetos. O Núcleo de Convívio foi instaurado em 1983, de forma experimental, e validado no ano seguinte, atendendo um grupo de 15 a vinte pacientes "crônicos masculinos". Posteriormente, passou a ser uma unidade mista, localizada em uma casa dentro do próprio hospital, porém, afastada do seu centro e aos cuidados de uma equipe multidisciplinar do HPRP. Em 1987, foi implementada a Vila Terapêutica, constituída por cinco casas com infra-estrutura básica, construídas em forma de vila, dentro do hospital, em uma área também afastada das suas instalações centrais, com capacidade para quatro moradores por casa, supervisionadas por uma equipe multiprofissional que mantém um membro efetivo como referência para cada morador. Com o objetivo de fortalecer a contratualidade dos moradores, a experiência da vila incentiva vínculos extra-hospitalares através de atividades como passeios ao centro comercial da cidade, movimentação bancária e aquisição de bens materiais desejados, viabilizando, a exemplo do Núcleo de Convívio, as possibilidades contratuais concretas de satisfação e inserção dos moradores na comunidade.
    Segundo Gonzalez
    et al. (1995), o projeto Pensões Protegidas surgiu a partir dos resultados satisfatórios obtidos com a Vila Terapêutica, onde os moradores demonstraram colaboração e interesse na mudança. Busca-se a reinserção não só dos hábitos e costumes sociais nos pacientes, mas também a reinserção geográfica, instalando-se na cidade e preconizando a desmistificação do estigma dos pacientes através da redução do vínculo institucional, ao mesmo tempo que incentivando vínculos extramuros.
    Após negociações de ordem legal, iniciadas em 1988, e com o apoio da sociedade civil, em abril de 1992 este projeto foi aprovado pela consultoria jurídica da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e posto em prática em setembro daquele mesmo ano com a primeira Pensão Protegida. Atualmente são três casas que abrigam no máximo quatro pessoas cada, localizadas em bairros diferentes da cidade com o propósito de evitar a formação de localidades (guetos) manicomiais.
    As Pensões Protegidas são unidades localizadas fora do espaço asilar, na comunidade, cujo objetivo é proporcionar abrigo aos ex-pacientes egressos do HPRP, abandonados sociais, sem sintomatologia psiquiátrica grave. Também contribuem para a ampliação do espaço concreto na busca da vinculação extra-hospitalar destes ex-pacientes com participação da comunidade. Os pensionistas, moradores das Pensões Protegidas, são os ex-pacientes do hospital que permaneceram asilados por longos períodos, por razões essencialmente não-médicas, ausência de recursos sociais de apoio, abandono familiar e comprometimento de sua capacidade produtiva (idem, ibidem).
    Para Alves (1996), é flagrante a dívida social impagável para com as pessoas internadas por longo tempo nos hospícios brasileiros, causada pela ausência de políticas públicas que as beneficiem, formando a chamada "clientela cativa, sendo que dos cerca dos 77 mil leitos em hospitais psiquiátricos (do Brasil), estima-se que vinte mil encontrem-se ocupados por clientela dita 'cativa', ou seja, pessoas que, sem necessidade de permanecer internadas, estão impossibilitadas de alta por falta de apoio familiar e social".
    Assim, o projeto Pensões Protegidas do Santa Tereza favorece o debate e contribui para a transformação da prática psiquiátrica, uma vez que se encontram asiladas, somente nos serviços públicos, 2.500 pessoas. Estas, somadas às dos serviços privados, alcançam a margem dos dez mil, apenas no estado de São Paulo (Secretaria de Estado da Saúde, HPRP, 1998).
    Segundo avaliação da diretoria do HPRP (1998), o projeto Pensões Protegidas inova em relação às práticas anteriores porque: rompe com a exclusividade das internações e fortalece a necessidade de serviços fora da instituição; possibilita a desvinculação do usuário com o hospital; busca resgatar mais os aspectos positivos dos pacientes, vistos
    a priori como pessoas e não apenas pacientes; viabiliza-se de forma menos onerosa, uma vez que o custo da assistência dispensada ao pensionista é reduzido, se comparado com o asilar (o custo por paciente-dia institucionalizado, conforme referência de fevereiro de 1998, é de R$52,56, enquanto o custo por pensionista-dia equivale a R$10,21); amplia a condição de cidadania através da alta e incentivo à desvinculação hospitalar/vinculação comunitária e a perspectiva de independência socioeconômica devido à articulação entre o projeto e os serviços da comunidade.
    Como deficiência mais significativa foi identificada a dependência de políticas públicas para alocação dos escassos recursos, porém a conquista mais importante é a possibilidade concreta de inserção social de uma clientela asilada, o que é positivo do ponto de vista técnico, administrativo e econômico.
    O Santa Tereza conta hoje (1998) com três Pensões Protegidas geridas por sociedades civis filantrópicas sem fins lucrativos, contratadas pelo estado através de processo licitatório público. A vivência dos pensionistas é acompanhada por um orientador (um por pensão protegida) e os serviços gerais contratados são supervisionados por uma equipe multiprofissional do Santa Tereza. O atendimento em saúde dá-se através da rede ambulatorial do município. Os orientadores são pessoas voluntárias da comunidade que se dispõem a articular a vivência dos pensionistas ao acompanhamento da equipe do hospital. Para fins de interlocução, os orientadores participam de reuniões periódicas no HPRP com a equipe que coordena o projeto.
    Vale salientar que esta trajetória percorrida pelo Santa Tereza foi, enquanto processo, cerceada por avanços e retrocessos que atestam ainda hoje a atualidade da verificação de Saeki (1994), no que tange à existência simultânea de bolsões institucionais com características manicomiais e espaços em prol da superação do asilo.
    Estudo realizado por Zerbetto
    et alii (1999), sobre a desinstitucionalização, segundo a experiência do Movimento de Luta Antimanicomial de Ribeirão Preto, demonstra que o Santa Tereza é considerado
    locus de importante reflexão e ação, em que as Pensões Protegidas são constituintes de discretas transformações no sistema de saúde mental do município, com o que concordamos, pois cremos que contribuem para construir uma outra história da assistência em saúde mental, que pode ser tanto mais terapêutica quanto mais ética e tanto mais real quanto mais comprometida com a condição dos chamados doentes mentais em via de desinstitucionalização.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2001

    Histórico

    • Aceito
      Jun 2000
    • Recebido
      Mar 2000
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