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Parques infantis em São Paulo: infância, educação e saúde no projeto modernista

Children's parks at São Paulo: childhood, education and health in the modernist project

LIVROS & REDES

Parques infantis em São Paulo: infância, educação e saúde no projeto modernista

Children's parks at São Paulo: childhood, education and health in the modernist project

Janice Gonçalves

Professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Rua Profa. Maria do Patrocínio Coelho, 441. 88040-230 - Florianópolis - SC - Brasil. janice.goncalves@brturbo.com.br

Um extenso e aparentemente infindável rol de estudos e publicações toma Mário de Andrade como objeto, explorando a variedade de seus interesses e o caráter multifacetado de sua atuação no campo cultural brasileiro. Afinal, dedicou-se o escritor e pesquisador à literatura, à música, às artes plásticas e, muito especialmente, às distintas manifestações da cultura popular (antes compreendidas na clave do folclórico e, nas últimas décadas, entendidas como integrantes do patrimônio imaterial). Com importante papel no movimento modernista brasileiro, o intelectual paulista colaborou também na formulação de políticas públicas que procurariam valorizar e combinar inovação e tradição, em instituições como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), na esfera federal, e o Departamento de Cultura, na Prefeitura do Município de São Paulo.

Publicado em 2008, o livro organizado por Ana Cristina Arantes põe em destaque um dos muitos projetos do Departamento de Cultura sob influência de Mário de Andrade: a criação e implantação de parques infantis em São Paulo. Com sete capítulos, antecedidos por Apresentação de Marcos Garcia Neira e Prefácio de Marly Santos Mutschele, Mário de Andrade: o precursor dos parques infantis em São Paulo é obra coletiva resultante de pesquisa coordenada pela organizadora do livro. Integraram o grupo de pesquisadoras Angélica Viana da Hora, Elisabete Araújo Souza e Natália Camargo Cardoso, profissionais da área do ensino que, juntamente com Ana Cristina Arantes, têm em comum a formação nas áreas de pedagogia e educação física.

O livro busca, de início, situar historicamente os papéis sociais atribuídos às crianças, bem como as concepções associadas à infância - tema do primeiro capítulo, "Sobre as crianças e a infância: ideias e estudos no mundo". Propostas e experiências de atendimento a crianças nos séculos XVIII e XIX são enfocadas no segundo capítulo, "O século XVIII: uma possível origem dos parques infantis no Brasil e no mundo"; nele há destaque especial para Froebel, criador dos jardins da infância na primeira metade do século XIX, e para os primeiros desses jardins instalados em São Paulo, a partir do último quartel do mesmo século.

Nas seis páginas que compõem o brevíssimo terceiro capítulo, "O século XX e a democratização das oportunidades educacionais", são contrapostos os jardins da infância - de acordo com o capítulo anterior, voltados para crianças da elite ou 'bem nascidas' - e as escolas maternais, que na década de 1920 atenderiam, em São Paulo, 'aos filhos da classe economicamente desfavorecida' (p.57). A criação dos parques infantis paulistanos, em 1935, teria valorizado 'a criança operária' (p.61). Ressalte-se que os três primeiros parques foram implantados em bairros operários: na Lapa, no Ipiranga e no Brás (funcionando, neste último bairro, o Parque Infantil Dom Pedro II, conforme indicado em Duarte, 2007, p.31).

Os quatro capítulos seguintes permitem maior aproximação com o tema principal do livro: a atuação de Mário de Andrade na implantação dos parques infantis em São Paulo.

O capítulo "Vida e obra de Mário de Andrade: pensamento, Departamento de Cultura e Parques Infantis" salienta aspectos da trajetória do intelectual paulista, em especial seu engajamento em funções públicas. Além da passagem pelo Departamento de Cultura (que dirigiu entre 1935 e 1938), aborda a ligação com o Sphan, a atuação no Instituto Nacional do Livro e as atividades de docência na Universidade do Distrito Federal. Os parques infantis paulistanos, criados pelo Departamento de Cultura sob sua direção, visibilizariam alguns de seus anseios mais profundos, pois neles as crianças teriam "a possibilidade e o ambiente para exercitar a livre expressão em qualquer manifestação, inclusive valendo-se das formas recreativas (motoras) e folclóricas" (p.80).

Apontado, no livro, como 'pai dos parques infantis' (p.69), Mário de Andrade contou, nessa área, com colaboradores como Maria Aparecida Duarte (Dona Nini) e Nicanor Miranda. Tais colaboradores têm, aliás, pouco destaque no livro. Não caberia duvidar da relevância de Mário de Andrade na criação dos parques infantis paulistanos, dado o seu conhecido engajamento nos projetos que abraçava e, particularmente, a intensidade de sua relação com o Departamento de Cultura. Contudo, mais informações sobre o perfil dos profissionais envolvidos no projeto dos parques infantis e o papel de sua contribuição permitiriam melhor aquilatar essa experiência.

"Atendimento à infância da classe operária - São Paulo, 1930", quinto capítulo do livro, aborda os parques infantis como instituições 'paraescolares', voltadas para a educação, recreação e assistência, sobretudo a médico-sanitária (p.99). Entre as atividades propostas às crianças estavam os jogos de campo, jogos de tabuleiro (damas) e trabalhos manuais (como dobraduras e tecelagem). Objetivava-se atender crianças entre três e 12 anos, diferentemente do que seria observado décadas depois, quando as instituições pré-escolares de atendimento infantil priorizariam os menores de seis anos.

O sexto capítulo, "Pensamento, criação e implementação dos parques infantis", é mais esclarecedor quanto às diretrizes de funcionamento dos parques infantis paulistanos. O leitor é informado de que o Serviço de Parques Infantis foi criado pelo ato 767, de 9 de janeiro de 1935, sendo sua estruturação estabelecida no mesmo ano, pelo ato 861, de 30 de maio. Conforme tais dispositivos, instrutores deveriam atender e acompanhar as crianças, de diversas maneiras: zelando por sua saúde; atraindo-as para os brinquedos próprios à sua faixa etária; orientando as atividades recreativas; ensinando jogos e brinquedos infantis (com ênfase, mas não exclusividade, nos jogos e brinquedos 'nacionais'); ministrando educação física (p.149-150). Na atenção à saúde, buscava-se, segundo o ato 861, detectar possíveis moléstias e realizar os encaminhamentos necessários para seu tratamento. Na atenção à recreação, tencionava-se não "perturbar ou ameaçar a liberdade e espontaneidade no brinquedo". Até mesmo o que hoje seria identificado como educação patrimonial também se fazia presente nos objetivos dos parques e nas atribuições de instrutores, como deixam claras as referências à propagação da "prática de brinquedos e jogos nacionais, cuja tradição as crianças já perderam ou tendem dia a dia a perder", além da promoção da prática dos jogos "que, pela experiência universal, forem dignos de serem incorporados ao patrimônio dos inspirados nas tradições locais e nacionais" (art. 49 do ato 861, citado na p.150).

Para bem realizar todas essas atribuições, os instrutores deveriam ser formados por Escola Normal, com complementação na área de higiene (curso de educadores sanitários), educação física ou educação pré-escolar (especialização pré-primária; p.153). O quadro de funcionários dos parques, que, além de instrutores, contava com administrador, médico e vigilantes, seria posteriormente ampliado incluindo-se, entre outros profissionais, educadores musicais e sanitários, professores de educação física e recreacionistas (p.116, 151-152). O aumento do quadro funcional provavelmente foi influenciado pelo diagnóstico da situação das crianças atendidas. No que tange às condições sanitárias, por exemplo, um documento de Nicanor Miranda, datado de 1941, destacava que "60% dos frequentadores dos parques infantis apresentavam sintomas de desnutrição, e que a criança proletária é portadora quase sempre de duas ou três moléstias contagiosas ao mesmo tempo" (citado na p.156).

No sétimo e último capítulo do livro, "O pensamento legal e os aspectos políticos ligados à infância no Brasil", a discussão sobre os parques infantis é articulada com o quadro geral da legislação trabalhista brasileira, em especial aquela relativa ao direito das mulheres trabalhadoras de usufruir de espaços próprios para assistência aos seus filhos durante o horário de trabalho. São destacadas ainda mudanças sofridas pelos parques infantis, sobretudo a partir de 1956, com a criação do ensino primário municipal.

O livro conta com muitas imagens, distribuídas entre os capítulos. Os créditos remetem à Brinquedoteca da USP, contudo o material fotográfico não apresenta identificação de data, local ou fotógrafo. Apesar disso, tudo indica serem reproduções de documentos do Departamento do Patrimônio Histórico. Ligado à Prefeitura de São Paulo, esse Departamento herdou o acervo da Seção de Iconografia do Departamento de Cultura, inicialmente chefiada por Benedito Junqueira Duarte, ou B.J. Duarte, como ficou conhecido. Além de responsável por organizar o acervo fotográfico inicialmente adquirido para a Seção, Duarte ocupou-se de documentar fotograficamente as atividades do Departamento e, mais tarde, as obras realizadas pela administração municipal. Em depoimento concedido em 1986, o fotógrafo indicou ter produzido, ainda à época em que o Departamento era dirigido por Mário de Andrade, "uma série [de registros fotográficos] de parques infantis para uma publicação do Departamento" (Duarte, 2007, p.202). Ao menos parte das imagens que integram Mário de Andrade: o precursor dos parques infantis em São Paulo é, seguramente, de sua autoria.

As imagens são contraponto enriquecedor aos textos: nelas veem-se crianças sérias e concentradas em suas atividades, mas também sorridentes, a posar para o fotógrafo. Aparecem geralmente em cenários ao ar livre, ao sol ou à sombra das árvores, modelando argila, construindo maquetes, fazendo bordados, tricotando, lendo, desenhando, tocando instrumentos musicais, regando hortas. Surgem exercitando-se em movimentos ritmados, praticando ginástica artística (com fitas e com arco), participando de jogos coletivos ou em duplas (como jogos de tabuleiro e tênis de mesa), partilhando brinquedos (balanços, escorregadores, gangorras, bonecas). Em meio a tantos registros há também a presença de adultos: a instrutora guiando a fila de crianças pelo parque; o médico que atende uma menina e aplica teste de medição da capacidade respiratória, ou examina as condições de saúde bucal de um garoto. São esses, contudo, os poucos exemplos nos quais os adultos aparecem em primeiro plano; os funcionários dos parques estão, aliás, geralmente ausentes. Pode-se ler, portanto, na documentação fotográfica, a intenção de apontar que os parques infantis paulistanos não eram meramente destinados às crianças, mas também ativamente ocupados e recriados por elas.

Em obra composta a várias mãos, é compreensível que a redação apresente desequilíbrios, com passagens repetitivas cuja eliminação teria contribuído para um conjunto mais harmonioso. Abordando tema relevante e ainda merecedor de mais estudos, Mário de Andrade: o precursor dos parques infantis em São Paulo apresenta ainda fragilidades no que se refere à contextualização histórica dos variados aspectos tratados no livro, com frequência apoiada em poucos autores. Philippe Ariès (1981), com seu já clássico História social da criança e da família, é referência exclusiva do primeiro capítulo, ao passo que a tese de doutorado em educação de Ana Lúcia Goulart de Faria, O direito à infância: Mário de Andrade e os parques infantis para a criança de família operária na cidade de São Paulo (1935-1938), defendida na Universidade de São Paulo em 1994, fornece a base para os demais. As referências às propostas dirigidas aos filhos da classe operária poderiam também ter-se beneficiado significativamente do diálogo com a historiografia sobre os mundos do trabalho e sobre a infância, no Brasil.

Um único artigo de Mário de Andrade, publicado originalmente em 1929, na coluna Táxi do Diário Nacional, é citado (p.104). Proveitosa teria sido a consulta a outros materiais de sua produção, em especial a vasta correspondência - geralmente repleta de considerações sobre suas atividades intelectuais e os desafios do cotidiano de trabalho, como as cartas trocadas com Rodrigo Melo Franco de Andrade (Andrade, 1981). Mesmo a preocupação com o destino das crianças de grupos populares está bastante presente na sua obra literária, por vezes de forma pungente, como no conto "Piá não sofre? Sofre", originalmente escrito em 1926 e retrabalhado pelo autor em 1934 e 1943-1944 (Andrade, 2008). Além disso, uma consulta mais substancial aos materiais produzidos pelo escritor certamente permitiria vislumbrar, em sua complexidade, a trajetória de alguém em permanente estado de autocrítica e reinvenção.

  • ANDRADE, Mário de. Contos de belazarte. Rio de Janeiro: Agir. 2008.
  • ANDRADE, Mário de. Cartas de trabalho Brasília: Sphan; Fundação Pró-Memória. 1981.
  • ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família 2.ed. Rio de Janeiro: LCT. 1981.
  • DUARTE, Benedito Junqueira. B.J. Duarte: caçador de imagens. São Paulo: Cosac & Naify. 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2010
  • Data do Fascículo
    2010
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