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Doação, transfusão e laços de sangue: cultura e sociedade no Brasil contemporâneo

NOTA DE PESQUISA

Doação, transfusão e laços de sangue: cultura e sociedade no Brasil contemporâneo

Luiz Antônio de Castro Santos

Instituto de Medicina Social/UERJ, fevereiro de 1995

"Um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência, dos chamados 'contatos primários', dos laços de sangue e do coração — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós."

Sérgio Buarque de Holanda

Minha pesquisa sobre a questão do sangue no Brasil se desdobra em duas fases; o tema desta 'Nota de Pesquisa' é a segunda fase e se desdobra, por sua vez, em dois objetos de pesquisa, que serão discutidos mais adiante.

Na primeira fase, conduzida no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em São Paulo, tive a colaboração de Cláudia Moraes e Vera Schattan P. Coelho. Desta etapa resultou um estudo aprofundado sobre a literatura internacional, as instituições e políticas do sangue no Brasil e os modelos hemoterápicos adotados aqui e no Primeiro Mundo. Daí produzimos dois relatórios de pesquisa, em junho e novembro de 1989, projetando o foco sobre São Paulo, especificamente, e sobre o panorama nacional. Entre 1991 e 1993, publicamos, em Physis: Revista de Saúde Coletiva, três artigos que remetem à pesquisa inicial, mas trazem novos recortes e indagações que os relatórios preliminares apenas deixavam entrever.

Sob estes novos ângulos de análise, esboça-se um conjunto de questões para pesquisa, tendo como eixo condutor o aparecimento da Aids, a Constituição de 1988, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus efeitos sobre o sangue. Em parte como decorrência da pressão da sociedade civil e de entidades não-governamentais, em parte como resposta direta ao surgimento da pandemia da Aids no Brasil, o governo federal lançou, em 1988, o Plano Nacional de Sangue e Hemoderivados (Planashe), visando ao aprimoramento do setor hemoterápico e à garantia da qualidade dos serviços. O Planashe compreendia objetivos amplos, como a implantação de uma rede nacional de hemocentros, o incentivo à pesquisa e a criação de uma infra-estrutura de laboratórios, a interiorização dos serviços de hemoterapia, a produção de hemoderivados e o controle de qualidade dos insumos básicos. Anos decorridos, as reuniões científicas e os debates sobre o tema raramente falam no Planashe. Há, desde 1992, uma coordenadoria de sangue e hemoderivados no Ministério da Saúde. A 'situação de polícia' que caracterizava a área foi em larga medida superada.

A qualidade do sangue melhorou acentuadamente no Brasil. Há hemocentros operando com indiscutível padrão de excelência. Mas, em que pese a melhoria do setor, ninguém desconhece a urgência da regulamentação da matéria constitucional sobre sangue e hemoderivados, disposta no Artigo 199, e que definirá os contornos da participação do Estado e da iniciativa privada nas esferas da produção e distribuição. Além disso, a imprensa tem noticiado o risco da transmissão do vírus HTLV-1, que pode causar, por via transfusional e sexual, paralisia das pernas, câncer no sangue e nos gânglios linfáticos. Ainda que detectada a presença do vírus em 1990, só em 1993 o Ministério da Saúde tornou obrigatório o teste anti-HTLV-1 nos serviços hemoterápicos de todo o país. Só a importância destes últimos aspectos já faz refletir sobre a necessidade de acompanhar e avaliar as políticas públicas do setor.

Este panorama institucional será examinado de perto pela pesquisa que ora retomo no Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ). A reforma constitucional, na ordem do dia desde os primeiros dias do governo Fernando Henrique Cardoso, será objeto de especial atenção, pois virá a afetar o conjunto de serviços e o próprio modelo hemoterápico nacional. Que modelo poderá garantir à população brasileira menor perda ou desperdício de sangue e maior segurança a doadores e receptores, não apenas a grupos restritos da maior importância, como os hemofílicos, mas a pacientes hospitalares em geral? De que modo o ensino médico e a residência poderão garantir o aprofundamento e permanente atualização dos conhecimentos clínicos sobre a hematologia e a hemoterapia? Como estimular a prática hospitalar a intensificar a terapia por componentes na rede pública e privada, poupando-se o escasso 'sangue total? Como garantir o suprimento de hemoderivados no país?

Para usar uma conhecida classificação, pode-se afirmar que os tópicos mencionados situam-se no âmbito da sociologia das organizações. As questões organizacionais, as dimensões do público e do privado, a análise do comportamento dos atores em relação a seus interesses, a resposta das burocracias médicas e hospitalares, o problema do mercado de insumos e da produção de hemoderivados são objetivos centrais da pesquisa, em sua segunda fase. No entanto, haverá um desdobramento da maior importância nesta nova etapa, a partir das questões apresentadas. Esta nova frente de investigação traz à tona as preocupações da sociologia da cultura.

O título desta 'Nota de Pesquisa' faz referência a laços de sangue. Este é o aspecto cultural que tem merecido pouco ou nenhum interesse por parte dos cientistas sociais brasileiros. Entretanto, basta uma rápida leitura dos noticiários da imprensa ou uma ida aos hemocentros das grandes capitais — onde é maior a demanda por sangue e hemoderivados —, para que o leitor se aperceba da gravidade do problema e, nesta medida, da indesculpável hesitação de nossa ciência social em resolvê-lo. A complexidade do ato da doação, por um lado, e os fortes vínculos de sangue na sociedade brasileira, por outro, compõem o binômio que permite entender as razões da falta crônica de sangue em nosso país. Vou primeiramente revelar os números do problema, para em seguida discutir minha hipótese sobre as origens culturais da falta de doadores no Brasil.

Quanto à situação da oferta, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que 2% da população sejam doadores. Dados preliminares citados por Dalton Chamone, da Fundação Pró-Sangue/Hemocentro de São Paulo, revelam um percentual de apenas 0,7% para o Brasil. Há indicadores mais pessimistas, na casa dos 0,5% (Ciência Hoje, abril de 1989). Pior ainda, doação no Brasil é também uma questão de classe: em São Paulo, 65% dos doadores provêm das classes baixas (C e D, na classificação do Instituto Gallup). Dados da Folha de S. Paulo esclarecem outros pontos críticos: em novembro de 1994, apesar do aumento de doações provocado por campanhas do Dia Internacional do Doador, o estoque do Hemocentro de São Paulo, que estava em níveis críticos antes das campanhas, não chegou a três mil bolsas de sangue — número considerado ideal para atender aos hospitais públicos da Grande São Paulo. Em hospitais com unidades próprias de coleta, como a Santa Casa de Misericórdia e o Hospital São Paulo, até 30% das cirurgias eletivas chegaram a ser adiadas por falta de doadores. Um ponto que merece destaque é o número elevado de doações 'vinculadas', isto é, de pessoas que estão repondo o sangue recebido por algum parente ou amigo. Na rede oficial de hemocentros, as doações de reposição representam até 80% do total. Este dado é preocupante, pois 20% a 25% delas não passam nos testes e têm de ser descartadas. Ao passo que, entre doadores espontâneos, apenas 8% a 10% têm o sangue rejeitado. O Brasil necessita, portanto, de mais doadores e, particularmente, de doadores voluntários. Por fim, é preciso que estes não se restrinjam à classes baixas, mas incluam as classes média e alta.

Populações mais inclinadas a doar sangue chegam a ter três vezes ou mais doadores do que o parâmetro sugerido pela OMS. Já em 1970, Richard M. Titmuss lembrava que 6% da população inglesa eram doadores regulares. Não há, na Europa, uma concentração dos doadores nos estratos mais baixos da população, como no Brasil. Ao contrário, a classe média doa regularmente. Aqui se coloca, pois, a questão: por que os brasileiros de modo geral não doam sangue? Por que as elites, em particular, são avessas à doação?

Os brasileiros seriam pouco altruístas? Esta característica estaria dissociada de nossa cultura nacional? Nos Estados Unidos, onde os blood drives dos últimos vinte anos elevaram de muito a proporção de doadores regulares, textos de fins do século passado já procuravam estabelecer nexos entre o caráter nacional e a 'generosidade' da população norte-americana. Um indicador de tal magnanimidade residiria na filantropia em larga escala, praticada por instituições, milionários e cidadãos de alguma posse. Ora, seriam os brasileiros menos filantropos? Não conheço estudos quantitativos sobre a filantropia no Brasil, mas não creio que sejamos 'menos' filantrópicos que outros países, apesar do desestímulo fiscal. (Nos Estados Unidos, como se sabe, cada níquel doado tem sua contrapartida de dedução fiscal para o taxpayer.) A adesão geral à Campanha contra a Fome, liderada pelo Betinho, é o exemplo mais recente do altruísmo da população brasileira, sem estímulos fiscais.

Há várias hipóteses para explicar a falta de bons doadores e de doadores em bom número no Brasil. Se desconsiderarmos a possibilidade de uma cultura 'não-filantrópica', há algumas explicações alternativas. Uma delas foi recentemente defendida por Danton Chamone, em artigo na Folha de S. Paulo (4.12.1994, pp. 1-3): "Ao contrário da Europa, o Brasil nunca passou por guerras e grandes catástrofes. Na Europa, a cultura de guerra provavelmente ampliou a tradição de doar sangue voluntariamente. O papel do sangue como salvador de vidas parece ainda pouco claro na cabeça do brasileiro." A hipótese é atraente, mas paralisante. De qualquer modo, teríamos de mostrar que países neutros durante as últimas grandes guerras, como, por exemplo, a Suíça, teriam menores contingentes de doadores regulares do que a Finlândia, país duramente atingido pela Segunda Guerra Mundial e que apresenta alto índice de doadores. Sem descartá-la, chamo, entretanto, a atenção para seu efeito pedagógico paralisante. Já que não tivemos guerras devastadoras, só nos restará conviver com a falta crônica de doadores?

A hipótese que procuro explorar em minha pesquisa não exclui a anterior, mas de certo modo a antecede logicamente, na tentativa de explicação das condições de doação no Brasil. Se minha hipótese for verossímil (digo verossímil, porque trabalho com 'aparência' de verdade, não com testes de hipótese rigorosos), então o argumento da ausência de uma cultura de guerra no Brasil viria a reforçar ou secundar minha explicação. Em linhas gerais, a hipótese que defendo se atém aos 'laços' ou vínculos de sangue que afetam de modo sutil o cenário da doação e transfusão. A literatura internacional, desde o clássico de Richard M. Titmuss, The gift relationship: from human blood to social policy (Nova York, Pantheon, 1971), revela toda a gama de sentimentos que acompanham o ato de doação: a compaixão, a obrigação moral, o altruísmo, a necessidade de aprovação social, a expectativa de reciprocidade etc. Como se sentirá o doador brasileiro? Desde logo, assinale-se que os médicos pouco entendem da psicologia do ato transfusional e da doação, em particular. As unidades de coleta têm nos enfermeiros e assistentes sociais seus atores mais importantes e com mais sensibilidade no trato com o doador. Se se tratar de uma doação tipicamente altruísta (na qual desconhece quem receberá seu sangue), creio que terá sentimentos confusos e contraditórios, pois os brasileiros, particularmente das elites, associam sangue a laços de sangue, a laços familiares. Doação, para as classes média e alta, em particular, é uma questão de família. A atitude filantrópica, o amor pelo outro, se realiza por meio de inúmeros canais: da pequena esmola à doação de gêneros alimentícios à criação de fundações assistenciais. Mas o sangue não é bem de troca, o sangue é como se fosse jóia de família.

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda nos deu a chave para entender o difícil trato dos brasileiros para com a esfera pública, sua tendência a reduzir as exigências da sociabilidade e da solidariedade social a uma mera questão de família. Os vínculos de afinidade criam-se menos em decorrência do convívio social no terreno da 'civilidade' do que do convívio e dos interesses de 'sangue', de natureza familiar. A sociedade patriarcal, nossa formação histórica centrada no poder da grande família proprietária de terras e escravos, criaram esta espécie de filtro da sociabilidade: toda ação social que não passar pelo estreito crivo dos interesses de sangue será descartada. O homem "cordial" brasileiro, lembra Sérgio Buarque, é justamente o tipo que pauta sua conduta social pela esfera do íntimo e do privado.

Ora, a doação de sangue genuína — a doação altruísta não-vinculada — exige um tipo de sociabilidade aberta, livre do jugo dos laços primários. Isto significa que a vida social de um país em que predominem os laços da afetividade sobre os da civilidade poderá conviver com diversas formas de altruísmo, mas a doação de sangue será uma das formas menos difundidas de comportamento altruísta. Isto vale particularmente para as classes mais abastadas, das quais se poderá dizer que preferem perder os anéis para não perder o precioso sangue.

Esta hipótese, posta assim de modo tão simples, terá de ser discutida e aprofundada durante as etapas da investigação. Dos problemas organizacionais aos da cultura, as duas frentes de pesquisa deverão levantar pistas que expliquem o intrincado mundo da hemoterapia no Brasil e o modo pelo qual as esferas do privado e do público misturam-se de modo não menos complicado, influindo nos rumos da doação e da transfusão do sangue no Brasil. Do ponto de vista das políticas públicas e da sociedade civil organizada, a pesquisa poderá trazer algumas conseqüências importantes: de um lado, mostrar como a sociologia das organizações pode auxiliar os profissionais médicos e outros profissionais da saúde — particularmente enfermeiros e assistentes sociais, os atores mais importantes do teatro da doação e da transfusão — a explorar as possibilidades de aperfeiçoamento do sistema hemoterápico nacional. De outro lado, sugerir campanhas e ensinamentos nas escolas do primeiro e segundo graus que ressaltem o valor da doação como ato generosa e genuinamente social, a partir de uma visão pedagógica que coloque a família e a sociedade em seus devidos lugares.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 1995
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