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Reconstrução da maternidade: os discursos da pediatria e obstetrícia nas revistas femininas na década de 1920

Reconstructing motherhood: pediatric and obstetric discourse in women's magazines in the 1920s

LIVROS E REDES

Reconstrução da maternidade: os discursos da pediatria e obstetrícia nas revistas femininas na década de 1920

Reconstructing motherhood: pediatric and obstetric discourse in women's magazines in the 1920s

Ismael Gonçalves Alves

Doutorando do Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal do Paraná. ismaelmaya1@yahoo.com.br

A partir de meados do século XIX, segundo Michel Foucault, a população torna-se uma das principais preocupações dos governos nacionais; entendida não mais como herança ou conquista, sua importância depositava-se na relação com outras 'coisas' como costumes, hábitos, formas de agir e de pensar, fome, epidemias, acidentes e mortes (Foucault, 2010, p.283). Semente das populações futuras, a criança e a infância passaram a ser os principais alvos de uma intensa campanha médico-sanitária que visava prolongar essa etapa da vida. Para alcançar tal objetivo, as sociedades modernas criaram regras que se impunham tanto para os pais quanto para os filhos, referentes a cuidados com higiene, limpeza, alimentação e amamentação, ou seja, uma série de investimentos necessários ao bom desenvolvimento físico desses pequenos indivíduos até a fase adulta. Não se tratava, apenas, "de produzir um melhor número de crianças, mas de gerir convenientemente esta época da vida" (p.199).

Investigar a importância e a circularidade dos diversos discursos construídos em torno da criança e da maternidade no início do século XX no Brasil é a proposta do livro de Maria Martha de Luna Freire, Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil, publicado em 2009 pela editora FGV. Resultado da tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, a pesquisa recebeu o prêmio Anpuh-Rio de História em 2008, que objetiva a publicação de pesquisas acadêmicas divulgadas, dessa forma, para um público mais amplo.

Calcada no discurso de duas revistas femininas que circulavam na década de 1920, Vida Doméstica e Revista Feminina, a autora busca examinar como a 'medicina moderna' e seus preceitos higiênicos foram, paulatinamente, dando espaço à gerência científica da maternidade, expulsando do seu entorno métodos tradicionais de cuidados materno-infantis. Segundo a historiadora Ana Paula Vosne Martins, foram os médicos europeus e norte-americanos os primeiros a alertar seus governos para os problemas relacionados à defesa e à produtividade da nação ocasionados pelas altas taxas de mortalidade infantil. Esses profissionais deram os primeiros passos para a institucionalização da pediatria como especialidade médica, fomentando a produção de um número infindável de publicações sobre as doenças infantis, em particular aquelas relacionadas à má alimentação e à 'amamentação mercenária', defendendo a necessidade de ações médicas preventivas de caráter educativo, direcionadas para a instrução das mães (Martins, 2008, p.319).

Percebidas como ignorantes, conforme observa Maria Martha de Luna Freire, as mães deveriam ser tuteladas pelos preceitos regeneradores da ciência, que forneceriam novos modelos para antigas práticas, consideradas anti-higiênicas, baseadas em superstições e crendices. Por serem consideradas responsáveis diretas pelo bem-estar e/ou pelo mal-estar das crianças, as mães eram culpadas pelas doenças e morte que atingiam seus filhos. Para os profissionais da medicina, isso ocorria com certa frequência porque muitas mulheres eram teimosas, ignorantes e apegadas a práticas curativas populares, deixando seus filhos sucumbirem nas mãos de curiosas e comadres.

Para a autora o discurso moralizador dos médicos, propagado nas revistas femininas, pretendia convencer, primeiramente, as mulheres da elite de que sua função natural e seu dever para com a pátria era gerar, criar e educar seus filhos e suas filhas pessoalmente e de forma racional. Com a intenção de produzir bons cidadãos para o enaltecimento da nação, os pediatras trataram de redefinir o papel da mulher-mãe, preparando-a para a sua futura missão de reformadora social. Um amplo projeto reformulador foi elaborado a fim de instruir as mulheres na criação de seus filhos, seguindo rigorosamente os preceitos higienistas, difundindo o aleitamento materno e os cuidados essenciais com a primeira infância, em suma, um conjunto de práticas que procurava aproximar as mulheres do ideal materno de comprometimento com o desenvolvimento de sua prole. Nas palavras de Freire (p.210): "As concepções da infância como valor simultaneamente familiar e social, e da mãe como responsável pela formação física, moral e intelectual das crianças, ao inserirem o binômio mãe-filho na dimensão de patrimônio coletivo da nação, conformariam a principal fundamentação do discurso puericultor das revistas femininas, ao qual os médicos agregariam a racionalidade científica como eixo norteador da prática da maternidade".

Dividido em quatro capítulos articulados entre si, o livro constitui uma bela narrativa histórica da sociedade brasileira no início do século XX, quando a racionalidade e o cientificismo disputaram espaços de poder com a cultura popular centenária, passada de geração a geração. No primeiro capítulo, "As múltiplas faces da mulher moderna", a autora constrói um dossiê, a partir dos discursos das revistas, sobre as novas atribuições do feminino na sociedade brasileira. De forma ambígua, essas publicações divulgavam a ideia de que a mulher moderna deveria libertar-se das amarras que a atrelavam ao antigo regime de submissão, ignorância e dependência do masculino. Ao mesmo tempo os articulistas enfatizavam a importância de elas não se esquecerem ou descuidarem de seus atributos de feminilidade como maternidade, beleza, doçura e dedicação à família. Outra temática recorrente era a expansão dos discursos feministas e a emancipação das mulheres por meio do trabalho. Tratado como uma vitória do feminino nas sociedades modernas, o trabalho fora de casa foi bastante encorajado pelos articulistas desses periódicos, desde que não "prejudicasse suas funções de mãe e esposa" (p.61). Ao salvaguardar o modelo da família nuclear burguesa que se estruturava em uma divisão sexual dos papéis, evidencia-se a difusão do discurso masculino no periodismo feminino.

No segundo capítulo, "Maternidade: aliança entre mães e médicos", Martha Freire descreve o conturbado cenário político-sanitário dos anos 1920, no qual os médicos passaram a ocupar lugar de destaque, sobretudo no que diz respeito à criação dos infantes, domínio até então considerado feminino, com práticas tradicionais transmitidas oralmente de mães para filhas. Essas práticas populares foram desautorizadas pelos médicos puericultores que as consideravam selvagens e infundadas, pois eles se percebiam as únicas autoridades capazes de prescrever normas racionais para a preservação das crianças. Esse discurso maternalista logo encontrou terreno fértil em todo o país, onde uma multidão de especialistas em medicina procurava instruir as mães de acordo com os preceitos básicos da saúde e higiene, empenhando-se na gradual tarefa de transformá-las em suas aliadas no combate aos males que assolavam a primeira infância.

No capítulo seguinte, "Higienizando corpos, mentes e lares", a autora descreve como, aos poucos, a medicina higienista e a puericultura foram adentrando os espaços íntimos dos lares das famílias brasileiras. Em meio a tantos detalhes técnicos, os médicos pretendiam conciliar razão e instinto, aprimorando e instrumentalizando o cotidiano das mulheres mães, para que elas transformassem seus domicílios em lugares regrados pelos preceitos da higiene e, assim, imunes às doenças que vinham do lado de fora das paredes. Todos os cantos da casa deveriam ser vasculhados em busca de insetos, acúmulos e sujeiras; arejada e bem iluminada, a habitação se transformaria em um meio apropriado para o desenvolvimento da família e principalmente dos infantes. A nova mãe que vinha se construindo ao longo da década de 1920 possuía múltiplas tarefas cotidianas: lavar, passar, limpar, cuidar do marido e principalmente dos filhos e devia estar sempre atenta para qualquer problema. Cuidar das crianças já não era mais uma missão tradicional fundamentada nos saberes orais passados de mães para filhas, essa nova tarefa, agora multifacetada, pressupunha o inculcamento de determinados tipos de conhecimento baseados no racionalismo e que seriam amplamente difundidos pelas revistas femininas e seus/suas articulistas. Para Freire (p.167): "A adesão das mães ao ideário puericultor teria sido facilitada, entre outros fatores, pela convergência de representação - explorada nas revistas femininas - entre a prática da maternidade científica e a identidade da 'mulher moderna'".

Já no quarto e último capítulo, "Robustos e sadios: a alimentação dos filhos", a narrativa constrói-se em torno da saúde da criança e da importância da amamentação e de uma alimentação saudável para seu desenvolvimento, desde pequena até a fase adulta. Execrando práticas tradicionais como o emprego de amas de leite na criação dos filhos, os médicos defendiam a amamentação como condição natural do feminino - dar o peito a sua cria completaria a mulher como mãe. Aquelas que por ventura não praticassem a amamentação ou se vissem impossibilitadas para a execução dessa tarefa eram demonizadas ou criminalizadas. Para os médicos e puericultores, a substituição do leite materno por qualquer outro tipo de alimento industrializado, como as farinhas lácteas, nos primeiros meses de vida do bebê, só era permitida em momentos específicos, como no caso das doenças contagiosas e da falta de leite no peito da mãe: "Função natural, missão divina, dever patriótico, fonte de felicidade ou garantia de 'verdadeira beleza'. Qualquer que fosse a motivação alegada em defesa da amamentação, os médicos deparavam-se com a realidade do desmame, e empenhavam-se em controlá-lo e justificá-lo segundo sua racionalidade técnica" (p.221).

Como é possível perceber na obra de Maria Martha de Luna Freire, durante boa parte do início do século XX, a sociedade brasileira tentou criar em torno das mulheres um ideal de mãe e de infância, instituindo a maternidade como algo intrínseco à condição feminina. A imagem da mãe dócil e dedicada inteiramente ao sacrifício, reflexo direto da simbologia mariana, empenhada na criação de seus vigorosos filhos foi amplamente difundida entre as mulheres no decorrer do século XX. No entanto, é importante perceber até que ponto esse modelo materno foi apreendido pelas mulheres que vivenciaram a experiência da maternidade naquele século, e a maneira pela qual elas se (re)apropriaram dos discursos especializados que solidificaram as bases do maternalismo.

  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal. 2010.
  • MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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