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Bons frutos na formação de pessoal

Good results in personnel training

LIVROS E REDES

Bons frutos na formação de pessoal

Good results in personnel training

André Luiz Vieira de Campos

Departamento de História / Universidade Federal Fluminense. Departamento de História / Universidade do Estado do Rio de Janeiro. camdrepo@gmail.com

O livro escrito por Fernando Pires e Carlos Paiva, dois pesquisadores vinculados ao Observatório História e Saúde, sediado na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, discute a história da cooperação técnica entre a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e o governo brasileiro, no tema das políticas de recursos humanos em saúde, a partir do acordo assinado em 1973 entre a Opas e o Brasil. O centro da análise está nas origens e no desenvolvimento do Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (Ppreps), criado em 1976 como desdobramento do acordo de 1973.

A primeira parte do livro, Estudo Histórico, contextualiza e analisa historicamente as condições internacionais e nacionais que possibilitaram a cooperação em recursos humanos entre a Opas e o governo brasileiro, origem do Ppreps. Essa parte é composta por cinco capítulos que seguem uma lógica não apenas cronológica mas também da interação/relação entre os diversos atores e variáveis envolvidos. No capítulo 1, os autores analisam e articulam os contextos internacional – especialmente interamericano – e nacional, o que permite ao leitor avaliar interesses, processos e diferentes discursos envolvidos na gênese da cooperação técnica em recursos humanos que desembocou no Ppreps; o capítulo 2 é dedicado à contextualização da criação do Ppreps, seu arranjo institucional, recursos, sentido estratégico e suas formas de cooperação; no capítulo 3 discute-se a implantação do Programa, suas realizações, principais resultados e desafios até o final da década de 1970; no capítulo 4 examina-se a renovação do Acordo de Cooperação e as conseqüentes mudanças no Programa quanto aos objetivos da cooperação técnica e à estrutura político-administrativa do país (com atenção especial para a entrada de um novo ator em cena: o Ministério da Previdência e Assistência Social), enfatizando a formação de recursos humanos através do Projeto Larga Escala; finalmente, no capítulo 5, encerrando a análise histórica, os autores se concentram na reformulação do Programa em relação aos temas, objetos e ações, já sob a transição para a Nova República e na conjuntura da realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1988. Nessa primeira parte, dois momentos são nitidamente distintos: a 'primeira fase' da cooperação, entre 1976 e 1978, e a 'segunda fase', entre 1979 e 1988, que se destacam claramente do período da 'gênese da cooperação técnica', entre 1973 e 1976, antes, portanto, da implementação do Ppreps.

Elemento significativo da primeira parte, quando se contextualiza historicamente a política de formação de recursos humanos, está na singularidade da consideração sobre um dos atores envolvidos no processo – a Opas. Sendo internacional, ela é analisada a partir de uma interpretação que considera tais organizações como 'arenas' de disputa e negociação, e não simplesmente como instâncias de imposição de normas e diretrizes emanadas dos países 'centrais'. Esta perspectiva está teoricamente explicitada por Stern (1998) que, afastando-se dos conceitos de 'centro' e 'periferia', afirma que as 'instituições internacionais' do chamado 'sistema mundial' não são entidades homogêneas e monolíticas, mas sim arenas de poder e de disputa cultural. Ou seja, as instituições internacionais não impõem, simplesmente, suas normas e procedimentos à 'periferia', porém interagem com as realidades 'locais', o que faz que suas ações sejam moldadas/negociadas pelos interesses dos países onde atuam. Esta perspectiva permite aos autores concluir que apesar de o Ppreps legitimar e ser "ao mesmo tempo legitimado por movimentos em escala internacional ... ele deve ser observado, no âmbito interno, como intimamente associado à formulação e implementação do Sistema Nacional de Saúde e do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento" (p.50), ambos criados pelo governo Geisel na esteira do 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).

Outra variável importante considerada pelos autores na análise das organizações internacionais é a sua historicidade. Assim, a Opas é examinada também a partir de suas mudanças no decorrer do período focalizado, sendo essas mudanças ponderadas como importantes elementos no 'diálogo' com o outro ator fundamental envolvido no processo – o governo brasileiro – para a consideração do objeto central do trabalho, ou seja, as políticas de recursos humanos. Assim, o livro sintetiza a trajetória da Opas em suas relações com as políticas internacionais de saúde e com sua interação com o Estado brasileiro. Nessa trajetória, os autores acompanham a reorientação que a política internacional de cooperação vivenciou, da concepção de 'assistência técnica' para a de 'cooperação técnica', e as práticas políticas que estes novos significados representaram no sentido de uma redefinição das relações internacionais dentro do sistema da ONU.

No cenário das políticas internacionais e nacionais, consideraram-se também outras variáveis, como por exemplo, a definição da saúde como direito de todos, e a redefinição das prioridades na formação de recursos humanos em saúde, com a maior atenção dada para formação de pessoal técnico e auxiliar (ambas variáveis enfatizadas a partir da década de 1970). Nesse quadro histórico, estão também consideradas as políticas públicas nacionais, para o que se torna fundamental a análise do processo político brasileiro entre 1973 e 1988, ponderando-se não apenas o macro-processo (transição da ditadura militar para a democracia), mas também as políticas específicas de saúde no Brasil (por exemplo: a 5ª Conferência Nacional de Saúde e a instalação do Sistema Nacional de Saúde, em 1975; o significado da realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986). Enfim, um contexto em que a conjugação de diversos interesses (Opas, governo brasileiro, uma elite técnica e um movimento reformador da saúde) se encontram num ponto ótimo que possibilitou a criação e atuação do Ppreps.

Dois elementos devem ser destacados ainda na primeira parte do livro: a análise do processo político e institucional de montagem do programa de cooperação em recursos humanos, bem como de seus objetivos e organização; e a discussão dos resultados principais alcançados, o que inclui uma avaliação do que seria o "legado da cooperação técnica Opas–Brasil" avaliada dentro da reforma sanitária instituída pela Constituição de 1988. Ao fazer a avaliação dos objetivos do programa na conjuntura da década de 1970, os autores deixam claro a intenção do governo militar brasileiro em ampliar a autoridade pública sobre o território e integrar as diversas ações administrativas do aparato público e privado de saúde. A formação de pessoal, especialmente de nível intermediário, a constituição de dez regiões docente-assistenciais de saúde (para atingir de 15 a 20 milhões de pessoas) e o apoio de sistemas de desenvolvimento de recursos humanos em cada estado (fortalecendo-se as secretarias de saúde) demonstram a estratégia do governo no sentido de ampliar a ação do Estado, aumentar sua eficiência e incluir mais brasileiros dentro de seus serviços, especialmente nas regiões consideradas carentes de recursos humanos e recursos de saúde, como o Norte e o Nordeste. A articulação do Ppreps com outras instâncias não sanitárias, como o Mobral, por exemplo, demonstra bem a estratégia do governo autoritário de incluir uma 'pauta social' na sua agenda.

A segunda e última parte do livro, denominada Depoimentos, está dividida em dois capítulos: o 6, "Diálogo com os pioneiros", consiste em trechos de depoimentos transcritos sob a forma de entrevistas. Utilizando técnicas da história oral, que serve para o resgate da memória daquele processo, essa parte do livro torna-se importante como elemento produtor de fontes documentais para futuros trabalhos sobre o tema em questão, visto que os atores entrevistados participaram de forma pioneira no processo de estabelecimento do Ppreps. O último capítulo, "Resenhas biográficas", apresenta biografias concisas de alguns dos entrevistados, o que facilita a localização dos leitores no universo daqueles profissionais. Finalmente, há uma lista bibliográfica e de documentos utilizados para a elaboração do trabalho.

Entre as qualidades desta obra, chamam a atenção a bibliografia e as fontes utilizadas para a produção do livro. Além das fontes oficiais (documentos da Opas e do Ministério da Saúde), destacam-se os acervos de história oral da Casa de Oswaldo Cruz, além da própria produção documental (entrevistas) realizada pelos autores. Além disso, é importante destacar o fato de que, ao fazer a avaliação das ações efetivas do Ppreps, os autores indicam, além da avaliação qualitativa, dados quantitativos que permitem ao leitor vislumbrar a ação concreta daquelas políticas, quanto à sua abrangência na formação de quadros, bem como a abrangência geográfica da ação do Programa. Entretanto, talvez o maior mérito deste trabalho esteja em seu ineditismo e originalidade. Alguns estudos sobre cooperação em saúde no Brasil privilegiaram outros atores internacionais, como por exemplo, a Fundação Rockefeller (Faria, 1994; Castro Santos, 1989; Marinho, 2001) e o Instituto de Assuntos Inter-Americanos (Campos, 2006). Entretanto, o livro de Fernando Pires-Alves e Carlos Henrique Paiva é, com certeza, o primeiro livro a analisar a cooperação técnica para a formação de recursos humanos em saúde entre a Opas e o governo brasileiro na história do tempo presente. Nesse sentido, o trabalho é importante e certamente deve ser recomendado, não apenas para pesquisadores das Humanidades que se dedicam ao campo da história da saúde, mas também para os 'profissionais da saúde' no sentido mais amplo do termo, ou seja, não apenas os profissionais de nível superior (como a expressão os designava com exclusividade na década de 1960), mas também os de nível técnico e auxiliar – exatamente aqueles que foram objeto de atenção das políticas analisadas neste livro.

  • CAMPOS, André Luiz Vieira de Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. 2006
  • CASTRO SANTOS, Luiz Antônio de A Fundação Rockefeller e o Estado Nacional (história e política de uma missão médica e sanitária no Brasil). Revista Brasileira de Estudos da População, São Paulo, v.6, n.1, p.105-110. 1989
  • FARIA, Lina R. A fase pioneira da reforma sanitária no Brasil: a atuação da Fundação Rockefeller, 1915-1930. Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1994
  • MARINHO, Maria Gabriela Norte-americanos no Brasil: uma história da Fundação Rockefeller na Universidade de São Paulo (1934-1952). Campinas: Editores Associados; Universidade de São Francisco. 2001
  • STERN, Steve Jeferey The decentered center and the expansionist periphery: the paradoxes of foreign-local encounters. In: Joseph, Gilbert M.; Salvatore, Ricardo D.; Le Grand, Catherine (Ed.). Close encounters of empire: writting the cultural history of U.S. Latin American relations. Dunham: Duke University Press. 1998

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2008
  • Data do Fascículo
    Mar 2008
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