Resumo
Entrevista com a arquiteta e professora Maria Cristina Fernandes de Mello, que, entre outras atividades em conservação e restauração do patrimônio cultural arquitetônico, teve papel destacado nos eventos que confluíram para a criação do Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz. Uma análise mais abrangente sobre sua trajetória profissional pode contribuir para o estabelecimento de conexões entre a teoria e a prática da salvaguarda de bens culturais no Brasil, notadamente no contexto da década de 1980.
preservação do patrimônio arquitetônico; Departamento de Patrimônio Histórico; memória institucional
Abstract
Interview with the architect and professor Maria Cristina Fernandes de Mello, who, among other architectural heritage conservation and restoration activities, played an important role in the events that led to the creation of the Department of Historical Heritage at Casa de Oswaldo Cruz. A broader analysis of her professional trajectory could help draw links between theory and practice in the safeguarding of cultural assets in Brazil, especially in the 1980s.
preservation of architectural heritage; Department of Historical Heritage; institutional memory
Esta entrevista faz parte de uma coletânea de depoimentos vinculados ao projeto “Narrativas e trajetória do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Casa de Oswaldo Cruz (COC)-Fiocruz”,1 referente à pesquisa “Gestão de sítios históricos do patrimônio cultural da saúde: reflexões e desafios do conjunto arquitetônico histórico do campus Manguinhos, Fiocruz-RJ”, desenvolvida pelo DPH/COC, por meio do Programa de Excelência em Pesquisa (Proep/COC), correspondente ao edital 2015-2018, coordenado pela Casa de Oswaldo Cruz, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A entrevista foi realizada com Maria Cristina Fernandes de Mello, arquiteta formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), professora titular aposentada pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF), doutora pela Università degli Studi di Roma La Sapienza, que, entre outras ações de conservação e restauração do patrimônio histórico arquitetônico, trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) entre 1986 e 1991.
Uma abordagem sobre a trajetória profissional de Cristina Mello no campo da restauração de monumentos históricos pode remeter a conexões entre as dimensões teóricas, práticas e políticas da salvaguarda de bens culturais no Brasil, notadamente inseridas no contexto da década de 1980. Por sua vez, sua atuação na Fiocruz, no período assinalado, representa o início do trabalho permanente e criterioso de conservação e restauração do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (Nahm). Tal envolvimento, entre outros aspectos relevantes, resultou na criação do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), em 1989, inserido na missão da COC, uma das unidades técnico-científicas da Fiocruz instituídas na gestão de Sergio Arouca (1941-2003), entre 1985 e 1989, no contexto de abertura política e de redemocratização por que passava o país.
A década de 1980 inaugurou um novo capítulo para a história da Fundação Oswaldo Cruz, com o tombamento em nível federal, em 1981, de suas edificações do início do século XX, e também com a gestão do sanitarista Sergio Arouca na Presidência, no período de 1985 a 1989. O processo de revitalização e democratização da instituição, sob sua coordenação, permitiu a introdução de um novo modelo de gestão institucional tido como “democrático e participativo”. Em sua gestão, foram criadas novas unidades técnico-científicas, como a Casa de Oswaldo Cruz, estabelecida, em novembro de 1985, com a finalidade de “recuperar e preservar a memória da ciência biomédica e da saúde no Brasil, desenvolvimento de atividades de pesquisa históricas e atividades museológicas, bem como a restauração e conservação do patrimônio arquitetônico histórico da Fiocruz” (Oliveira, Costa, Pessoa, 2003, p.182-183).
Ao mesmo tempo, em 1985, a constituição dos ministérios da Cultura e da Ciência e Tecnologia possibilitou investimentos no âmbito do então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), o que veio a ampliar sua atuação. Isso conferiu igualdade de tratamento às ciências humanas e às sociais aplicadas com a introdução de novas áreas de conhecimento nas atividades de fomento, entre elas a área de patrimônio cultural. Nesse contexto, o CNPq abriu pela primeira vez um edital específico para bolsas de especialização, que beneficiou a área de conservação e restauração arquitetônica, possibilitando a profissionais se especializar fora do país, como foi o caso da entrevistada.
Da mesma forma, no contexto assinalado, a primeira geração de arquitetos especializados em preservação do patrimônio arquitetônico, que veio a atuar em Manguinhos, foi viabilizada por novas contratações empreendidas na gestão de Arouca. Desse grupo fizeram parte os profissionais que formaram o núcleo inicial da Coordenação de Restauração (Coores), primeiramente vinculada à Presidência e posteriormente formalizada como Departamento do Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz. Esse grupo contou com o assessoramento de diferentes especialistas ao longo do tempo para cumprir sua missão de proteger o eclético patrimônio da Fiocruz.
O trabalho que Cristina Mello iniciou na preservação do Pavilhão Mourisco e no Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos consolidou-se e vem sendo constantemente aperfeiçoado.
Eis, a seguir, a entrevista.
Agradecemos a disponibilidade e comecemos com informações sobre sua formação acadêmica.
Eu fiz a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, formei-me em julho de 1974, e fiz concurso para UFF em 1976, onde trabalhei durante 30 anos como professora na Escola de Arquitetura e Urbanismo de lá.
Você chegou a fazer o mestrado antes do doutorado?
Não, porque eu queria fazer restauração na Itália, e, na época em que eu me formei, o melhor curso de restauração era o da Universidade de Roma, Università degli Studi di Roma La Sapienza. Mas, apesar de sua excelência, não correspondia ao mestrado e ao doutorado segundo os moldes da estrutura americana. Hoje, o curso que eu fiz é doutorado. Mas nesse período tudo era especialização ou aperfeiçoamento. Então, eu pedi e consegui uma bolsa ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e fiquei lá dois anos e meio, fiz todos os créditos e um projeto de tese com um objeto relacionado com uma cidade perto de Roma, que foi aprovado, após a qualificação. Foi quando o CNPq fez um convênio com a Universidade de Roma, determinando que todos os bolsistas brasileiros desse curso deveriam defender teses de monumentos brasileiros. E eu já tinha a qualificação sobre um monumento italiano e já havia voltado para o Brasil ao final de 1984. Em 1985, Sergio Arouca me convidou para trabalhar na Fiocruz, e aí foi uma grande oportunidade que eu tive de conhecer a instituição. Encantei-me pelo lugar, quando desenvolvi todo um trabalho inicial de levantamentos, conforme a metodologia então dominante na área de preservação das características históricas, físicas, dos diagnósticos etc. Estruturei um plano de trabalho, que foi traduzido em quatro contratos específicos de intervenção, até que fui contratada em 1º de dezembro de 1986.
Em que período você permaneceu em Roma?
Entre 1982 e 1984. Quando eu comecei a trabalhar aqui, já havia formulado uma monografia, que enviei para a aprovação do então coordenador responsável pelo curso da Itália, o Mário Mendonça, mudando aquela minha tese [inicial], já que estava vinculada ao CNPq e ele tinha que aprovar o tema. Aí, escrevi para ele, perguntando se eu poderia abordar o que eu estava fazendo aqui, na Fiocruz, e ele aprovou. Então, todos os projetos que eu desenvolvi aqui [na Fiocruz], o fiz utilizando, à risca, a metodologia científica internacional de restauração, voltada para o conjunto arquitetônico histórico de Manguinhos. Anamnese, diagnóstico, terapia, tudo de forma a organizar o que já tinha sido produzido para esse conjunto arquitetônico. Quer dizer, houve atuações pontuais, no intuito de preservar, mas, no período após a ditadura do regime militar, tudo chegou ao nível de quase abandono. Por exemplo, no caso da torre norte do Pavilhão Mourisco, havia já três anos que a administração anterior buscava restaurá-la. Quando eu entrei aqui, só havia duas pessoas trabalhando: o engenheiro doutor Heraldo2 e o Zé Mauro.3 E eles, sozinhos, iam realizando o possível, conforme as verbas conseguidas. Quando eu cheguei aqui, todo esse elemento localizado no terraço do quinto pavimento estava “no osso”. Ninguém sabia direito como restaurar aquela estrutura, enfim, estavam preocupados em refazer os ornamentos, tinham contratado o mestre em estuque ornamental senhor Adorcino,4 artífice descoberto por Zé Mauro. Mesmo não tendo um conhecimento, digamos, científico da coisa, eles ajudaram muito a construir um conjunto de informações necessárias para o conteúdo da minha tese, que eu defendi em 1988.
A sua tese, então, foi sobre o conjunto arquitetônico histórico de Manguinhos?
Não. Foi sobre o projeto que eu fiz, integralmente, para a torre norte do Pavilhão Mourisco, mas, por ser uma tese, circunscrevendo sua intervenção dentro desse contexto histórico. Então, com apoio do CNPq, voltei para Roma, fiquei lá dois meses até a defesa final, isso na época que ainda não havia computador.
De que forma surgiu o seu interesse pela área de preservação do patrimônio histórico arquitetônico especificamente?
Surgiu ao longo do curso na Faculdade de Arquitetura [da UFRJ]. Quando entrei, em 1969, período político repressivo, ocorria uma especulação imobiliária desenfreada, especialmente no Rio de Janeiro. Período, também, em que os professores, todos eles arquitetos modernistas, eram encantados com o concreto armado. Eu comecei a compartilhar [esse encanto], com certo desagravo quanto a marcantes processos de demolições na cidade, assim como também comecei a me interessar sobre memória e história da arquitetura, enfim. Nas aulas de projeto, a formação dos meus professores não incluía essa área de restauração, formados com as ideias modernistas, de demolir tudo, construir tudo em concreto. Não que eu não gostasse de arquitetura contemporânea, mas eu achava que as duas coisas poderiam conviver. Tentei trabalhar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional5 (Iphan) várias vezes, mas nunca consegui. Como estudante, mandava meu currículo e nunca consegui um estágio lá. Tentei quatro bolsas diferentes, inscrevi-me para quatro cursos diferentes, até ser aceita na Universidade de Roma, quando já era professora da UFF, o que era um ponto favorável. E realmente foi um aprendizado maravilhoso, essa experiência de morar fora, e foi aí que eu aprendi a história da arquitetura de verdade. E é claro que essa minha carência como estudante apareceu de novo como professora, quando eu voltei para lecionar teoria e história da arquitetura, na universidade. Ela não estava no quadro obrigatório, era uma matéria optativa, e eu acho que foi o melhor trabalho que eu fiz – durante cinco anos, batalhar para que essa matéria entrasse no currículo básico da arquitetura do Brasil inteiro. Isso aconteceu em 1996. Todas as disciplinas relacionadas à restauração, de cidade, de edifícios históricos e à teoria histórica da restauração passaram a ser matérias obrigatórias do currículo mínimo das escolas de arquitetura em todo o Brasil, estabelecido pelo Ministério da Educação (MEC). Obviamente, o fato de a Maria Elisa Meira6ser presidente da Associação Brasileira de Ensino (ABE) e ser diretora da escola, que também aprovava essa medida, contribuiu para que [essa inclusão] fosse contemplada na então reforma curricular, sendo aprovada depois pelo conselho do MEC. As respectivas ementas das disciplinas foram elaboradas pelo professor Cyro Lyra7 e por mim, que éramos os dois professores da área, na época, na UFF. Nós elaboramos todas as ementas, quer dizer, aquela minha carência lá atrás foi suprida. Isso é uma coisa da qual eu me orgulho muito.
Além das questões já assinaladas sobre a sua trajetória, gostaríamos que você fizesse uma avaliação, em termos gerais, sobre o campo da preservação, no Brasil, na década de 1980.
As instâncias governamentais – Iphan, Instituto Estadual do Patrimônio Cultural8 (Inepac) e Prefeitura – forneciam os técnicos para atuar nessa área. Partia, eu acho, um pouco da fiscalização. Desde sua criação, em 1937, o Iphan focou muito na preservação e no tombamento da arquitetura do século XVIII. Os técnicos do Iphan se ocupavam de fiscalizar e tal. Tinham até operários à sua disposição, na época. Posteriormente, foram criados órgãos estaduais e municipais. Eu gosto mais da ideia de que o valor seja atribuído pelos próprios habitantes. Então, até a própria legislação de obras, de licitações, as obras de restauração eram uma excepcionalidade, podendo-se contratar um restaurador sem licitação. Por quê? Não havia na formação do arquiteto, nem do engenheiro, disciplinas nessa área, e, portanto, ele não tinha conhecimento. Para você trabalhar nisso, teria que fazer um curso de especialização. E aqui [no Brasil] também não havia curso de especialização. Você tinha que ir para fora para fazer o curso de especialização. Por isso o custo do projeto era maior, além de não precisar ser contratado, e se podia cobrar 10 ou 15% a mais, por lei. Essa dinâmica criou uma distorção enorme, inclusive porque muita gente que fazia reforma se aproveitava dessa lei, alegando que o que estava fazendo era “restauração”. Quer dizer, houve muito oportunismo por conta dessa lógica. Contexto que também reforçou a defesa de se introduzir na graduação tais disciplinas, e para que se mudasse essa lei de licitação, que, aliás, até hoje não foi mudada. Todo arquiteto tinha que ter conhecimentos nessa área.
Com relação à sua atuação profissional, dê mais detalhes sobre seu ingresso e ações na Fiocruz, desde o convite feito diretamente por Sergio Arouca.
Eu estava chegando da Itália, ele me falou: “Olha, estou assumindo a Fiocruz. Gostaria que você fosse trabalhar lá”. Então nós combinamos que eu agiria em algumas frentes. A primeira seria fazer o mapeamento da situação dos edifícios (do núcleo arquitetônico histórico tombado pelo Iphan em 1981) e atacar as obras consideradas emergenciais. No caso prioritário, a torre norte do castelo que estava “no osso”, na época. Também o Pavilhão do Relógio, para receber a Casa de Oswaldo Cruz, que estava sendo criada em sua gestão. Com esse levantamento, elaborar o projeto e o orçamento, para se buscar o financiamento. Isso foi feito, junto com a Olga D’Arc.9 A outra frente era montar uma equipe. Nesse primeiro ano (1985), eu cuidei desses levantamentos e só pude começar a montar uma equipe em 1986, porque a minha situação legal aqui era de contrato temporário. Então, em dezembro de 1986 eu fui contratada, e, em janeiro de 1987, começamos a contratar pessoas para montar uma equipe mínima para desenvolver esses projetos. A gente imaginava que, desenvolvendo nossos projetos, sem terceirizar, conseguiríamos controlar o custo da obra. Temos que considerar que isso foi em 1986, quando a inflação, na época do Sarney, era de 80% ao mês. Administrar uma obra pública com uma inflação dessas era enlouquecedor. Tínhamos que ter um controle rigoroso sobre tudo e só podíamos ter os reajustes permitidos por lei. Assim, conseguimos restaurar a torre norte no preço e no prazo. Disso também me orgulho. No caso do Pavilhão do Relógio, foi uma obra de duas semanas, das sete às sete, incluindo o sábado, com operários da Fiocruz. Na realidade, a torre norte foi o nosso cartão de visita para conseguir captar, posteriormente, os recursos financeiros das empresas Norquisa, Salgema, Copene e Coperbo, que financiaram outras obras nesse período no núcleo histórico, de acordo com a Lei Sarney.10 Teve um almoço que o Geisel11 veio aqui, com todo o seu staff de técnicos, quando fui chamada para ser sabatinada. Eu, estudante “revolucionária de 68”. Enfim, acho que eu passei no teste, porque eles acabaram assinando esse convênio com a Fiocruz. Em 1987, também restauramos a Cavalariça, executando uma manutenção preventiva criteriosa, com mão de obra da Fiocruz, porque também não havia verba. Nesse momento, promovemos um curso para os operários do campus, com o apoio logístico do Iphan.
Ainda no caso da intervenção assinalada na torre norte do Pavilhão Mourisco, como se deu a participação do Iphan?
Como eu conhecia, na época, o superintendente do Iphan, Sabino Barroso, eu fui direto a ele e expliquei toda a situação. Na realidade, Sabino Barroso já me chamava para ver outras obras do Iphan para eu dar minha avaliação. Nessa época, não havia concurso, os profissionais da área se comunicavam direto porque se conheciam, compartilhavam seus conhecimentos diretamente. Estava na moda o livro Teoria do restauro, de Cesare Brandi,12 que durante muitos anos foi um restaurador de objetos móveis, pintura, escultura. Ele escreveu esse livro transpondo essa teoria de objetos móveis para os objetos imóveis, gerando muita confusão entre os profissionais do Iphan. Teoria que defendia que, quando se restaurasse, por exemplo, um quadro de Leonardo da Vinci, se há uma lacuna, não se deve pintar exatamente como era originalmente. Tem que se fazer um tracejado muito sutil, com a cor de fundo para ressaltar a pintura, e ficar visível a restauração se você colocar uma lupa etc. E transpondo essas regras para a arquitetura. Então, na restauração da arquitetura antiga, as partes novas deveriam ter a marca do seu tempo, ser datadas, de maneira que, no conjunto harmônico, elas não sobressaíssem. Isso gerou, no âmbito dos profissionais do Iphan, uma confusão absurda. Às vezes, chamavam-me para dar uma opinião, porque, no fundo, é tudo uma questão de sensibilidade e bom senso. É muito tênue esse limite, e a cultura está sempre em movimento. Pois é a maneira como as pessoas se comunicam. Então, a teoria da restauração também está em movimento, porque o mundo vai mudando, você tem que ir adaptando, você não pode se fixar numa concepção e numa metodologia única.
Sobre este contexto originário, fale-nos a respeito da criação da Coordenação de Restauração (Coores)
Objetivamente, foi por causa da minha carteira de trabalho, onde está registrado: “Designada para responder pela coordenação das obras de restauração dos prédios da Fiocruz, tombados pelo Patrimônio Histórico Nacional, subordinada diretamente a Presidência da Fundação Oswaldo Cruz”. É por causa da carteira de trabalho, nada mais. Eu era ligada à Presidência, não à prefeitura do campus [atual Coordenação-geral de Infraestrutura dos Campi], nem à Casa de Oswaldo Cruz. Então, eu não podia colocar nem o nome, mas colocar como estava na minha carteira de trabalho. A coordenação de restauração era o meu vínculo legal.
Quando você assumiu a coordenação, quais eram os maiores desafios e obstáculos enfrentados?
Quando eu assumi a coordenação, tudo era desafiador, porque era muito trabalho. E quanto mais eu conhecia as coisas aqui, mais aparecia trabalho. Por exemplo, o plano diretor. Havia o contexto pós-ditadura, em que cada pesquisador se cercava em seu território. Na Fiocruz, havia várias unidades isoladas, e, dentro dessas unidades, vários setores, pesquisadores, enfim. Então, conversando com a Presidência, defendi a necessidade de um plano diretor para estruturar as novas demandas, definir as áreas não edificantes. Nessa época, eu era muito amiga do Carlos Nelson Ferreira dos Santos,13 então diretor do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), que também era professor da UFF. Em função disso, a Fiocruz contratou o Ibam para fazer este plano diretor, que seria entregue em três módulos. Assim, foram feitos os levantamentos de todas as atividades em todos os prédios. Mas esse plano diretor não foi finalizado, pois, na fase do último módulo, o contrato com o Ibam foi cancelado. Nunca soube exatamente as razões. Mas é obvio que, quando começaram a aparecer os resultados do nosso trabalho, nesse período inicial, muita gente ficou interessada em participar. Em 1989, com a instituição do departamento de Patrimônio Histórico, como parte da missão da Casa de Oswaldo Cruz, fui eleita chefe de departamento. Até 1991 eu estive empregada na Fiocruz no regime de 20 horas. Nesse ano, em função das novas exigências de dedicação exclusiva ao serviço público federal, eu deveria passar para 40 horas na Fiocruz, o que se tornava incompatível com meu compromisso na UFF. Tendo que optar, encerrei meu vínculo com a Fiocruz em novembro de 1991.
Seja no período em que você esteve à frente da coordenação ou depois, quando se torna departamento, o que você considera suas maiores realizações em relação ao núcleo histórico da Fiocruz?
A torre norte (do Pavilhão Mourisco). Acho que foi uma obra importante, porque tinha que dar certo para o resto acontecer. Então, todo mundo estava empenhado, havia um espírito de luta, aguerrido. “Eu era braba”. Teve o caso da manta butílica do terraço. Determinamos a impermeabilização do terraço (obra emergencial no quinto pavimento do Pavilhão Mourisco), porque estava chovendo na biblioteca. Então, especificamos a manta butílica, que deve ser colocada sobre uns determinados polímeros, pois não se pode encostar direto no cimento. É o material mais caro e mais durável. Então, no contrato constava que ele tinha que dar uma camada de 0,8 milímetros de polímeros, que eram importados. A mesma empresa que produzia essa manta era a que aplicava, era autorizada para sua aplicação. E nós éramos os fiscais de obra. Aí, um dia, estou fiscalizando a obra, e verifico umas protuberâncias na superfície de quase 100 metros de manta aplicada, material caríssimo... Eu levanto a manta e constato que eles não tinham colocado os polímeros em toda a extensão. Só tinham feito umas faixas, para colar a manta sobre a laje. Eu mesma arranquei os 100 metros, “no braço”, e eles tiveram que fazer tudo de novo... O que me guiava era seguir rigorosamente uma metodologia científica internacional, segundo a qual se deve esgotar o conhecimento sobre o objeto, identificar os problemas, como no caso em que identificamos uma carência de juntas de dilatação, entre outros problemas, e apresentar a solução técnica para resolver esses problemas. Tínhamos à disposição muito material histórico, muitas fotos do projeto original, enfim. Toda uma pesquisa histórica que vem junto com a anamnese. E eu acho que o abandono durante o período da ditadura (do período do regime militar no Brasil) teve um aspecto negativo, mas, contraditoriamente, teve um aspecto positivo também, pois não destruíram o patrimônio original. Exceto algumas histórias escabrosas, como haver sido retirada a impermeabilização do terraço, que era composta por folhas de cobre.
Em relação ao Pavilhão Mourisco, você pode destacar os maiores desafios enfrentados durante a sua participação nas intervenções?
Primeiramente, a sua monumentalidade em relação aos outros prédios do núcleo histórico. O maior problema que eu encontrei foi na instalação elétrica. Fio de pano e borracha misturado com novas instalações precárias etc. O primeiro engenheiro eletricista que chamei comentou, em uma visita técnica: “Isso aqui pode pegar fogo a qualquer minuto”. Assim, foi uma das primeiras intervenções que a gente fez: a substituição da fiação elétrica do Pavilhão Mourisco e de seu quadro geral. Foi um grande mote para captação de recursos. Uma repórter da TV Globo veio aqui... fazer uma matéria sobre o castelo, e me chamaram para falar, e fui completamente “terrorista”. Eu falei, “vai pegar fogo”, mostrando o quadro de luz. Apareceu no Jornal Nacional, num sábado. Houve uma grande repercussão... A arquitetura desse edifício, sua estrutura, todos esses ornamentos em cimento, é uma coisa única. Na época em que foi construído, o cimento era a grande novidade. A primeira fábrica de cimento no Brasil foi de 1936, e, até então, todo o cimento usado era importado. E o Luiz Moraes Junior usou uma técnica utilizada há milênios chamada terracota para os ornamentos, só que misturado ao cimento, que hoje sabemos não dura mais do que oitenta anos. E o que aconteceu? Com o tempo, a água entrou, atingindo o ferro, que expandiu e começou a rachar e soltar as placas de cimento. Quer dizer, a própria construção tem essas particularidades. E as atuais intervenções em lacunas também têm um tempo determinado de validade.
Em sua trajetória profissional, o que significou para você esses anos de trabalho aqui na Fiocruz?
Foi maravilhoso, pois juntou a minha vontade de realizar com uma singular oportunidade e com a companhia de pessoas competentes em volta. Além, claro, do apoio fundamental da presidência da instituição.
Você gostaria de destacar algum aspecto que não mencionamos, em relação à sua atuação aqui na Fiocruz, ou em relação a sua carreira de uma maneira geral?
Eu quero destacar a minha admiração por Sergio Arouca. Ele era um visionário. Afinal, ele permitiu que isso tudo acontecesse. Ele construiu uma nova Fiocruz. Eu destaco que, se não fosse ele, nada disso tinha acontecido. Sobre o trabalho de hoje do DPH, eu recomendo manter o domínio sobre o conhecimento desse patrimônio, a sua autonomia na execução dos projetos, sobre as licitações de obras e serviços, sobre as especificações e a fiscalização das obras. Jamais terceirizar isso, porque pode se perder todo o controle da qualidade da restauração que tem sido feita até então. E, como última recomendação, investir sempre na manutenção preventiva, com planejamento e pessoal treinado. É a maneira mais econômica e eficiente. Esse é o segredo. Esse núcleo histórico já completou 100 anos, precisa durar mais 100 anos, pelo menos.
REFERÊNCIA
NOTAS
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1
A íntegra deste depoimento encontra-se no DPH/COC/Fiocruz, no Núcleo de Estudos de Urbanismo e Arquitetura em Saúde, localizado na avenida Brasil, n.4.365, no Pavilhão Mourisco, sala 1.
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2
Heraldo Reif de Paula, engenheiro, em 1982 foi designado, pela então presidência da Fiocruz, como coordenador da restauração das duas torres localizadas no quinto pavimento do Pavilhão Mourisco.
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3
José Mauro Hid da Silva Oliveira, arquiteto, trabalhou na Diretoria de Administração do campus de Manguinhos, na Fiocruz, e esteve à frente da obra de restauração da torre norte do Pavilhão Mourisco, como assistente da respectiva coordenação, entre 1984 e 1986.
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4
Adorcino Pereira da Silva (1926-2011), mais conhecido como mestre Adorcino, trabalhou como servente de pedreiro desde os 18 anos de idade, tornando-se em pouco tempo um artífice em estuque ornamental de excelência reconhecida. De 1984 até falecer, trabalhou nas intervenções de restauração nos edifícios do Nahm da Fiocruz, além de desempenhar a função de instrutor na formação de artífices da Oficina-Escola de Manguinhos, ação de educação profissional coordenada pelo DPH/COC/Fiocruz.
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5
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937, é o órgão, em nível federal, responsável pela preservação, fiscalização e divulgação do patrimônio material e imaterial do Brasil.
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6
Maria Elisa Meira Canedo, arquiteta e professora, falecida em 2000, foi a primeira diretora da Escola de Arquitetura e Urbanismo (EAV), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua trajetória acadêmica está associada à renovação da base curricular dos cursos de arquitetura e urbanismo no Brasil, a partir do contexto da década de 1970.
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7
Cyro Illídio Correa de Oliveira Lyra é doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ; especialista em Conservação Arquitetural pelo International Center for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property (Iccrom-Roma); arquiteto pela Faculdade Nacional de Arquitetura (RJ); e membro honorário do International Council on Monuments and Sites (Icomos).
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8
O Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, criado em 1965, é o órgão estadual responsável pela preservação do patrimônio fluminense.
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9
Olga D’Arc Pimentel é socióloga, aposentada pela Fiocruz, e foi assessora da presidência dessa instituição, na gestão de Sergio Arouca, entre 1985 e 1989.
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10
Lei federal de incentivo à cultura e a atividades artísticas, instituída em julho de 1986, um ano após a separação dos ministérios da Cultura e da Educação, que dispunha sobre benefícios fiscais no imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural e artístico. Em 1990, a Lei Sarney foi extinta, assim como outros incentivos fiscais em vigor.
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11
Ernesto Beckmann Geisel (1907-1996), militar, 29° presidente do Brasil (quarto na ditadura militar brasileira), de 1974 a 1979.
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12
Cesare Brandi (1906-1988), escritor, teórico e crítico de arte, licenciado em direito, se formou, também, em história da arte na Universidade de Florença. Considerado um dos maiores representantes da corrente denominada restauro crítico, em 1938 foi designado para dirigir o Instituto Central de Restauro (ICR), cargo que ocupou até 1960.
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13
Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989) foi arquiteto e urbanista, professor universitário, cientista visitante no Departamento de Estudos Urbanos do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em 1971, mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ, em 1979, e doutor em arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP), em 1984.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Out 2020 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2020
Histórico
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Recebido
1 Nov 2019 -
Aceito
15 Jan 2020