Resumos
Este artigo tem como objetivo analisar as transformações pelas quais passou o exercício das práticas de curar entre os anos 1828 e 1855, sobretudo no Rio de Janeiro. Observa-se, nesse período, a organização dos médicos acadêmicos em torno da Faculdade de Medicina, da Academia Imperial de Medicina e de periódicos especializados, ao mesmo tempo que os terapeutas populares perdiam espaço para legalizar as suas atividades. Comparamos então as mudanças na legislação e a ação dos órgãos fiscalizadores com a atuação dos terapeutas não-oficializados e a procura da população por seus serviços. Sobressaem da análise os conflitos derivados da tentativa de a medicina acadêmica se impor sobre as demais artes de curar, demonstrando a dificuldade daquela em estabelecer o monopólio das atividades terapêuticas.
história das artes de curar; institucionalização da medicina; Junta Central de Higiene Pública; Brasil
The article analyzes changes in curing practices between 1828 and 1855, mainly in Rio de Janeiro. This period saw academic physicians organizing themselves around the Faculty of Medicine, the Imperial Academy of Medicine, and specialized periodicals, while popular practitioners were simultaneously losing ground in the legalization of their activities. The text compares changes in laws and the actions of oversight agencies with the activities of non-officialized practitioners and the population's reliance on their services. What stands out are the conflicts stemming from academic medicine's attempt to gain ascendancy over other healing arts, which shows how hard it was for the former to achieve a monopoly within therapeutic activities.
history of the healing arts; institutionalization of medicine; Junta Central de Higiene Pública; Brazil
ANÁLISE
Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos
Tânia Salgado Pimenta
Doutora em história social do trabalho na Universidade de Campinas Rua Sorocaba, 673/401 22271-110 Rio de Janeiro RJ spimenta@domain.com.br
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar as transformações pelas quais passou o exercício das práticas de curar entre os anos 1828 e 1855, sobretudo no Rio de Janeiro. Observa-se, nesse período, a organização dos médicos acadêmicos em torno da Faculdade de Medicina, da Academia Imperial de Medicina e de periódicos especializados, ao mesmo tempo que os terapeutas populares perdiam espaço para legalizar as suas atividades. Comparamos então as mudanças na legislação e a ação dos órgãos fiscalizadores com a atuação dos terapeutas não-oficializados e a procura da população por seus serviços. Sobressaem da análise os conflitos derivados da tentativa de a medicina acadêmica se impor sobre as demais artes de curar, demonstrando a dificuldade daquela em estabelecer o monopólio das atividades terapêuticas.
Palavras-chave: história das artes de curar, institucionalização da medicina, Junta Central de Higiene Pública, Brasil.
A primeira metade do Oitocentos assistiu a mudanças significativas no exercício das práticas terapêuticas. No fim da década de 1820 e início dos anos 1830, observa-se uma série de marcos no processo de institucionalização da medicina, como a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e de vários periódicos especializados. Além disso, trata-se de um período em que ocorreu uma redefinição do que seriam práticas terapêuticas legítimas perante o governo.
As mudanças na regulamentação são evidentes. Em 1828 foi extinta a Fisicatura-mor órgão do governo responsável pela fiscalização e regulamentação de todas as atividades relacionadas às artes terapêuticas. Os curandeiros e os sangradores foram desautorizados, excluídos do conjunto de atividades legais. As parteiras foram desqualificadas para uma posição subalterna e tiveram as suas atividades apropriadas, o que serviu à expansão do mercado para os médicos.
Tal cenário pode sugerir que a conquista da hegemonia dos esculápios deu-se de forma tranqüila. Essa conclusão, contudo, é resultado de uma análise que privilegia as ações desse grupo. Ademais, devemos atentar para sua heterogeneidade, que pode ser identificada nos conflitos internos e nas diferentes maneiras como se relacionava com os terapeutas não-autorizados.
Com o intuito de ampliar o entendimento desse processo de transformações no exercício das artes de curar, procuraremos, ao longo deste artigo, frisar o modo como os terapeutas, oficializados ou não, se posicionaram sobre as novas determinações e se adaptaram ao novo contexto.1
Em estudo anterior vimos que, entre 1808 e 1828 (quando a Fisicatura-mor funcionou sediada no Rio de Janeiro)2, práticas associadas a camadas sociais subalternas faziam parte do mundo oficial das artes de curar (Pimenta, 1997). Assim, além das autorizações para médico, cirurgião e boticário, havia licenças para parteira, sangrador e curandeiro. Para aquele órgão, cada ofício correspondia a atividades bem delimitadas, às quais os respectivos praticantes deveriam se ater. Havia também uma hierarquia entre essas categorias, segundo a qual os médicos ocupariam as posições mais prestigiadas e parteiras e sangradores, por exemplo, as mais subalternas.
Todo o aparato burocrático existente nunca foi suficiente para impor a oficialização a todos cujas práticas cabiam dentro da definição de categorias legais, ou para reprimir as atividades consideradas ilegais. Esta é uma conclusão comum a vários estudos dedicados ao exercício das artes de curar em diversos contextos, sobretudo no século XVIII e início do XIX (Lanning, 1985; Sáenz, 1997; Léonard, 1981; Crespo, 1990). Os terapeutas populares3, com toda a diversidade que essa categoria abarca, constituíam a maioria e eram aceitos e requisitados pela população.
O discurso oficial pretendia que os terapeutas não-oficializados fossem procurados apenas porque não haveria médicos e cirurgiões em número suficiente e porque estes cobrariam mais caro. Dessa forma, os primeiros seriam 'tolerados' pela burocracia. Contudo, temos visto que havia uma correspondência entre os tratamentos oferecidos pelos terapeutas populares e as necessidades de quem recorria a eles, o que dificultava qualquer tentativa de reprimi-los.
Outro ponto que deve ser considerado ao nos valermos da documentação oficial é o significado das categorias utilizadas. Para a Fisicatura-mor, curandeiro era aquele terapeuta com conhecimentos de plantas medicinais nativas e que as empregava para tratar de moléstias típicas de determinadas regiões. Portanto, os registros desse órgão diziam respeito a essa definição de curandeiro. Ainda assim, pudemos identificar vários tipos, inclusive os que reconheciam 'artes diabólicas' como causadoras de doenças (Pimenta, op. cit., p. 132). Em relação aos doentes, os processos de licenciamento da Fisicatura-mor também puderam nos dar uma idéia da conta em que alguns tinham de certos terapeutas populares. Em geral, quem quisesse curar deveria apresentar atestados a respeito da sua competência e da necessidade de sua presença no lugar onde morava. Pois esses atestados subvertiam explicitamente a lógica dos médicos, apontando para a maior eficiência de curandeiros na cura de doentes já desenganados por acadêmicos (Pimenta, 1998).
Além das diferenças que se construíam entre médicos autorizados e terapeutas não-autorizados, uma grande diversidade ocultava-se sob o termo terapeutas populares e aqueles específicos à determinada atividade parteiras, sangradores, curandeiros, curadores. Estas eram categorias imprecisas, que abrangiam vários tipos. Assim, quando as pessoas da época referiam-se a curandeiros, ou mesmo quando se falava genericamente em terapeutas populares, aí podiam estar incluídos os que baseavam o seu tratamento em crenças religiosas; ou em conhecimentos acadêmicos adquiridos por meios de divulgação como folhetos, livros e periódicos; na experiência com ervas medicinais; ou na mistura dessas características.
Existiam diferenças também quanto à dedicação à atividade terapêutica: se eram exclusivamente terapeutas ou só o faziam nas horas vagas; se ganhavam a vida dessa forma, ou se praticavam a arte apenas para complementar a renda ou por caridade (Ramsey, 1988; Sáenz, op. cit.). É preciso considerar igualmente a existência daqueles que se envolviam na fabricação e venda de remédios. Muitas vezes eles não tinham autorização e podiam estar interessados apenas nos lucros.
O fim da Fisicatura-mor marcou um novo período na relação entre governo, médicos acadêmicos e terapeutas populares. Por um lado, pode-se apontar a extinção desta última categoria como uma perda progressiva do espaço oficial dos curandeiros e dos demais terapeutas populares e do reconhecimento de suas atividades. Por outro lado, ao estudar as práticas médicas do Oitocentos, não podemos esquecer que a medicina acadêmica era apenas mais uma das possibilidades de terapia a que a população, ou parte dela, tinha acesso. E nem era a mais popular, como vários trabalhos recentes têm demonstrado (Figueiredo, 2002; Sampaio, 2001; Soares, 1999). Tampouco tinha todo o poder legal e muito menos força para reprimir e monopolizar a arte de curar.
Neste artigo, pretendemos abordar de forma mais detida as mudanças legislativas referentes às atividades terapêuticas, contrapondo-as ao cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo no período entre 1828 e 1855. Analisaremos, então, a posição das autoridades médicas e políticas, assim como a dos terapeutas em geral, diante das novas regras, e as suas estratégias para conquistar os possíveis clientes recorrendo à imprensa, nesse novo contexto.
As mudanças na legislação
Em 30 de agosto de 1828 foram extintos os cargos de provedor-mor, físico-mor e cirurgião-mor do Império, passando para as câmaras municipais as funções relativas à inspeção de saúde pública e para as justiças ordinárias, os processos findos e em andamento, até então sob responsabilidade do juízo da Fisicatura-mor. Pouco depois, em 14 de novembro de 1828, o Ministério do Império especificava melhor as novas funções atribuídas às câmaras: inspeção sobre a saúde pública, incluindo exames e visitas em lojas de comestíveis, boticas e lojas de drogas. Os processos de autorização e fiscalização do exercício de curar ficaram sem instância formal para julgamento.
Apenas em 1830 essa questão voltou a ser tratada em meio a outras determinações a respeito da saúde pública que versavam sobre cemitérios, enterros, venda de gêneros e remédios, hospitais e casas de saúde e moléstias contagiosas. No prazo de três meses a partir da publicação das posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, "Nenhum facultativo, boticário, parteira, ou sangrador poderá curar e exercer sua arte dentro do município sem ter apresentado suas cartas na Câmara, onde ficarão registradas ...: o contraventor será multado" (códice 49-3-8, AGCRJ).4
Assim, apenas quem já tinha a sua carta deveria se dirigir à Câmara para registrá-la. Nesse período, quem já não as possuísse estaria exercendo um ofício ilegalmente. Mais do que isso: os curandeiros não eram citados. Portanto, depois de 1828, essa categoria nem sequer era considerada. Ao contrário do que acontecia na época do físico-mor, os conhecimentos sobre as plantas medicinais nativas e as moléstias mais comuns de determinada região já não garantiriam a legitimidade de suas práticas.
É verdade que pouquíssimos curandeiros se interessaram em entrar para o mundo oficial das curas, quando isso foi possível. Outras categorias, no entanto, estavam um pouco mais empenhadas no processo de legalização de suas atividades, seja por tentarem se destacar da concorrência com títulos oficiais, seja por terem aprendido a sua arte com mestre aprovado, passando a achar que tinham que seguir o mesmo trajeto. Sangradores e parteiras se dirigiram à Câmara Municipal para se oficializar, mas a resposta variava entre "não há lugar" e "requeira a quem compete". O problema era que isso não competia a ninguém, entre 1828 e 1832. A Câmara até supunha que a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, fundada em 1829, deveria examinar os terapeutas. Porém esta esquivou-se deste papel, talvez por não querer assumir as mesmas funções da tão criticada Fisicatura-mor. Os membros dessa sociedade argumentavam, em 1831, que questões relacionadas ao ensino e ao exercício da medicina eram estranhas "à esfera que lhe é marcada pelos seus Estatutos" (códice 47-1-48, 8.7.1831).
Se a Sociedade de Medicina se abstinha, decerto pelo menos alguns de seus membros que lecionavam na Academia Médico-Cirúrgica estavam envolvidos com o assunto. Em 1831 já estava em curso a discussão do projeto que transformaria, em outubro do ano seguinte, a Academia em Faculdade de Medicina (Santos Filho, 1991, pp. 88-9). Desse momento em diante, o diploma seria de médico e não mais de cirurgião. Este passou a estar englobado na categoria de médico criando-se, ao longo dos anos, uma série de mecanismos para nivelá-lo ao segundo (CLB, decretos de 30.9.1837 e de 15.7.1848).
A lei de 1832 marcou o início do monopólio legal das artes de curar por parte dos médicos. Desenhava-se então uma nova forma de se relacionar com os terapeutas populares, bem diferente daquela do tempo da Fisicatura-mor. Algumas categorias passaram a ser desqualificadas e deslegitimizadas, enquanto outras começaram a depender da Faculdade de Medicina.
Os alunos da Academia Médico-cirúrgica e os cirurgiões e médicos estrangeiros foram os únicos a não serem afetados pelas mudanças na regulamentação das atividades terapêuticas, em virtude de sua autonomia em relação à Fisicatura-mor, adquirida em 1826. O fato de uma parte significativa dos terapeutas não ter sido prejudicada com a súbita impossibilidade de se legalizar deve ter contribuído para a demora em se decidir alguma coisa sobre a autorização e fiscalização do exercício de curar. Ademais, a ausência de regulamentação para esses ofícios parece corresponder aos anseios da elite médica por mantê-los à margem do reconhecimento oficial.
A antiga distinção entre as artes liberais e as artes mecânicas em que aquelas tinham primazia sobre estas constituía mais um argumento no processo de afastamento das demais atividades terapêuticas. A medicina acadêmica, caracterizando-se por ser uma arte liberal e científica, buscava se inserir em um outro quadro de saberes e práticas sobre doença e cura, apartando-se daquele campo compartilhado por outros terapeutas (Lebrun, s. d.; Marques, 1999, pp. 281-4).5
Certamente o clima de instabilidade política e os conflitos provinciais constantes no período também contribuíram para a indefinição quanto às artes de curar. Problemas como insurreições provinciais, temores de revoltas de escravos, insatisfações políticas com o receio do regresso português, conflitos entre os poderes Executivo e Legislativo tudo isso deve ter contribuído para a pouca atenção dada à regulamentação do exercício médico.
Pois em 1832 foi a vez de os sangradores serem ignorados pela legislação. A lei de três de outubro de 1832 transformava as academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia em faculdades, que concederiam os títulos de doutor em medicina, farmacêutico e parteira. Sem isso, ninguém poderia "curar, ter botica, ou partejar", excetuando-se os "médicos, cirurgiões, boticários e parteiras legalmente autorizados em virtude de lei anterior". A partir de então, o título de sangrador não seria mais concedido (CLB, 3.10.1832).
A falta de determinações sobre o exercício de atividades terapêuticas favoreceu respostas variadas por parte das autoridades. Mesmo que os curandeiros não fossem sequer citados nas posturas municipais de 1830 e deixando-se claro, em 1832, o monopólio legal dos médicos acadêmicos quanto ao diagnóstico e à prescrição de tratamentos, os terapeutas não-autorizados em geral não foram alvo de uma perseguição oficial sistemática.
Seguindo o mesmo raciocínio do discurso da Fisicatura-mor, segundo o qual os terapeutas não acadêmicos até podiam ser oficialmente aceitos onde médicos e cirurgiões diplomados não estivessem em número suficiente, a Câmara do Rio de Janeiro concedeu algumas licenças para os primeiros. Foi o caso de João Nicolau d'Oliveira que "há muitos anos, e com os seus curativos, [tem] remediado imensas moléstias, em diversas famílias e escravatura desta freguesia, tendo por resultado o desejado melhoramento". De acordo com o fiscal da freguesia de Guaratiba, onde João morava, a proibição de seu exercício traria sofrimento a muitos doentes, já que os poucos cirurgiões que existiam na região moravam longe demais para chegar a tempo em caso de necessidade. Um abaixo-assinado, encabeçado pelo boticário da comunidade, confirmava essa situação. À vista disso, a Câmara concedeu a João, em outubro de 1832, uma licença por um ano (códice 46-2-39).
Em 1831 a Câmara já havia chegado à conclusão de que deveria renovar por um ano a licença que José Custódio Teixeira de Magalhães vinha obtendo da Fisicatura-mor desde 1826 para vender o seu remédio que curava o "vício da embriaguez". José apresentou uma lista com os nomes de 75 escravos e seus respectivos proprietários, além de oito libertos, e, ainda segundo o suplicante, apenas uma escrava não havia sido curada (Pimenta, 1997, p. 16; códice 50-4-26).
Tais casos de renovação de licença para o exercício terapêutico ou para a venda de remédios sem formação ou aval acadêmico não constituíam a maior parte dos registros. No entanto, essas situações indicavam flexibilidade ao tratar das atividades curativas, como de resto acontecia em todos os aspectos da sociedade paternalista. Sobretudo, demonstram que nem oficialmente a medicina acadêmica tinha o monopólio das práticas de cura.
É verdade que o Ministério do Império reforçava com certa freqüência a obrigação da Câmara do Rio de Janeiro, de proibir que pessoas não habilitadas curassem. Em ofício de setembro de 1834, o ministro se dirigia aos vereadores da cidade observando que "pessoas tão ávidas de interesse, como faltas de consciência, sem possuírem os necessários conhecimentos", exerciam os ofícios de médico, cirurgião, boticário e parteira. Preocupado com esse "abuso que a credulidade tem alimentado, e a impunidade, estendido", o ministro pedia que a Câmara tomasse as medidas necessárias para acabar com o problema (códice 46-2-38, 5.9.1834).
Em suas respostas, a Câmara explicava que fazia o que estava a seu alcance e que, para ampliar a sua ação, dependia da ajuda dos juízes de paz e de seus inspetores de quarteirão. Em 1837 os vereadores resolveram admitir e chamar a atenção do governo para a dificuldade de responderem por todos os aspectos da saúde pública. Figuravam na legislação como responsabilidades da Câmara: a fiscalização de tavernas, boticas, armazéns, secos e molhados e do exercício das artes de curar. Porém o que se via no comércio da cidade era a falta geral de observância dessas regras situação que, segundo os vereadores, não seria resolvida com fiscais ou diligências de autoridades policiais. Defendiam, assim, a criação de uma autoridade e de uma legislação próprias para a saúde pública (códice 16-4-30, maio de 1837).
Realmente a Câmara era responsável por uma infinidade de aspectos do dia-a-dia da cidade. E, a julgar pelos relatórios dos fiscais, o exercício médico recebia pouca atenção. Entre os assuntos que mais atraíam a inspeção dos funcionários destacavam-se o nivelamento e a padronização de calçadas, ruas e edificações, a limpeza das áreas públicas e a circulação de animais.
Em 1841 a Câmara conseguiu avançar um pouco nos esforços de controlar as práticas médicas. A seu pedido, os fiscais de cada freguesia, assim como os inspetores de quarteirão e os juízes de paz enviaram listas com os nomes dos terapeutas, seu ofício (dentista, sangrador, farmacêutico, médico, cirurgião, parteira) e o endereço respectivo (códices 46-2-40 e 46-2-41). Com base nessas informações e nos registros dos diplomas de médicos, cirurgiões, sangradores, boticários e parteiras, organizaram uma lista geral na qual constavam 230 nomes (códice 46-2-43). Tendo essa referência, ficava mais fácil identificar algum terapeuta não-autorizado. Apesar disso, as repreensões dos fiscais eram motivadas menos por suas rondas periódicas do que pelos anúncios escancarados das folhas da cidade.
Os médicos estavam longe de dispor de poder suficiente para impor o monopólio do exercício terapêutico, o que, no entanto, não significa que não tentassem. De fato, cobravam das autoridades o cumprimento das leis que restringiam o exercício médico. Sobretudo a elite médica pressionava, por meio das associações, da faculdade e de periódicos especializados. Outra forma que essa elite tinha de se manifestar era por mandados legislativos, como já apontou Roberto Machado (Machado et al., 1978).6 Desse modo, o vereador influenciaria o serviço dos fiscais no sentido de coibir as atividades de terapeutas não-autorizados.
Tomemos como exemplo os remédios para tratar o 'vício da embriaguez'. Mesmo depois do fim da Fisicatura-mor, uma licença para curar as pessoas que sofriam desse mal foi concedida. E durante boa parte do período estudado, a oferta e a procura por esses medicamentos eram bem evidentes nos anúncios do Jornal do Commercio (JC).
Em 1840, um mesmo anúncio repetiu-se de janeiro a dezembro: "Elias Coelho Martins: o autor da descoberta milagrosa para curar bêbados, faz ciente ao respeitável publico que continua a fazer curativos tanto para as bebidas brancas quanto para o vinho ..." (JC, 25.6.1840).
Alguns anos mais tarde, em 1845, Elias diria ter obtido licença do "Presidente da Escola de Medicina" para o seu "segredo de curar ébrios", e com isso dirigiu-se aos vereadores a fim de receber autorização para aplicá-lo. No entanto, o vereador responsável pelo parecer era um médico bem cioso das prerrogativas dos terapeutas acadêmicos. Torres Homem7, mesmo admitindo que o medicamento seria "inocente em certos casos", não considerava "prudente que a sua aplicação [fosse] feita por pessoas estranhas à arte de curar" (códice 46-2-42).
Pouco mais de um mês depois, Elias recorreu da decisão, apelando "para o testemunho de mil e tantas pessoas que têm tomado o remédio, e ainda não constou ter ele estragado a saúde daqueles que o têm tomado". Também alegava ser único meio de sustento de sua família. Nada disso, porém, sensibilizou o dr. Torres, que manteve o seu parecer.
Este caso indica divergências dentro da medicina acadêmica quanto aos parâmetros para autorização das atividades terapêuticas. Enquanto que o diretor da Faculdade de Medicina, José Martins da Cruz Jobim, consideraria inócuo o remédio, Torres Homem, professor da mesma escola, via na atividade de Elias um perigo em potencial para a saúde pública. Portanto, além da diversidade de sistemas terapêuticos adotados pelos médicos acadêmicos, assinalada pela historiografia mais recente (Ferreira, 1996; Edler, 1992), em contraposição à idéia de um grupo coeso e poderoso, observamos indícios de posições contrárias dentro da elite médica em relação a um tema fundamental para a corporação e que fazia parte do seu dia-a-dia.
Comparando os desfechos para os requerimentos de José Custódio e de Elias, constatamos também que a resposta favorável ou não ao curador dependia mais do vereador responsável pelo parecer do que de determinações elaboradas e estabelecidas sobre o assunto. Parece-nos certo que, com Torres Homem nessa função, os curadores tinham menos chances de serem reconhecidos oficialmente.
Em meados de 1846, o secretário de polícia da corte mandou um ofício à Câmara, para que esta o orientasse na execução das posturas municipais, especificamente a que proibia os boticários de vender remédios sem a receita de um médico ou cirurgião aprovado, salvo se estes fossem "de natureza inocentíssima". Vendo "todos os dias anunciados pelos jornais diversos remédios particulares, ou secretos", o secretário desconfiava que essa situação se opunha às determinações municipais (códice 46-2-42).
Ao responder pela proibição de tais anúncios, Torres Homem mais uma vez expôs os seus argumentos na defesa da 'inquestionável' necessidade de que os remédios fossem indicados por médicos formados (idem). Contudo, o que parecia óbvio para Torres Homem estava muito distante do cotidiano. Os próprios vereadores admitiam uma situação fora de controle, em que eram comercializados "gêneros viciados, remédios adulterados, venda franca de drogas venenosas, e a entrega delas a quaisquer pessoas que se apresentam", além da existência de "curadores sem as legítimas habilitações". Segundo esses políticos, o baixo valor das multas e os poucos dias de prisão a que estavam sujeitos os infratores não ajudavam a intimidá-los (códice 16-4-30, maio de 1837).
Junto a isso, a Câmara Municipal enfrentava dificuldades em designar boticários e médicos ou cirurgiões à comissão de visita de estabelecimentos comerciais. Alguns alegavam muitos clientes para tratar, outros diziam enfrentar problemas de saúde, o que complicava mais a já deficiente fiscalização desse comércio (códice 40-2-49).
Analisando os estatutos da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (aprovados pelo decreto de 15.1.1830) e da Academia Imperial de Medicina (decreto de 8.5.1835), percebemos uma discordância entre as prioridades da elite médica e dos terapeutas em geral, incluindo os boticários em ambos os grupos. Ao mesmo tempo que quem podia se eximia da convocação para trabalhar na fiscalização do comércio de remédios e drogas medicinais, os textos fundadores da Sociedade de Medicina, posteriormente Academia Imperial, evidenciavam a preocupação de seus membros com esse assunto. Os estatutos da academia, por exemplo, previam que os remédios novos e secretos não poderiam ser expostos ao público sem o seu exame e sua aprovação, ou da Faculdade de Medicina.
Um dos mais atuantes médicos do período, fundador da Sociedade de Medicina e redator de periódicos especializados, o dr. Sigaud, apontava, em 1835, a ausência no Rio de Janeiro de inspeção das boticas e da venda de remédios e drogas. A lei de agosto de 1828, que "suprimiu a suprema ditadura do físico-mor do império", havia devolvido tais atribuições às câmaras municipais. No entanto, essas responsabilidades foram relegadas, enquanto, denunciava Sigaud, o número de boticas crescia progressivamente e os armazéns de remédios simples e compostos se multiplicavam (Diário de Saúde, 9.5.1835).
No final da década seguinte, a falta de controle sobre a comercialização dos remédios continuava a preocupar. Um artigo publicado no Archivo Médico Brasileiro (agosto de 1848) reclamava estarem as províncias e a capital do Império "infectadas de vendedores de remédios secretos". Em seguida, constatava-se de modo enfático que a lei de 1832, que proibia "aos que não possuem título legal o exercício da arte de curar", era "letra morta para maior parte das províncias" (itálicos nossos).
A credulidade pública seria a garantia de continuidade dessa "mercantil especulação". Nesse aspecto, os médicos estavam unidos em seu discurso, que apontava ingenuidade, ignorância, pobreza e falta de opção como motivos para a popularidade de terapeutas não-autorizados. Porém, se fosse o caso de assistir a pessoas de lugares distantes dos centros urbanos, onde não havia terapeutas autorizados, o tom do discurso era bem diferente. Enfatizava-se, então, a utilidade dos indivíduos "dotados de alguma inteligência" que se dispunham a tratar os seus semelhantes nas "províncias remotas".
O problema, para os médicos oficializados, era que os terapeutas não-autorizados não se limitavam a atuar em lugares distantes, onde médicos e cirurgiões não chegavam ou iam muito raramente. Tampouco sua clientela se restringia a pessoas pobres, sem condições de pagar um facultativo. Na verdade, eles estavam bem perto, oferecendo seus serviços diariamente nos jornais da cidade.
Embora os terapeutas populares não pudessem legalmente indicar, aplicar e/ou vender remédios, durante o período estudado a população em geral não associava competência terapêutica a um diploma oficial. As pessoas que procuravam assistência médica, na época da Fisicatura-mor, não se importavam com o fato de o terapeuta ter ou não licença das autoridades. Também em meados do Oitocentos essa informação parece não ter sido decisiva para a escolha de quem as trataria.
E as pessoas que buscavam algum tipo de tratamento eram fundamentais nessa história (Digby, 1994; Fissel, 1991; Porter, 1985, 1992). Em virtude da preferência de boa parte da população, os terapeutas populares não-autorizados continuavam a praticar, apesar da ilegalidade.
As mudanças no dia-a-dia
Além da mudança na situação legal dos terapeutas denominados curandeiros, devemos considerar as transformações no cotidiano de seu ofício. Anteriormente a maior parte não se oficializava, provavelmente porque não se sentia coagida a isso e porque não precisava de aprovação oficial para ser reconhecida pela comunidade em que atuava. Com o rápido crescimento da cidade, em decorrência da emigração de outras províncias e do exterior8, a relação de muitos terapeutas com a população se alterou. Alguns recém-chegados, entre os que imigravam para o Rio de Janeiro, procuravam se inserir na sociedade. Outros viram seu prestígio e sua fama se diluirem entre o crescente número de moradores.9
A multiplicação de periódicos pela cidade fez com que muitos desses terapeutas enxergassem nos anúncios uma forma de se fazer conhecer e divulgar os seus negócios. A sessão de 'notícias particulares' do Jornal do Commercio fornece vários exemplos que se assemelham por enfatizar a cura de uma ou várias moléstias, sem se deter muito no remédio ou tipo de curativo a ser aplicado:
Curam-se dores, zunidos e surdez antiga de ouvidos, ainda que tenha anos, também asma, defluxo asmático, solitária, hemorróidas, erisipelas e escravos viciosos de comer barro ou terra, ainda que já estejam opilados; assim como os viciosos de bebida: quem quiser utilizar-se dos préstimos acima dirija-se à Rua do Parto, 93 ... . (JC, 29.1.1840).
Algumas ofertas, como a citada acima, levam a crer que a repressão não atuava de modo tão rígido, já que os anunciantes forneciam seus endereços de 'mão beijada'. No entanto, às vezes a comunicação entre as partes interessadas se dava de modo mais cuidadoso e elaborado. O curador anunciava seus serviços e pedia que o interessado anunciasse para ser procurado. Nem sempre o veículo usado era o mesmo periódico. Não raro anunciava-se no Diário do Rio de Janeiro e a resposta era encontrada no Jornal do Commercio, por exemplo.
Em meados da década de 1850, muitos terapeutas não-oficializados tinham mais cuidado e não se identificavam tão claramente. Ao mesmo tempo que procuravam divulgar seus serviços, tentavam preservar suas identidades tanto quanto possível comportamento provavelmente associado ao esforço da Junta de Higiene para cuidar do monopólio da atividade médica:10 "CURA-SE radicalmente reumatismo com remédios muito eficazes e em pouco tempo; deixe a sua morada em carta fechada neste escritório com as iniciais M.P." (JC, 4.7.1855).
Nos meses de pico da epidemia de cólera de 1855, porém, os curadores e vendedores não-autorizados de remédios dispensaram esse modo mais cauteloso de se relacionar com os clientes. Certamente os problemas trazidos pela epidemia desviaram a atenção da Junta, que sucedera as câmaras municipais na autoridade quanto às questões de "salubridade pública".
Não constava nos estatutos da Academia Imperial de Medicina e nos da Faculdade de Medicina, assim como também não era mencionada no regulamento da Junta, qualquer recomendação quanto ao tipo de anúncio que um terapeuta oficial poderia fazer. Havia os mais elaborados (discorrendo sobre formação acadêmica e relações com nomes famosos), outros mais simples (apenas com nome e endereço do terapeuta) e ainda os mais apelativos (prometendo curas milagrosas).
Uma forma de ganhar destaque entre dezenas de reclames era anunciar o atendimento gratuito aos pobres. Essa oferta não deixava de ser uma forma de construir uma boa imagem junto ao público. Existiam, porém, outros modos de seduzir um possível cliente. Dentre os artifícios encontrados, podemos listar: compromisso de devolver o dinheiro caso não fosse obtida a cura prometida; promessa de sigilo absoluto (o que era valioso para doenças socialmente condenadas, como o alcoolismo e as moléstias venéreas); e aviso de que estariam por pouco tempo na cidade, e por isso os interessados não deveriam demorar em procurar o anunciante. Foi o que identificamos no anúncio de um terapeuta que dizia ter sido o seu remédio examinado pela Academia de Medicina:
Proprietário da descoberta milagrosa para curar bêbados, faz ciente, a esta Corte, e pretende demorar-se o tempo que lhe for mister para arranjos de seus negócios: portanto propõe-se a fazer seus curativos pelo preço de 8$ rs. em papel, sendo escravo, e com a condição de restituir esta mesma quantia não fazendo o remédio o efeito desejado, e para isso se obrigará por um recibo, e sendo pessoa livre ficará a seu arbítrio o reconhecimento, e o fará em sua casa com todo o segredo e caridade" (JC, 7.1.1837, itálicos nossos).
Estas são algumas das características de um anúncio de charlatão, segundo a definição de Roy Porter. De acordo com o autor, quer fossem honestos e/ou competentes, quer não fossem, o que os distinguia era o exercício de "sua prática principalmente no mercado aberto, tratando uma clientela anônima de pacientes por meio da venda de panacéias, e que tornavam conhecidos seus serviços, seu saber médico e a si mesmos por meio de publicidade" (Porter, 1997, p. 90).
Apesar de todas as considerações de Porter, utilizar o termo charlatão como categoria analítica não ajuda a esclarecer algumas questões, como as semelhanças e as diferenças entre muitos médicos oficializados e terapeutas não-autorizados; e igualmente importante a diversidade entre os próprios médicos e entre os próprios terapeutas populares. Portanto, consideramos o termo charlatão apenas uma categoria adotada por alguns médicos acadêmicos contemporâneos como forma de denegrir a imagem de seus concorrentes. Além disso, a forte carga pejorativa da palavra prejudica outra forma de utilização.
Embora os dados sejam dispersos e limitem-se apenas aos que publicaram propagandas, os anúncios evidenciam a diversidade de tipos de terapeutas. Alguns anunciavam a cura de determinada moléstia, outros listavam várias enfermidades que poderiam curar. As respostas às propagandas evidenciam o interesse do público por terapeutas não oficializados. Indicam, inclusive, que as pessoas que requisitavam esses serviços eram ao menos remediadas, já que tinham acesso às informações dos jornais.11
Muitos não estavam apenas abertos a esse tipo de tratamento, mas à procura dele. Naquela época, os periódicos se tornaram um meio pelo qual os terapeutas divulgavam os seus serviços, e os enfermos tentavam atender às suas necessidades: "A pessoa que souber curar gente mordida por cachorro danado, com toda a brevidade, queira chegar a rua do Catete no 108" (JC, 25.9.1832).
Ao escolher um terapeuta, algumas variáveis deviam ser levadas em consideração, como o preço cobrado, a urgência e as referências (fossem testemunhos de vizinhos, agradecimentos publicados nos periódicos ou títulos acadêmicos e oficiais). Parece ter sido importante também o tipo de doença a ser tratada. Os terapeutas populares anunciavam a cura para diversos problemas, como pernas inchadas, cancros, carbúnculos, moléstias dos olhos, surdez, escrófulas, e ainda faziam nascer cabelo. Porém, há indícios de que determinadas moléstias eram associadas a tratamentos com tais terapeutas. A 'embriaguez' ou 'bebedeira' (referiam-se ao alcoolismo), por exemplo, era uma dessas doenças, como já indicavam os casos mencionados anteriormente, de João Nicolau e Elias.
Um artigo de 1848 do periódico Archivo Médico Brasileiro reconhecia que, na Corte, "a cura da bebedeira é monopólio dos curandeiros". O próprio autor conheceu alguns desses e, como médico, procurava identificar os ingredientes dos remédios utilizados. A "velha do Castelo" administrava "certa mistura de mijo de gato e de assafetida". Outro, que morava na Prainha, "mandava beber infusão de fedorenta aos negros dados ao vício da aguardente, e purgava-os depois violentamente com aloes" (itálico do original). Havia ainda um "negro de Angola" que podia ser encontrado na rua dos Ciganos, "bem no coração da capital do Império", e que havia trazido uma raiz de Minas Gerais, com a qual curava os pretos da embriaguez (AMB, abril de 1848).
Além do interesse pelo tratamento popular, cujos remédios deveriam ser identificados e estudados à luz da medicina acadêmica, o artigo indica os negros, escravos ou forros como os mais atingidos por essa doença. Nesse caso, e presumimos que em muitos outros, havia uma identificação social e étnica entre terapeutas e doentes, cujas concepções de doença e cura seriam mais próximas, tornando o processo terapêutico mais confortável e eficaz.12
Outra moléstia associada aos terapeutas populares era a morféia (que abrangia várias doenças de acordo com a nosologia atual).13 As autoridades, que percebiam essa ligação explicavam a situação desqualificando os terapeutas não oficializados, como ilustra um parecer de Pereira Rego (códice 8-2-12, 4.7.1854) a esse respeito:
É um fato, Exmo.Sr., reconhecido por todos os práticos familiarizados com a observação clínica, que a morféia é uma daquelas enfermidades que melhor se presta à especulação e embuste desses impostores que se gabam de a curar, pela facilidade com que seus sintomas a modificam quase sempre para melhor no começo de qualquer tratamento ainda o mais banal ... .
Novamente os anúncios ajudam a confirmar a hegemonia de terapeutas não-acadêmicos no tratamento de certas doenças. No final de 1849, podia-se acompanhar uma verdadeira disputa entre dois terapeutas que diziam ter um remédio para curar morféia. Não há indícios de que os envolvidos tivessem licença para aplicar e vender o medicamento, o que não os intimidava, pois, além do endereço, publicavam os nomes, conforme a propaganda de uma das partes:
ATENÇÃO CURA DA MORFÉIA. D. Maria Luiza de Brito Sanches, tendo curado doentes daqui e de fora da cidade em pouco tempo, ... e para que chegue ao conhecimento dos doentes e não aconteçam enganos na cura, faz o seguinte anúncio. Rua do Areal n. 23. Pode ser procurada a qualquer hora do dia. (JC, 13.12.1849).
Cinco anos depois, os anúncios de tratamento para morféia ainda podiam ser encontrados. No entanto, estando a Junta de Higiene instalada, a forma era bem mais discreta. Pedia-se que os interessados anunciassem ou deixassem cartas no escritório do jornal (JC, 15.8.1855). Nesse contexto, havia até quem advertisse "que não se encarregam de doente sem assistência de um médico"! A princípio, essa nota ao final da propaganda pode parecer sem sentido, já que está fora dos padrões encontrados para os anúncios. No entanto, ao menos duas explicações podem ser aventadas para o aviso: tratava-se de um artifício, em que se incorporava o discurso oficial admitindo-se, na aparência, a posição subalterna do curandeiro, a fim de não atrair a atenção da fiscalização; ou tratava-se de um exemplo da associação entre terapeutas/saberes populares e terapeutas/conhecimentos acadêmicos. Haveria, então, mais do que troca de saberes e conhecimentos, a possibilidade de trabalharem juntos (Xavier, 2003), assim como acontecia muitas vezes com médicos e parteiras (JC, 2.9.1855).
Dessa forma, observando a sessão de anúncios dos periódicos, identificamos uma outra forma de os terapeutas não-oficializados se colocarem no mercado, considerando as transformações na cidade e na legislação. Muitos devem ter passado a concentrar suas atividades na elaboração e venda de remédios. Boa parte daquela sessão era ocupada por propagandas de medicamentos; dessa forma, aqueles não-autorizados tinham chances de não chamar a atenção da fiscalização. Além disso, havia a possibilidade de conseguirem o aval das autoridades para vender seu produto.
Naquele período, os remédios eram elaborados com base no sistema terapêutico hipocrático-galênico, cujo objetivo era manter ou restaurar o equilíbrio entre os humores do organismo concepção que estimulava a multiplicação de panacéias e elixires, como 'pós antibiliosos e purgativos', que buscavam "dar uma atividade regular às funções digestivas, e desembaraçar o corpo dos humores nocivos, cujo calor do clima favorece o desenvolvimento". Ao lado dos que poderíamos classificar 'de ampla atuação', havia muitos anúncios de medicamentos específicos como: "elixir antiescorbútico", "gotas odontálgicas" para dores de dente, "pós antiverminosos (crianças brancas e escravatura)" e "pós antibobáticos", "para pronta cura dos bobentos". Enquanto alguns reclames se alongavam nas explicações sobre determinada moléstia e o modo de empregar o remédio, outros registravam informações mais detalhadas sobre indicações, modo de aplicar e dietas a seguir nos folhetos grátis que acompanhavam o medicamento.
Essas orientações não deixavam de incentivar a automedicação, chamando a atenção dos médicos. A Sociedade de Medicina, em 1835, anunciava, entre os assuntos a serem tratados em sua reunião, a discussão sobre "o vomitório e o purgante drástico chamado de Leroy", e "a opinião favorável" que este recebia pelo "vulgo". Discussão que seria permeada, é claro, pela tentativa de se alertar o povo sobre o perigo desse tipo de medicamento ao ser administrado por "pessoas estranhas à medicina" (JC, 21.3.1835). Alerta difícil de ser considerado pela população, diante das dezenas de propagandas de remédios publicadas diariamente nas folhas da cidade, o que nos dá uma idéia da intensidade desse tipo de comércio. Ao longo da primeira metade do Oitocentos, os anúncios aumentaram em quantidade e tamanho (alguns ocupavam uma página inteira) e ganharam ilustrações. Muitos reclames confiavam na popularidade desse tipo de remédio, que vinha se disseminando desde o século anterior e contrastava com os medicamentos tradicionais, preparados por encomenda para uma desordem específica de determinada pessoa (magistrais), e mesmo com os remédios mais gerais, baseados na farmacopéia adotada (oficinais) (Marques, op. cit., cap. 3 e 4; Ramsey, op. cit.). Assim, freqüentemente, eram apenas listados os que estavam disponíveis em seus depósitos, ressaltando serem "de patente, os quais são afiançados verdadeiros" ou legítimos (JC, 27.5.1836).
Com tantas propagandas a disputar a atenção do leitor, o anunciante precisava de algo que convencesse um possível consumidor da seriedade de seu produto. Como fazê-lo? Havia duas formas mais comuns. A primeira, mais utilizada, consistia na publicação de agradecimentos ou relatos de pessoas que haviam sido curadas pelo anunciante:
Eu, abaixo assinado, morador na Jurujuba, declaro que, padecendo há mais de sete anos de erisipelas nas pernas, as quais me davam muito amiúde, procurei muitos modos de me curar, e todos sem proveito. Ensinaram-me um banho vegetal e um bálsamo divino que se vende na travessa do Guindaste, casa nova sem número, e com o dito banho e bálsamo fiquei bom e perfeitamente curado ... . (JC, 26.11.1849).
Essa tática não recebia um controle efetivo, e nada impedia que se inventasse um testemunho. Ou que se formasse um imbróglio, comum quando um doente procurava mais de um médico para tratá-lo e depois não se chegava à conclusão de quem o matara ou curara.
Outra forma de atrair o público era conferir credibilidade associando o produto ao nome de um médico ou estabelecimento médico reconhecido. Foi o que fizeram os vendedores da "salsaparrilha de Sands", em cuja propaganda anexaram um atestado do dr. Paula Cândido. Em sua declaração, datada em novembro de 1848, o professor da Faculdade de Medicina e futuro presidente da Junta de Higiene afirmava que a aplicação do medicamento, em sua clínica, estava sendo "mui vantajosa para as afecções reumáticas e sifilíticas" (JC, 1.1.1849).
A Junta de Higiene e o controle sobre as artes de curar
Quando o mercado de remédios passou a ser regulamentado e fiscalizado pela Junta de Higiene, os que fossem de 'composição desconhecida' tinham de ser analisados por seus membros. Portanto, em princípio, todos os medicamentos dessa categoria anunciados e postos à venda deveriam estar aprovados pelas autoridades competentes. Como muitas vezes esse comércio se fazia alheio às determinações oficiais, a aprovação da Junta podia ser usada, por uns e por outros, para valorizar o produto. Podia até ser incrementada, comprometendo a reputação desse órgão. Foi este o receio do dr. Pereira Rego ao ver estampada, em anúncio de página inteira, a propaganda do "bálsamo infalível contra as feridas" e "xarope de saúde de Arrault", na qual se afirmava terem sido aprovados pela Junta e a sua venda autorizada pelo governo (JC, 22.4.1855). Um remédio de segredo (os nomes e a propaganda não faziam qualquer alusão aos ingredientes da fórmula), novo no mercado, aprovado pela Junta, indicava que, além de ser eficaz, tinha alguma diferença em relação aos demais. Portanto, ajudava a atrair os consumidores.
E para Bernardino de Souza Pinto esses medicamentos eram de fato remédios de segredo, já que havia desembolsado certa quantia para comprar a fórmula do químico francês Arrault e ter o direito exclusivo de vendê-los no Brasil. Uma lista das moléstias nas quais o xarope atuava nos dá idéia da panacéia: moléstias venéreas, escorbuto, reumatismo, escrófulas, boubas, papeira, leucorréia, supressão do menstruo, gota, sarna, elefantíase dos membros inferiores.
Para o dr. Pereira Rego, contudo, tanto o xarope quanto o bálsamo não podiam ser enquadrados na categoria 'remédio de segredo'. Por quê? Simplesmente porque os dois produtos:
... vêm aumentar ainda mais a lista já não pequena daqueles em que o charlatanismo especula constantemente entre nós em detrimento e prejuízo daquelas pessoas que deles se utilizam. O bálsamo não oferece novidade alguma em sua composição: consiste apenas em uma dissolução alcoólica concentrada de várias matérias resinosas muito conhecidas, mesmo pelo vulgo, como úteis ao tratamento das feridas.14 ... O mesmo direi do tal Xarope de saúde (itálicos nossos).
Na opinião do médico, os remédios poderiam até ser vendidos, com a condição de se publicarem as fórmulas. A partir daí criou-se um impasse. Bernardino não admitia perder o seu investimento e, apesar das determinações da Junta e do Ministério do Império, continuou anunciando seu xarope e seu bálsamo sem revelar sua composição.
Esse tipo de problema não se resolvia rapidamente. Entre pareceres da Junta, avisos do Ministério e requerimentos de Bernardino, passou-se pelo menos um ano e meio o que desgastava a imagem do órgão, que, no fim das contas, não conseguia fazer valer a sua decisão (Pimenta, 2003).
O caso do 'xarope de saúde' e do 'bálsamo infalível' nos interessa não só por mostrar a dificuldade das autoridades responsáveis pela saúde pública em tornar efetivas as suas determinações, que perdiam força ao longo dos trâmites burocráticos. Isso indica que essas autoridades não eram completamente reconhecidas, mesmo por setores da sociedade que buscavam a oficialização. Acompanhando o 'enrolar' desse processo, identificamos divergências entre os seus membros que também contribuíram para a demora. Diferentemente dos pareceres finais, assinados por todos e que dão uma idéia equivocada de consenso, as atas tornam visíveis os conflitos formados entre os médicos quando apareciam novas situações, como as epidemias de febre amarela e cólera.
Analisando a questão sob a perspectiva do interior da Junta, vemos o presidente, dr. Paula Cândido, se correspondendo individualmente com o Ministério do Império e expressando opinião diversa da de outros membros (códice 8-2-13, 20.6.1855); e o inspetor geral do Instituto Vacínico, dr. Reis, discordar do dr. Pereira Rego, pedindo constantes adiamentos para as votações de seus pareceres. Os próprios registros não são claros quanto à posição dos membros em cada sessão. Sabemos, contudo, que o dr. Reis desenvolveu o argumento de que o indivíduo que tivesse descoberto e/ou "empatado capitais" numa fórmula vantajosa para a humanidade e fosse obrigado a publicá-la seria "justamente o que menos ou nenhum proveito" colheria. Principalmente não sendo boticário, pois seria preterido em relação aos outros que pertencessem a essa categoria. Conseguiu, então, convencer os demais a conceder um prazo para exploração comercial do produto (códice 8-2-13, 20.6.1855).
Esse aspecto, no entanto, não comoveu o dr. Pereira Rego, que via urgência na publicação do parecer sobre os medicamentos para tentar recuperar a imagem da Junta frente à população. Alertava ele:
No ponto a que as coisas têm chegado, o crédito da Junta de Higiene acha-se grandemente comprometido para com o público e os homens de ciência, comprometimento que pode acarretar no futuro complicações mais sérias, enfraquecendo-lhe a sua força moral (códice 8-2-13, 11.7.1855)
Mais uma vez, a discussão sobre as palavras de Pereira Rego foi adiada por requerimento de Reis e até março de 1856, pelo menos, a Junta não voltou a registrar outras discussões sobre o assunto.
No caso de Bernardino, vimos que os membros da Junta de Higiene reconheciam o direito de pessoas não-acadêmicas continuarem a trabalhar com a fabricação e venda de medicamentos, conforme a intervenção do dr. Reis. Desse modo, algumas pessoas que, no tempo da Fisicatura-mor, se enquadrariam como curandeiras ou curadoras de determinadas moléstias provavelmente devem ter percebido uma brecha para atuar legalmente e lucrar na regulamentação da venda de remédios. Assim, venderiam os remédios que usavam na sua prática terapêutica. E, caso não conseguissem passar pelo crivo das autoridades, não se sentiam intimidadas e publicavam os reclames mesmo assim.
Muitos dos remédios que deveriam ser submetidos à análise dos médicos vinham da França, como os famosos robe Laffecteur anti-sifilítico e o purgativo e vômito-purgativo Leroy. As autoridades médicas francesas encontravam grande dificuldade em controlar a venda e a publicidade de medicamentos, durante os séculos XVIII e XIX (Ramsey, 1994). No Brasil, a situação também era preocupante do ponto de vista dos médicos, e apenas com a Junta de Higiene, a partir de meados do século XIX, houve uma fiscalização mais intensa. A academia e a faculdade tinham funções meramente consultivas, e a Câmara Municipal, responsável pela fiscalização e punição, tinha dezenas de outros assuntos com que se preocupar. A Junta, por sua vez, agregava as atividades de avaliação e autorização, além de ter um trânsito bem mais direto com os fiscais da Câmara, que deveriam acompanhar os seus empregados na fiscalização; com a polícia, que punia os transgressores de seu regulamento; e com o Ministério do Império, ao qual estava diretamente subordinada.
Compunham o quadro de membros da Junta de Higiene um presidente escolhido pelo governo, o provedor de saúde do porto, o inspetor do Instituto Vacínico, o cirurgião-mor do Exército e o da Armada. Entre suas funções figurava a de "polícia médica nas visitas das embarcações até agora encarregadas à Inspeção da Saúde do Porto, e nas que se devem fazer nas boticas, lojas de drogas, mercados, armazéns, e em geral em todos os lugares, estabelecimentos e casas donde possa provir dano à saúde pública".15
As atas da Junta mostram um trabalho intenso, contínuo e organizado (ao menos durante os cinco primeiros anos de sua existência). A fim de agilizá-lo, havia uma divisão de tarefas entre os membros, ficando cada um responsável pelas visitas sanitárias de determinada freguesia e por alguns pareceres, que seriam aprovados ou modificados por todos (códice 8-2-12, 6.8.1852).
Esses pareceres constituíam, em parte, respostas ao Ministério do Império, que pedia a opinião da Junta a respeito de medidas sanitárias e remédios utilizados no exterior para doenças como febre amarela e cólera, assim como às Comissões de Higiene Pública do Pará, Maranhão, Pernambuco e Rio Grande do Sul, que foram se formando a partir de 1852. Também se referiam às análises requisitadas por pessoas, com formação acadêmica ou não, que queriam vender remédios de segredo ou medicamentos novos que não estavam listados nas farmacopéias mais usadas.
Se não tivessem autorização da Junta, os medicamentos, inventados pelos próprios requerentes ou cujos direitos de venda haviam sido comprados ao inventor, não poderiam ser vendidos nem anunciados em jornais ou cartazes pela cidade. A desobediência seria punida com multa e fechamento da loja do infrator, caso tivesse, por três meses.
Os remédios deveriam ser apresentados à Junta com a receita e uma declaração das moléstias para que seriam próprios. Se aprovados, esta mandaria um relatório ao governo acerca de sua utilidade, indicando o tempo pelo qual se deveria conceder "um privilégio exclusivo de venda". Depois de expirado o prazo do privilégio, a receita seria "aberta e publicada", o que poderia acontecer antes do tempo estipulado, caso o remédio fosse aplicado para outras doenças que não estivessem previamente mencionadas.
E de fato os membros da Junta tinham muito trabalho quanto à avaliação dos remédios que lhes eram apresentados. Pelo menos nesse aspecto, o regulamento não havia ficado só no papel. O que levava um número considerável de pessoas a obedecer às determinações da junta? Havia, é claro, a ameaça de punição por multas e fechamento de lojas e prisões. Contudo, o que incentivava a procura pela autorização oficial era a possibilidade de conseguir um 'privilégio' e estar a meio passo de bons lucros como sonhava Bernardino em relação ao bálsamo e ao xarope de Arrault.
Em meados do Oitocentos, o consumo de tonificantes, purgantes, sudoríferos, eméticos ocupava espaço importante no crescimento do comércio da época. Portanto, mais do que respeito aos médicos e ao regulamento da Junta, os comerciantes estavam atrás da 'descoberta' de um produto que caísse no gosto da população como um Leroy ou uma salsaparrilha de Sands e tivesse a garantia do governo de que seriam os únicos a lucrar com isso.
Assim, a possibilidade de conseguir um monopólio levaria alguns interessados a procurar o aval da Junta, o que talvez tenha sido um dos motivos para que seus membros se submetessem à leitura repetitiva de diversos requerimentos para remédios secretos, associados pelas próprias autoridades ao charlatanismo. Além disso, muitos desses remédios não diferiam das composições mais usadas oficialmente. A diferença residia na forma como eram apresentados ao público, e isso ajudava a divulgar e acostumar a população aos remédios indicados pelos médicos.
Como os pareceres não eram redigidos segundo um formulário-padrão, deixavam transparecer o sentimento de seus membros, que variava sobretudo entre o tédio, a irritação e a ironia em relação às requisições.
Pareceres sobre salsaparrilhas, em geral, eram motivo de tédio. Os médicos acadêmicos reconheciam nesse vegetal propriedades que auxiliavam no tratamento de várias moléstias "sifilíticas, cutâneas, reumáticas e gotosas" (Chernoviz, 1908). Na verdade, na maior parte das vezes, ao falarem em salsaparrilha estavam se referindo a um composto no qual um dos principais ingredientes era a raiz de uma das espécies da planta. Daí o tedioso trabalho da Junta, que tinha de analisar diversas requisições de 'privilégios' para o que parecia ser um grande negócio na época vide os pedidos para a "essência concentrada de salsaparrilha", "salsaparrilha brasiliense", "de Sands", "de Bristol" (códice 8-2-13).
A Junta de Higiene precisava esclarecer que não bastava ignorar a fórmula de um remédio para considerá-lo 'de composição desconhecida'. Alguns médicos acadêmicos ansiavam por entrar mais diretamente no mercado de remédios e pretendiam incluir nessa denominação "a infinidade de fórmulas que podem resultar da combinação incalculável das inúmeras substâncias de que se compõe a matéria médica". Contudo, para valorizar o 'privilégio' que mantinha muitos interessados dentro das determinações de seu regimento, a Junta tinha de refrear essas ambições. Assim, só entendia como merecedor de algum 'privilégio' os remédios
... em cuja composição entrar alguma substância desconhecida e de uma ação eficaz sobre certas enfermidades, ou então os medicamentos que, embora compostos de substâncias conhecidas, apresentam alguma novidade em sua composição, e desta resultam efeitos imprevistos, enérgicos e seguros contra esta ou aquela moléstia (códice 8-2-12, 16.11.1852).
Por vezes evidenciava-se a irritação. Atentos à propaganda de terapias que apregoavam "numerosas e quase infalíveis virtudes", a Junta identificava a "especulação mercantil nos jornais desta capital" como a responsável pela situação (códice 8-2-12, 13.1.1852). Chegavam mesmo a atacar alguns remédios que lhes eram entregues para análise como "inventos da sórdida especulação, que o charlatanismo, a pretexto de sentimentos generosos, propõe e apregoa para fintar a credulidade pública" (códice 8-2-11, 2.11.1852).
Inteirados das discussões sobre saúde pública em países da Europa e nos Estados Unidos, observavam com cuidado a utilização de remédios e terapeutas importados. Em resposta à solicitação do ministro do Império, que pedia um pronunciamento sobre o folheto publicado nos Estados Unidos intitulado 'Negative electric fluid, prepared by N.W.Seat', a Junta se sentia mais à vontade para zombar de um produto ainda distante do mercado brasileiro.
Pode ser que o negative electric fluid do doutor Seat, sendo um remédio universal contra tudo, inutilize de todo a etiologia, a sintomatologia, a semiótica, a terapêutica e a matéria médica, salvando a todo o gênero humano; talvez que possamos fechar as escolas de medicina. (AN, maço IS 4 22, 26.1.1853).
Conclusão
A criação de um órgão formado por médicos e centralizando as determinações sobre saúde pública e o exercício médico marca um novo período em relação ao iniciado em 1828, quando esses temas estavam diluídos entre as responsabilidades da Câmara Municipal e, a partir de 1843, também do Ministério do Império. Todavia, apesar da vigilância de seus membros para garantir aos médicos acadêmicos o monopólio das atividades terapêuticas, a Junta de Higiene não conseguia abranger todo o universo de terapeutas. Muitos anúncios continuavam a ser publicados sob forma que sugeria a não-oficialização do remédio ou do terapeuta em questão. E muitos mais devem ter sido os que atuavam sem recorrer à propaganda nos jornais.
Mesmo na ilegalidade, continuaram a exercer os seus ofícios. Muitos usavam um novo recurso para divulgar seus serviços: a sessão de anúncios dos periódicos. Nesse espaço, as propagandas misturavam-se com as dos terapeutas autorizados e de outros mais, ligados à parte comercial, em expansão com a venda de remédios. Muitas vezes o primeiro contato com os clientes era feito pelos jornais. A princípio, essa situação pode parecer contraditória, pois as pessoas que não poderiam exercer atividades terapêuticas ou vender remédios anunciavam que faziam justamente isso. Contudo, o comportamento que não se ajustava às práticas relativas às doenças e às terapias escolhidas por boa parte da sociedade era o da elite médica. Ao tentar excluir os terapeutas não-acadêmicos do quadro oficial das artes de curar, os esculápios iam de encontro ao costume de se recorrer aos primeiros.
Junto com o respaldo popular, talvez a quantidade de anúncios provocasse a sensação, em cada terapeuta não-oficializado, de que não estava chamando muita atenção das autoridades para si. Ademais, era visível a todos a dificuldade em se cumprir a legislação que restringia o exercício das práticas terapêuticas. Ao analisar esse quadro, devemos considerar, além do caráter conflituoso da relação terapeutas acadêmicos/terapeutas não-acadêmicos, a aproximação que havia entre as terapias que cada grupo usava. Os conhecimentos de ambos circulavam, fosse pela prática de sangria, fosse pelo emprego de plantas medicinais nativas. Não só a população mas também muitos médicos tinham consciência de que a medicina acadêmica não oferecia um arsenal terapêutico cuja eficiência a destacasse das demais. As práticas não-acadêmicas de cura continuaram a ser procuradas pela população, a despeito dos esforços por parte dos médicos.
Apesar do reconhecimento de que as medicinas acadêmica e populares não constituíam dois pólos isolados das artes de curar, a elite médica se empenhava em restringir as atividades dos terapeutas não-acadêmicos. Porém, é interessante constatar que, enquanto a legislação caminhava para o monopólio dos médicos oficiais, os mecanismos para efetivar esse monopólio pareciam caminhar para o lado oposto. Essas questões eram diluídas entre as inúmeras funções da Câmara Municipal, que tendia a tolerar as práticas não autorizadas. A situação incomodava tanto que houve quem lamentasse, em 1849, a extinção da Fisicatura-mor:
... o charlatanismo tem quase sempre arrostado diante de si as autoridades. ... a medicina, desde a abolição da Fisicatura-mor, tribunal que, apesar de seus defeitos (que se podiam remediar), muitos benefícios prestava à medicina, tem se conservado acéfala, de sorte que qualquer não só é médico de si mesmo como do público (Leite,1849).
Apenas na segunda metade do Oitocentos, com a criação da Junta de Higiene, houve uma fiscalização mais intensa e um diálogo mais direto com as autoridades competentes pela execução e pelo julgamento dos processos. Mesmo assim, ainda estavam longe de efetivar o monopólio.
Exatamente nesse período iniciou-se a grande epidemia de febre amarela, que mobilizou os moradores da cidade. Os médicos foram convocados para dirigir os esforços em conter a doença, por intermédio da Comissão Central de Saúde Pública, estabelecida em fevereiro de 1850 e formada por membros da Academia Imperial de Medicina e professores da Faculdade de Medicina.
Poucos meses depois, um decreto que destinava 200 contos ao Ministério do Império, para melhorar o estado sanitário da cidade do Rio de Janeiro e "de outras povoações do Império", determinava a criação da Junta de Higiene Pública.16 Para cumprir essas tarefas, a Junta contaria com os seus delegados, as autoridades judiciárias e policiais e os fiscais da Câmara Municipal. Contudo, a forma como deveria funcionar só foi detalhada pelo regulamento de setembro de 1851, a partir do qual passou a ser denominada Junta Central de Higiene Pública.17
Desse modo, algumas funções, antes da alçada da Inspeção de Saúde do Porto, e muitas outras, incluídas entre as responsabilidades das Câmaras Municipais, foram centralizadas na Junta, que coordenava, na capital do Império, as comissões provinciais. Além de constituir uma resposta às necessidades do momento, a mudança estava em acordo com o processo de centralização iniciado na década de 1840.
Tal sucessão de acontecimentos, incitada pela epidemia, parecia confluir para a consolidação do poder médico. No entanto, desviando mais uma vez a atenção do discurso médico para a fala de outros agentes sociais, pode-se entender esse processo de transformação do exercício terapêutico de uma forma mais ampla.
Um pouco antes da instalação da Junta de Higiene discutia-se, no Senado, uma resolução da Câmara dos Deputados que autorizava o governo a gastar até cem contos de réis nas "medidas necessárias e convenientes a obstar, em todo o Império, a propagação da epidemia reinante".18 O debate suscitou algumas observações interessantes, porém a intervenção de Cunha Vasconcellos merece ser destacada. Quase vinte anos depois da lei de 1832, "toda escrita por dedos de médico" e que tinha o objetivo de "estabelecer no Império um quinto poder", o senador deixava evidente a sua insatisfação, pedindo:
... que se deixe ao povo a liberdade de escolher quem o trate em suas enfermidades, ou seja filho das escolas do Brasil ou de nenhuma escola. Quero ter a liberdade em minhas enfermidades de chamar a pessoas que julgar habilitadas para curar-me.
Seria necessário demonstrar que quem não estudo nas nossas escolas não pode curar, isto é, que mata sempre. Pode-se dizer que alguns desses que não estudaram nas nossas escolas têm matado muitos doentes; mas haverá quem diga também que os filhos dessas escolas têm feito o mesmo. Entendo pois, que se o governo for um tanto frouxo em coibir a liberdade do cidadão a este respeito, fará um serviço à saúde.19
No momento em que Vasconcellos expunha a sua opinião, a Junta de Higiene ainda não estava estabelecida, embora os médicos já estivessem envolvidos mais diretamente na orientação das medidas tomadas pelo poder público contra a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, por meio da Comissão Central de Saúde Pública. A mesma epidemia, porém, estimulou o discurso do senador e mostrou que ao menos parte da elite, assim como o povo, não estava de acordo com a exclusividade que os médicos pretendiam garantir para si; e que, portanto, enfrentariam muitas dificuldades para pôr em prática as suas determinações.
FONTES MANUSCRITAS
Arquivo Nacional (AN) Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) Maço IS 4 22, Ministério do Império Junta Central de Higiene Pública, ofícios e documentos diversos.
Coleções de leis do Brasil (CLB) - Códices
8-2-11, Higiene Pública: Atas.
8-2-12, Junta de Higiene: Atas.
8-2-13, Junta de Higiene: Atas.
16-4-30, Ofícios ao executivo e legislativo (1832-1837).
40-2-49, Boticas e Casas Comestíveis, 1841.
46-2-38, Médicos, cirurgiões, sangradores, saúde do porto, Fisicatura-mor e outros (1826-37).
46-2-39, Médicos, cirurgiões, farmacêuticos, sangradores, dentistas registro de diplomas licenças para venda de medicamentos (1830 a 1839).
46-2-40, Médicos, cirurgiões, sangradores, dentistas e parteiras residentes ou com consultórios nas freguesias da Candelária, Santa Rita, Sacramento, São José, Lagoa, Irajá, Jacarepaguá, Guaratiba, Santa Cruz e Ilha de Paquetá (1841).
46-2-41, Médicos, cirurgiões, boticários e sangradores no 1o distrito da freguesia de Santa Anna (1841).
46-2-42, Médicos, farmacêuticos, dentistas, sangradores, cirurgião, parteira.
46-2-43, Médicos, cirurgiões, sangradores, boticários e parteiras que registraram seus diplomas na secretaria da Câmara Municipal (relação de 1842).
47-1-48, Parteiras, requerimentos pedindo licença para o exercício da profissão de parteira, 1831.
49-3-8, Registros de posturas feitas pela Câmara Municipal.
50-4-26 Vício de embriaguez, 1830.
FONTES IMPRESSAS
Chernoviz, Pedro L. N. 1908 Formulário e guia médico. Paris, Livraria de R. Roger e F. Chernoviz. 18a ed.
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Archivo Médico Brasileiro, (AMB)
Diário de Saúde
Jornal do Commercio (JC)
NOTAS
Recebido para publicação em setembro de 2003
Aprovado para publicação em março de 2004
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jan 2007 -
Data do Fascículo
2004
Histórico
-
Aceito
Mar 2004 -
Recebido
Set 2003