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Novas instruções aos autores e o futuro do artigo científico em ciências humanas

Há alguns anos escutei um sábio conselho de um destacado funcionário do SciELO: é saudável e necessário atualizar regularmente as instruções aos autores de revistas. Durante os últimos meses, nós da equipe editorial de História, Ciências, Saúde – Manguinhos, junto com os editores adjuntos e de seção, dedicamo-nos a seguir esse conselho e elaboramos novas instruções, que anunciamos neste número. Estão agora mais claras e modernas, e significam um esforço na direção do movimento de ciência aberta, que é mais amplo que o de acesso aberto a documentos, já defendido por grande parte das revistas brasileiras há muitos anos (Santos, Guanaes, 2018).

A redação de um artigo científico costuma ser considerada o momento final e exitoso de uma boa pesquisa, e muitas vezes um trabalho é submetido a uma revista sem estudo prévio das normas específicas da publicação. Isso é um erro. Há uma penúltima fase que deve ser seguida com rigor: a preparação do texto para publicação (a última é a resposta cuidadosa aos comentários dos avaliadores que quase nunca aprovam a primeira versão de um trabalho e o envio da versão definitiva). Nessa penúltima fase não se trata apenas de corrigir erros gramaticais e melhorar o estilo, completar tabelas estatísticas e referências bibliográficas ou apresentar imagens na qualidade solicitada. O objetivo é elaborar um texto que, em uma extensão limitada, seja claro, organizado e profundo na proposição e interpretação do problema (geralmente, um ou dois por artigo), que explique a metodologia utilizada, que não fique se repetindo em torno das evidências encontradas e que estabeleça um diálogo com outros pesquisadores (Cueto, 2011CUETO, Marcos. Carta do editor. História Ciência Saúde – Manguinhos, v.18, n.4, 2011, p.979-984. Disponible en: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702011000400001&lng=en&nrm=iso>. Acceso en: 25 ene. 2021.
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). Atender a esses requisitos faz com que o texto tenha as virtudes de praxe dos bons artigos de história, como apresentar os achados de modo que transcenda a descrição; tecer conexões entre contexto, instituições e personagens; e equilibrar processos de mudança e continuidade.

Do parágrafo anterior, gostaria de repetir a frase “em uma extensão limitada”, porque um erro comum em algumas submissões é pensar que um artigo pode simplesmente ser um capítulo extraído de uma tese recém-defendida ou de um livro que está sendo escrito. Não é. Trata-se de algo diferente. Não apenas porque um capítulo tem uma extensão maior e mais referências que um artigo, mas também porque um artigo é, em certa medida, “autossuficiente”. Ou seja, deve estruturar em um único conjunto todos os elementos normalmente distribuídos em uma tese ou livro. Nestes, os capítulos formam uma narrativa sequencialmente integrada, apresentam várias referências e citações e contribuem para a construção de diversos argumentos ou para o teste de uma ou mais hipóteses. E, geralmente, não têm um limite máximo de palavras. Para um entendimento completo, os capítulos não devem ser lidos de forma isolada, pois isso fragmentaria a compreensão do conjunto da obra. Um artigo, por sua vez, tem formato conciso e coerência própria, demonstra economia e clareza na exposição dos feitos, utiliza apenas as citações diretas absolutamente necessárias e agrega um argumento à literatura especializada. Extrair sem modificações substanciais um capítulo de uma obra maior para enviá-la a uma revista como artigo costuma ser um ato de violência que, não raro, acaba por produzir um texto mutilado. Essa afirmação não significa que seções de um capítulo de uma tese não possam ser a base de um artigo excelente depois de reformulação cuidadosa. Em relação às anteriores, essas novas instruções reduzem um pouco o número de palavras em várias seções, em consonância com diversas revistas internacionais, devido ao desejo de receber trabalhos com argumentação sucinta e coerente. Convidamos os autores a revisar atentamente as normas que aqui apresentamos (www.scielo.br/revistas/hcsm/pinstruc.htm) antes de enviar seus valiosos trabalhos.

As novas instruções também são importantes porque adaptam a uma revista de ciências humanas os princípios de transparência e diálogo da ciência aberta. São três as principais mudanças. Em primeiro lugar, os trabalhos que recebemos podem ter aparecido anteriormente em algum servidor de preprints de prestígio acadêmico como o do SciELO (https://preprints.scielo.org/index.php/scielo). Estes buscam divulgar, de forma imediata, uma versão preliminar da pesquisa – diferentemente das revistas, onde o processo de avaliação, e eventual aprovação e correção, leva no mínimo vários meses (Spinak, 22 nov. 2016). Outra característica desses servidores é a possibilidade de publicar comentários abertos de colegas (diferentemente das revistas, onde a avaliação é duplo-cega, ou seja, nem o autor nem o avaliador sabem a identidade do outro). Segundo os princípios da Ciência Aberta, é fundamental facilitar a rápida divulgação dos resultados de uma investigação e evitar possíveis preconceitos e vieses que podem surgir em uma avaliação confidencial. Esclarecemos, porém, que não é necessário ter enviado um artigo a um servidor de preprints para submetê-lo a História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Avisamos também que todos os trabalhos desses servidores submetidos a nossa revista serão enviados a avaliadores (embora nesse caso, evidentemente, a identidade do autor terá que ser revelada). Uma segunda mudança relacionada à anterior é que perguntaremos aos avaliadores e autores se, de maneira voluntária, querem revelar suas identidades no processo de avaliação e/ou posteriormente, quando as avaliações forem publicadas com suas assinaturas. Dessa maneira, buscamos promover um diálogo responsável e críticas construtivas. Gostaria de enfatizar que isso não é obrigatório. A aprovação ou reprovação de um trabalho não depende da disposição de um autor em revelar a sua identidade na avaliação. Também respeitaremos os avaliadores que não quiserem tornar sua identidade pública. Uma terceira mudança importante é a sugestão de que diferentes elementos do processo de pesquisa sejam enviados a um repositório institucional que receba dados e informações recolhidas durante a investigação – como aqueles gerenciados pelas bibliotecas das universidades.

Essas adaptações da ciência aberta às ciências humanas (a história no Brasil é considerada parte das ciências humanas) indicam que há diferenças significativas entre os nossos trabalhos e os publicados nas ciências exatas ou da vida. Enquanto é importante para os cientistas dessas áreas garantir acesso imediato a suas ideias, evidências e experimentos – a fim de estabelecer prioridades para descobertas e permitir que pesquisadores interessados possam verificar as conclusões com fidedignidade –, no nosso caso, a prioridade e a replicabilidade do trabalho científico não são tão importantes. Em vez disso, é necessário preservar os materiais de todo o processo de pesquisa que podem ser úteis para outros pesquisadores e que muitas vezes acabam jogados, ou esquecidos, em uma gaveta. Que materiais são esses? No nosso caso podem ser: uma descrição das coleções de arquivo utilizadas (a informação resumida em um parágrafo ou uma referência no artigo), tabelas estatísticas e imagens que não puderam ser utilizadas na versão final do trabalho (porque normalmente há limite do que se pode publicar), transcrições completas de fontes manuscritas ou impressas e de entrevistas orais das quais se citaram excertos e, ainda, o projeto original de pesquisa e relatórios indicadores de como se foi ajustando o trabalho até chegar à publicação final. Um olhar retrospectivo por parte dos autores de todo o seu processo de pesquisa é tão importante para enriquecer o conhecimento acumulado das ciências humanas como a publicação final.

Sabemos que adaptar os princípios da ciência aberta às ciências humanas e à história é um processo que não pode ser imposto de forma imediata e sobre o qual está longe de haver consenso, mas esperamos avançar nessa direção. Temos a expectativa de um processo de transição de duração indeterminada, no qual talvez inicialmente poucos artigos venham de servidores de preprints, apenas uma minoria de autores e avaliadores concordem em revelar sua identidade, poucos autores enviem materiais associados ao artigo a um repositório institucional. Novamente, insisto, isso deve ser alcançado de maneira voluntária. Acreditamos que nesse processo a revista será um instrumento de discussão e convencimento das vantagens da ciência aberta, e que esta pode melhorar nossas pesquisas.

Outro conteúdo importante deste número é a apresentação de uma versão mais elaborada de textos divulgados em nossas redes sociais sobre o coronavírus na novíssima seção “Testemunhos covid-19”. Os textos, escritos praticamente apenas por historiadores da saúde, passaram por uma ou mais avaliações, recebendo críticas e comentários que permitiram a elaboração de uma versão mais completa, atualizada e com referências.

Não podemos terminar sem os nossos cumprimentos à doutora Nísia Trindade Lima, professora da Casa Oswaldo Cruz, e sem manifestar nossa satisfação por ela ter sido, merecidamente, nomeada para cumprir um segundo mandato como presidente da Fiocruz. Feito esse que nos enche de esperança em tempos de incerteza e adversidade para a ciência e a sociedade brasileiras.

REFERENCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021
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