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Mestiçagem, degenerescência e crime

Race crossing, degenaration, and crime

FONTES

Mestiçagem, degenerescência e crime1 1 Tradução de Mariza Corrêa do artigo "Métissage, dégénerescence et crime", publicado nos Archives d'Anthropologie Criminelle, v.14, n.83, 1899. O exemplar usado para esta tradução, cópia do existente na Faculdade de Medicina da Bahia, trazia uma dedicatória em francês, manuscrita, para Alfredo Britto, na qual só é legível a palavra amitié, assinada por Nina Rodrigues e com a data de 10 de janeiro de 1900. Abaixo, a informação sobre a editora: Lyon, A. Storck & Cie, Imprimeurs-Éditeurs; e a data.

Race crossing, degenaration, and crime

Dr. Nina Rodrigues

Professor de Medicina Legal da Faculdade da Bahia2 2 Nota de tradução: conforme o frontispício do artigo.

I

Mestiçagem. A mestiçagem humana é um problema biológico dos mais apaixonantes intelectualmente e que tem o dom especial de suscitar sempre as discussões mais ardentes.

A questão da unidade ou da multiplicidade da espécie humana, do monogenismo e do poligenismo, que parece pertencer ao domínio das ciências naturais e apresentar um interesse pura e exclusivamente antropológico, provoca as mais ardentes disputas. No calor do debate, reconhecemos freqüentemente que nesta questão está contida outra, transcendente, filosófica, e até teológica: a da origem natural ou sobrenatural do homem, do transformismo ou da criação divina.

Ao aceitar como critério fundamental da espécie a fecundidade indefinida dos cruzamentos, era natural que os poligenistas apoiassem o hibridismo dos cruzamentos humanos, contra os monogenistas, que se esforçam por demonstrar a viabilidade perfeita de todos os mestiços.

Assim, o critério de viabilidade e de capacidade dos mestiços foi posto no terreno das ciências naturais. Tanto como para os animais, esse critério deveria ser a perfeita eugenesia dos mestiços humanos, que uns apoiavam e outros negavam.

Colocados nesse campo, foi fácil aos monogenistas declarar os que os contraditavam como vencidos, demonstrando, com numerosos fatos em seu apoio, a eugenesia exuberante de produtos do cruzamento, ainda que provenientes das raças consideradas pelos poligenistas espécies distintas, tais como as raças branca, negra e vermelha.

O debate entre o monogenismo e o poligenismo estava, entretanto, destinado a perder afinal quase todo seu interesse filosófico, já que, admitindo com os transformistas que a origem do homem se deu entre os primatas, e não entre os símios ou pró-símios, é admissível que ela se localize tanto em um só tronco quanto em troncos diversos, de tal modo que atualmente há tanto transformistas que aceitam a hipótese polifilética (Haeckel, Popinard etc.) quanto os que aceitam a hipótese monofilética (Keane etc.).

A psicologia mórbida entrou então em cena e restituiu à questão o seu interesse original. Não se trata mais de saber se os mestiços são, sim ou não, eugenésicos, mas se são um produto normal, socialmente viável, ou, se, ao contrário, constituem raças abastardadas, inferiores, uma descendência incapaz e degenerada.

A questão apresentava, evidentemente, duas faces distintas, uma social, a outra médica, indevidamente destinadas a serem vistas separadamente durante muito tempo. A psicologia coletiva, em suas especulações sobre o futuro e o destino dos povos, ocupou-se dela em primeiro lugar. Gobineau, em 1855, já a havia desenvolvido longamente, e, em 1875, Spencer a formulou em termos que há muito contêm a solução definitiva. Outros trabalhos se seguiram aos desses dois autores, mas o quadro que estamos traçando não nos permite fazer a história completa e detalhada da questão. Limitamo-nos a lembrar, entre os trabalhos mais recentes, os de Keane3 3 Keane. Ethnology, Cambridge, 1896. e de Gustave Le Bon.4 4 Gustave Le Bon, Lois psychologiques de l'évolution des peuples, Paris, 1895.

O estudo médico da influência degenerativa da mestiçagem é bem mais recente. Morel, criador da noção clínica de degenerescência, a desconhecia. Influenciado pela controvérsia antropológica, muito viva na época em que escrevia, e partidário pessoal e convencido da unidade da espécie humana, não podia conciliar a crença na perfeita viabilidade social do mestiço com o reconhecimento de uma influência degenerativa nos cruzamentos humanos.

Foi a psicologia criminal, creio, que acentuou ou afirmou a possibilidade dessa conseqüência do cruzamento. No segundo Congresso de Antropologia Criminal, em Paris, em 1889, Mme. Clémence Royer invocou pela primeira vez a influência desta causa, surpresa que o professor Lombroso tivesse até então omitido a influência degenerativa da mestiçagem na etiologia do crime.

Essa autora, no entanto, apenas expôs uma doutrina que ainda precisa ser bem documentada e apoiada por provas, já que - e essa é uma observação geral sobre a mestiçagem -, se as opiniões a favor ou contra seu valor são abundantes, as provas imediatas de sua ação, positiva ou negativa, estão comumente ausentes. E é notável que, ainda que os criminalistas antropólogos tenham admitido essa opinião, a documentação sobre essa questão continue a estar ausente nos trabalhos posteriores.

Na obra profunda e documentada de Ferri5 5 Enrico Ferri, L'omicidio nell'antropologia criminale, Torino, 1895. sobre o homicídio, o autor se limita a tratar da tendência ao homicídio em países com população em parte branca e em parte de cor como uma conseqüência da impulsividade das raças inferiores, que fornecem o maior contingente de criminosos, mas não toca no problema da mestiçagem. A razão principal para essa ausência de documentação é a dificuldade de separar de maneira segura a influência do cruzamento da de muitas outras causas, de ordem biológica e social, que podem ter simultaneamente exercido influência na degenerescência ou na decadência precoce desses povos mestiços e que são dadas ou invocadas como provas da ação degenerativa da mestiçagem. É curioso observar que esses povos mestiços são invocados tanto pelos partidários quanto pelos adversários da mestiçagem como uma prova completa, absoluta, da legitimidade de suas conclusões contraditórias.

Esta é, precisamente, a posição que a mestiçagem da América Latina tem ocupado na discussão.

As grandes proporções que o cruzamento de raças que deviam ser consideradas espécies distintas tem tomado nesses países deveriam forçosamente atrair a atenção dos debatedores, e o Brasil, assim como as repúblicas sul-americanas, tem-se tornado o exemplo obrigatório, lembrado por todos nesse debate.

No trabalho que publicou em 1855, Gobineau6 6 Gobineau, Essai sur l'inegalité des races humaines, Paris, 1855. já fazia um quadro bem negro da decadência dos mestiços sul-americanos. Mas em 1861, Quatrefages7 7 Quatrefages, L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861. invocava, precisamente contra ele, o exemplo da América do Sul a favor do sucesso completo da mestiçagem e punha em relevo a intrepidez e a energia da empresa dos paulistas8 8 Habitantes do estado ou província de São Paulo. brasileiros. Mais tarde, em 1863, é Agassiz9 9 Agassiz, Voyage au Brésil, trad., 1869. que por sua vez vê a mestiçagem como a causa fundamental da deca-dência miserável dos mestiços do vale amazônico. Sem ir mais longe, recentemente vemos Gustave Le Bon10 10 Gustave Le Bon, loc. cit. considerar as repúblicas sul-americanas a prova incontestável da influência social desastrosa dos mestiços, ao passo que Keane11 11 Keane, loc. cit. os apresenta como a prova não menos conclusiva das vantagens da mestiçagem.

II

Em tais condições, a utilidade de procurar resolver o problema através da observação direta e imediata é indiscutível.

A observação, tal como feita até hoje, voltando-se para todo um povo ou para casos muito limitados e muito específicos, não pode trazer senão provas muito discutíveis e não pode iluminar a questão com as luzes soberanas da verdade. Num país inteiro e sem o recurso a estatísticas no caso dos povos que se prestam a essa discussão, é quase impossível distinguir a influência da mestiçagem entre as mil outras causas complexas, suscetíveis de produzir sua decadência. Em alguns casos muito especiais é sempre justo suspeitar de uma exceção ou de uma influência degenerativa local, responsável pela ação imputável ao cruzamento.

Para evitar esses escolhos, procurei, em minhas observações, preencher duas condições fundamentais: estudar pequenas localidades, nas quais é mais fácil distinguir as diferentes causas degenerativas, dado que a população local não se distingue em nada do tipo médio geral da província ou estado; e completar o estudo da capacidade social da população através do exame de sua capacidade biológica escalonada sobre sua história médica.

Infelizmente, a falta absoluta de estatísticas regulares cria os maiores embaraços para uma apreciação rigorosa das condições de vitalidade de nossa população. Somos, assim, obrigados a generalizar os dados de nossa observação pessoal, o que nos obriga a atribuir um valor especial ao estudo clínico das manifestações da degeneração física e psíquica.

As observações clínicas que registramos há vários anos nos levaram a fazer um julgamento muito favorável ao vigor físico e à saúde mental de nossa população mestiça. Mas até agora este julgamento era fruto de observações esparsas, feitas a respeito de consulentes que podiam vir de pontos muito diferentes e criar séries ou seleções mórbidas de ocasião, sobre as quais não se poderia julgar rigorosamente as condições de uma população.

Eis por que resolvemos, apresentando-se a ocasião, submeter a uma avaliação mais específica uma circunscrição administrativa do estado da Bahia. A que nos foi dado estudar mais de perto foi a comarca (circunscrição, distrito, ou cantão) de Serrinha.

Esta circunscrição fica cerca de 150 quilômetros do litoral, situada às margens de uma estrada de ferro que corta o centro do estado. Pertence à zona árida dos gneiss, dos sertões da Bahia, estudada por Agassiz;12 12 Frederick Hart, Scientific results of a journey in Brazil by Louis Agassiz and his travelling companions: Geology and physical geology of Brazil, London, 1870. a 320 metros acima do nível do mar, tem um clima excelente, com duas estações anuais, a estação quente e chuvosa e a estação seca e fresca. O terreno é plano, ligeiramente acidentado. Falta água nesta parte do país, que só possui, por assim dizer, águas pluviais, recolhidas em grandes depósitos ou reservatórios artificiais.

Sua salubridade é proverbial e reconhecida unanimemente. É reconhecida no estado como sanatório de primeira ordem para a tuberculose pulmonar. Até hoje foi atingida apenas por pequenas epidemias de varíola e pela febre amarela, importada da capital do estado, que a atacou com força em 1885-1886. Não há endemias sérias; só a malária reina aí, aliás, como em todo o estado, mas de forma relativamente benigna. Encontramos também casos freqüentes de sífilis, bem como de ancilostomose, na vizinhança dos pântanos. A população é composta de mestiços, tais como os encontrados nas regiões centrais da Bahia. O tipo pardo, que reúne em proporções muito variáveis as três raças, branca, negra e amarela, predomina. Em seguida vêm, por ordem numérica, os mulatos mais ou menos escuros, em nuanças muito variadas. Os negros são muito numerosos. Os indivíduos brancos, de boa cor muito clara e de cor, evidentemente mestiços de volta à raça branca, são uma pequena minoria.

Os curibocas (mestiços de negros e índios) são mais numerosos do que na capital. Descendentes genuínos de índios são muito raros.

De acordo com os cálculos mais confiáveis, a população dessa circunscrição é de cerca de dez a 12 mil habitantes, dois mil na cidade de Serrinha, que é o local central. Os habitantes dessa cidade têm fama de trabalhadores, pacíficos, e uma grande reputação de sobriedade. O consumo de cachaça é decerto alto, mas relativamente baixo se o comparamos ao do Brasil em geral, e sem dúvida muito inferior ao das capitais.

A população rural, que se dedica ao cultivo de cereais, de mandioca, de feijão e de tabaco, bem como à criação de gado, sobretudo do gado vermelho, é pobre, mas não miserável: não se vêem mendigos. Cada um busca o necessário sem pesar sobre seus conterrâneos, o que certamente não é a regra geral na população mestiça do país.

Se existe uma localidade na qual os mestiços brasileiros constituem uma população capaz de oferecer esperanças de futuro, é certamente Serrinha. Não se deveria acreditar, no entanto, a partir da reputação da qual goza, que ela é uma exceção à regra.

Em primeiro lugar, se ela não padece de uma indolência invencível, como muitas outras, não obstante está longe de ser realmente trabalhadora. Os procedimentos de cultivo são de fato primitivos; cultiva-se apenas os produtos mais comuns: cereais, tabaco, mandioca. É disso que se ocupam os trabalhadores durante uma pequena parte do ano, o que só exige deles um trabalho intermitente, leve, bom para mulheres e crianças mais do que para homens. As pessoas se dedicam à criação de gado, mas utilizam o mais primitivo dos sistemas; os animais, deixados soltos a pastar nos campos naturais ou não cultivados, quase voltaram ao estado selvagem e seus donos não tomam outro cuidado que o de saber onde eles foram parar. Nada mais apropriado para manter o gosto da vida nômade nesse povo semibárbaro. Em segundo lugar, sua previdência não vai muito longe; ele fica satisfeito assim que encontra o estritamente necessário à vida cotidiana; o desejo de riquezas, de bem estar, até do simplesmente confortável - não o aguilhoa nem o estimula ao trabalho. Entre os raros indivíduos que fazem exceção a essa regra, o espírito empreendedor é pouco progressista, sempre estreito e quase nulo.

III

Degenerescência. Propus-me a verificar se esta população, que sob todos os aspectos não se separa nem se distingue do tipo médio da população mestiça do estado, tinha o vigor, a atividade que podemos esperar de uma população nova, saudável e fortificada pelo cruzamento.

A tendência à degenerescência é, ao contrário, tão acentuada aqui quanto poderia ser num povo decadente e esgotado. A propensão às doenças mentais, às afecções graves do sistema nervoso, à degenerescência física e psíquica é das mais acentuadas.

Como em todas as pequenas localidades nas quais a população se desenvolve gradual-mente em torno de um pequeno núcleo de habitantes, os laços de parentesco, mais ou menos estreitos, fazem deles, em Serrinha, especialmente na cidade, uma única grande família.

Na tábua genealógica que vou esboçar, tentei representar a história médica dessa localidade tal como a pude reconstituir com os dados de minhas observações diretas e com as informações que recolhi cuidadosamente sobre pessoas ainda vivas. Ela compreende perto de seis gerações e demonstra, com uma eloqüência indiscutível, os acúmulos notáveis de tara hereditária degenerativa. Obrigado a omitir todos os esclarecimentos que pudessem tornar reconhecíveis as pessoas, observarei apenas que nessa tábua só se encontram os indivíduos que foram atingidos por formas degenerativas tão evidentes que elas são, reconhecíveis até pelo vulgo. Não incluo os casos nos quais a degenerescência não se revestiu de formas mórbidas suscetíveis de serem reconhecidas pelos leigos e de serem conservadas pela tradição. Aceitei, igualmente, como pertencendo ao estado normal todos os indivíduos que, ainda não se tendo submetido a um exame médico, passam atualmente por sãos e normais, assim como as crianças nas quais a insuficiência mental ainda não se tenha mostrado.

"Alguns enfermos são evidentemente enfermos mentais que não perderam certas faculdades elementares e brilhantes, como a memória, a associação e a imaginação automáticas, mas que são quase desprovidos de vontade, de síntese mental. Seu cérebro é suficiente na infância, na vida simples, regular e fácil; mas na juventude, quando começam a se colocar os problemas da vida material e moral, as preocupações com o futuro, com o amor, a insuficiência do órgão cerebral se revela".13 13 Pierre Janet, Traitement psychologique de l'hystérie. (Traité de thérapeutique appliqué d'Albert Robin), Paris, 1898.

Os casos que pude observar durante o curto espaço de alguns meses confirmaram peremptoriamente as indicações desse quadro.

Ofereceremos alguns extratos das observações mais curiosas, das que põem mais em evidência a influência étnica.

A neurastenia é extremamente freqüente entre os habitantes de Serrinha e ela ataca indistintamente as pessoas que exercem qualquer tipo de profissão. Sobre os vinte e poucos neurastênicos representados nos casos mais importantes e dos quais conservei notas, 12 são do sexo masculino e pelo menos sete viviam a rude vida dos campos. Entre as mulheres, cinco se ocupavam de trabalhos domésticos; as outras trabalhavam nos campos. Todos os casos sérios de neurastenia eram da forma hereditária e a neurastenia evidentemente emprestava à degenerescência uma forte parte da sintomatologia. Abaixo, o resumo de algumas notas, a título de documentação demonstrativa.

Observação I. Linna, mestiça, mulata clara; 34 anos, constituição robusta, casada, dois filhos. Atacada por um acesso há alguns anos, seu estado melhorou, mas atualmente sofre de novo, e o mal é mais intenso. Insônia rebelde, confusão mental; ela teme um ataque de apoplexia; a idéia de sair sozinha a aterroriza, verdadeira fobia do isolamento: carapaça neurastênica, amiostenia invencível; forte constipação. Dez anos de doença.

Observação II. Manoel, negro, 38 anos, alto; desengonçado; diversos estigmas físicos de degenerescência; plagiocéfalo; fenda da pálpebra incompletamente aberta. Neurastenia sexual rebelde, hipocondria há mais de seis anos.

Observação III. J..., 38 anos, mestiça branca, bem situada. Ocupa-se de trabalhos domésticos. Contaminada pela tara hereditária. Dispnéia, tremores, carapaça neurastênica, insônia, abulia, fobias e obsessões diversas.

Observação IV. Maria, mulata quase negra, 36 anos, cinco filhos, trabalha no campo. Repugnância por qualquer trabalho, confusão mental, ansiedade, inquietações, desejo de correr pelos campos. Insônia rebelde de tempos em tempos.

Observação V. N.O., 32 anos, mestiça quase branca, bem situada, mas se ocupa com trabalhos domésticos fatigantes; cinco filhos. Antes de casar teve um acesso de depressão melancólica acompanhado de fenômenos neurastênicos que permanecem há um ano. Volta das tendências melancólicas depois de seu último parto; tristeza, vontade de chorar, repugnância pelo trabalho, insônia, sensação de cabeça estalando, impossibilidade de fixar a atenção, dores cefálicas. Tem um pai degenerado, alcoólatra. Há tudo para crer numa forte tara hereditária.

A histeria, tão freqüente na população mestiça do estado, é relativamente rara em Serrinha. Encontramos aí perturbações e crises histeriformes freqüentes entre os neurastênicos, mas quase não há a histeria convulsiva comum, doença das mais freqüentes na Bahia entre os mestiços e os brancos. Mencionarei apenas alguns casos de histeria major.

Observação VI. Arm..., 28 anos, mestiça de índio apresentando sinais bem marcantes da raça vermelha, verdadeiro tipo indígena. Mulher estéril, casada duas vezes. Bem situada, quase sem ocupação. Desde sua mais tenra infância teve acidentes histéricos graves, e mais tarde numerosos acessos de grande histeria que por vezes lhe causam contraturas rebeldes, às vezes estados delirantes prolongados; mesmo em estado de vigília, ela é constantemente atormentada por ilusões sensoriais e alucinações visuais e auditivas; manifestações dermopáticas notáveis. Forte tara hereditária.

Observação VII. A..., mestiça parda, quase branca; bem situada, sem ocupação. Casada duas vezes. Fortemente histérica, foi tratada várias vezes na nossa cidade. Tara hereditária.

Observação VIII. J..., 40 anos, mulata clara, considerada cega há muito tempo. Simples blefarospasmo muscular bilateral, não doloroso. Abertas as pálpebras com a ajuda dos dedos, a doente pode ver perfeitamente. Estigmas histéricos, anestesia, ovário etc. Mãe de uma jovem que não pude ver e que tem acessos de histeria convulsiva, comum, ou pequena histeria.

A epilepsia é também muito freqüente; tenho anotações sobre seis casos que observei em pardos, mulatos claros e escuros, negros e brancos.

A degenerescência física e mental é excessivamente freqüente. Desde verdadeiras monstruosidades até simples estigmas de degenerescência, tais como lábio leporino, palato fendido, surdo-mudez, associam-se a numerosas manifestações de degenerescência inferior.

As anomalias e as monstruosidades sobre as quais conservei anotações compreendem tipos diferentes, alguns muito curiosos por sua associação a manifestações muito complexas de degenerescência. Diferentes casos de não-viabilidade de recém-nascidos devida a essa causa chegaram ao meu conhecimento e pude recolher alguns esclarecimentos a esse respeito.

Observação IX. Recentemente atendi uma senhora de Serrinha, atingida por um violento acesso de melancolia que sofreu após ter dado à luz um monstro com hipertrofia cartilaginosa do tecido ósseo, biabdominal, com encurtamento dos membros superiores encaixados no tórax. Natimorto.

Os casos de anomalia que também pude observar são importantes pelo número e por seu significado clínico. Na pequena cidade de Serrinha, vi oito crianças cujas anomalias apresentam os graus mais avançados de degenerescência física, resultados ampliados e gritantes de degenerescência familiar.

Observação X. Menino, anão infantil, com 14 anos. Altura de um metro; fisionomia imberbe de criança pequena sulcada pelas rugas de uma velhice precoce. Muito nervoso, medroso.

Observação XI. Irmã do anterior, mais velha que ele; mesma altura. Extremamente feia. Imbecil, incapaz de aprender a ler; caráter infantil.

Observação XII. Mulatinha escura, irmã ilegítima dos precedentes; também anã infantil.

As duas crianças de que tratam as observações XIII e XIV pertencem à família objeto do Quadro 3 e não têm qualquer relação de parentesco com aquela representada na tábua genealógica que apresentaremos [ao final].

Em uma família cuja história será contada quando falarmos da criminalidade, encontrei quatro casos muito curiosos.

Dois casos de idiotia, quatro de imbecilidade e dois de surdo-mudez me foram apresentados.

Os casos de loucura são numerosos. Durante minha estada em Serrinha, contavam-se 12 perfeitamente declarados. Para fazer a distribuição etnográfica, daremos sobre cada um deles notas muito breves.

Observação XV. M..., quarenta anos, solteira, mestiça quase branca. Pertence à grande família degenerada e carrega uma tara hereditária muito forte. Teve um ataque súbito de mania aguda que durou três meses; restabeleceu-se, mas quando a vi estava ameaçada de um novo ataque. Pai epiléptico.

Observação XVI. X..., homem branco, 56 anos, pai de muitas crianças; forte tara hereditária. Esteve internado no asilo por ter tido um ataque de mania aguda que durou vários meses. Atualmente restabelecido.

Observação XVII. A ..., homem jovem, mestiço pardo, constituição forte, 23 anos, membro da mesma família. Entrega-se à bebida, pela qual parece atraído por uma força irresistível como se estivesse tomado pela dipsomania. Teve vários ataques de delirium tremens. Observei-o num momento em que estava em meio a um forte delírio alucinatório.

Observação XVIII. G..., 30 anos, mestiça branca. Laço de parentesco com a grande família estudada. Antes de casar teve um acesso de melancolia lúcida que durou vários meses. A gravidez se declarou pouco tempo após o casamento: ela dá à luz um monstro do qual já falamos. Depois do parto, novo acesso de melancolia gemedora com sitiofobia opiniática que nos obrigou a recorrer, durante vários dias, à sonda alimentar, fazendo cateterismo do esôfago pelas fossas nasais. A doença persiste; a família se recusou a internar a doente.

Observação XIX. A.J..., mulata escura, 55 anos, teve onze filhos, seis dos quais estão vivos. Delírio de alucinação alcoólica há longos anos com alternâncias de melhora e de agravamento. Mãe alienada.

Observação XX. Joanna, jovem de 16 anos, mestiça de sangue indígena bem marcada pelos caracteres da raça vermelha. Tara hereditária pesada. Mal desenvolvida fisicamente; já teve duas ou três vezes delírios polimorfos, mais ou menos longos. Néscia. Quando a vi, estava atacada por um delírio agitado, mas incoerente.

Observação XXI. Valeriano Baptista, 40 anos, mulato baixo e musculoso. Casado, 14 filhos. Antecedentes hereditários desconhecidos. Trabalha no campo. Delírio de perseguição com alucinações múltiplas, sobretudo auditivas. Sem ser alcoólatra, com freqüência não está sóbrio. Alienado há cerca de seis anos, a doença apresenta períodos de calma que lhe permitem voltar ao seio da família e retomar seus trabalhos habituais.

Observação XXII. Antonio Oliveira, 55 anos, mulato alto, magro, mas bem constituído e ainda vigoroso. Falta de sobriedade. Casado com uma mulata já velha; tem vários filhos que atingiram a idade adulta, alguns dos quais são casados. Antecedentes hereditários desconhecidos. Delírio de perseguição sob a forma de um violento delírio de ciúmes; vê em toda parte amantes de sua mulher, a quem acusa de infidelidade com a cumplicidade de seus próprios filhos. Toma mil precauções ridículas para surpreendê-la; freqüentemente a maltrata e a ameaça de morte. Por causa de suas perseguições, fui chamado a examiná-lo a pedido das autoridades.

Observação XXIII. F..., 30 anos, mulato claro, alto, vigoroso, bem constituído. Antecedentes hereditários desconhecidos. Atingido pela loucura há cerca de cinco anos, numa época em que não morava em Serrinha. Parece ter tido um ataque de melancolia; atualmente delirante polimorfo; delírio hipocondríaco, de perseguição, religioso, político, de grandeza etc. Tendência pronunciada à demência.

Observação XXIV. A..., mulato, 28 anos, antecedentes desconhecidos. Hipocondríaco, concepções delirantes provenientes de uma nevrose do estômago. Pouco tempo depois de minha partida de Serrinha, o revi no asilo desta cidade; ele pedia que lhe abrissem o ventre para retirar os animais que o carcomiam.

Observação XXV. M..., negra, 30 anos; histeria, delírio de possessão demoníaca há meses. Antecedentes: descobri que ela descendia de pais africanos filiados à seita iorubá, estando conseqüentemente exposta aos êxtases e aos fenômenos de sonambulismo.

Observação XXVI. J..., 30 anos, negro com lábio leporino, imbecil; delírio de perseguição há dois anos. Antecedentes desconhecidos.

As doenças orgânicas do sistema nervoso, tais como as mielites difusas e sistematizadas, especialmente tabes, são freqüentes nessa zona e examinei mais de seis casos. Deve ser observado que no estado da Bahia a tabes dorsalis é uma moléstia muito comum, como são comuns as localizações da sífilis no sistema nervoso.

IV

As notas e observações precedentes mostram como são freqüentes as manifestações de degenerescência na população mestiça.

Trata-se agora de examinar e de discutir quais são suas causas e quais são as condições originárias. As condições locais, climáticas, higiênicas, sanitárias ou de consangüinidade devem ser as mais importantes.

A existência de condições climáticas locais, capazes de criar em Serrinha uma exceção no estado da Bahia, é inadmissível. Foi a observação de casos semelhantes aos de Serrinha, provenientes de diferentes pontos do estado, além do estudo direto da população mestiça do país, que me convenceu do alto grau de freqüência entre nós da degenerescência física e mental. Os casos observados em Serrinha me eram inteiramente desconhecidos e não houve tampouco uma escolha especial da localidade: encontrei-me ali por acaso.

Não se pode, tampouco, invocar condições sanitárias especiais. Não há, nessa circuns-crição, nem endemias, nem epidemias que possam causá-las, e a localidade goza de uma grande reputação de salubridade.

Sem dúvida, a sífilis e o abuso de bebidas alcoólicas devem ser vistos como responsáveis por uma boa parte das manifestações de degeneração, e em nossas observações insistimos em enfatizar sua influência.

Mas, primeiro, o uso de bebidas alcoólicas nos centros rurais é obrigatoriamente menos difundido que nas cidades, onde as bebidas fermentadas ou alcoólicas são vendidas em toda parte; em segundo lugar, é preciso atentar para a tendência que a degenerescência cria em relação a essas bebidas, de modo que a embriaguez, em vez de ser uma causa, poderia muito bem ser o simples sintoma de um desequilíbrio mental destinado a se agravar sob a sua influência, tanto no indivíduo quanto em sua descendência. É uma idéia que devemos ter sempre presente, para não nos enganarmos atribuindo ao vício o que é na realidade sua causa. "Para tornar-se alcoólatra", diz Feré14 14 Feré, La famille névropathique, Paris, 1894, p.14. , "é preciso ser alcoolizável e não há quem venda a sede de bebidas fermentadas. Entre o bêbado e o dipsomaníaco existe apenas uma diferença de moralidade e de impulsão mórbida; mas é só em aparência que eles se constituem em espécies distintas. Poderíamos dizer o mesmo dos excessos venéreos, dos excessos do trabalho intelectual etc., de tal modo que os hábitos viciosos que parecem as causas determinantes das psicoses são em realidade os primeiros sintomas de um estado neuropático".

Nossas conclusões serão as mesmas no que tange às localizações nervosas da sífilis, cuja freqüência pode denunciar apenas uma degenerescência latente.

Mas é sobretudo a consangüinidade que vemos geralmente como causa eficiente dessas manifestações, essa sendo a opinião corrente na localidade, o que contém certamente uma grande parte de verdade. Os belos estudos sobre a consangüinidade, no topo dos quais, como estudo de conjunto, quero colocar o importante artigo de meu eminente mestre e amigo, o professor Lacassagne,15 15 Verbete 'consanguinité', Dict. encycl. des sciences médicales, de Dechambre. deixaram fora de dúvida a sua impossibilidade de causar sozinha a degenerescência, não obstante ser uma causa de seu agravamento. Ora, não podemos negar que nossa tábua genealógica principal demonstra com eloqüência a grande influência da hereditariedade consangüínea sobre a degenerescência da população de Serrinha, mas é impossível atribuir-lhe uma ação maior.

Como fica evidente nesse estudo, não apenas existem em Serrinha várias famílias degeneradas sem laços de parentesco entre elas, como vemos ainda a hereditariedade atravessar facilmente as barreiras do parentesco consangüíneo.

É realmente curioso ver na grande árvore genealógica o mesmo indivíduo, casado sucessivamente com duas mulheres estranhas à sua família, transmitir a tara hereditária aos filhos nascidos dessas duas uniões. A observação XII nos mostra o marido infectado, verdadeiro louco moral, que transmite aos filhos legítimos que ele teve com uma prima a mesma manifestação de degeneração que transmitiu a uma filha adulterina, nascida de uma negra.

As causas reais das manifestações mórbidas ou de degenerescência estudadas na população de Serrinha devem ser mais longínquas e mais poderosas, e essas causas não são outras senão as más condições nas quais se efetivaram os cruzamentos raciais dos quais saiu a população da localidade analisada.

O cruzamento de raças tão diferentes antropologicamente, como são as raças branca, negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar ao clima do Brasil nem às condições da luta social das raças superiores.

A degenerescência das populações mestiças se constitui, sem dúvida, num fenômeno muito complexo que não podemos reduzir a manifestações mórbidas fatais ou irremissíveis. Proteiforme, ela pode bem tomar formas que vão desde brilhantes manifestações de inteligência - como entre os degenerados superiores, passando por uma média de capacidade social de tipo inferior, mal tocada por tendências degenerativas, que tomarão corpo mais e mais nas gerações futuras -, até as manifestações estridentes da degenerescência-enfermidade, nas quais os estigmas se impõem pelo franco desequilíbrio mental ou sob a forma impressionante de monstruosidades físicas repugnantes.

Temos de convir, no entanto, que a degenerescência-enfermidade é aqui a conseqüência de uma fragilidade congênita, do germe de um desequilíbrio diatético que trabalha para a extinção da raça sem ser incompatível com a existência de uma saúde vigorosa dos indivíduos, nem, conseqüentemente, com uma certa organização social, ainda que precária, defeituosa e pouco sólida. Não seria, assim, justo considerar essas populações mestiças enormes arraiais de enfermos ou de seres anormais; devemos ver aí, sobretudo, predispostos, nos quais a porcentagem da degenerescência-enfermidade pode ser bastante elevada, o que, nesse caso, pode servir para medir o grau de predisposição.

Compreendida assim a degenerescência das populações mestiças e conhecida a parte das manifestações mórbidas que lhe cabe, torna-se evidente a fragilidade das objeções que inferimos de exceções aparentes ou de fenômenos mal interpretados.

De fato, quis-se fazer acreditar que é na esterilidade dos produtos do cruzamento que devemos procurar a demonstração mais evidente da degenerescência dos mestiços; quis-se até ver uma identidade perfeita entre essa esterilidade e a esterilidade terminal da degenerescência.

Dixon afirma que a fecundidade dos mulatos se extingue na quarta geração. Não sei se essa afirmação do médico americano se refere a uma degenerescência mais aguda do mestiço afro-anglo-saxônico, sendo extrema a dificuldade desse cruzamento, como se sabe. Mas, no que diz respeito aos nossos mulatos, ela está errada. As tábuas genealógicas que acompanham este trabalho demonstram uma exuberância inesgotável da eugenesia dos mestiços brasileiros; até nas famílias mais degeneradas, vemos a linhagem se ampliar em uma dezena de crianças. Este é um fato constante e geral nas populações mestiças das regiões centrais do Brasil: a fecundidade é até excessiva.

Vi com freqüência famílias que tinham mais de dez crianças: muitas tinham 15, e algumas mais de vinte. Dessa perspectiva a doutrina monogenista não poderia ser mais falsa, já que pretendia fundamentar-se na esterilidade do cruzamento para provar a multiplicidade da espécie humana. Mas isso não demonstra de modo nenhum que as populações mestiças não sejam degeneradas; e, como tais, elas se conformam às regras gerais da degenerescência humana. É fácil ver em nossos quadros a freqüência da esterilidade degenerada das famílias com mais taras (tábua genealógica; obs. VI e VII) em manifesta oposição à fecundidade geral das famílias mestiças. Assim, a eugenesia dos mestiços não contradiz a existência da tendência ou predisposição à degeneração, que certamente não é ainda a degenerescência enfermidade na qual, até entre os mestiços, a esterilidade se manifesta com as características e o significado que lhe são próprios.

A existência de mestiços que em tudo muito se aproximam, pelas características físicas, das raças inferiores das quais provêm, e são, não obstante, dotados de um grande talento é uma objeção que não tem mais valor. A inteligência brilhante de alguns mestiços é conhecida e reconhecida. Mas essa inteligência brilhante, salvo exceções, é geralmente superficial, incapaz de esforços, de uma ação continuada e durável, além do que esta vivacidade da inteligência, longe de ser uma negação, pode ser uma simples manifestação de degenerescência, freqüentemente suscetível de se associar a outras manifestações similares.

Um estudo minucioso e aprofundado dos mestiços de talento ou de grande inteligência seria instrutivo e útil a esse respeito.

Pelo menos é o que se pode concluir do pouco que sabemos de nossos mestiços dotados de grandes capacidades. Os três irmãos Rebouças foram notáveis. Um deles foi médico e professor da Faculdade da Bahia; outro, engenheiro, foi professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro; o terceiro foi um eminente jurista. São eles em geral citados entre nós como sendo a negação mais formal da degenerescência dos mestiços. Mas esquece-se facilmente, ou finge-se ignorar, que o médico foi atingido pela loucura, e dela morreu, e que o engenheiro recentemente pôs fim a sua vida, recorrendo ao suicídio. Silva, também professor na Faculdade da Bahia, é outro mestiço notável pelo talento, apresentado como prova do valor da mestiçagem. Ora, todos sabem que Silva morreu de uma mielite, e sua degene-rescência genésica que fazia dele um homossexual ativo é notória. O eminente Barreto, um de nossos mestiços de maior valor intelectual, levou sempre uma vida desregrada e morreu em conseqüência dela. Um de seus críticos (Araripe), antigo condiscípulo dele, observa, falando de seu lirismo como poeta, que ele se ressente da incurável lubricidade da raça negra, à qual pertencia. Outros mestiços se mostraram superiores em nosso país; talvez fosse fácil demonstrar sua degenerescência ou a existência de taras em suas famílias.

É que as características físicas e morais das duas raças não se fundem nos mestiços de modo a resultar sempre num produto médio. Muitos exemplos, que não vale a pena lembrar aqui, demonstram que as qualidades físicas e morais podem se transmitir formando combinações muito variadas. Um mestiço pode herdar a inteligência da raça superior e outras características da raça inferior, como é o caso do engenheiro Lislet Geoffray, correspondente do Instituto Francês,16 16 In Quatrefages, L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861. inversamente, ou ainda em caso de fusão proporcional, certas qualidades das tendências, dos instintos ou dos sentimentos das raças puras podem predominar. Esta desigualdade, entre os mestiços, da influência das duas raças que se cruzam é um fato sancionado pela prática mais distanciada da especulação científica.

Nossos antropólogos já observaram que os mestiços brasileiros não são igualmente dotados de boas qualidades.

Couto de Magalhães afirma que o melhor mestiço (de branco com índio) é aquele que resulta do tronco branco com no máximo um quinto de sangue indígena. Ladislau Netto observou em famílias mulatas que os filhos nos quais se acentuam as características da raça negra é que são por vezes os mais inteligentes.

Nesses casos, os mestiços são mais ou menos retornados ao equilíbrio de uma das raças puras, e se distanciam dos tipos rigorosamente médios nos quais parece revelar-se em toda sua plenitude, em toda sua brutalidade, o conflito que irrompeu entre qualidades psíquicas e condições físicas e fisiológicas muito desiguais de duas raças profundamente diferentes, características que a hereditariedade fundiu numa combinação, num amálgama defeituoso, no produto resultante da união, do cruzamento, das duas raças.

Ora, se é do antagonismo e da diferença entre as características antropológicas ou étnicas das raças que se cruzam que devem vir todos os defeitos dos produtos mestiços, como conseqüência de anulações ou combinações que podem ser feitas entre elas, é claro que não podemos julgar a mestiçagem em bloco, como fez Mme. Clémence Royer, mas que é preciso, ao contrário, distinguir entre o cruzamento das raças próximas e pouco diferentes e aquele de raças antropologicamente muito distintas. Atualmente, todos os fatos confirmam inteiramente a seguinte opinião de Spencer, dada há um bom quarto de século:"Podemos acrescentar aqui", escreveu ele,17 17 Spencer, Essais scientifiques. La psychologie comparée de l'humanité, 1875, trad. francesa de A. Bendon, Paris, 1879. "um problema geral de tipo diferente. Qual é o efeito da mistura de raças na natureza mental?

"Em todo o reino animal, temos razão para crer, todo cruzamento entre variedades que se tornaram muito estranhas umas às outras não produz nada de bom fisicamente, ao contrário, a união entre variedades ligeiramente diferentes dá bons efeitos físicos. Será que o mesmo ocorre na natureza mental?

"Considerando certos fatos, parece que a mistura entre raças de homens muito diferentes produz um tipo mental sem valor, que não serve nem para levar a vida da raça superior, nem a da inferior, que não é apropriada a nenhum gênero de vida. Ao contrário, povos com a mesma origem, que tenham vivido durante várias gerações em circunstâncias diferentes, e se separaram ligeiramente uns dos outros, apresentam, no cruzamento, como se vê às vezes, um tipo mental superior, em certos aspectos".

É sobre essa distinção que se funda o estudo recente de Fouillée,18 18 Fouillée, Temperament et caractère selon les milieux, les sexes et les races, Paris, 1895. sobre a influência dos cruzamentos no caráter das raças. A dissolução do caráter provém aqui dos desdobramentos de tendências hereditárias opostas que criam no mesmo indivíduo correntes e motivos de deliberação, de ação, diferentes ou contraditórios.

De fato, não se compreende que as características psíquicas das raças possam ser respeitadas pelo cruzamento que desorganiza todas as características físicas. Falando sobre as garantias necessárias de estabilidade e de certeza que permitem usar as características dos cabelos para a determinação dos tipos raciais, Topinard19 19 Topinard, L'homme dans le nature, Paris, 1871. afirma que "os cruzamentos os alteram, os desorganizam, como fazem com todas as outras características".

É preciso ainda acrescentar à influência da condição degenerativa do cruzamento simples a que resulta da não adaptação de uma das raças puras ao habitát físico no qual os produtos mestiços são destinados a viver, como no Brasil.

Um erro no qual sempre incorremos é o de supor que o cruzamento de raças diferentes, especialmente o da raça branca com uma raça inferior, pode oferecer a uma delas a força da resistência que ela precisa para enfrentar o clima inóspito dos trópicos. Creio que essa ilusão é causada por uma indução não fundamentada, proveniente dos cruzamentos artificiais preconizados para os criadores de animais que conseguiram, através de uma intervenção constante e inteligente, manter entre os mestiços algumas qualidades úteis ou rendosas.

Seja permanecendo pura em relação a qualquer cruzamento, seja aliando-se às raças nativas, a raça branca degenera e se extingue quando limitada a viver nos climas tropicais.

Vemos, sem grande esforço, entre os brancos do norte do Brasil, que em geral não obtêm seus meios de subsistência de rudes trabalhos agrícolas, uma raça que perece e se apaga. Seguindo uma família algo numerosa durante algumas gerações, descobre-se sem dificuldades sinais evidentes de degenerescência mórbida que se acentuam. E se comparamos os brancos do norte do país, inteligentes, mas pálidos, anêmicos, com um desenvolvimento físico frágil, com os habitantes do sul, robustos, vigorosos, sadios e rosados, o contraste será chocante. Pois bem, o elemento branco que se mistura não deixa de se extinguir, não cria uma causa menor de degenerescência. Conheço inúmeros casos nos quais os mestiços, ainda que de segundo ou de terceiro sangues, tendo recebido uma dose nova de sangue branco, continuam a degenerar ao invés de regenerar. Os casos seguintes esclarecerão esse aspecto.

Observação XXVII. Português casado com uma mulata clara; seis filhos, muito claros. O mais velho, impetuoso, violento, nervoso; o segundo, neurastênico hereditário desde muitos anos; uma menina atingida pela pequena histeria; uma segunda degenerada: assimetria facial, histeroepilepsia; outra com boa saúde, mas com tendência a engordar; enfim, uma última, ainda pequena, tem boa saúde até agora.

Observação XXVIII. Português casado com uma mestiça de branco e indígena. Seis filhos. O mais velho tem um temperamento nervoso; o segundo, degenerado, perturbado, tuberculoso; uma menina com histeria e tuberculose pulmonar; outra menina, mística, pretende-se poeta; uma menina completamente degenerada, doenças com tiques, com acessos histérico-epiléticos. Por último, um adolescente que até agora apresenta um estado normal.

Observação XXIXX. Italiano, casado com uma senhora mestiça quase branca, cinco filhos. O mais velho é idiota, epiléptico; a segunda, muito bonita, histérica, com muitas fobias. Duas crianças pequenas com uma assimetria facial notável; outro, taciturno.

Observação XXX. Alemão casado com uma mulata escura, cinco filhos. Um, taciturno, concentrado, dissimulado; outro, alienado, esteve internado na Alemanha e no nosso asilo; um que parece normal e duas meninas nas mesmas condições.

Não pretendo discutir a não - adaptação da raça branca aos climas tórridos nem a dos negros aos climas frios. Permitam-me, no entanto, lembrar que os holandeses, que ocuparam o norte do Brasil durante quase trinta anos, não deixaram outros vestígios de sua linhagem que não alguns nomes de família, ao passo que as colônias alemãs do extremo sul, nas quais os negros decrescem numericamente, estão em plena prosperidade. Quatrefages,20 20 Quatrefages, L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861, p.368. monogenista notável e partidário decidido da unidade da espécie humana, pode escrever: "É verdade que o europeu branco transportado abaixo da linha [do Equador] ou às regiões intertropicais definha e perece freqüentemente sem deixar posteridade, ou essa se extingue ao fim de um pequeno número de gerações. É verdade que o negro africano emigrado para a Europa freqüentemente morre de tísica. É também verdade que na nossa colônia da Argélia a mortalidade dos adultos, e sobretudo a das crianças, é bastante superior à que observamos na mãe pátria. Mas de que perspectiva podem essas verdades ser invocadas a favor do poligenismo? A raça, como vimos, é antes de tudo um produto do meio. Formada sob o império de certas condições de existência e encontrando-se bruscamente sob novas condições de existência, é surpreendente que ela sofra e às vezes sucumba na luta entre o organismo e o mundo exterior? Ao contrário, a aclimatação imediata em tais condições é que seria inexplicável a partir das idéias que defendemos".

Esta eliminação das raças inadaptáveis se dá naturalmente por processos de degeneres-cência que têm como mediadores os estados anormais ou mórbidos cuja freqüência entre os mestiços brasileiros nos parece abundantemente demonstrada neste estudo.

Eis por que afirmo há muito tempo que a população do norte do país está fatalmente destinada a se diferenciar mais e mais da população do sul num sentido desfavorável, primeiro pela raridade, e em seguida pela completa extinção do elemento branco.

As questões que se vinculam à aclimatação são muito complexas, mas ninguém poderá afirmar que a mestiçagem, de fato, cumpre as condições necessárias para a aclimatação lenta e progressiva.

Na mestiçagem, o elemento não adaptável encontra assim, bruscamente, novas condições de existência; ele degenera, enfraquecendo-se gradualmente pela sobrevivência dos mais adaptáveis, isto é, daqueles nos quais predomina o sangue indígena.

V

Crime. A criminalidade dos povos mestiços ou de população mista como a do Brasil é do tipo violento: é um fato que nos parece suficientemente demonstrado.

A impulsividade das raças inferiores representa certamente um fator de primeira ordem nesse tipo de sua criminalidade, mas se compreende facilmente que a impulsividade criminal pode ser e será em grande parte uma simples manifestação da anomalia que faz com que os criminosos sejam seres que não podem se adaptar, se acomodar ao seu meio social, refratários que são à norma social sob a qual deveriam viver.

Essa anomalia é uma verdadeira equivalência de outras formas de degeneração com as quais o crime pode, segundo o caso, se aliar ou se alternar na mesma família.

A degenerescência dos mestiços devia ter uma influência decisiva e predominante sobre sua criminalidade, o que era de prever, mas não seria justo inferir daí que essa criminalidade deva ser forçosamente muito elevada, pois compreendemos perfeitamente que a degenerescência, sob a influência de causas múltiplas e difíceis de precisar, difíceis mesmo de conhecer, pode tomar formas variadas: mais criminosas aqui, mais vesânicas lá, e assim por diante.

Assim entendeu Mme. Clémence Royer21 21 Actes du deuxième Congrès international d'anthropologie criminelle, tenu á Paris, 1890, p.171. quando disse: "Se cada indivíduo é o resultado hereditário de sua genealogia total, concebe-se que, dado o fato das variações indefinidas desse resultado, as anomalias anatômicas se reproduzem em certos indivíduos sem estar ligadas a anomalias morais, ou inversamente; e que, finalmente sob as mesmas influências do meio, indivíduos inatamente diferentes reagem de modo tão diferente que uns permanecem honestos enquanto outros se deixam levar pelo crime ... Se os mestiços não são, de modo nenhum, em geral, degenerados físicos; se às vezes eles parecem ricamente dotados, tanto do ponto de vista da energia vital quanto do da inteligência, podemos dizer que entre eles a inteligência parece mesmo tanto mais ativa e mais potente porque ela não é nunca perturbada pela consciência".

Se a violência, e até a impulsividade inata das raças inferiores, deve exercer uma influência decisiva sobre a qualidade dos crimes, pode bem não ter nenhuma influência sobre sua quantidade.

Spencer observou que existem muitos selvagens, sobretudo os da América, dotados de uma apatia extrema; ele busca explicar esse fato por uma predisposição constitucional orgânica. "Pode ser", diz ele,22 22 Spencer, Principes de sociologie, trad. por E. Cazelles. Paris, 1886, p.83. "se as raças americanas não se mostram dispostas a agir depois do primeiro impulso, que esse defeito provenha de uma inércia constitucional." E no entanto esta apatia não exclui entre eles as explosões de um furor violento provocadas às vezes por causas da menor importância.

Pois bem, em Serrinha a criminalidade é muito baixa: estamos longe de poder dizer o mesmo da população mestiça do país. A falta de estatísticas não nos permite fazer um estudo comparativo da criminalidade baiana. Neste país, os ensaios de estatística feitos até hoje nos autorizam apenas a confirmar, de maneira geral, as conclusões às quais chegaram em seus estudos, em grande parte sem estatísticas rigorosas, de Flaix,23 23 Fournier de Flaix, La criminalité aus États-Unies, Revue Scientifique, 1893. para os Estados Unidos; Kocher,24 24 Kocher, La criminalité chez les arabes en Algérie, Paris, 1884. para a Argélia; Bertholon,25 25 Bertholon, Esquisse de l'anthropologie criminelle des tunisiens musulmans, Archives d'Anthropologie Criminelle, 1889. para os muçulmanos da Tunísia; de Lorion,26 26 Lorion, Criminalité et médecine judiciaire em Cochinchine, Archives d'Anthropologie Criminelle, 1887. para a Conchincina; Gentini,27 27 Gentini, La criminalitá nel Messico, Archivio di Psychiatria, Scienze Penali ed Anthropologia Criminale, v.IX. para o México; Corre,28 28 Corre, Etnographie criminelle, Paris, e Le crime en pays créoles, Paris. para as colônias francesas, isto é, que o tipo violento predomina na criminalidade da população de cor.

É o que podemos concluir, no que diz respeito ao Brasil, das estatísticas limitadas ou muito incompletas de Clovis Bevilaqua,29 29 Bevilaqua, Criminologia e direito, Bahia, 1896. para o Ceará; de Candido Mota,30 30 Candido Mota, Relatório, São Paulo, 1894. para São Paulo; de Saraiva,31 31 Saraiva Salvinho, Relatório, Minas Gerais, 1894. para Minas Gerais.

Mas do fato de que em Serrinha a criminalidade seja baixa, não se pode concluir que a degenerescência, tão nitidamente existente nesse local com seus traços mórbidos, não exerça uma influência muito forte nas manifestações criminosas.

Para convencer-se de que a criminalidade é também aí uma simples manifestação da degenerescência produzida pela mestiçagem, é suficiente ler a história das duas famílias das quais se vai falar, nas quais vemos a criminalidade associar-se franca e intimamente com as mais graves manifestações mórbidas da degenerescência física e psíquica. Os dois casos são extremamente curiosos.

Primeira família. Publiquei, em 1894,32 32 Nina Rodrigues, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Bahia, 1894, p.148. uma observação sobre um menino preso na penitenciária da Bahia por ter assassinado seu pai.

Esse menino, que mostrava a perversidade mais profunda, não apresentava nenhum estigma físico de degenerescência; não conhecendo a história de sua família, limitei-me a concluir que nos encontrávamos em presença de um criminoso nato. A reprodução dessa observação talvez tenha interesse.

Observação XXXI.33 33 Nota de tradução: o caso vai aqui transcrito conforme consta em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Salvador, Livraria Progresso Editora, 1957, p.189-193. Salvo outras pequenas variações, decorrentes da versão, as palavras ou trechos entre colchetes constam do livro e foram omitidos na versão francesa; as palavras ou trechos entre asteriscos foram acrescentados na versão francesa. O menor José d'Araújo, de Santo Antonio das Queimadas, recolhido à casa de correção até completar 17 anos [(artigo 13 do código penal do Império)] por haver, na idade de nove para dez anos, assassinado o próprio pai, obrando com discernimento.

Há mais de quatro anos conheço este jovem criminoso e tem sido sempre a mesma a narração do seu crime, feita, aliás, sem revelar o menor sentimento de pesar. A mandado de um inimigo do pai, o qual lhe deu de recompensa uma moeda de quarenta réis, resolveu cometer o parricídio. O pai estava ausente. Na noite do crime, deitou-se o menor, como de costume, numa mesma cama com os irmãos e adormeceu. Acordado alta noite, viu o pai que era chegado e dormia em uma rede no mesmo aposento da choupana em que habitavam. Levantou-se então, foi a um canto, onde se achavam as armas de caça, tomou uma velha espingarda de pedra que sabia carregada, foi buscar um tição aceso e com ele fez disparar a arma, matando instantaneamente o pai, que foi ferido na cabeça.

Esta é a história que ele tem sempre referido, e sabida de todos na penitenciária. Interrogando-o convenientemente, verifiquei que ele não havia dado desde o começo esta informação às autoridades, e só acusou de mandante ao inimigo do pai dois meses depois de preso. Da guia que o acompanhou à penitenciária, *lacônica*, consta que não ficou provada a existência de um cúmplice, não havendo provas contra o acusado. Não pude consultar o processo.

Esse menino, que já era órfão de mãe, morta de parto, vivia com mais cinco irmãos, *ou irmãs*, em companhia do pai que, sendo pobre, com eles se ocupava na pequena lavoura de que subsistiam. Nem ele nem os irmãos haviam recebido instrução de espécie alguma.

Transferido para esta cidade, *esse criminoso precoce* foi colocado na penitenciária para aprender o ofício de sapateiro. O tratamento moral que devia receber naquele meio já produziu todos os seus efeitos naturais e lógicos, e a obra está completa. O *criminoso* tem 18 anos, é ladrão, pederasta passivo, jogador, bêbado, um ser completamente desmoralizado, enfim, um incorrigível temível.

Há pouco tempo, servindo-se de chaves falsas, roubou matéria-prima de arrecadação a mandado de terceiro, protesta ele. A administração está informada de que esteve amasiado com um companheiro como pederasta passivo durante dois meses. Por infrações disciplinares de toda sorte, jogo, embriaguez, vive constantemente em castigo. O administrador afirma que não sabe mais o que há de fazer dele.

[Resolvi-me a completar o estudo deste criminoso.]

É um pardo em que os caracteres do mulato e do mameluco34 34 *Produto de branco e índio*. estão bem combinados. Ainda completamente imberbe; apenas ligeiro buço. Não apresenta deformação ou estigma físico, não é canhoto, nem ambidestro. As medidas cefálicas tomadas dão os seguintes resultados:

donde calculamos índice cefálico hiperbraquicéfalo de 86,11 e índice nasal de 80,75 [80,76].

A fisionomia do criminoso é sem expressão, tem aparentemente um ar de submissão que parece convencional; de fato é ele impassível referindo o crime em todas as suas minudências como se se tratasse da coisa mais natural do mundo. [Todavia nem faz garbo do crime, nem revela logo à primeira vista o cinismo do menor que fará objeto da observação seguinte.] Por que parte entram nessa conduta a perversidade congênita e o lapidamento da prisão, é o que não posso dizer. [Embora com dificuldade, consegui hipnotizar o criminoso e desde então] procurei indagar que influência podiam ter exercido no seu espírito a suposta ordem do inimigo do pai e a do companheiro a quem imputa a sugestão do roubo. [Hipnotizado, revelou o criminoso] *Assim, tentei hipnotizá-lo, mas o criminoso logo confessou* que tal ordem nunca havia existido e que o verdadeiro móvel do crime havia sido a circunstância de ter ele, na ausência do pai, cortado um pé de mandioca e prometido um tio que assim que o pai chegasse lhe havia de comunicar o fato para que ele castigasse o filho. Foi, pois, para evitar o castigo que este cometeu o parricídio.

Daí em diante [mesmo em vigília] o menor passou a contar-me o fato por este modo, confessando que tinha sido falsa a invenção de um mandante. [Também por este meio consegui] *Obtive igualmente* a confissão completa dos seus hábitos pederastas que até então ele teimava em negar.

Nada indica que este rapaz tenha sido vítima de sugestões estranhas na prática dos seus crimes. [Continuo a estudá-lo, mas não é de difícil hipnotização35 35 Nota de tradução: de acordo com a frase seguinte, talvez o 'não' tenha sido incluído por erro de composição na edição brasileira. ] *Ele é difícil de hipnotizar* e opõe *rudes* obstáculos às sugestões, aparentando aceitá-las, mas sendo realmente muito dissimulado.

Trata-se neste caso de um criminoso nato, ou de criminoso de hábito aperfeiçoado pelo meio? Esta última classificação tem em seu favor a falta dos grandes estigmas físicos do criminoso nato. Mas a [precocidade] *perversidade* desse criminoso, a natureza do seu crime, em que se revela uma ausência completa do sentimento de piedade, ou pelo menos de simpatia para com o seu progenitor, a futilidade do móvel, pois que para evitar um castigo, qualquer criança normal teria fugido ou procurado apadrinhar-se, a invenção mentirosa *e perversa* de um mandante, atribuindo o crime a um indivíduo que sabia inimigo de seu pai, a insensibilidade moral, a indiferença que revela em todos os seus atos, tudo enfim me faz crer que se trata de um grande criminoso da classe dos criminosos natos.36 36 Nota de tradução: aqui termina o trecho do original em português de As raças humanas.

Pois bem, hoje, quatro anos após a publicação dessa observação, encontro em Serrinha uma parte da família deste criminoso, e pude me convencer que nesta criança a crimi-nalidade nata é apenas a manifestação de uma degenerescência muito grave da família que, se nele revelou-se pela obliteração moral que conhecemos, em seus primos se traduz nos defeitos físicos mais graves. Ele tem cinco primos, quatro dos quais examinados por mim têm as mais graves manifestações teratológicas. Além disso, contam-se, entre seus ascendentes, três casos análogos, três pessoas que são o que a família chama em sua linguagem vulgar de "entrevados". Apresentamos abaixo a tábua genealógica (2) dessa família mestiça.

Essa associação, numa mesma família, de casos de teratologia física e moral como manifestações independentes uma da outra não poderia ser mais instrutiva. Nada demonstra melhor que o crime ou o vício, de um indivíduo em aparência são e normal, pode ser expressão da mais profunda anomalia mental.

A parada no desenvolvimento, e outras manifestações teratológicas da constituição mental, comparáveis às que observamos no físico, não é portanto, como se há dito, uma simples invenção teórica.

Segunda família. Se a família da qual acabamos de falar é notável do ponto de vista de diversas manifestações que estão a ela associadas, aquela da qual vamos tratar em seguida não o é menos, pela evidência com que ela demonstra a influência da transmissão hereditária de qualidades étnicas aos mestiços, como fator de sua criminalidade degenerada.

Observação XXXII. Duplo assassinato cometido por um soldado que, tomado de um acesso de furor destrutivo, só pôde ser dominado a tiros de espingarda.

A dez de fevereiro de 1898, o soldado de polícia Lino, irritado com seus camaradas, se pôs a percorrer a cidade de Serrinha, bebendo cachaça em todos os bares que encontrava e declarando a todo mundo que faria uma desgraça naquele dia.

Pelas três horas da tarde, no portão do quartel, ele conversava com a sentinela, que lhe dizia para não acrescentar atos a tais bravatas, quando de súbito se apropriou de uma espingarda Comblain e a descarregou quase toda sobre seu camarada, que foi derrubado: a bala atravessara seu peito. Os outros soldados que compunham o pequeno destacamento encarregado de policiar a cidade fugiram espantados. Lino se apoderou então de todas as armas e munições, encheu a cartucheira e os bolsos de cartuchos e, arma em punho, se colocou na defensiva. O subtenente Costa, comandante do destacamento, dirigiu-se a ele e lhe ordenou que depusesse as armas; em resposta, Lino abriu fogo contra o oficial que, com o peito atravessado por uma bala, conseguiu com grande custo chegar a uma casa vizinha onde em seguida encontrou abrigo do furor daquele possuído - e a morte duas horas depois.

O criminoso, evidentemente excitado, mas sem aparência de uma embriaguez bem caracterizada, ficou passeando em frente ao quartel, sempre com a arma na mão, ameaçando todo mundo aos gritos; provocante, desafiava a todos e a cada um a vir prendê-lo, apontando a arma para aqueles que o olhavam. Num piscar de olhos, todas as portas da pequena cidade se fecharam e o lugar no qual os crimes foram cometidos ficou deserto.

Testemunha ocular desse fato, acompanhei todas as peripécias da janela de uma casa na qual morava, situada em frente. Durante mais de uma hora, vi Lino, sempre num estado de extrema agitação, passeando de um lado para outro no lugar, apontar a espingarda na direção das casas vizinhas, ir até aquela na qual o oficial encontrara abrigo, tentar forçar a porta a coronhadas, continuando a falar em altos brados e a ameaçar todo mundo. Por fim, e sob ordens da autoridade, um soldado fez fogo sobre ele e o deixou estendido.

Fui vê-lo imediatamente. Encontrei-o expirando, a boca cheia de uma espuma sangrenta, a fronte coberta por um suor abundante. Fiz sua autópsia e escrevi meu relatório, do qual apresento aqui alguns trechos:

Lino não apresenta nenhuma anomalia importante. É um mulato escuro de cabelos crespos, quase imberbe, com apenas alguns fios de bigode. Tomei suas medidas que deram os seguintes resultados:

A cabeça era bem conformada, o crânio não apresentava nenhuma anomalia.

A calota craniana se encontra no laboratório de medicina legal de nossa Faculdade.

Medidas craniométricas:

donde calculamos índice cefálico ultrabraquicéfalo de 90,22.

O rosto, sem assimetrias, mede:

donde índice nasal de 107,40.

A orelha direita é um pouco maior do que a esquerda. Vê-se no antebraço esquerdo as letras A M J tatuadas grosseiramente como são as tatuagens de nossa população, e sobre o peito, abaixo da clavícula esquerda, as iniciais do criminoso, LFP.

Não descobrimos qualquer aderência de membranas no encéfalo, que não apresenta qualquer alteração notável; as circunvoluções mais importantes eram normais.

Infelizmente o encéfalo não pôde ser conservado, por falta de reativos. No entanto, eu o pesei.

Encéfalo.............................................. 1.275 gramas

Cérebro total........................................ 1.093

Hemisfério direito................................... 550

Hemisfério esquerdo................................ 545

Cerebelo................................................. . 148

Medula alongada, istmo do encéfalo........ 28

A diferença de peso entre os dois hemisférios não deve ser vista como uma anomalia. Ela é causada naturalmente por uma desigualdade na separação das duas metades do cérebro. Atribuo também a um efeito da divisão a pequena diferença que existe entre o peso total do encéfalo e o de suas partes separadas.

Seja como for, o peso encefálico deste criminoso é baixo.

A história de Lino é bem instrutiva. Ninguém disse que ele tinha ataques. Mas não há dúvida de que se tratava de um impetuoso, um violento. Ele era reservado, taciturno, falava pouco, calma e pausadamente, mas freqüentemente tinha acessos de cólera violenta. Vivia em concubinato com a viúva de um soldado, mãe de um filho de alguns meses, e várias vezes ameaçara pegar a criança pelas pernas e lhe quebrar a cabeça na parede, e isso por futilidades. No regimento de polícia, um dia feriu gravemente um de seus camaradas e foi posto na prisão por causa disso. Bebia muito, mas não era propriamente o que se pode chamar de um bêbado contumaz.

Seu estado de furor no momento em que cometeu os últimos crimes pode ser evidentemente considerado uma manifestação de ebriedade patológica num indivíduo de temperamento epiléptico; mas esse temperamento vinha da família, é um legado hereditário que a mestiçagem não alterou, mas, ao contrário, exagerou a impulsividade de seus avós selvagens.

Abaixo, a árvore genealógica de Lino:

Linha colateral cujos antecedentes são desconhecidos

Clemente, mestiço quase negro. X., mulher de Clemente

Briguento, tentou assassinar seu patrão,

que acusa de ter atentado contra a honra

de sua filha e que recusava-se a pagar indenização.

Tio de C. e D. por aliança, é, portanto

irmão do bisavô/bisavó de Lino.37 37 Nota de tradução: se Clemente era tio por aliança de C. e D., teria sido casado com uma irmã do pai ou da mãe deles e, portanto, não era irmão do bisavô ou bisavó de Lino, mas sim seu cunhado. Ver, no final, as genealogias recompostas a partir da descrição de Nina Rodrigues, onde esta entra como a de número 4.

Muitos filhos, um negro e alcoólatra contumaz

Muitos filhos, um assassino (Obs. XXXV)

A história dos membros anormais dessa família, ainda que resumida, tem grande valor, já que facilita extremamente a compreensão exata da impulsividade dos mestiços.

Observação XXXIII. O mestiço C..., irmão do assassino Manoel Felipe, é um homem de cerca de cinqüenta anos, escuro, com características bem nítidas de negro e indígena. É um vaqueiro, considerado pelas pessoas da vizinhança um homem sério. Extremamente colérico, não pode tocar em bebidas alcoólicas sem se tornar provocativo, briguento e sempre acaba por chegar à violência e até ao crime. Ele me disse que evita as discussões e tem tanto medo de não poder se controlar, que, quando é insultado, foge dos lugares onde se encontra.

Observação XXXIV. Manoel-Felipe, irmão do anterior, mestiço escuro, mostrando igualmente as características do negro e do indígena bem acentuadas (ver a fotografia 2, tirada na penitenciária).

No dia 9 de dezembro de 1888, às sete horas da noite, Manoel assassinou a jovem Isabelle, a quem queria simplesmente castigar.

Encontrando Isabelle na porta da cabana em que moravam, começou a discutir com ela, cobriu-a de golpes de faca e quando abandonou sua vítima ela não era mais que um cadáver coberto de feridas. O assassino estava sob o jugo de um forte acesso de violência.

Ele tentou fazer com que os vizinhos acreditassem que a jovem infeliz tinha caído vítima de um ataque; preso, ainda procurou resistir.

Felipe é magro e alto, mede um metro e 72 de altura e um metro e 76 de envergadura. É ainda vigoroso, apesar de ter cerca de sessenta anos, e não apresenta anomalias nem estigmas dignos de chamar a atenção. Alegre, ele conversa e brinca por iniciativa própria e ri de si mesmo. Sua conduta na cadeia, onde está desde 1889, é exemplar: é um prisioneiro moderado, obediente, trabalhador.

Quando o interrogo sobre as causas de seu crime, ele me responde que não estava bêbado e que não sabe como pôde fazer tal coisa. O ciúme tinha se apoderado dele há algum tempo; ele queria castigar a vítima, com quem vivia maritalmente, e que o enganava: tomado de fúria, ele viu tudo vermelho e quando voltou a si, sua amante estava morta. As testemunhas declararam que ele não estava bêbado e ele observa que tem o hábito de beber, o que o torna simplesmente alegre e falador quando se embriaga. Todos concordam em dizer que ele sempre foi moderado, pacífico, e em geral se surpreendem de que ele tenha caído no crime.

Nesse individuo violento, o ciúme num grau extremo e provavelmente também um pouco de álcool constituíram as causas emotiva e tóxica da embriaguez patológica.

Observação XXXV. O jovem Paulino, de 13 anos, primo de Lino, é também um assassino precoce em quem se revela, de maneira bem acentuada, o sentimento de vingança adiada, costume entre seus avós índios.

No Natal de 1893 (noite de 24 de dezembro), Paulino foi pedir ao pai de José, outro menino de 13 anos, para deixar que este saísse à noite; eles iriam juntos participar da festa. A autorização foi dada, e os meninos saíram.

Enquanto se divertiam, Paulino, aproveitando-se de um momento em que seu camarada estava distraído, o assassinou a pauladas na cabeça e na nuca. José caiu inerte e pouco depois exalou seu último suspiro.

Qual era a causa do crime? No Natal do ano anterior, José havia dado algumas pancadas em Paulino, derrubando as laranjas que ele apanhava da árvore para vender. Paulino jurou então matar seu amigo um ano mais tarde, na mesma festa, e acabava de cumprir de maneira triste sua ameaça.

Essa raiva concentrada durante um ano, e que se traduziu num ato de vingança premeditada e executada com data fixa, caracteriza bem a perversão desse menino, ou é um simples legado hereditário de seus avós indígenas para quem "a vingança era uma obrigação moral e quem deixasse de cumpri-la seria banido da tribo, desonrado como covarde"?

Alguém lhe perguntara na manhã na qual aconteceu o evento por que ele estava armado com um porrete anguloso. "É para beber sangue na Pedra (lugar onde ocorreu o crime)", respondeu ele.

A facilidade com que a impulsividade selvagem se transforma em manifestações mórbidas de cólera entre as raças inferiores supostamente civilizadas e entre os mestiços, tomando uma forma obviamente epileptóide, mostra o alto grau de desequilíbrio no qual eles vivem e as condições precárias de sua adaptação à vida civilizada.

Os equivalentes psíquicos da epilepsia são muito freqüentes nessa população e se, para se conformar às exigências da doutrina do livre-arbítrio, ainda que relativa, da escola clássica, devêssemos avaliar a repressão dos crimes cometidos entre nós, considerando os criminosos como alienados violentos, a regra geral seria a impunidade.

Encontramos casos, como na observação seguinte, que, aliás, não provém de Serrinha, nos quais os estigmas da degenerescência são evidentes e nos quais o diagnóstico de epilepsia psíquica encontra, para os que sabem ver, o apoio dos sinais físicos.

Geralmente, no entanto, a impulsividade epiléptica de nossa população trai apenas uma adaptação imperfeita ou a degenerescência da mestiçagem.

Observação XXXVI. Francisco V..., negro, 45 anos, assassinou duas mulheres, na estrada, a golpes de foice, durante a jornada de trabalho do dia primeiro de outubro de 1889.

Uma delas, sua antiga concubina, que o tinha abandonado porque ele era preguiçoso e violento, era incessantemente perseguida e ameaçada por ele.

Na penitenciária, V... nos relatou o crime da seguinte maneira:

Embora separado de sua amante, ele decidiu um dia de manhã ir até sua casa buscar uma foice que tinha deixado lá. Não encontrando ninguém na casa, viu uma garrafa que conhecia bem e bebeu um pouco de cachaça. Sentiu-se fora de si, excitado, exaltado, não podendo se dar conta do que fazia. Foi nesse estado que saiu, tomou a estrada, e a uma certa distância encontrou as duas mulheres que seriam suas vítimas; ele se joga sobre elas, corta a cabeça da primeira, abate a segunda, que tentava fugir, e corre atrás de um jovem que as acompanhava.

Mais adiante, ele encontra uma criança que não conhecia, persegue-a inutilmente e, tendo perdido a noção exata das coisas, vai em direção à cidade de Nazaré, e ao acordar encontra-se no hospital. Ao chegar na cidade, o criminoso entra numa venda, compra e toma um pouco de bicloruto de mercúrio e vai se entregar à autoridade judicial, confessando seu crime. Ele acrescenta que está envenenado; começa a vomitar; é então que o levam ao hospital no qual dá entrada como emergência.

Nos exames que fiz nesse individuo, estive principalmente preocupado com as modificações pelas quais a memória passou ou podia ter passado.

V... se lembra perfeitamente de ter atacado as duas mulheres e conserva, ainda que de maneira confusa, a lembrança de sua posição e do lugar onde elas caíram; ele lembra em parte da fuga, da perseguição da criança, mas sua memória não conserva traço do que se passou a partir de sua entrada na cidade, e o que ele sabe, ouviu dos soldados ou de outros detentos. Tem, no entanto, algumas lembranças e parece que com algumas informações sua memória revive, ao menos no que diz respeito a alguns pontos. Ele acredita em seu envenenamento, mas o atribui à bebida alcoólica que tinha tomado.

Como podemos ver ao examinar a Figura 3, V... é um negro muito preto com um leve grau de assimetria frontal; suas orelhas são muito deformadas. Ele é canhoto e tem uma certa fraqueza no membro inferior direito. Os membros superior e inferior do lado esquerdo são maiores do que os do lado direito. Ele conta que na adolescência contraiu uma moléstia na floresta que começou com uma completa perda de sentidos. Mas este é um ponto que não pude elucidar e não sei a verdade a este respeito.

Ao chegar à penitenciária, ele mostrou uma perda absoluta da memória e se queixava de fraqueza; tais incidentes desapareceram.

Ele está detido na penitenciária da Bahia há oito anos, sua conduta é excelente e ele aprendeu o ofício de charuteiro. Nunca teve ataques de qualquer tipo e ninguém observou que tenha tido ausências; sua humildade beira o servilismo: poder-se-ia falar de uma verdadeira apatia. Esse servilismo deve ser considerado elemento do caráter epiléptico, se lembrarmos que antes do crime ele era visto como violento e preguiçoso.

Assim, nesse indivíduo degenerado e impulsivo, as exaltações de uma briga com sua amante, talvez ampliadas pelas decepções causadas pela perda dos bens que ela herdou, e um certo ciúme, com a ajuda dos efeitos do álcool, provocaram uma crise de epilepsia psíquica que teve o crime como conseqüência e não mais se apresentou desde então.

O júri o condenou às galés perpétuas, considerando que o crime teve por motivo o desejo de se apropriar dos bens da vítima.

Podemos, então, concluir que o crime, como as outras manifestações de degenerescência dos povos mestiços, tais como a teratologia, a degenerescência-enfermidade e a degenerescência simples incapacidade social, está intimamente ligado, no Brasil, à decadência produzida pela mestiçagem defeituosa de raças antropologicamente muito diferentes e cada uma não adaptável, ou pouco adaptável, a um dos climas extremos do país: a branca ao norte, a negra ao sul.

A associação do crime a francas manifestações degenerativas e sua característica de retorno aos sentimentos indomáveis dos instintos inferiores, bárbaros ou selvagens, não deixa qualquer dúvida a esse respeito.

Vemos com freqüência entre pessoas da raça negra a sensualidade tomar um aspecto francamente patológico, ou pelo menos de degenerescência manifesta. Sabemos que nos Estados Unidos uma das causas mais freqüentes de linchamento nos estados do sul é a violação de jovens brancas pelos negros, que geralmente terminam por matar suas vítimas.

Temos procurado ver esses crimes como uma das conseqüências do ódio entre raças, tão intenso naquele país. A observação prova que, entre nós, casos análogos não podem ser interpretados desse modo e que eles freqüentemente se explicam por uma tendência sádica dos negros com temperamento epiléptico. A observação seguinte, publicada pelo Dr. Souza Gomes na Revista Médico-Legal da Bahia38 38 Souza Gomes, Criminologia brasileira, Revista Médico-Legal, p.135, 1897. é curiosa a este respeito e de fato comprovadora.

Observação XXXVI. No dia 31 de janeiro de 1895, às 11,30 da noite, num bairro do Rio de Janeiro, o negro Antonio Victor bateu à porta de uma família composta de três pessoas: o marido, a esposa e uma criança de cinco anos. Tendo a família se recusado a abrir e tendo o agressor insistido, o marido saiu com a esposa em busca de socorro, deixando na casa a criança dormindo. Ao voltar, encontraram a janela arrombada, a criança morta e violada, o negro deitado ao lado e, diz-se, fingindo dormir. O cadáver da criança estava coberto de contusões e o períneo inteiramente despedaçado.

Antonio Victor (Figura 4) tem 35 anos. O Dr. Souza Gomes o descreve da seguinte maneira:

"Grande corpulência, fronte estreita, rosto largo, arcadas superciliares proeminentes, espaço interocular grande, nariz pequeno (bem achatado), lábios grossos, prognatismo bem acentuado do maxilar superior, queixo afundado, lóbulos das orelhas aderentes, partes sexuais normais. Altura de 1,74. Envergadura de 1,84. Índice cefálico 77,94."

A impulsividade do agressor, que se traduziu na extensão das lesões produzidas; a imprevidência inexplicável de que ele deu provas ao permanecer deitado ao lado de sua vítima, os órgãos sexuais descobertos, até a volta dos pais, quando teria sido simples fugir; a recusa formal em confessar seu ato apesar da evidência esmagadora, tudo concorre para provar, ou ao menos permite acreditar, que o sono que fechava seus olhos no momento no qual foi encontrado, na posição que conhecemos, não era fingido, e devemos mais bem crer que era o final de uma crise epiléptica que não deixou no criminoso a menor lembrança de seu crime, daí sua negação obstinada.

Anexos1 1 As quatro genealogias que acompanham o artigo são um pouco confusas, já que não seguem qualquer notação convencional, sendo semelhantes ao quadro incluído ao final da observação número XXXII. Optei por descrever o conteúdo delas no primeiro quadro, que é o mais complicado de visualizar. Nos outros a tradução é literal. No primeiro, todas as definições dos personagens são de Nina Rodrigues; só estabeleci a relação entre eles. Agradeço a Maria Celina Pereira de Carvalho por ter feito a transposição dessas genealogias para sua forma convencional, incluídas a seguir.

Tábua genealógica 1

Esse quadro começa com duas irmãs, sobre as quais não se tem maiores informações, e apresenta a sua descendência. Vou chamá-las de irmã A e irmã B. A irmã A casou-se com um desequilibrado e teve seis filhos: (A1) uma mulher de boa saúde, casada com um mulato escuro, teve cinco filhos, dos quais um violento, impulsivo, e um imbecil; (A2) um homem colérico, inconstante, teve seis filhos, dos quais (2.1) uma, com boa saúde, casou-se com o filho imbecil de (A1) e tiveram três filhos com boa saúde e um que morreu de eclâmpsia; e (2.2) um idiota; (A3) um homem desequilibrado, que teve sete filhos de boa saúde; (A4) um homem desequilibrado, excêntrico, teve sete filhos. Esses sete são: uma mulher que estava bem; um homem que estava bem; um homem violento, colérico, com três filhos; um homem neuropata, que tinha retenção de urina e cinco filhos; um homem desequilibrado, mentiroso e criminoso, que teve cinco filhos com boa saúde; uma mulher colérica, violenta; e um homem degenerado, verdadeiro louco moral, que teve com uma negra uma filha adulterina anã. Este último casou-se com a primeira filha de (A5) e teve cinco filhos, um anão infantil e outro imbecil. O quinto filho da irmã A(5), afetado por tabes dorsalis, também teve sete filhos: uma mulher polisarcique; um homem com tabes dorsalis; um homem desequilibrado, com quatro filhos; uma mulher neurastênica hereditária; uma mulher de boa saúde, com quatro filhos; uma mulher alienada que morreu no asilo; e um homem alienado, que esteve internado no asilo e hoje se porta bem, com cinco filhos. O sexto filho da irmã A(6), homem com boa saúde, casou-se com a primeira filha da irmã B(1), mulher de boa saúde, e teve um filho homem desequilibrado e pródigo que, por sua vez, teve um filho ilegítimo, dispsomaníaco. O segundo filho da irmã B(2), era um homem de boa saúde, que não teve filhos. O terceiro (B3), era homem de boa saúde, que teve quatro filhos. O quarto (B4) era um homem diabético, que morreu paralítico e teve filhos com duas mulheres: uma mulata que lhe deu três filhos - uma filha com 11 filhos, um homem com quatro filhos, e uma filha com 15 filhos, dois natimortos, com o palato fendido - e uma índia que também lhe deu três filhos. Essa índia tinha uma irmã que teve uma filha imbecil e delirante. Com a índia ele teve um filho homem, imprevidente, com 12 filhos, dos quais uma filha, delirante, que se casou com um primo; um homem com boa saúde, 11 filhos, um degenerado físico; e um homem com poliomielite crônica, que se casou com uma mulher asmática, neurastênica hereditária de tendências melancólicas, estéril. Esta mulher tinha quatro irmãos: um homem com boa saúde; um homem com boa saúde, casado com uma moça muito degenerada; uma mulher casada, estéril; e um homem jovem degenerado, delirante. Os pais desses cinco irmãos eram uma mulher tísica, casada com um homem que morreu alienado e cujo pai também era alienado. Os irmãos da mãe eram uma mulher que morreu alienada; um homem casado, sem filhos, e uma mulher com boa saúde. Esta teve cinco filhos: uma mulher com boa saúde; um homem epiléptico que morreu afogado; um homem com boa saúde e 14 filhos; um homem com boa saúde, quatro filhos, um deles lydis-cefalique e uma mulher degenerada, maníaca.

Tábua genealógica 2

Essa tábua apresenta a descendência de uma mulher de boa saúde que teve 24 filhos dos quais os três seguintes são os mais curiosos: (1) uma mulher bem conformada, muitos filhos, um estropiado;(2) mulher bem conformada e de boa saúde, com 13 filhos, dos quais consideramos apenas dois: homem com boa saúde, teve cinco filhos, um dos quais é o criminoso Arayo,2 2 Pode ter sido um erro de composição e tratar-se de Araújo (Obs. XXXI). e mulher bem formada, casada com um primo. O terceiro (3) da segunda geração é uma mulher com boa saúde, teve nove filhos, dos quais um é o homem de boa saúde que casou com sua prima, bem formada. A descendência desses primos casados entre si é a seguinte: (1) M..., 23 anos, bom estado, casado, cinco filhos com boa saúde; (2) anão infantil: membros enterrados no troco, pés deformados (pied-bot varus double), escoliose. José, 22 anos, com 1,02 de altura, aspecto adolescente, ligeiro buço, mãos de homem; braço e antebraço muito curtos. Quando nasceu tinha apenas os pés deformados e encurtamento dos membros, quando começou a andar, a escoliose se manifestou, e os membros inferiores se afastaram de maneira pronunciada; não consegue ficar em pé sem apoio. Provavelmente inteligente, aprendeu a ler e escrever. Ferreiro, muito trabalhador. (3) C..., moça de 20 anos, boa saúde. (4) Josepha, moça de 18 anos, boa saúde. (5) Joaquim, 17 anos, boa saúde. (6) Infantilismo, deformação do tórax, peito de pomba, pés deformados (pied-bot varus double), escoliose. Paulo, 15 anos, 1,09 m de altura. O desvio da coluna vertebral e dos membros inferiores torna impossível a posição em pé e só lhe permite caminhar com dificuldade. Inteligência aberta, gosta muito de ler e de escrever. (7) Anão, membros enterrados no tronco, deformação dos pés (pied-bot varus double). Antonia, 14 anos, altura 0,93. Tronco e cabeça de uma menina de sua idade bem desenvolvida; os seios começam a aparecer. Braços e antebraços curtos, mãos desenvolvidas, como de adulto. Ligeiro desvio, sem deformação da coluna vertebral, caminha bem, mas se balançando. Corre, dança etc. Alegre, pouco inteligente. Aprende facilmente a ler e escrever graças a sua aplicação. Costura, borda. Coquete, gosto pronunciado por roupas. (8) Mesma deformação que Joanna, morta aos sete anos. (9) Infantilismo, membros enterrados no tronco, pés deformados (pied-bot varus droit et équin gauche), lordose, deformação dos membros inferiores. Crânio muito deformado. João, nove anos, altura 0,83. Vivo, sedutor e apesar de sua enfermidade, sobe pequenas alturas, desce etc. Figura 1. (10) Morto aos três anos. (11) Bem formado. Morto na primeira infância. (12) Waldimir. Boa conformação e boa saúde. (13) José, boa saúde; três meses.

Quadro 3

Uma família mestiça de degenerados3 3 No artigo original este quadro era apresentado no lugar das observações XIII e XIV, que não são relatadas.

Quatro membros infantis e estropiados: um epiléptico e um anão infantil.

Pai: M. C., 52 anos, hipoêmico, quase cego, catarata nos dois olhos; 14 irmãos; produto de pais com boa saúde. Mãe: Maria Maz, 48 anos; dez irmãos ou irmãs, uma estropiada. (1) Maria, 29 anos, boa saúde. (2) Teotônio, estropiado, morto com um ano. (3) José, 26 anos. Cabeça enorme, hidrocefalia, caolho. Epiléptico: acessos do grande mal freqüentemente repetidos. Aura visual com as cores brilhantes do arco-íris. (4) Manoel, 25 anos, boa saúde. (5) Anna, morta com dez anos; bem conformada. (6) Rozenda, 18 anos, impúbere, ainda não menstruada; quase anã; teve convulsões na infância, problemas oculares. (7) Idaline, 18 anos, boa saúde. (8) Firmina, estropiada, morta aos oito anos. (9) Porcina, estropiada, morta aos três anos. (10) Mariana, 14 anos, boa saúde. (11) Adélia, 13 anos, aspecto de uma criança de cinco anos, constituição muito frágil; membros muito longos e finos; grande desvio da coluna vertebral (escoliose) que só lhe permite a posição sentada; membros inferiores magros, coxas arqueadas, sem outro aspecto de deformação devido ao raquitismo; cabeça bem conformada; nunca pôde caminhar nem ficar em pé. A doença teve o mesmo curso entre as outras crianças estropiadas (Obs. XIV). (12) Morta. (13) Theodolina, 11 anos, boa saúde.

Notas de tradução

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  • 1
    Tradução de Mariza Corrêa do artigo "Métissage, dégénerescence et crime", publicado nos
    Archives d'Anthropologie Criminelle, v.14, n.83, 1899. O exemplar usado para esta tradução, cópia do existente na Faculdade de Medicina da Bahia, trazia uma dedicatória em francês, manuscrita, para Alfredo Britto, na qual só é legível a palavra
    amitié, assinada por Nina Rodrigues e com a data de 10 de janeiro de 1900. Abaixo, a informação sobre a editora: Lyon, A. Storck & Cie, Imprimeurs-Éditeurs; e a data.
  • 2
    Nota de tradução: conforme o frontispício do artigo.
  • 3
    Keane.
    Ethnology, Cambridge, 1896.
  • 4
    Gustave Le Bon,
    Lois psychologiques de l'évolution des peuples, Paris, 1895.
  • 5
    Enrico Ferri,
    L'omicidio nell'antropologia criminale, Torino, 1895.
  • 6
    Gobineau,
    Essai sur l'inegalité des races humaines, Paris, 1855.
  • 7
    Quatrefages,
    L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861.
  • 8
    Habitantes do estado ou província de São Paulo.
  • 9
    Agassiz,
    Voyage au Brésil, trad., 1869.
  • 10
    Gustave Le Bon, loc. cit.
  • 11
    Keane, loc. cit.
  • 12
    Frederick Hart,
    Scientific results of a journey in Brazil by Louis Agassiz and his travelling companions: Geology and physical geology of Brazil, London, 1870.
  • 13
    Pierre Janet,
    Traitement psychologique de l'hystérie. (Traité de thérapeutique appliqué d'Albert Robin), Paris, 1898.
  • 14
    Feré,
    La famille névropathique, Paris, 1894, p.14.
  • 15
    Verbete 'consanguinité',
    Dict. encycl. des sciences médicales, de Dechambre.
  • 16
    In Quatrefages,
    L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861.
  • 17
    Spencer,
    Essais scientifiques. La psychologie comparée de l'humanité, 1875, trad. francesa de A. Bendon, Paris, 1879.
  • 18
    Fouillée,
    Temperament et caractère selon les milieux, les sexes et les races, Paris, 1895.
  • 19
    Topinard,
    L'homme dans le nature, Paris, 1871.
  • 20
    Quatrefages,
    L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861, p.368.
  • 21
    Actes du deuxième Congrès international d'anthropologie criminelle, tenu á Paris, 1890, p.171.
  • 22
    Spencer,
    Principes de sociologie, trad. por E. Cazelles. Paris, 1886, p.83.
  • 23
    Fournier de Flaix, La criminalité aus États-Unies,
    Revue Scientifique, 1893.
  • 24
    Kocher,
    La criminalité chez les arabes en Algérie, Paris, 1884.
  • 25
    Bertholon, Esquisse de l'anthropologie criminelle des tunisiens musulmans,
    Archives d'Anthropologie Criminelle, 1889.
  • 26
    Lorion, Criminalité et médecine judiciaire em Cochinchine,
    Archives d'Anthropologie Criminelle, 1887.
  • 27
    Gentini, La criminalitá nel Messico,
    Archivio di Psychiatria,
    Scienze Penali ed Anthropologia Criminale, v.IX.
  • 28
    Corre,
    Etnographie criminelle, Paris, e
    Le crime en pays créoles, Paris.
  • 29
    Bevilaqua,
    Criminologia e direito, Bahia, 1896.
  • 30
    Candido Mota,
    Relatório, São Paulo, 1894.
  • 31
    Saraiva Salvinho,
    Relatório, Minas Gerais, 1894.
  • 32
    Nina Rodrigues,
    As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Bahia, 1894, p.148.
  • 33
    Nota de tradução: o caso vai aqui transcrito conforme consta em
    As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Salvador, Livraria Progresso Editora, 1957, p.189-193. Salvo outras pequenas variações, decorrentes da versão, as palavras ou trechos entre colchetes constam do livro e foram omitidos na versão francesa; as palavras ou trechos entre asteriscos foram acrescentados na versão francesa.
  • 34
    *Produto de branco e índio*.
  • 35
    Nota de tradução: de acordo com a frase seguinte, talvez o 'não' tenha sido incluído por erro de composição na edição brasileira.
  • 36
    Nota de tradução: aqui termina o trecho do original em português de
    As raças humanas.
  • 37
    Nota de tradução: se Clemente era tio por aliança de C. e D., teria sido casado com uma irmã do pai ou da mãe deles e, portanto, não era irmão do bisavô ou bisavó de Lino, mas sim seu cunhado. Ver, no final, as genealogias recompostas a partir da descrição de Nina Rodrigues, onde esta entra como a de número 4.
  • 38
    Souza Gomes, Criminologia brasileira,
    Revista Médico-Legal, p.135, 1897.
  • 1
    As quatro genealogias que acompanham o artigo são um pouco confusas, já que não seguem qualquer notação convencional, sendo semelhantes ao quadro incluído ao final da observação número XXXII. Optei por descrever o conteúdo delas no primeiro quadro, que é o mais complicado de visualizar. Nos outros a tradução é literal. No primeiro, todas as definições dos personagens são de Nina Rodrigues; só estabeleci a relação entre eles. Agradeço a Maria Celina Pereira de Carvalho por ter feito a transposição dessas genealogias para sua forma convencional, incluídas a seguir.
  • 2
    Pode ter sido um erro de composição e tratar-se de Araújo (Obs. XXXI).
  • 3
    No artigo original este quadro era apresentado no lugar das observações XIII e XIV, que não são relatadas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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