Resumos
O final do século XIX e o início do XX foram emblemáticos para a 'cientificização' da educação física no Brasil. A presente investigação se direcionou para o Brazil-Medico no período de 1887-1923, com o objetivo de identificar as compreensões de corpo e saúde, buscando-se contribuições para as bases científicas da educação física brasileira.
corpo; saúde; epistemologia; educação física; higiene
The end of the nineteenth century and beginning of the twentieth were emblematic in the 'scientifization' of physical education in Brazil. This examination of the journal Brazil-Medico during 1887-1923 seeks to identify views of the body and health as well as contributions to the scientific bases of physical education in Brazil.
body; health; epistemology; physical education; hygiene
NOTA DE PESQUISA
O Brazil-Medico e as contribuições do pensamento médico-higienista para as bases científicas da educação física brasileira
Brazil-Medico and the contributions of medical-hygienist thought to the scientific bases of Brazilian physical education
Maria Isabel Brandão de Souza MendesI; Terezinha Petrucia da NóbregaII
ICentro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte. Rua das Algas, 2190. 59090-410 Natal RN Brasil. isabelbsm1@gmail.com
IIPrograma de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Rua José Mauro Vasconcelos, 1915 bloco d/204 Capim Macio. 59082-210 Natal RN Brasil. pnobrega@ufrnet.br
RESUMO
O final do século XIX e o início do XX foram emblemáticos para a 'cientificização' da educação física no Brasil. A presente investigação se direcionou para o Brazil-Medico no período de 1887-1923, com o objetivo de identificar as compreensões de corpo e saúde, buscando-se contribuições para as bases científicas da educação física brasileira.
Palavras-chave: corpo; saúde; epistemologia; educação física; higiene.
ABSTRACT
The end of the nineteenth century and beginning of the twentieth were emblematic in the 'scientifization' of physical education in Brazil. This examination of the journal Brazil-Medico during 1887-1923 seeks to identify views of the body and health as well as contributions to the scientific bases of physical education in Brazil.
Keywords: body; health; epistemology; physical education; hygiene.
O final do século XIX e o início do XX foram emblemáticos para a 'cientificização' da educação física no Brasil, bem como para o seu reconhecimento na educação escolar, como ressaltam os trabalhos de Azevedo (1920; 1960), Soares (1994) e Vago (1999). O termo 'educação física' refere-se a uma prática social que desde a sua origem consiste no ensino de exercícios físicos, jogos e esportes nas instituições escolares, e que era denominada Ginástica científica (Soares, 1994).
No mencionado período, os fundamentos científicos da educação física baseavam-se no pensamento médico-higienista, estruturando-se principalmente nos conhecimentos biológicos. Considerando-se a relevância das contribuições do Brazil-Medico para a medicina brasileira, nos propomos a analisar o referido periódico no período de 1887 a 1923, tendo como foco a identificação das compreensões de corpo e saúde e buscando contribuições para as bases científicas da educação física brasileira. As matérias investigadas foram selecionadas através da relação com os seguintes temas: higiene, eugenia, cultura física, 'educação física e ciência.
O Brazil-Medico e o modelo de racionalidade
O periódico Brazil-Medico surgiu em 15 de janeiro de 1887. Era uma revista publicada semanalmente e tinha um vínculo com a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O doutor Azevedro Sodré, médico e professor, é considerado o criador e diretor dessa revista, como destacam Schwarcz (1993) e Becker; Paztmann e Gross (2003).
O Brazil-Medico também mantinha relações estreitas com a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, através da publicação das atas de reuniões e dos trabalhos dessa associação científica, que, considerada democrática e republicana, lutava pela modernização científica e institucional da medicina brasileira (Ferreira; Maio e Azevedo, 1998).
Um dos principais objetivos do Brazil-Medico era registrar e tecer comentários das experiências e pesquisas dos médicos nacionais, além de divulgar as experimentações novas desenvolvidas no Rio de Janeiro, com foco na área de doenças tropicais (Schwarcz, 1993).
No início da circulação do Brazil-Medico, o país passava por um movimento de renovação da medicina brasileira. Tal movimento teve origem no Rio de Janeiro e na Bahia a partir da década de 1870, e era "de cunho cientificista, contemporâneo ao advento das idéias positivistas e republicanas no Brasil, mobilizou médicos, intelectuais e políticos em torno de projetos que propiciaram o avanço do processo da institucionalização da medicina" (Ferreira; Maio e Azevedo, 1998, p. 482).
Nesse cenário, a revista carioca representou os desejos e obstáculos com que se deparava a medicina no Brasil. Destacava-se a necessidade de estabelecer bases próprias para alcançar a glória científica da República brasileira e para eliminar as misérias do planeta.
Compreendemos que as bases da educação física brasileira começam a ser construídas em um período no qual se busca a afirmação da ciência em meio à luta contra as epidemias que assolavam o país. O desejo de produção de teorias próprias e de não limitar-se à repetição do que vinha do exterior era expresso por Abreu Filho (nov. 1906), por exemplo, no projeto de criação do Instituto de Manguinhos.
A ciência era considerada capaz de predizer os acontecimentos e indicar meios de auxiliá-los ou impedi-los, conforme o caso. O determinismo destaca-se no Brazil-Medico quando, por exemplo, são ressaltadas as modernas concepções científicas alicerçadas no método positivo, tais como as doutrinas microbiológicas (A hygiene..., 1907).
Nessa perspectiva, opera-se com a previsibilidade absoluta dos fenômenos naturais, desconhecendo o acaso nas produções da ciência. Neste texto, refletimos sobre esse modelo de racionalidade e sua influência na compreensão do conhecimento do corpo e da educação física.
O modelo de racionalidade, pautado no método positivo, era destacado na retrospectiva de 1º de janeiro, e seu emblema eram as vivissecções e experimentações de Claude Bernard (Retrospecto..., jan. 1901). Não importava mais o 'porquê', buscava-se, então, o 'como' dos fenômenos. A precisão do método científico traria a certeza da verdade absoluta. Encontramos críticas à defesa da verdade absoluta no artigo de Ricardo (1922). Para esse médico, a ciência produzia verdades transitórias.
Percebemos ainda, que as pesquisas no periódico buscavam as leis correlatas dos fatos e desprezavam a verdade conhecida por meio de explicações místicas ou metafísicas. A luta entre a religião e a ciência patenteava-se no parecer emitido pela Comissão de Instrução e Saúde Pública, relatando a dificuldade de aceitação da vacinação e revacinação no país. Quanto aos que não aceitavam as explicações científicas, eram rotulados de retrógrados e incoerentes (Obrigatoriedade..., 1904).
Num contexto de afirmação das idéias positivistas de Augusto Comte, que influenciaram a origem da República no Brasil divulgava-se a promessa de que a 'sciência' traria obrigatoriamente ordem e progresso ao país. Ela permitiria a previsão dos fenômenos e as providências necessárias para intervir na realidade. Desse modo, o desenvolvimento ocorreria pelo aumento do conhecimento e do controle científico da sociedade. O progresso científico, nesse momento, é entendido como resultado de uma forma mais evoluída de fazer ciência, com o apoio de um processo cumulativo de conhecimentos e no propósito de superação das idéias obsoletas.
Essa visão de progresso 'scientífico' pode ser reconhecida, por exemplo, quando Barreto (1913) refere-se aos alicerces da 'hygiene' moderna, estabelecidos por Pasteur, e compara-os a explicações metafísicas em prol da comprovação experimental. Trata-se da idéia de que o presente é melhor e superior, se comparado ao passado, e o futuro será melhor e superior, se comparado ao presente. Assim, o modelo de racionalidade que prevalece segue os ditames da ciência moderna.
Desenvolvida com base na racionalidade técnica, a ciência moderna, em vez de utilizar a linguagem cotidiana para elaborar a razão, como fazia a ciência aristotélica, passa a se apropriar da linguagem matemática. Cabe geometrizar o mundo sensível, torná-lo passível de matematização. De descritiva, a ciência torna-se explicativa, e o seu desenvolvimento decorre do aperfeiçoamento do instrumental matemático (Châtelet, 1993).
O modelo de racionalidade técnica, ao influenciar as ciências médicas, também contribuiu com a construção das bases da educação física brasileira e da compreensão do corpo humano.
O índice de robustez e a busca por um corpo regenerado
Em um cenário marcado pela apropriação da linguagem matemática, a análise antropométrica contribuiu com o conhecimento do corpo humano, através de um processo de quantificação. Altura, peso e diâmetro do tórax são medidas que colaboram com a determinação de cada corpo humano e com a classificação das populações.
Em relação a esses procedimentos no Brasil, Kehl encarecia a importância da análise antropométrica, sugerindo que até aquele momento os resultados não eram dignos de validação científica porque se fundavam apenas na observação: "Avalia-se a robustez, a altura, o peso dum nortista, como do sulista, para comparações sem valor, nem segurança" (1920, p.280).
O médico argumentava, ainda, que nos países considerados cultos, além da realização do censo da população e das estatísticas demográfico-sanitárias, as estimativas antropométricas sempre estavam presentes. Essa aplicação era referendada pelo método de um médico militar francês, o dr. Pignet, que pretendia determinar o valor físico da pessoa. Este último equivaleria ao chamado índice de robustez de um indivíduo. Calcula-se pela fórmula E-(P+P), ou seja, subtraindo-se da estatura o resultado da soma do peso com o perímetro torácico de uma pessoa (Kehl, 1920).
Tomando-se a média mínima como normal, o brasileiro era considerado inferior perante o homem estrangeiro padrão, tido como forte e sadio. Os dados antropométricos também serviam para medir as diferenças regionais no interior do Brasil, caso dos sertanejos e das pessoas advindas de zonas insalubres consideradas inferiores, por sofrerem de verminoses e de taras "heredosyphiliticas" (Kehl, 1920).
Em meados do século XIX, com a frenologia e a antropometria, os conhecimentos biológicos são utilizados para explicar comportamentos humanos, supostamente regidos por leis naturais. Surgem tabelas para identificar criminosos e loucos por meio de uma classificação baseada nas formas corporais (Schwarcz, 1993).
Quando nos direcionamos para o Brazil-Medico, percebemos que os portugueses e os negros eram considerados inferiores, incultos e retrógrados, como demonstrava Barbosa (jul. 1917). Esse médico também destacava que grande parte dos brasileiros era analfabeta, o que agravava a situação de um povo mestiço que formava um país novo e sem tradições culturais.
As especificidades regionais, apesar de reconhecidas nesse período, serviam para hierarquizar as populações e eram valoradas segundo critérios de saneamento e de perfeição corporal. As hierarquias eram naturalizadas. Os corpos que não se submetiam a hábitos higiênicos eram considerados primitivos, incultos ou retrógrados, e os que apresentavam defeitos e imperfeições orgânicas, débeis e tarados.
Como podemos perceber pelo estudo de Costa (1999), a regulação da sexualidade foi longamente explorada pela medicina brasileira durante o século XIX e o sexo desregrado foi objeto de atenção incomensurável, visto que era considerado um perigo para a saúde física, moral e intelectual.
Os corpos que se desviavam dos hábitos higiênicos eram taxados de anormais ou 'jecas', na referência de Kehl (1920) à caracterização com que Monteiro Lobato designava os milhões de brasileiros que, em sua opinião, necessitavam de regeneração physica.
Exemplos de maus hábitos, como também de normas higiênicas e de exercícios ginásticos, aparecem nas ilustrações do livro de Kehl (1925), produzido para as mães e professoras com o intuito de promover a educação dos corpos. O dr. Renato Kehl queria acabar com a ignorância, reforçando a naturalização das hierarquias, valorizando a obediência aos preceitos da saúde e o desejo de regeneração do povo brasileiro.
A legitimação das classes e desigualdades sociais pelo conhecimento biológico, a partir do século XIX, e a aceitação da ordem estabelecida foram aprofundadas pela interpretação evolucionista que substituiu o que antes era considerado responsabilidade de Deus (Jacob, 1992).
A teoria de Darwin, rejeitada logo de início, foi compreendida numa perspectiva universalizante, de tal modo que a generalização do princípio da seleção natural passou a servir de apoio aos interesses capitalistas e colonizadores da sociedade industrial. Eles serviram de base tanto para o desenvolvimento do darwinismo como para o evolucionismo, que aparecem no século XIX como teorias ideológico-políticas, que servem à justificação científica das desigualdades sociais e do racismo (Canguilhem, 1977; Jacob, 1992).
A naturalização das diferenças tinha o propósito de submeter as nações a regras rigorosas instituídas mediante a discriminação de características físicas e presumíveis atributos morais. Apoiada no darwinismo, no evolucionismo e na eugenia, tinha como modelo universal o padrão europeu, sinônimo de sociedade civilizada pelo progresso e pelo desenvolvimento (Schwarcz, 1993).
O povo brasileiro, além de ser considerado ignorante, era reconhecido como feio, fraco, doente, sujo, imoral e preguiçoso. Com vistas a disciplinar os corpos nacionais, o Movimento Ginástico Europeu ofereceu suporte à educação física brasileira, contribuindo para formar uma nação padronizada, capaz de realizar o trabalho industrial, como podemos comprovar pelos trabalhos de Soares (1994; 1998) e Vago (1999).
Os médicos que publicavam artigos no Brazil-Medico buscavam um corpo padronizado, civilizado, culto, ordenado, equilibrado, sem excessos, saneado, aperfeiçoado, regenerado, disciplinado e sem defeitos. Um físico baseado na melhor raça, ou seja, naquela considerada superior, cujo modelo eram os estrangeiros. Contudo, Peixoto (set. 1922), mesmo reconhecendo que o povo brasileiro estava longe de alcançar a perfeição nos moldes estrangeiros, julgava uma calúnia considerá-lo de todo doente. Seus argumentos baseavam-se no fato de que os doentes não contribuem para o aumento da população nem trabalham e, no entanto, o Brasil nesse período crescia, aumentava sua produção, consumo e exportação. Para ele, a opinião, segundo a qual os brasileiros não eram homens sadios porque tinham lombrigas servia de pretexto médico e político para mensagens e discursos de salvação pública.
A saúde como ordem e medida
Entre o final do século XIX e o início do XX, diversas moléstias multiplicavam-se no cenário brasileiro. Febre amarela, cólera, malária, tuberculose, peste e doenças venéreas são as mais citadas nos artigos dos médicos. Naquele período não se conseguia atender ao aumento desordenado da população urbana, e os estrangeiros não queriam desembarcar no país por considerá-lo insalubre. A vacinação não era compreendida e era impossível ser civilizado e não ter hábitos de higiene. Além disso, não só a doença afetava o indivíduo e a população, mas também suas contínuas seqüelas traziam prejuízos à raça e à economia da nação (A demografia..., fev. 1887; Moncorvo Filho, set. 1900; Mello, 1904; Barbosa, Vianna, mar. 1914.
O conceito de saúde era influenciado pela confiança nos progressos e nas descobertas recentes que deveriam sanar os males e desenvolver o país. O desafio para o sanitarismo não consistia apenas em suprimir as doenças e diminuir a mortalidade geral, mas também em popularizar noções indispensáveis aos cuidados com a saúde.
O conceito de saúde elaborado com base em preceitos médicos e biológicos incorpora-se à educação física. No Brasil, o povo é considerado fraco por seus hábitos anti-higiênicos, "de vida encerrada e de vida imóvel, passo enleiado, postura canhêstra, corpo encurvado e fôlego curto" (Barbosa, mar. 1916, p.75).
Ser saudável significava eliminar tudo o que os médicos consideravam como prejudicial à machina humana, a exemplo dos países considerados civilizados. Saúde era eliminar as moléstias e tornar as pessoas normais. Saúde era não apresentar nenhum defeito físico, nem sofrer de tara alguma. Para a saúde física, também era necessária a saúde moral. Evitar os excessos: vícios, decadência, uso de afrodisíacos, prazeres e jogos, ou seja, tudo o que era considerado depravação e motivo de enervamento dos antigos povos, enfraquecidos física e moralmente (Almeida, 1902).
Era preciso sanear materialmente a cidade, para saneá-la moralmente. Os médicos defendiam a reprodução da espécie, em nome da qual condenavam as extravagâncias. Potência, energia, vigor, virilidade, exercícios moderados eram valorizados, bem como o casamento, fonte de renovação e multiplicação das populações (Almeida, 1902).
O conceito de reprodução até o final do século XVIII acreditava-se que os seres eram criados por intervenção direta das forças divinas põe em evidência a propriedade interna de todo sistema vivo, uma vez analisados os domínios da fisiologia pelos métodos e conceitos da física e da química (Jacob, 1983).
A diferença anatômica do corpo feminino ganha evidência, contribuindo para a exaltação das desigualdades entre mulheres e homens. Fragilidade, delicadeza e submissão tornam-se atributos da natureza feminina, enquanto na masculina imperam a força, o vigor e a altivez. Feminilidade e maternidade, masculinidade e paternidade convertem-se em padrões reguladores, e o casamento, em garantia da constituição de uma prole robusta (Costa, 1999).
Restrita a sexualidade à reprodução, a masturbação era classificada entre as taras às quais se referiam os médicos. O indivíduo poderia ser culpado tanto por suas taras quanto pelas de seus filhos, já que eram transmitidas hereditariamente, como mostrava Armbrust (1916a; 1916b).
Cuidar da saúde, evitar vícios, promover casamentos entre os indivíduos mais aptos eram medidas que favoreciam a geração de descendentes com caracteres ótimos e concorriam para evitar ameaças à espécie humana, assim como para exterminar o problema social da lotação dos hospitais, dos asilos e das prisões pelos doentes, reconhecidamente degenerados (Kehl, 1917).
A idéia de que os caracteres adquiridos poderiam ser transmitidos hereditariamente também é explorada no artigo de Ricardo (1922). Era possível alcançar o necessário para a regeneração da raça, já que caracteres selecionados poderiam ser herdados pelos filhos.
O argumento também era um dos trunfos de Fernando de Azevedo para justificar os méritos da educação física nesse período:
O exercicio esta maravilhosa acção mecânica, é que corrige e modela a estructura humana. Quando, pois, persistindo a causa durante varias gerações, a herança fixa definitivamente os caracteres adquiridos, as modificações anatômicas assim produzidas tornam-se permanentes e chegam á constituição de espécies novas, de maneira que uma adaptação a uma funcção útil póde definitivamente fixar-se sob fórma de um caracter ethnico, assim como a atrophia de certos órgãos póde chegar ao desapparecimento ethnico. (Azevedo, 1920, p.22)
Desse modo, a educação física poderia colaborar para a transformação social tão almejada na época. Melhor dizendo, era um elemento extremamente importante para regenerar a raça brasileira. Para modelar os indivíduos e alcançar uma nação perfeita, bela, sem defeitos ou doenças. Era necessário, portanto, direcionar suas ações.
Modelos de alimentação e de ginástica iam se difundindo na sociedade, concorrendo para a positividade da saúde.1 1 A instauração da positividade da saúde surge na medicina européia a partir do final do século XVIII (Foucault, 2001). Uma das finalidades da alimentação era manter a vida, fornecendo substâncias à sua conservação e seu desenvolvimento pela quantidade certa de albumina. A partir da ligação da biologia com a termodinâmica na metade do século XIX, firma-se a idéia de que, para realizar qualquer movimento, o corpo precisava converter energia química em ação mecânica mediante a combustão de alimentos, destaca Jacob (1983).
No entanto, a alimentação também estava relacionada à idéia de amansar as pessoas. Armbrust (1916b, p.45) não tinha dúvida de que
a alimentação exerce notável influência sobre o temperamento dos indivíduos e das raças. Os povos que abusam da carne, são menos pacíficos do que os que se alimentam de legumes, cereaes e fructas. Os animaes carnívoros são geralmente selvagens e perigosos, ao passo que os herbívoros deixam-se domesticar facilmente. A alimentação carnea, mais ou menos exclusiva, é um dos factores do temperamento rude e violento do indivíduo.
Com relação às formas de exercício, a ginástica respiratória e a ginástica sueca eram modelos para a re-educação respiratória, afirmava Rosenthal (1904). Entretanto, o banho ao ar livre, a natação e o mergulho eram considerados mais eficazes para o fortalecimento da resistência orgânica, como mostrava Barbosa (mar. 1916), levando-se, aqui, em conta os países de cultura física mais cuidada. Para esse médico, principalmente a falta de exercício físico e de vida ao ar livre fazia do povo brasileiro um dos mais fracos do mundo, diferentemente do alemão, do inglês e do norte-americano, tidos como os de maior vigor e desenvolvimento físico.
A prescrição de exercício e de vida ao ar livre também foi influenciada pela microbiologia. Pasteur destaca-se nas publicações do Brazil-Medico como responsável por desvendar os segredos misteriosos e intangíveis dos miasmas2 2 Os miasmas eram considerados a causa das doenças antes dos estudos microbiológicos de Pasteur, e significavam as emanações fétidas de animais ou plantas em decomposição. e por superar a teoria da geração espontânea3 3 A teoria da geração espontânea supõe a ação de um princípio ativo sobre a matéria inanimada. , como ressaltava Barreto (1913). Seus estudos mostraram que a vida surge sempre de outra vida, e fizeram que o vitalismo ganhasse vigor novamente. Eram os alicerces da higiene àquela época, mostrando o papel etiológico dos micróbios e firmando os preceitos profiláticos da espécie. Vigarello (2002) salienta que a água era reconhecida como eliminadora dos micróbios, da sujeira, transformando a lavagem em assepsia. Ser limpo era atuar sobre agentes invisíveis, bactérias, protozoários e vírus. As doenças epidêmicas passavam, então, a ser consideradas decorrentes da ignorância ou da falta de cuidados dos povos e dos indivíduos. Não obstante Pasteur reconhecer as imunidades, relativizando a nocividade microbiana, tendo em vista as defesas específicas do organismo, a limpeza, em lugar de ser secundarizada, adquire uma dupla função. Não só é capaz de eliminar o micróbio como também de oferecer-lhe resistência.
Barbosa (mar. 1916) abordava a importância da vida ao ar livre e da cultura física, destacando serem os principais responsáveis pelo aumento da resistência vital. É curioso que o higienista visse o excesso de vestimentas, ao contrário, como prejudicial, pois ele assim se afastava dos moldes europeus. Também é interessante perceber como o discurso científico foi capaz de combater o excesso de pudor no Brasil, numa época em que o que parecia depravação era veementemente repudiado pelos próprios médicos. A diminuição da vestimenta, entretanto, tinha objetivo específico: acostumar o corpo ao ar, tendo em vista que a limpeza corporal estava associada à limpeza dos poros.
Portanto, nesses moldes, saúde significava ter uma função respiratória adequada para manter a vitalidade do pulmão e, favorecendo a oxigenação e circulação do sangue, evitar que fosse presa fácil do bacilo da tuberculose. Saúde também significava ser capaz de eliminar os micróbios, bem como ser resistente a eles. Significava ser capaz de evitar o contágio e não estar infectado, ter o físico e a moral revigorados por meio de uma normalidade ideal, ditada pelos preceitos médicos.
Nesse período, os médicos brasileiros levantavam fatores diversos para explicar a falta de saúde, tais como as desigualdades econômicas, responsáveis pela perda dos bons costumes. Referiam-se às luxúrias e aos vícios, que corrompiam a saúde e destruíam as fontes da vida, ou seja, impediam a reprodução da espécie (Almeida, 1902). Outros fatores diziam respeito à insalubridade das cidades, à recusa da vacina, ao excesso de álcool, às condições desfavoráveis de alimentação e habitação, à falta de contato com a luz solar e à fraqueza advinda da falta de cultura física, para citar alguns deles.4 4 Ver, por exemplo, Lima, 1899; Almeida, 1902, Rocha, jun. 1903; Galvão, nov. 1905; Kehl, 1920; Seidl, 1904; Lessa, ago. 1909; Lima, jun. 1905; Peixoto, 1904; Barbosa, 1906; Notas..., 1907, 1908; Armbrust, 1915a, 1916b; Ricardo, 1922; Fontes, 1921; A última..., 1899; Juillerat, 1908; Moncorvo Filho, 1917; Piçarra, 1908; Ferreira, 1909; Moncorvo Filho, 1911; Barbosa, mar. 1916, jul. 1917; Clark, maio 1916; Sá, 1922.
Mesmo com tantos fatores relacionados à perda da saúde, o ideal da educação física regulava-se pelo índice de robustez e pelo desempenho em provas atléticas, que determinavam a aptidão física de cada pessoa. O índice de robustez indicava a aptidão teórica, ou seja, o valor funcional do organismo. Com as provas atléticas, media-se a aptidão prática, denominada de valor dinâmico do organismo (Fróes, jul. 1923). Desse modo, percebemos que o nível da aptidão física designava o de saúde e era estabelecido pelas variações quantitativas entre o normal e patológico.
Como mostra Canguilhem (2002), a doença é verificada apenas pela sua variação quantitativa em relação à saúde. Ela é identificada por sua localização em alguma parte do corpo, o que leva a crer que, se nada for localizado, o ser humano encontra-se saudável. Esse conceito, assentado em variações quantitativas, é reforçado pela busca de um tipo idealizado de saúde, aquele que é considerado normal. Entretanto, esse 'normal' não é determinado por variações individuais, mas sim pela média resultante de uma relação de mensurações.
Considerações finais
Foi nesse contexto epistemológico do final século XIX e início do XX que as bases científicas da educação física brasileira construíram-se, amparadas no pensamento médico-higienista. Como sugerem os sentidos atribuídos aos conceitos de corpo e de saúde que emergem das publicações analisadas no Brazil-Medico, esse processo de cientificização caracterizou-se no momento em que o país apostava numa ciência original, embasada nas especificidades nacionais para curar seus males, diagnosticar o presente e prever o futuro. Isso num tempo em que combater as doenças que assolavam o país, preveni-las, promover a saúde, regenerar a raça, impor a ordem e a disciplina são ações traduzidas como novas verdades. Verdades disseminadas em prol do progresso e do desenvolvimento apoiados nos padrões de civilidade. Tempo de paradoxos, em que alguns cientistas preocupavam-se com as políticas públicas de saúde, mas valiam-se de discursos 'salvacionistas', e, defendendo a elaboração de teorias próprias, ainda se guiavam por modelos estrangeiros. Acabavam estigmatizando o povo brasileiro, apesar de lutarem pela diminuição das desigualdades sociais.
Época em que as descobertas científicas, ao mesmo tempo em que beneficiavam a saúde da população, justificavam as hierarquias sociais. E os corpos, em sua diversidade, deveriam se enquadrar nos moldes europeus e se classificarem pela forma física, pelas aparências.
As informações extraídas do Brazil-Medico são importantes para conhecermos o papel do pensamento médico-higienista na formação dos princípios científicos da educação física brasileira e identificarmos contemporaneamente as rupturas e continuidades em relação a eles.
NOTAS
Recebido para publicação em outubro de 2005.
Aprovado para publicação em abril de 2007.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Abr 2008 -
Data do Fascículo
Mar 2008
Histórico
-
Aceito
Abr 2007 -
Recebido
Out 2005