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Ngugi Wa Thiong’o: os percursos de um escritor queniano na historiografia literária

Ngugi Wa Thiong’o: The Paths of a kenyan Writer in Literary Historiography

Resumo

O presente artigo pretende discutir como o escritor queniano Ngugi Wa Thiong’o aborda a história de três de seus livros: Um grão de trigo, Descolonizar a mente e Memórias em tempos de guerra. Em um primeiro momento, elabora-se uma introdução a respeito de como o autor foi estudado no Brasil, passando a seguir para uma discussão de como ele desenvolveu sua historiografia literária em três momentos que vão da escrita em inglês, seguindo pela crítica ensaística e chegando à consolidação madura de suas abordagens. Espera-se com o artigo contribuir para os estudos em teoria da história, sobretudo com autores fora do eixo Europa-Estados Unidos.

Palavras-chave:
Ngugi Wa Thiong’o; Historiografia; Teoria da História; Quênia; Literatura

Abstract

The present article aims to discuss how kenian writer Ngugi Wa Thiong’o approaches history within three of his books: A grain of wheat, Decolonizing the mind and Memories in times of war. At first, an introduction is elaborated about how the author was studied in Brazil, going on to a discussion of how he developed his literary historiography in three moments ranging from writing in English, going through essay criticism and arriving at mature consolidation of its approaches. The article is expected to contribute to studies in the theory of history, especially with authors outside the Europe-United States circuit.

Keywords:
Ngugi Wa Thiong’o; Historiography; Theory of History; Kenya; Literature

O aclamado pensador africano Ngugi Wa Thiong’o pode ser caracterizado como um autor que investiga as muitas histórias das várias Áfricas possíveis dentro do campo da literatura, embaralhando fronteiras entre fato e ficção. Apresentamos a tese de que ele procura fortalecer a compreensão contextual dos tempos e lugares que narra utilizando a literatura de resistência ao imperialismo. Objetiva-se demonstrar como foi desenvolvido esse olhar por meio do uso de uma perspectiva crítica que vai acirrando a linguagem de confronto até que, por fim, consolida uma historiografia literária.

Para Thiong’o a literatura não é uma mera fruição prazerosa, sobretudo para alguém como ele, que defende uma verdadeira política de intervenção cultural na África como um todo, visando valorizar as línguas do continente. Em uma recente entrevista citou o caso da Costa do Marfim, que possui 62 línguas nativas e o francês, dizendo que toda criação literária escrita ali deveria ser traduzida para o maior número possível delas (THIONG’O, 2018THIONG’O, Ngugi Wa. Entrevista com Ngugi Wa Thiong’o. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 38, n.1, p. 260-268, jan-abr, 2018., p. 265). Com essa meta de valorizar os fazeres culturais, sempre discute a condição de opressão dos países africanos no pós-independência, sobretudo no Quênia, onde, nas suas palavras, o campesinato e as pessoas comuns ainda são marginalizadas. Talvez por essas falas flagrantemente militantes, seja sempre um eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura desde 2010 (THIONG’O, 2019THIONG’O, Ngugi Wa; Ngugi Wa Thiong’o: “Eu quero competir com Cervantes” [entre vista]. El País, Madrid, 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/16/cultura/1555409123_289052.html . Acesso em: 23 jun. 2020.
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04...
).

A perspectiva é compreender que por meio da literatura desse autor se pode estudar a história do Quênia, das muitas Áfricas, enfim, pensar mesmo a historiografia para além dos limites estritos da academia. É possível dizer que a própria história daquele continente não seria compreensível sem a produção literária desse e outros literatos, que lançam problemáticas imprescindíveis para o entendimento dos contextos em que vivem vários povos. Não pretendemos enquadrar Thiong’o dentro de uma historiografia literária na qual sua obra seja formalmente compreendida apenas dentro das relações com outras, de uma dada evolução temporal com gêneros e tipos de escrita (KARVAT, 2017KARVAT, Erivan Cassiano. Entre o cânone e a história: notas sobre historiografia literária e escrita da história. Revista da Associação Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre, v. 11, n. 14, p. 117-140, 2017., p. 128 et passim), mas como algo elaborado propositalmente para questionar a história do Quênia e da África por meio de produtos literários.

Assim, buscamos brevemente apresentar como ele foi lido no Brasil, para que possamos assim demarcar essas posições militantes de uma determinada posição teórica e, posteriormente, nos distanciarmos delas. Isso se faz necessário porque elas levam o escritor para análises pós-modernas, o que é uma grande contradição com o analisado como veremos.

Apesar de ser reconhecido em vários países mundo afora, Thiong’o era pouco lido no Brasil até recentemente. Ganhadores africanos do prêmio Nobel possuem uma entrada maior no país como J. M. Coetzee e Wole Soyinka, mas nosso escritor faz parte de uma recente onda de publicações que incluem José Eduardo Agualusa e Chimamanda Ngozi. Talvez isso explique o baixo número de pesquisas sobre esse nome da produção cultural do Quênia.

Ressalta-se, porém, que quantidade não significa qualidade como bem demonstra um dos primeiros artigos sobre ele no Brasil, escrito por Tiago Horácio Lott. Ali estuda-se o problema da tradução operada pelo pensador em tela numa importante decisão que tomou na década de 1970, quando deixou de escrever em inglês e passou a utilizar sua língua materna, gykuyu. Essa opção em abandonar o que seria a língua maior, para autores como Gilles Deleuze e Felix Guattari, foi motivada pela autoafirmação identitária, que inaugurou a literatura escrita dentro de uma língua predominantemente oral (LOTT, 2013LOTT, Tiago Horácio. A tradução e o cruzamento de fronteiras: o caso de Ngugi Wa Thiong’o. Rónai: revista de estudos clássicos e tradutórios, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 105-116, 2013., p. 107).

Lott entende que isso configurou-se como uma estratégia de sobrevivência e um recurso intelectual fundamental, tendo em vista que ele passou a dar conta de suas tradições locais dentro de um circuito híbrido, já que trazia consigo outros contatos linguísticos. Thiong’o só teria conseguido esse lócus intermediário atuando no universo da tradução, movimentando-se entre as tradições estrangeiras e domésticas por onde vivia (LOTT, 2013LOTT, Tiago Horácio. A tradução e o cruzamento de fronteiras: o caso de Ngugi Wa Thiong’o. Rónai: revista de estudos clássicos e tradutórios, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 105-116, 2013., p. 107-108).

Começar a escrever em inglês, passar depois para gykuyu e, daí, editar seus textos em diversas outras línguas representou uma mudança formidável, tanto que ele próprio atuou algumas vezes na tradução de seus textos. Essa característica trouxe mais vida aos livros dele e atraiu Maria Alice Gonçalves Antunes, que também investiga essas problemáticas tradutórias. Ela conta que até 1976 o queniano não tinha problemas em escrever noutra língua, mas naquele ano foi preso e, no cárcere, decidiu escrever Caitani Mutharabaini, publicado em 1980 e que ele mesmo traduziu para o inglês como Devil on the cross (algo como O diabo está na cruz).

Até 1996 ele foi um escritor proibido no Quênia, tendo em vista que sua obra se tornou um espaço de denúncia, sendo a tradução mais uma crítica usada por ele fora de seu país. Antunes ressalta que Thiong’o, para além dessa esfera de atuação política, escolheu escrever seus romances em gykuyu (ou, também, Kykuyu) para mostrar que o idioma africano pode ser uma linguagem literária também (ANTUNES, 2018ANTUNES, Maria Alice Gonçalves. Autotradução e exílio: um estudo dos casos de Ngugi Wa Thiong’o e Ariel Dorfman. Cadernos de Tradução, Florianópolis, p. 127-145, v. 38, n. 1, jan-abr 2018., p. 134-139).

Eis, então, um dos processos presentes nos textos desse pensador que foram questionados por essas pesquisas, o de que se coloca em um espaço híbrido de produção e que intelectualmente procura situar uma língua eminentemente oral no cenário da escrita. Suas falas contundentes contra as opressões colonialistas, contudo, foram fonte para outros artigos. Um deles, de Elizandra Fernandes Alves, é exemplar nesse sentido.

Alves explica que um fator importante do colonialismo francês na Argélia, Costa do Marfim, Nigéria e Quênia foi justamente a visão de bloco para descrever populações diferentes como bárbaros desprovidos de inteligência. O questionamento desse modo de ver aparece na construção dos personagens criados por Thiong’o para o entorno de Mariamu, um jovem africano retratado como feliz, que imita brancos. Seus pais eram frequentadores assíduos da igreja cristã e recebiam de bom grado a ajuda condescendente dos fazendeiros brancos.

Discutindo o conceito de analfabetismo da imaginação, Alves demonstra como o escritor queniano adentra na crítica as questões coloniais quando demonstra a conversão do pai de Mariamu, Wariuki. Ele muda seu nome para Dodge W. Livingstone Jr, abre um pequeno negócio comercial e vira um presbítero, ou seja, “nessa perspectiva, percebemos que o discurso ideológico dominante do processo imperial se revela na imposição de seus valores morais, sua ética, sua política, sua religião, sua linguagem etc” (ALVES, 2017, p. 7-14).

Com o intuito de ampliar o entendimento sobre como nosso autor critica o imperialismo com suas fases colonial e neocolonial por meio da literatura, Yéo N’gana traduziu para o português uma intervenção feita por Thiong’o ao jornal Le Monde da França em 1986. Ele descrevia os produtos literários de franceses, ingleses e portugueses sobre povos africanos como “uma literatura africana eurófona” e N’gana propõe uma utilização teórica dessas observações para o Brasil. Isso porque se há na África a produção de uma visão colonialista na literatura, na América Latina como um todo houve imposições semelhantes (N’GANA, 2018N’GANA, Yéo. Uma tradução de Décoloniser l’esprit de Ngugi Wa Thiong’o. Rónai: revista de estudos clássicos e tradutórios, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 93-102, 2018., p. 94).

Contextualizando nosso analisado, o articulista propõe cinco chaves de leitura: a) de que o inglês e o francês para o queniano são línguas do imperialismo, devendo ser abandonadas para um devido comprometimento com a emancipação; b) a escrita em línguas africanas é um direcionamento para populações que não compreendem as línguas imperiais, fugindo assim de uma visão voltada para as elites; c) a escrita nas línguas maternas permite uma expressão mais adequada do contexto cultural africano; d) essa escritura permite o compartilhamento de tradições maternas com o conhecimento moderno que os escritores adquiriram; e) a escrita nas línguas maternas contribui para o desenvolvimento delas, principalmente no que diz respeito às suas preservações (N’GANA, 2018N’GANA, Yéo. Uma tradução de Décoloniser l’esprit de Ngugi Wa Thiong’o. Rónai: revista de estudos clássicos e tradutórios, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 93-102, 2018., p. 94-95).

N’gana demonstra, assim, as nuances de um projeto que visa revigorar as identidades de povos africanos, fortalecer, preservar e divulgar as línguas maternas do continente, combatendo visões colonialistas. Aponta que Thiong’o não abandona as interconexões com ingleses e franceses, só as insere numa proposta onde a baliza seja colocada pelas populações locais. A biografia intelectual proposta por Bruno Ribeiro de Oliveira sobre ele entre os anos de 1964 e 1985 aponta outras faces desse projeto descolonizador.

Ribeiro visualiza que ao longo de seus estudos acadêmicos na Inglaterra ele vai se tornando um marxista convicto, tanto que seu livro Pétalas de sangue, escrito ainda no ano de 1977, tem como inspiração as referências de Lênin e Frantz Fanon para se pensar a África. A partir dali os pequenos conflitos da vida aldeã não são mais vinculados aos tormentos pessoais dos personagens, mas partes de uma engrenagem das grandes estruturas de dominação sobre a África e seus indivíduos (RIBEIRO, 2018RIBEIRO, Bruno. Ngugi Wa Thiong’o: o percurso de um intelectual africano e a história do Quênia (1964-1985). Revista Métis: história & cultura, Caxias do Sul, v. 17, n. 34, p. 205-228, 2018., p. 211).

Thiong’o elabora, ainda segundo Ribeiro, uma contribuição original a esse olhar marxista, quando propõe uma temporalização do imperialismo em solo africano. Num primeiro momento essa estrutura caminha pelo objetivo de domínio econômico, controlando recursos e o trabalho das pessoas. A seguir introduz um imperialismo político, que corresponde ao arcabouço jurídico e estatal para operacionalizar o funcionamento da economia. E, por fim, há o nível cultural, em que se objetiva manter o controle dos valores, identidades e os modos como as pessoas se veem (RIBEIRO, 2018RIBEIRO, Bruno. Ngugi Wa Thiong’o: o percurso de um intelectual africano e a história do Quênia (1964-1985). Revista Métis: história & cultura, Caxias do Sul, v. 17, n. 34, p. 205-228, 2018., p. 212).

Esses artigos podem ser situados nos estudos literários, tendo um foco direcionado para os debates pós-coloniais e pós-estruturalistas. O exercício laborativo de ler o escritor africano nesse cenário é sedutor na medida em que se pode concordar com os termos pós-modernos para descrever alguém cujas bases situam-se noutro rumo, dentro do marxismo. Em Descolonizar a mente, publicado originalmente em 1986, deixa claro que tanto o escritor quanto um médico devem ser pautados pela verdade, para que assim possam analisar rigorosamente a realidade. A escrita literária africana assume, para ele, um papel libertador de compreensão das pessoas com o universo (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book].). Ao longo dessa breve análise que hora propomos, iremos ler esse livro junto com Sonhos em tempo de guerra, que saiu em 2010, e Um grão de trigo, do ano de 1967 (THINOG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a.; 2015bTHIONG’O, Ngugi Wa. Um grão de trigo. Rio de Janeiro: Objetiva , 2015b.).

O primeiro é uma investigação acadêmica de padrão clássico com objetivos claros, métodos e teses a serem defendidas. Já os dois últimos são obras literárias de dois momentos distintos: um produto da maturidade, no qual avalia suas vivências da infância, e um romance de juventude, escrito numa época de grande efervescência na história queniana.

Antes do rompimento

Um grão de trigo é concluído em 1967, sendo um livro gestado 10 anos antes dele romper com a escrita inglesa, situando-se, porém, em um amplo debate que o autor queria travar com a trajetória contemporânea do Quênia. Era seu terceiro romance e de acordo com os comentaristas foi o que solidificou sua forma narrativa, que guardou por toda sua trajetória e caracteriza-se por inserções diretas de narrativas contextuais, que recobrem os dramas envolvidos. Exemplo de uma dessas passagens é quando mapeia a independência queniana em 12 de dezembro de 1963, discutindo o alvoroço que foi o hasteamento da bandeira nacional naquela noite, quando os quenianos demonstraram publicamente seu estranhamento com o passado inglês (GIKANDI, 2015bGIKANDI, Simon. Introdução. In: THIONG’O, Ngugi Wa. Um grão de trigo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015b., p. 8).

Os movimentos que levaram a esse dia vão sendo tratados ao longo do romance como um exercício de estudo, porque ele vai trazendo ao leitor casos individuais, que sempre são determinados pelo evento e que ajudam a problematizá-lo. Num desses movimentos, acontecido dois dias antes da declaração de independência, um personagem chamado Karanja se perguntava se o administrador Thompson iria embora. Isso porque para aquele, este

sempre desempenhara o papel de símbolo do poder branco, irremovível como uma rocha, um poder que construíra a bomba e transformara um país feito de matagais e florestas em cidades modernas, estradas de asfalto, veículos motorizados, amor aos cães, ferrovias, aviões e prédios cujas torres arranhavam o céu - e tudo isso num período de sessenta anos (THIONG’O, 2015bTHIONG’O, Ngugi Wa. Um grão de trigo. Rio de Janeiro: Objetiva , 2015b., p. 194).

Nesse processo que leva a independência, os questionamentos dos quenianos para com os ingleses se expressam nos pensamentos de Karanja, que via Thompson como um ferrenho defensor da causa neocolonialista (era uma verdadeira rocha). O personagem problematiza o embate entre as nacionalidades africanas, vivendo em regiões cujo ambiente natural se apresenta preservado e o colonizador, que trazendo elementos modernos em poucas décadas, alterando a paisagem, constrói visões estranhas aos locais, como o amor aos cães.

Thiong’o, porém, assume determinado apresso à modernidade, isso porque o ambiente natural em que viviam os africanos é visto por ele como atrasado. O peso subliminar da palavra ‘matagais’ apresentada em primeiro plano é forte demonstrativo disso, o que é, também, um indicativo das suas próprias leituras filosóficas de mundo, que não se prenderá a determinados arcaísmos econômicos e sociais. Suas críticas não irão se direcionar apenas a ingleses, mas também a certos costumes dos povos originários que não se enquadram em suas interpretações.

Assim, Um grão de trigo é uma obra inicial, na qual a predileção marxista dele não está enfatizada, mas clarifica essa sua perspectiva crítica, que visa a autonomia dos povos africanos. É um romance de uma trajetória em construção, em que as violências dos colonos ingleses afloram como denúncia. Esta vem em várias passagens como a que fala das passeatas de 1923, lideradas por Harry Thuku, e que tratam da repressão:

No quarto dia eles avançaram, cantando. A polícia, que estava esperando por eles com fuzis com baionetas, abriu fogo. Três sujeitos levantaram os braços no ar. Dizem que quando caíram apanhavam terra com as mãos que se fechavam. Outra descarga dispersou a multidão. Um homem e uma mulher caíram, jorrando sangue. As pessoas corriam em todas as direções. Dentro de poucos segundos a grande multidão se dispersara; nada restou senão cento e cinquenta manifestantes estropiados no chão, do lado de fora do palácio do governador (THIONG’O, 2015bTHIONG’O, Ngugi Wa. Um grão de trigo. Rio de Janeiro: Objetiva , 2015b., p. 31).

A discussão que é apresentada se assemelha com a de um historiador, narrando os detalhes do acontecimento como uma análise historiográfica sobre os tempos da resistência e da opressão. Harry Thuku e todos aqueles que participaram da passeata vinham gestando o evento há dias em reuniões, encontros e longos debates. A repressão, contudo, durou poucos segundos, com rápidos tiros que mataram dezenas de pessoas. A diferença das ações indica as armas de cada lado, o alcance de seus poderes e a letalidade neocolonial.

Nessa passagem, a denúncia é o foco do texto, mas ainda lida com as tensões psicológicas individuais do colonizador, como a relação entre o administrador John Thompson e sua esposa Margery. Essas tramas romanescas familiares são apresentadas com a mesma preocupação que as violências sofridas pelos povos tradicionais africanos, o que indica essa marca de uma trajetória interpretativa em construção.

Margery assume um alheamento proposital ao mundo que a cerca, porque os pensamentos nunca a dominam por muito tempo e seu marido queria um apoio em casa para concluir suas tarefas cotidianas. Mesmo recebendo afagos, Thompson se pergunta, angustiado, “onde estava a verdadeira simpatia que ela, como esposa, deveria ter sentido?” (THIONG’O, 2015bTHIONG’O, Ngugi Wa. Um grão de trigo. Rio de Janeiro: Objetiva , 2015b., p. 73).

Anos mais tarde Ngugi Wa Thiong’o reconheceria que nesse livro todos os personagens principais possuíam praticamente a mesma importância, porque todos assumiam papéis de protagonistas. Ele entende que toda sua produção em língua inglesa tem essa premissa, de que todas as vozes narrativas possuem movimentos e histórias paralelas (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 43).

Outra característica desse período inicial de críticas que tece, é seu tom elogioso ao cristianismo inglês, que aparece no texto em um volume muito maior do que as esparsas passagens sobre as expressões religiosas locais. A evangelização muitas vezes é desprovida de qualquer ideologia colonialista (algo que mudará muito em Sonhos em tempos de guerra, que veremos adiante) e assume um tom educativo, inspirador, até mesmo contribuinte da resistência. Uma das muitas passagens nesse sentido foi quando Karanja ouviu um discurso de Kihika sobre as lutas de Mahatma Gandhi, que organizava os indianos transformando-os em uma bomba contra o imperialismo. Aquele discurso fez com que Karanja visse nessas cenas sombrias “algo mais próximo à agonia de Cristo no Jardim de Getsêmani” (THIONG’O, 2015bTHIONG’O, Ngugi Wa. Um grão de trigo. Rio de Janeiro: Objetiva , 2015b., p. 119).

O romance constitui-se, de fato, em um marco na sua trajetória intelectual, que fortalece com ele sua forma de escrita, a que discute a história queniana por intermédio da literatura. Essa discussão mistura críticas sociais com passagens que permitem uma classificação ao texto, que é uma etapa provisória em seu projeto de contribuição para a formação de uma escola literária africana de resistência.

Uma retórica acirrada para a resistência

Essa etapa provisória de uma conscientização crescente acerca do papel que deve ser assumido pelo intelectual africano consolida-se cerca de 20 anos depois, quando sai Descolonizar a mente em 1986. Ele encontra-se, então, imbuído no papel de escrever uma literatura de resistência, operária e africana, avaliando o momento de Um grão de trigo como uma etapa de trabalho cuja escrita era orientada por um fatalismo, compartilhado com outros pensadores o inglês como língua oficial de comunicação literária, procurando serem ouvidos pela comunidade internacional.

Um evento que foi típico desses anos foi o Congresso de Escritores Africanos de Expressão Inglesa, realizado em 1962 na Universidade Mekerere em Kempala, Uganda. O encontro não aceitou escritores como Shabaan Robert, que publicava em Kiswahilli, ou o yorubano Jefe Fagunwa, da Nigéria. Esse impedimento esvaziava a grande pergunta dali, de qual era a natureza da literatura africana.

Naquele lugar Thing’o conheceu o renomado Chinua Achebe, que reconheceu esse fatalismo, mas o seguia porque nasceu falando uma língua, cresceu obrigado a usar outra e tinha intenção de utilizar literariamente esse veículo de comunicação que lhe foi imposto. Naqueles anos havia, inclusive, uma tese difundida dentre outros por Ezekiel Mphahlele de que as línguas coloniais como o inglês, francês e português seriam elementos de união entre africanos falantes de vários idiomas. Para ele o fatalismo estava em assumir o meio de relação social oficial do colonizador como espaço privilegiado de conscientização dos africanos, o que não lhe incomodava naquele final de década (THIONG’O, 2002, p. 4-11).

Thiong’o demarca Pétalas de Sangue como um marco na sua trajetória, porque ali decidiu que suas peças teatrais, contos e romances seriam escritos em gykuyu, mas que seguiu ainda escrevendo em inglês alguma prosa ensaística até abandonar completamente essa língua. Esperava que a divulgação dos seus textos em línguas originais africanas (ele escreveu também em kiswahili) seguisse com o venerável vínculo da tradução, para dialogar com o mundo e não para ser simplesmente aceito (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 1).

O uso da literatura como arma de crítica estava aclarado na década de 1980 para nosso autor. Sua linguagem passou a usar os termos, lógicas e construção textual do marxismo para expor suas ideias. A escrita em línguas nacionais africanas pressupunha um processo educativo dos povos, que deveriam aprender que havia uma interpretação desgastada pela mídia ocidental em tratar a África como um continente de conflitos entre tribos, países e religiões. Essa regra nada mais era do que uma prática de desvio de atenção promovida pelo neocolonialismo das suas ações nocivas, e Thiong’o passaria a considerar as realidades da África em função das forças que se opunham mutuamente em sua contemporaneidade: de um lado a tradição imperialista e de outro, de resistência.

Em seu projeto literário revigorado, a tradição imperialista se mantinha na África contemporânea por meio da burguesia internacional, que usava as multinacionais e classes dirigentes nativas para organizarem um ordenamento de dependência econômica, política e cultural do neocolonialismo. Nos modelos que vinham sendo gestados, a literatura de matriz inglesa, francesa ou portuguesa escrita por pensadores africanos nada mais era do que uma imitação de padrões impostos a uma população adormecida “através das botas policiais e arames de espinhos clericais e judiciais” (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 4).

Não se pretende dizer que houve no pensamento de Thiong’o uma evolução interpretativa, mas um acirramento de suas propostas de crítica social operada por intermédio da literatura, tendo em vista que ele não abandona sua principal característica, a de continuar discutindo contextos históricos. O que ele deixa de lado aí é sua escrita preferencial na língua inglesa em prol de uma noção de literatura engajada, comprometida com um projeto socioeducativo vinculado a uma visão de mundo proletária, tidas como as mais revolucionárias e aptas a mudanças estruturais no capitalismo (LÖWY, 1994LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Ed. Cortez, 1994.). Nas suas palavras essa visão de mundo lutava contra as ações do imperialismo pelo globo na América Latina, África e Ásia sob a liderança dos Estados Unidos, assim:

Os oprimidos e explorados da terra mantêm seu desafio: liberdade frente ao saque. Porém, a arma mais perigosa que é empunhada e brandida a cada pelo imperialismo contra esse desafio coletivo é a bomba cultural. O efeito de uma bomba cultural é aniquilar as crenças dos povos nos seus nomes, línguas e entorno natural, na sua tradição de luta, sua unidade e capacidades e, por fim, em si mesmos (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 7-8).

Esse é o entendimento basilar do processo de acirramento promovido por Thiong’o em sua escrita, que se volta para essa compreensão do imperialismo e do uso da língua inglesa como parte importante na reprodução dessa bomba cultural. O revigoramento das línguas nacionais através da literatura é essa arma de resistência dos oprimidos, das classes que lutam contra o imperialismo em sua etapa neocolonial. Essas classes têm que aprender por meio da educação “que descobrir suas múltiplas línguas para cantar a canção ‘O povo unido jamais será vencido’” (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 9).

O ensino dessa literatura engajada teria, para nosso pensador queniano, uma peça basilar, de fazer com que os povos africanos entendam sua relevância dentro do globo e passaria pela integração com o sistema educacional e, principalmente, universitário. Ele se pergunta em que ordem deveria ocorrer essa educação literária e esse seria um debate crucial para os sistemas culturais de cada país do continente.

Logicamente esse papel seria grande demais para um literato individualmente, por isso ele foca sempre em um escopo crescente que vai das comunidades, passa pelos países e abarca o continente. Assim, cada um deveria saber qual sua relação dentro dos conflitos de classe e das fases em que vive no imperialismo, se a época colonial ou neocolonial (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 3-5). Os literatos, para ele, estariam na relação de fazerem saber a real linguagem do mundo, a da luta. Essa é

A linguagem universal que subjaz a cada discurso e a cada palavra de nossa história. Luta. A luta constrói a história. A história nos faz. É na luta que está nossa história, nossa língua e nosso ser. Esta luta começa onde quer que estejamos: então nos converteremos em uma parte desses milhões de seres que Martin Cartes uma vez viu dormirem para sonhar, porém sonhando para mudar o mundo. (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 64).

A história para Thiong’o é a determinação máxima da literatura e ela é fruto da luta de classes, a qual utiliza a linguagem clássica do marxismo para expor como o materialismo histórico rege as pessoas. Seu projeto se acirra, encontra seu referencial e ele mesmo se torna uma das vozes mundiais dos muitos marxismos, pregando a resistência tão comum nos movimentos populares da América Latina, África e Ásia na década de 80. Quase 25 anos depois, em Sonhos em tempos de guerra, está ele escrevendo um romance que tem completamente fundamentada essa visão de mundo. Lá já não se verá fronteiras claras entre um texto literário e um historiográfico, porque a discussão contextual é uma regra fortemente vinculada a essa visão materialista em busca da verdade de resistência popular contra o imperialismo.

Um analista da história

Em 2010, Thiong’o encontra-se em um momento em que é uma autoridade reconhecida, já não precisando mais usar de uma linguagem combatente como fizera em Descolonizar a mente. Ele não precisa mais provar nada acerca de suas posições, logo, Sonhos em tempos de guerra é um livro cuja narrativa é ela mesma uma historiografia literária. Os cânones do academicismo tão exigidos em artigos, dissertações e teses de história não estão presentes ali, mas também os elementos imaginativos da literatura desapareceram, porque entende-se que discute o mundo real por meio de suas memórias e pesquisas. De cima a baixo esse texto é formatado nesses parâmetros, porque os eventos gerais que formaram o Quênia contemporâneo são analisados logo no início dos capítulos, como é tradição na sua escrita, e ele chega inclusive a consolidar fatos, estabelecendo um núcleo narrativo a partir de muitas variações orais, como fora a repressão aos guerrilheiros Mau Mau na província de Nyandrwa em abril de 1954.

Conta-se que ele e seu irmão, quando seguiam para casa, pararam em uma reunião de pessoas na rua. Alguns diziam que um guerrilheiro anônimo foi preso num tiroteio, outros afirmavam que ele havia sido morto, versão rebatida por mais alguns. No meio das versões, ele distingue uma em que o homem fugiu da repressão inglesa dentro de um tiroteio, perseguições, saltos gigantescos, até que desapareceu ileso nas plantações de chá, e esta ficou sendo a narrativa sobre aquele ato heroico (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 12-13).

De outro lado, mesmo os dramas familiares vividos pelo autor aparecem para elucidar problemas cruciais desse mundo real trabalhado no texto, como é o caso do professor Karanja, o mesmo de Um grão de trigo. Ele foi professor primário de Thiong’o e certa vez recebeu uma visita em sala do inspetor colonial, na qual todos esperavam que fosse disciplinado, porque era chamado estridentemente para fora. O inspetor gritava para que se apressasse, mas

Karanja se recusou a alterar o passo. Agora eles estavam cara a cara. O inspetor queria que Karanja o tratasse por ‘senhor’, mas Karanja apenas olhou para ele e então voltou para a sala. Ciente de que muitos olhos o observavam, o oficial ficou por ali mais um minuto e então entrou no carro e foi embora. Nós nunca mais o vimos. (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 164).

Essa é uma pequena situação vivenciada realmente por ele e traduzida para sua discussão da trajetória queniana, misturando análises gerais com particulares, sem falar que a cena possui um teor de resistência muito forte e tão marcante que o professor aparece em diversas passagens tratadas por Ngugi Wa Thiong’o. Assim, não entendemos ser possível atribuir a ele a classificação de que seja um autor de romances históricos. Argumenta-se que esse tipo de romance teria como característica uma perspectiva modernista de encenação de um conjunto de eventos (JAMESON, 2007JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Revista Novos Estudos, São Paulo, v. 77, p. 185-203, 2007., p. 188), ou seja, nada mais anacrônico para descrevê-lo. Ele é muito mais um analista do mundo ao seu redor, que constrói críticas, reafirma positividades em determinados contextos, ou teoriza sistemas sociais.

Lógico que essa discussão sobre o mundo que o cerca é feita através do prisma do materialismo histórico, que se faz presente de maneira naturalizada ao longo das histórias que conta, sem a retórica acirrada que utilizou durante certo tempo. Há diversas passagens introduzidas que têm um cunho filosófico muito claro, uma, dessas várias, está em franco diálogo com o Ideologia alemã de Marx e Engels. Nela diz:

Nasci numa comunidade já em funcionamento composta de esposas, irmãos crescidos, irmãs, crianças da minha idade e um único patriarca, e em convenções já estabelecidas acerca de como reconhecíamos nossa relação com o outro. Mas podia ser confuso, e eu tive que crescer nesse sistema. (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 31).

A engrenagem marxista clássica está diluída nessa apresentação que faz de sua família na qual havia um patriarca, suas várias esposas e filhos. Essa era uma superestrutura, em que o sujeito nascia em um mundo que não escolheu, encontrando relações estabelecidas há muito tempo. Marx e Engels diziam que os seres humanos produzem seus meios de existência, mas que individualmente se nasce dentro de um modo de vida que já existe, no qual os elementos de reprodução do social estão em atividade. Para ambos, “o que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem” (MARX; ENGELS, 1998MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 10-11).

Se nessa passagem o encontramos analisando como os indivíduos nascem sujeitos de estruturas sociais e, passo seguinte, as reproduz, noutras aprofunda os debates acerca da exploração do trabalhador africano por parte dos colonos brancos. A interconexão com os termos marxistas se avoluma, porque nesse caso avança no que diz respeito a mais-valia. Observa que o africano desprovido de sua terra vira um camponês sem propriedade e possui “apenas a força dos próprios membros, a qual aluga para o colono branco, quando sua mão de obra não era tomada à força, e ao dukawallah (ou lojista) indiano, por uma miséria” (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 78).

Expõem, então, os novos vínculos fundiários impostos pelo imperialismo em suas duas etapas, o colonialismo e o neocolonialismo, que dividiu as terras no Quênia entre brancos, a nobreza inglesa e o Estado. O comércio ficou nas mãos dos indianos e, em meio a essa partilha, restou aos povos locais vender ou alugar sua força de trabalho. O próprio Thiong’o conta que, certa vez, criança pequena ainda, tentou trabalhar na colheita de chá.

Pretendia arrecadar alguns trocados e sequer nisso teve êxito, porque não conseguia colher as folhas altas, o saco preso às costas onde eram guardadas pesava muito e viu que começou a se tornar um atraso para suas irmãs. Elas o tinham indicado para o trabalho, mas as atrasava e logo no segundo dia não o levaram mais. Na estação de flores de Pítero tentou trabalho com seus irmãos mais velhos, indo na colheita das terras do senhorio e lá, após um dia longo, mal encheu um vasilhame e ganhou apenas uns trocados (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 56).

Podemos ver, portanto, que os debates sobre a história do Quênia que Thiong’o travava têm raízes no marxismo, que pode ser visualizado em passagens e subentendido nos termos usados. Em algumas vezes, porém, ele deixava clara sua opção de leitura e ela caminhava por uma vertente leninista dessa corrente teórica. Quando dava aulas na Universidade de Makerere foi preso em 1977 justamente discutindo com seus alunos Os condenados da terra, de Frantz Fanon, sobretudo o capítulo “Desventuras da consciência nacional”, e o livro canônico de Lenin, Imperialismo: etapa superior do capitalismoLÊNIN, Vldimir Ilitch. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Apresentação de Plínio de Arruda Sampaio Júnior. Campinas: Navegando Publicações/FE Unicamp, 2011. .

É de Lenin de onde retira os termos que mais usa para analisar a condição da África contemporânea, que foi partilhada na conferência de Berlim em 1884-1885 pelos impérios europeus. Esse acontecimento significa para ele um marco e colocou toda a África Oriental sob a administração de duas empresas privadas, uma alemã e outra inglesa, que posteriormente foram nacionalizadas por seus respectivos países (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 22-23).

A conferência imperialista é, portanto, a modificação dos padrões coloniais dominados pelos antigos reinos ibéricos para outros, liderados pelas potências industriais que abrem o neocolonialismo. Ele se espraia com a Primeira Guerra Mundial, que leva povos africanos de mesma etnia, mas que moravam em países diferentes, a lutarem por bandeiras nacionais que não lhes pertenciam. Após a guerra,

ex-soldados brancos foram recompensados com terras africanas, sendo algumas delas pertencentes a soldados africanos sobreviventes, acelerando expropriações, trabalho forçado e arrendamento sem contrato formal em terras agora detidas por colonos, sendo tais inquilinos conhecidos como posseiros. Em troca do uso da terra, os posseiros forneciam trabalho barato e vendiam suas colheitas ao senhorio branco a um preço determinado por este. (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 23).

O neocolonialismo é, portanto, uma etapa do imperialismo na qual o escravismo deixa de ser a prática preferencial de exploração do africano e passa a vincular-se noutro sistema. Essa busca à exploração dessa mão de obra africana, que ou vendia sua força de trabalho ou trabalhava em colheitas arrendadas. Certamente entendia que a partir da conferência de Berlim, havia na África Oriental a efetivação daquilo que Lênin demonstrou, sobretudo no que diz respeito a partilha do mundo pelos impérios europeus. O líder soviético escreveu que em “fins do século XIX, sobretudo a partir da década de 1880, todos os Estados capitalistas se esforçaram por adquirir colônias, o que constitui um fato universalmente conhecido da história da diplomacia e da política externa” (LÊNIN, 2011LÊNIN, Vldimir Ilitch. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Apresentação de Plínio de Arruda Sampaio Júnior. Campinas: Navegando Publicações/FE Unicamp, 2011. , p. 203).

Thiong’o diz que 1884 foi um ano de vergonha na memória dos africanos, porque deu início a um século de humilhações para todo o continente e as potências mundiais sempre recordam dele fugindo de suas responsabilidades. Cita um caso sobre isso que se deu na visita do presidente da então Alemanha Ocidental, Franz Strauss, à República do Togo, em 1984. Lá o líder europeu disse que “nós, os alemães, não temos necessidade de nos sentirmos culpados, porque nossa história colonial foi demasiado breve” (THIONG’O, 2010THIONG’O, Ngugi Wa. Descolonizar la mente. Barcelona: Editorial Debolsillo, 2010 [e-book]., p. 50).

Já em Fanon ele dialoga com o psiquiatra africano que afirmava a necessidade de superação da condição colonial, sobretudo na questão de que os muitos povos da África não poderiam aceitar simplesmente a retirada das bandeiras e forças policiais coloniais de suas terras. Para ele, “a reparação moral da independência nacional não nos cega, não nos alimenta. A riqueza dos países imperialistas é também nossa riqueza” (FANON, 1981FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981., p. 81).

E, aprofundando uma reparação global, seria preciso rever os conflitos internos gerados com uma descolonização aparente, já que a burguesia local, que assume os poderes deixados pelo colono, coloca toda a produção não ao serviço das nações, mas para si. Para ela, a nacionalização “significa exatamente transferir aos autóctones favores ilegais herdados do período colonial” (FANON, 1981FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981., p. 127). O trabalho de Thiong’o ao rever sua escrita, abandonando o inglês e acentuando suas críticas, é parte dessas leituras que colocam a autonomia das muitas Áfricas em questão central. Não podemos esquecer que a sua militância, a divulgação internacional de seus livros, com traduções em várias línguas, é um entendimento amplamente discutido entre vários intelectuais africanos de que é preciso alcançar os povos do continente nas américas, europas e asias. Isso porque, como se pergunta Achille Mbembe, “como se pode inscrevê-los em uma nação definida racial e geograficamente, quando a geografia e a história os arrancaram do local de onde seus ancestrais vieram?” (MBEMBE, 2001MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Revista Estudos Afro-asiáticos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 171-209, 2001., p. 184).

Se a evangelização é desprovida de maiores violações ideológicas em Um grão de trigo, no Sonhos em tempos de guerra aparece como elemento central de implantação do neocolonialismo. Ela, porém, está intimamente relacionada com o ambiente educacional inglês queniano e Thiong’o vai mostrando como evolui com o tempo. Quando adentra na escola, aprende em gykuyu, porém, os alunos são obrigados a recitarem versículos da Bíblia e anos mais tarde, em seus batizados, atravessam um rito de passagem. Ele teria que memorizar o catecismo em inglês e assumir um nome misto, James Ngugi (a outra opção que queria era literalmente abandonar seu sobrenome original por Paul). Cursando a quinta série na década de 1950, a língua materna fora substituída pelo inglês e o currículo era organizado pelo Oxford Readers for África, que ensinava, dentre outras coisas, sobre os pontos turísticos de Londres como o rio Tâmisa, a Casa do Parlamento e a Abadia de Westminster (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 67-211).

A historiografia literária de Thiong’o analisa as questões gerais da África Oriental, mas também dedica grande parte de sua investigação para destrinchar os problemas microssociais vividos pelos quenianos. Nota-se, porém, que ele foca suas críticas nas relações de gênero vivenciadas nesse espaço e abre um grande leque, quando, por exemplo, fala de uma postura administrativa de impor a proibição a circuncisão feminina desde 1929. Ela não levou em conta o enraizamento cultural que a prática possuía, significando um rito de passagem para uma vida de plena responsabilidade legal, o que explica sua ineficácia. Além disso, essas proibições vinham sempre associadas a uma série de outras vinculadas como sanções contra filiados em organizações partidárias quenianas, o que diferia do modus operanti adotado, dentre outros, pela Igreja Ortodoxa Afro-Americana. Lá se discutia as tendências negativas da tradição e dava-se autonomia aos africanos, que seriam os árbitros em direção a mudança, que deveria ser gradual e não mais exigida (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 112-113).

A crítica mais contundente do livro a respeito dessas relações de gênero é quando aborda a separação de seu pai e mãe. Se há um personagem principal no texto é a senhora Wanjiku wa Ngugi, mãe de Thiong’o e figura que está presente em toda sua trajetória. Era uma mulher que sabia como poucos a lidar com a produção agrária, sempre mantendo colheitas impressionantes, mas

Meu pai decidiu que podia dispor da colheita, até mesmo vendê-la. Minha mãe, acostumada à independência de sua casa, opôs-se firmemente. Um dia ele voltou para casa, arrumou briga com ela e começou a espancá-la, usando inclusive uma das muletas que minha meia irmã Wabia usava para se apoiar, até quebrá-la em pedaços. Meu irmão e eu gritamos para que ele parasse. Minha mãe berrava de dor. Apesar do medo, as outras mulheres tentaram contê-lo, suplicando que parasse, berrando em solidariedade, para que todo mundo ouvisse, que o marido delas enlouquecera. Quando ele se voltou contra elas enfurecido, minha mãe conseguiu escapar apenas com as roupas do corpo e fugiu para a casa de seu pai, meu avô, abandonando suas cabras e a colheita. (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 95).

Wanjiku wa Ngugi foi acolhida na casa de uma das esposas de seu pai, onde pôde socorrer-se da violência extrema pela qual passou. O pai de Thiong’o queria dispor dos produtos oriundos do trabalho independente de uma das suas quatro esposas, mas ela não aceitou e as demais se submeteram após esse ocorrido. Passados alguns dias, ele e seu irmão foram chamados a uma colina pelo pai e lá disse: “Quero que vocês parem de brincar com meus filhos”. A seguir mandou os dois embora para junto da mãe deles, não os deixando levar nada mais que poucos materiais escolares e um exemplar do Velho Testamento (THIONG’O, 2015aTHIONG’O, Ngugi Wa. Sonhos em tempo de guerra. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015a., p. 97).

A brutalidade de seu pai é uma crítica que Thiong’o elabora não para tornar evidente uma visão pitoresca a respeito do homem africano violento, misógino ou algo do tipo, mas para trazer à baila a necessidade dos quenianos, swahilis e outros povos de resolver seus problemas históricos autonomamente. Essa busca por resoluções autônomas passa, portanto, por uma devida compreensão histórica tanto das relações microssociais quanto das mais gerais, por isso seu foco em uma historiografia literária engajada, escrita em língua materna e plenamente reconhecível entre os seus.

Thiong’o está, portanto, alinhado aos autores africanos que discutem história, utilizando, portanto, uma outra frente, a literatura. Seus apontamentos são tão importantes quanto aqueles levantados Kwame N’Krumah em Neocolonialismo: último estágio do imperialismo, em que fundamenta o mecanismo de funcionamento estrutural do neocolonialismo. Ele estaria oculto, atrás dos tentáculos de Wall Street, primeiramente utilizando da dominação violenta, mas favorecendo monopólios econômicos e em frentes culturais, porque segundo ele “mesmo as histórias de cinema da fabulosa Hollywood são viciadas. Basta ouvir os aplausos de uma audiência africana aos heróis de Hollywood massacrando índios peles-vermelhas ou asiáticos para compreender a eficiência dessa arma” (N’KRUMAH, 1967N’KRUMAH, Kwame. Neocolonialismo: último estágio do imperialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1967. , p. 289). O vai e vem de Thing’o entre questões gerais da África, do colonialismo, do uso da língua gykuyu, e as mais particulares, como a violência familiar, iluminam conceitos de maneira igualmente profunda à essa sobre o funcionamento do neocolonialismo. Nosso autor está, assim, dentro da avaliação que Pauli J. Hountondji faz a respeito da produção acadêmica, técnica e cultural dos africanos:

Os investigadores africanos envolvidos nos estudos africanos deverão ter uma outra prioridade: desenvolver, antes de mais, uma tradição de conhecimento em todas as disciplinas e com base em África, uma tradição em que as questões a estudar sejam desencadeadas pelas próprias sociedades africanas e a agenda da investigação por elas direta ou indiretamente determinada. Então, será de esperar que os acadêmicos não-africanos contribuam para resolução dessas questões e para implementação dessa agenda de investigação a partir da sua própria perspectiva e contexto histórico (HOUNTONDJI, 2008HOUNTONDJI, Paulin J. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 149-160, 2008. ).

A questão colocada é que esses estudos tenham autonomia, sejam ancorados em dinâmicas surgidas internamente e passem, principalmente, pelo conhecimento dos contextos históricos africanos. O cerne desses debates passa pela valorização da história da África, ou seja, Thiong’o está engajado nesse cenário, que enfrenta dilemas constantes, sobretudo na fundamentação das resistências ao que é imposto de fora.

Considerações finais

Ngugi Wa Thiong’o está inserido, portanto, em um revigorado e forte cenário de pensadores dos mais diversos países da África que estão teorizando as autonomias continentais, o fortalecimento das identidades culturais, dinamizações econômicas e, principalmente, o reconhecimento da centralidade da história desses povos. A partir da década de 1960, a história vira esse centro porque é justamente com ela que se conhecem as tradições, resistências e usurpações operadas pelo colonialismo, tornando-se o principal elemento para uma tomada de consciência libertadora. A escrita de Thiong’o é um grande exemplo desse trajeto de conscientização. Ela é uma grande reinterpretação da história da África.

Referências

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    » https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/16/cultura/1555409123_289052.html

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2020
  • Aceito
    23 Abr 2021
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