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HISTÓRIA DOS CHAPÉUS MANGUEIRA: UMA FÁBRICA MISSIONÁRIA NA NOVA ORDEM REPUBLICANA (1898-1920)

THE STORY OF MANGUEIRA HATS: A MISSIONARY FACTORY IN THE NEW REPUBLIC (1898-1920)

RESUMO

Neste artigo, compreende-se a trajetória das Fábrica de Chapéus Mangueira (FCM) nas condições históricas e sociais da nova ordem republicana, nos anos de 1898 a 1920. Analisa-se o lugar dessa experiência histórica situada no contexto e na região do subúrbio da Mangueira, no Rio de Janeiro. Discorre-se sobre a projeção da FCM no cenário industrial e comercial juntamente com as greves que afetaram o setor chapeleiro, identificando-se os conflitos que se deram, dentro das condições do mundo do trabalho carioca. Por fim, discute-se o sentido construído de uma fábrica portadora de uma missão, sendo orgânica no nascente mundo protestante por meio do seu proprietário, José Luiz Fernandes Braga, demarcando, assim, a sua singularidade como missionária. Desse modo, aborda-se como uma unidade fabril esteve historicamente enredada aos mundos da produção, do trabalho e da religião, dentro da nova e conflituosa ordem republicana em construção.

Palavras-chave
Fábrica de Chapéus Mangueira; mundo do trabalho; ordem republicana; Rio de Janeiro

ABSTRACT

This article approaches the journey of the Mangueira Hat Factory (FCM) in the historical and social conditions of the new Republican Order from 1898 to 1920. Theplaceof this historical experience is analyzed in the context and in the region of Mangueira suburbs in Rio de Janeiro. Theprojectionof the FCM in the industrial and commercial scenario is also presented here, as well as the strikes which affected the hat making sector, identifying theconflictsthat occurred due to the conditions of Rio de Janeiro’s workplace. Finally, this paper discusses thepurposeof a factory that had a mission, surging organically in the newborn Protestant world thanks to its owner, José Luiz Fernandes Braga, thus highlighting its singularity asmissionary. Therefore, this article covers how this factory was historically entangled in the worlds of production, labor, and religion within the new and conflicting Republican Order, still under construction.

Keywords
Mangueira Hat Factory; workplace; republican order; Rio de Janeiro

O uso do chapéu teve significativa importância e lugar no mercado consumidor da moda e do vestuário no Brasil, até fins da década de 1960. Sua importação e produção remetem-se ao início do século XIX, mas sua fabricação nacional, sobretudo no eixo do Rio de Janeiro e São Paulo, desenvolveu-se durante o Oitocentos e se consolidou nas primeiras décadas do século XX.1 1 Maria Eulália Lobo discorreu sobre a fabricação de chapéus no século XIX favorecida por medidas protecionistas (LOBO, 1978, p. 173). A maior mecanização da produção com o uso de máquinas a vapor e da eletricidade, a formação de associações de chapeleiros e a ampliação do mercado consumidor, juntamente com o aumento da concorrência foram processos responsáveis pela consolidação de uma produção nacional. Uma das destacadas fábricas foi a Chapéus Mangueira, começada por imigrantes portugueses nos idos de 1857 e que, de 1868 a 1920, teve como proprietário, José Luiz Fernandes Braga2 2 José Luiz Fernandes Braga foi um imigrante português que chegara ao Brasil em 1854, aos 12 anos de idade, vindo da freguesia de Sampaio de Merelim, cidade de Braga, a fim de ajudar seu irmão mais velho, José Antônio Fernandes Lopes. José Luiz assumiu a fábrica em 1868, depois da morte do irmão, e levou-a à condição de uma das maiores do país no setor chapeleiro. A cidade de Braga, na região do Minho, e próxima à cidade do Porto, era um dos centros de produção chapeleira desde os tempos pombalinos, fabricando chapéus baratos e rudes, baseada também na produção familiar (SANTOS, 2015a, p. 787-818). .

As pesquisas sobre a Mangueira têm demonstrado a singularidade dessa unidade fabril, a partir do seu pertencimento e inserção no nascente protestantismo brasileiro e carioca, além de compreendê-la nas condições históricas e sociais da nova ordem republicana (SANTOS, 2015bSANTOS, Lyndon de Araújo. Relatório de pesquisa. São Luís: UFMA, 2015b.).3 3 O presente artigo integra uma sequência de outros já publicados, resultantes da pesquisa de pós-doutorado realizada nos anos de 2013/2014 junto ao Programa de Pós-graduação em História da UFF (SANTOS, 2015a, p. 787-818; SANTOS, 2018, p. 162-191; SANTOS, 2020, p. 1-22). A pesquisa analisou a relação entre a produção dos chapéus, a crença religiosa protestante dos proprietários e o mundo do trabalho, em que operários e operárias vivenciaram crescentes conflitos naquele contexto carioca. Reuniu-se um conjunto de fontes documentais, orais e iconográficas, desde os depoimentos de descendentes dos proprietários, notícias de jornais, inventários, testamentos, planilhas de empregados, relatórios financeiros, propagandas, fotografias, instruções e manuais destinados aos operários. O cruzamento de dados e informações possibilitou a composição de um material analisado criticamente de acordo com a natureza, estilo, enquadramento, lugar de fala e de produção. Todo esse conjunto reunido foi denominado Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira. Essa ordem foi construída, por um lado, com a projeção e a implantação de ideais de modernidade sob a lógica da expansão capitalista e com os discursos de progresso e higienista, com reformas urbanas e novas fábricas. Por outro, deu-se o surgimento de organizações operárias que exerceriam funções sindicais como a luta por melhores salários, diminuição da jornada de trabalho e condições mais dignas de trabalho (BATALHA, 1999BATALHA, Claudio H. M. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cadernos AEL, Campinas, v. 6, n. 10-11, p. 46-47, 1999., p. 46-47).

Tal contexto coadunava-se às condições gerais do mundo do trabalho com grande disponibilidade de mão de obra pouco qualificada, baixíssimos salários, o predomínio de indústrias de bens de consumo (vestuário, tecidos, alimentos etc.) e formação de um mercado consumidor popular (MENDONÇA, 2004MENDONÇA, Sonia Regina de. A industrialização brasileira. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004., p. 23). Como afirma Arias Neto (2003ARIAS NETO, José Miguel. Primeira República: economia cafeeira, urbanização e industrialização. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 162-189.), uma classe operária foi formada desde “um processo conflituoso, marcado por avanços e recuos, pelo fazer-se e pelo desfazer-se de classe, que surge na organização, na ação coletiva, em toda a manifestação que afirma seu caráter de classe” (ARIAS NETO, 2003ARIAS NETO, José Miguel. Primeira República: economia cafeeira, urbanização e industrialização. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 162-189., p. 173).

Este artigo analisa, portanto, a experiência da Fábrica de Chapéus Mangueira (FCM) nas duas primeiras décadas do século XX, situando-a no contexto da ocupação populacional dos subúrbios cariocas, entre a sua reinauguração (1898) e o falecimento de seu proprietário (1920). Nesse recorte, a fábrica integrou-se ao disputado mercado chapeleiro, sofreu paralizações operárias e foi instrumentalizada como uma fábrica missionária. A FCM movimentou grande fluxo de mão de obra masculina e feminina, incluindo menores aprendizes e imigrantes, mobilizando uma rede de serviços de apoio, de distribuição e de vendas num mercado cada vez mais competitivo. Desse modo, queremos compreendê-la historicamente enredada aos mundos da produção, do trabalho e da religião, dentro da nova e conflituosa ordem republicana em construção.

O lugar: uma fábrica na Estação Primeira

A FCM integrou-se ao movimento de deslocamento populacional rumo aos subúrbios cariocas utilizando a linha férrea, com a crescente ocupação da região e dos morros na Mangueira. Eram libertos pós-abolição, descendentes de africanos, migrantes, empobrecidos e remediados, sujeitos a um processo desordenado e marcado por conflitos que geraram expressões culturais como o samba (GRAMÁTICO JÚNIOR, 2009GRAMÁTICO JÚNIOR, Sérgio. Maçu da Mangueira: o 1º mestre sala do samba. Rio de Janeiro: Hama, 2009., p. 30). Esse processo não se deu de forma passiva e nem tão disciplinada como a ordem republicana desejava, desde os arranjos e invenções dos sujeitos no cotidiano (CERTEAU, 2008CERTEAU, Michel De. A invenção do cotidiano: vol. 1 artes de fazer. 14. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 38).

O morro da Mangueira, subdivido em outros pequenos morros, era habitado “por gente modesta, que ali levanta o seu barracão, mediante certo contrato com o proprietário” (CORREIO DA MANHÃ, ano XXV, n. 9518, p. 3, 3 de fev. 1926CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1926.). Os periódicos da época chamavam a atenção, desde cedo, para as ambiguidades morais e a violência representadas nas figuras identificadas como malandros, valentes, sambistas, capoeiristas, mesmo reconhecendo muitos trabalhadores entre os seus moradores.

Antes de alçar destaque cultural pelo carnaval, a região da Mangueira esteve sujeita ao modo como a população composta de filhos e de netos de escravos foi submetida. Adelino Campos relacionou os cortiços e as favelas como transmutações dos quilombos periurbanos, espaços expandidos no período entre 1850 e 1888 e incorporados paulatinamente à cidade, cujos descendentes “herdaram os procedimentos de combate aos negros quilombolas do século anterior [XIX]” (CAMPOS, 2011CAMPOS, Adrelino. Do quilombo à favela: produção do “espaço criminalizado no Rio de Janeiro”. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 63-64). Essa suburbanização (ABREU, 2013ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro, 4 ed., Rio de Janeiro, IPP/Zahar, 2013., p. 94, apudCAMPOS, 2011CAMPOS, Adrelino. Do quilombo à favela: produção do “espaço criminalizado no Rio de Janeiro”. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 67) aconteceu também na região contígua ao bairro de São Cristóvão e da Quinta da Boa Vista, onde ficava a primeira parada dos trens vindos da Central do Brasil.

Havia uma expectativa de prosperidade para “um dos mais afamados arrabaldes cariocas”, chamada de Petrópolis dos Pobres, que contava com um quartel do Corpo de Bombeiros, o Turf-Club (que teve curta duração) e a fábrica de chapéus (REVISTA DA SEMANA, ano IX, n. 473, p. 12, 6 jun. 1909REVISTA DA SEMANA. Rio de Janeiro: [s.n], 1909). A região era servida por carris de bondes, ruas, estradas e linha férrea que atendiam bairros como São Cristóvão, São Francisco Xavier, Andaraí, Engenho Novo, Engenho de Dentro, Cascadura e outros. Por conta das oportunidades de trabalho, de aluguéis e de terrenos baratos, houve um grande afluxo de mão de obra e de fábricas (sapatos, chapéus, cerâmicas e olarias), contando também com a concentração de investimentos em infraestrutura urbana (MONTEIRO, 2012MONTEIRO, Denilson. Divino Cartola: uma vida em verde e rosa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012., p. 29).

A fábrica se instalou na Mangueira após um incêndio ocorrido em 1896 quando funcionava na rua de São Pedro, centro da capital:

em dois anos as novas dependências foram construídas à altura da primeira parada dos trens após a estação Central do Brasil, onde havia uma grande mangueira que servia de referência, a estação primeira da Mangueira. (...) A Fernandes Braga e Cia. foi reinaugurada em setembro de 1898 com uma cerimônia religiosa protestante, retomando as atividades num contexto conflituoso com as ondas grevistas por parte do movimento operariado, das associações e das suas entidades representativas (1903, 1906 e 1917). (SANTOS, 2015aSANTOS, Lyndon de Araújo. Os Brácaros Chapeleiros: mundos e representações dos chapéus no Rio de Janeiro (1825-1898). Varia História, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 787-818, set./dez. 2015a., p. 815).

Reinaugurada em 1898, sua construção seguiu o padrão das fábricas inglesas anexando um conjunto de casas para os seus empregados mais qualificados e especialistas, por conta da proximidade estratégica desses profissionais. Situada ao pé da árvore apegada à primeira estação de trem vindo da Central do Brasil, a fábrica passou a ser identificada, assim como os seus chapéus, como Fábrica de Chapéus Mangueira.4 4 Em 1918, nas suas dependências funcionou uma enfermaria provisória administrada pelo exército durante as epidemias de varíola e febre amarela que atingiram a região, ante a falta de leitos em hospitais (CORREIO DA MANHÃ, ano XVIII, n. 7183, p. 1, 27 out. 1918. As casas, o apito, a chaminé e o relógio, juntamente com os horários dos trens e uma rede de pequenos serviços e de vendedores ambulantes, contribuíram para a formação do modo de vida da população do entorno.

Como parte dessa paisagem socioespacial durante as décadas seguintes, determinou as condições de vida de muitos trabalhadores e moradores como fonte de trabalho e renda para homens e mulheres.5 5 Em 1925, o periódico comunista A Classe Operária, assim descreveu a desigualdade entre os rendimentos dos operários e das operárias: “EM MANGUEIRA. Na estação de Mangueira trabalham centenas de operários. NA FÁBRICA DE CHAPÉOS. Os operários ganham de 5$ a 5$500. As operárias de 2$500 a 3$. O trabalho vai das 7 ás 16 horas. Os extraordinários prolongam-se até ás 17 1/2 horas. Os salários não chegam para o alimento. Tal situação não pode continuar. A vanguarda deve lutar contra o patronato, apoiando-se no único jornal operário, escrevendo para ele sobre seus sofrimentos e aspirações. NA FÁBRICA DE LADRILHOS. Os salários na fábrica de ladrilhos da rua Visconde de Niterói regulam os mesmos da fábrica de Chapéus Mangueira. Os patrões estabeleceram uma cozinha econômica com mercadoria fornecida pela feira livre. Dão abono no dia 30 e pagam no dia 15. A exploração é demasiada - F.P.” (A CLASSE OPERÁRIA, ano I, n. 10, p. 4, 4 jul. 1925). Contudo, seu destaque se deu não somente nesse contexto em que estava localizada, mas projetou-se no cenário industrial na virada do milênio.

A projeção: o presidente com os rudes operários

Em fins de dezembro de 1899, o então presidente da república Campos Salles visitou a FCM como parte de um percurso maior de visitas a fabricas na capital (O PAIZ, ano XVI, n. 5556, p. 1, 22 dez. 1899O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1899.). Com sua comitiva, o político foi recebido, entre “vivas e palmas”, pelo proprietário José Luiz Fernandes Braga, seu filho e sócio José Luiz Fernandes Braga Júnior, outro filho Luiz Fernandes Braga, o guarda-livros Andrade, o chefe do armazém da cidade Manoel Braga, empregados do escritório, contramestres, operários e operárias. A recepção foi seguida de um tour pelo edifício e dependências, conhecendo as fases da produção dos chapéus e as dimensões da moderna estrutura recém-construída.

O Sr. Fernandes Braga pediu licença ao Sr. Presidente para fazer-lhe o obséquio da escolha de feitio e cor de um chapéu que fabricaram para S. Ex., assim como para o Sr. Ministro da Fazenda, e havendo em exposição chapéus que serviram do Dr. Cochrane e aos representantes da Imprensa, o Sr. Braga obsequiou-os com um bom espécime da sua afamada fábrica. Antes de se retirar o Sr. Presidente da República aceitou um copo de leite aquecido pela eletricidade e as mais pessoas uma xícara de café feito pelo mesmo processo (VISITAS ÀS FÁBRICAS pelo Exmº Senhor Presidente da República em dezembro de 1899 e janeiro de 1900. Rio de Janeiro: 1900, p. 61).

Emblemático ter sido servido café e leite na ocasião, quando a política hegemônica do período ficou conhecida como a do café com leite. Entretanto, apesar da cordialidade, o discurso proferido por Antonio Gonçalves Lopes, empregado da fábrica, antes da partida da comitiva, demonstrou tensões e reivindicações próprias do ramo da indústria nacional naquele momento, diante do latifundiário paulista Campos Salles.6 6 Antonio Gonçalves Lopes, provavelmente de nacionalidade portuguesa, fazia parte do círculo industrial e comercial da cidade e do círculo religioso de José Luiz Fernandes Braga, sendo igualmente presbítero da Igreja Evangélica Fluminense e parte do conselho do nascente Hospital Evangélico (O Puritano, ano IV, n. 161, p. 3, 1899; O Christão, ano XI, n. 128, p. 15, 1902; O Puritano, ano VII, n. 327, p. 2, 1906). Em 1880, quando da inauguração da Associação Industrial, em 10 se setembro, integrou a comissão de redação do estatuto da entidade, com a eleição provisória da diretoria sob a presidência de Evaristo Xavier da Veiga e Fernandes Braga como um dos integrantes (Gazeta de Notícias, ano VI, n. 253, p. 2, set. 1880). A política econômica da república incipiente favorecia aos cafeicultores paulistas em detrimento do apoio maior à indústria, conforme acordo que seria ainda firmado no pacto de Taubaté em 1906. O nacionalismo e a reivindicação de protecionismo perpassaram na fala de Lopes, ao comparar a situação do Brasil com a Argentina.

O discurso assumiu um lugar de fala como sendo de outras unidades fabris em defesa dopatriotismo. Naqueles “templos do trabalho”, registrou, se podia avaliar o “progresso e [o] desenvolvimento intelectual e moral de um povo”. Não somente nos gabinetes se trabalhava para o bem-estar da pátria, “estudando os altos problemas financeiros”, mas os não menos importantes erudes operáriostambém trabalhavam para o progresso do país. Para Lopes, tanto a lavoura como a indústria estavam em condições menos vantajosas que a República Argentina, onde o progresso era maior:

Não conheço aquele país; mas pelas informações que tenho colhido, parece-me que o vosso patriotismo ressentir-se-á quando ali comparardes o nosso progresso industrial ao daqueles nossos vizinhos. Mas naquele país o industrial não tem necessidade que se lhe imponha uma lei que o proíba de usar marcas e rótulos estrangeiros para que seus produtos sejam aceitos nos mercados consumidores! Os Argentinos têm amor ao que lhes pertence, o que não sucede, infelizmente, com a maioria dos Brasileiros (VISITAS ÀS FÁBRICAS pelo Exmº Senhor Presidente da República em dezembro de 1899 e janeiro de 1900, Rio de Janeiro, 1900, p. 63).

O tom nacionalista e protecionista apareceu em contraste com a política liberal adotada, sem regras ainda estabelecidas para a defesa da produção nacional da indústria. Lopes encerrou enfatizando o esforço da indústria em atender aos compromissos impostos, “de um modo talvez um tanto inconveniente”. Mas registrou a dívida contraída pela animação das visitas, quando se pode testificar o “progresso e o aperfeiçoamento, tão desconhecidos por muitos brasileiros”.

Campos Salles visitou somente a sala de máquinas, a caldeira motora, a casa envidraçada com o motor e o dínamo. A modernidade da construção foi enfatizada na utilização da energia elétrica voltada para iluminação, aquecimento de ferros e de água.7 7 A FCM estava situada num terreno ao lado da estação da Mangueira em formato triangular com 92m de frente para 140m de fundos. O edifício ocupava uma área de 2500m, construído pelas regras “de um estabelecimento modelo em seu gênero” (VISITAS ÀS FÁBRICAS pelo Exmº Senhor Presidente da República em dezembro de 1899 e janeiro de 1900, Rio de Janeiro, 1900, p. 59-60). Mas a projeção era de uma área total de construção de 4000m depois de construídos o frontispício, o almoxarifado, escritórios e outros espaços. Uma descrição mais minuciosa intentava demonstrar a sofisticação e a complexidade da sua estrutura, impressionando o leitor pela dimensão da unidade:

(...) sala de máquinas e caldeira motora com força de 150 cavalos nominais, de sistema muito seguro e duradouro. Em espaçosa casa envidraçada acha-se o motor de 50 a 60 cavalos indicados, sistema Compond, de condensação, que transmite o movimento por meio de cabos, para a direita e para a esquerda. Na mesma casa está o dínamo de Brusch com o quadro de distribuição. A fábrica tem mais de cem máquinas diversas e possui uma pequena oficina mecânica com pessoa habilitada a fazer reparos e modificações no maquinismo, uma oficina de fabricar fôrmas e moldes redondos e ovais e uma oficina para a fabricação de caixas de papelão. No fundo do terreno foi construído um reservatório revestido de pedra seca, com capacidade de meio milhão de litros, que fornece água para o condensador, para a tinturaria e para a extinção de incêndios, para o que dispõe de uma poderosa bomba a vapor e competentes mangueiras. Ao lado foi construída a chaminé, de forma cilíndrica, em tijolo e com 25 metros de altura. Importância do maquinismo e seu assentamento 240$300$000. Valor do prédio e terreno 194$030$000 (VISITAS ÀS FÁBRICAS pelo Exmº Senhor Presidente da República em dezembro de 1899 e janeiro de 1900, Rio de Janeiro, 1900, p. 59-60).

Na descrição acima, a fábrica era a parte da produção do chapéu contendo cem máquinas diversas, oficina mecânica e de fazer fôrmas, moldes e caixas de papelão. Um grande reservatório de água servia para o condensador, a tinturaria e para a iminência de incêndios. Mas deu-se uma ampliação de um novo e amplo anexo. O prédio abaixo (Figura 1) foi construído ou concluído em 1911, apontando para a sua expansão no período.

Figura 1.
Fachada da FCM em 1911 (acervo privado da Família Fernandes Braga).

Verifica-se na fotografia a sua imponência de forma retangular à beira da rua, com dois portões (um ao centro da foto e outro ao fundo à direita) e um relógio no beiral acima. Nessa nova construção, ficavam a parte administrativa, a estocagem, a distribuição e vendas dos chapéus, interligada ao prédio contíguo escarpado. Na calçada, alguns poucos transeuntes indicando um horário de pouco movimento e de um flagrante sem prévia combinação do fotógrafo, com um pequeno sapateiro engraxando o sapato de um homem ao lado de uma criança e uma pessoa sentada ao chão, parecendo um mendigo.

Ao lado direito do sapateiro, à beira da calçada, uma pequena mesa de madeira coberta por um pano branco e com os pés cruzados, indicando a venda de alguma iguaria de alimento. No canto à esquerda está um prédio menor onde ficava a seção de palha, em separado e entre os dois prédios a construção de telhados escarpados diagonais onde ficavam as seções da fabricação, tendo ao fundo a chaminé cilíndrica. O também imponente portão ao centro deveria ser o acesso central de entrada e de saída dos operários e das operárias.

A Mangueira tinha, no ano de 1900, ao todo cerca de 140 trabalhadores, sendo 89 homens, 23 mulheres, 45rapazese 10raparigas, com a produção de 200 chapéus finos de lebre e 240 finos de lã por dia, podendo, entretanto, produzir até o dobro dessa quantidade. No entanto, essa dimensão espacial e projeção econômica não se fizeram sem os enfrentamentos com essa mão de obra mais rude, ante as suas condições reais do trabalho.

Os conflitos: a concorrência e as greves

Apesar do cenário político e econômico conturbado das décadas de 1900 a 1920, a FCM se afirmou como uma das maiores fabricantes de chapéus no país. Do império para a república, foram poucas as fábricas de chapéus que sobreviveram às mudanças em curso. A Mangueira passou pelas ondas grevistas, ampliou o seu espaço físico e ganhou prêmios, como na Exposição Nacional do Rio de Janeiro de 1908. Segundo Nicolau Sevcenko, a Exposição foi o segundo marco da vitória da nova classe conservadora na república, depois da inauguração da Avenida Central, em 1904, pois “trouxe a glorificação definitiva dos novos ideais da indústria, do progresso e da riqueza ilimitados” (SEVCENKO, 1983SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 30).

A FCM se fez presente afirmando sua modernidade, tecnologia e espírito progressista, elementos reconhecidos na perfeição final do chapéu, conforme foi noticiado pelo Jornal do Brasil (1908JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro: [s.n], 1908.), tendo em José Luiz Fernandes Braga o industrial representado como operoso, desbravador e incansável.

OS EXPORTADORES. O Sr. J. L. Fernandes Braga conquistou de há muitos anos a estima e a consideração devidas a todos quantos têm produzido obra de real valor para o país. A fábrica que dirige há 40 anos é um padrão de glórias não só para ele como para a indústria nacional. Seu mérito maior reside no espírito progressista que o anima no incansável afã de melhorar sempre e sempre o produto já tão acreditado. Os Srs. Fernandes Braga, pai e filhos, viajam constantemente, vão ao velho mundo buscar novos ensinamentos, esmerilhar os maquinismos e importam tudo quanto possam trazer ao seu artigo melhoria de qualidade e fabricação. E daí é tão flagrante o aperfeiçoamento de seu produto que qualquer de ânimo desprevenido poderá confundi-lo com o similar estrangeiro e neste facto está o maior elogio para a Fábrica de Chapéus Mangueira. [...] São produtos belíssimos não só quanto à cor, formato, como quanto ao peso, bom acabamento e superior matéria-prima. Chapéus duros, moles, de abas e copas de todos os feitios e de qualidade e cores as mais variadas, com o mesmo apuro e correção dos principais estabelecimentos europeus. [...] A luta tem sido titânica para o operoso industrial, assim como os reveses e prejuízos, mas nada disso tem-no feito franquear; o contrário, em cada exposição que se realiza aparecem os produtos de sua fábrica, afirmando vitalidade e progresso; concorreu em 1875, em 1881, em 1900 e na de S. Luiz onde conquistou “grand prix” (JORNAL DO BRASIL, ano XVIII, n. 275, p. 6, 1 out. 1908, p. 6JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro: [s.n], 1908.).

Afinada com as mudanças em curso na ordem republicana, em 1909, a fábrica alterou sua razão social para Fernandes Braga & C., embora fosse conhecida no mercado como nome fantasia Fábrica Mangueira (O PAIZ, ano XXV, n. 8941, p. 1, 28 mar. 1909O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1909.).8 8 “À PRAÇA. Participo a esta praça, às do interior da República e aos meus comitentes do exterior que, nesta data, fiz uma sociedade com os meus filhos José Luiz Fernandes Braga Junior e Luiz Fernandes Braga para a continuação do fabrico de chapéus de feltro da Fábrica Mangueira. Agradecendo aos meus amigos e fregueses a coadjuvação que sempre me dispensaram, espero continuar a merecê-la a nova firma de Fernandes Braga & C. constituída em sucessão à J. L. Fernandes Braga que entra em liquidação. Rio de Janeiro, 18 de março de 1909. José Luiz Fernandes Braga”. (O Paiz, ano XXV, n. 8942, p. 6, 29 mar. 1909). Esse ano sinalizou uma intensa concorrência entre fabricantes de chapéus que se colocavam entre a expansão do mercado e as regras imprecisas da própria concorrência, mas que também enfrentaram as primeiras ondas grevistas que marcariam o mundo do trabalho.

A década foi uma das mais turbulentas da incipiente história republicana, ante a frustração das expectativas criadas com a ampliação da cidadania e da participação popular por parte da república, a exemplo da Revolta da Vacina (CARVALHO, 1987CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.; SEVCENKO, 1993SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo: Scipione, 1993.; CHALHOUB, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996.; BENCHIMOL, 2003BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2003. p. 232-286.). Os operários das indústrias têxteis, que se organizavam em associações desde 1890, mobilizaram a primeira greve geral no Rio de Janeiro, em 1903, afetando outros setores como o chapeleiro, durante 25 dias nos meses de agosto e setembro (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 25). Nisto, há que se registrar o quanto o setor chapeleiro foi importante neste cenário ao lado de outros ramos da indústria como o têxtil.9 9 A categoria dos chapeleiros historicamente foi tão importante quanto as demais nas lutas do movimento operário. A primeira organização sindical, fundada em 1888, em São Paulo, foi a dos chapeleiros (HALL, 2004, p. 20; SIQUEIRA, 2018, p. 27).

As relações outrora perpassadas pelo paternalismo passaram ao conflito mais aberto sem a mediação e a conciliação. Em 1890 e em 1892, encontramos registros dessa relação que, apesar do agradecimento, já se mostrava tensionada ante os gestos de benevolência, direitos humanitários e gentileza por parte dos proprietários, ao concederem a redução da jornada diária de trabalho e de um aumento de salário aos operários da oficina de propriagem e da seção de fula, fundamentais para o processo de produção chapeleira:

Fábrica de Chapéus. Os operários propriagistas da importante fábrica de chapéus dos Srs. Fernandes Braga & C., reconhecendo a benevolência dos dignos gerentes em aprovar os seus direitos humanitários, diminuindo-lhes uma hora em seu trabalho diário, vêm respeitosamente, por meio das colunas desta conceituada folha, agradecer, não só o digno procedimento dos mesmos ilustres senhores, como ao encarregado de sua repartição, por contribuir para o mesmo fim. Os operários, Othon Lins de Castro, Barnabé Hart Bahia, Antonio Fernandes Braga, José Rodrigues Gonçalves (O PAIZ, ano VI, n. 2010, p. 3, 9 jul. 1890O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1890.)10 10 Os propriagistas executavam o trabalho de acabamento dos chapéus depois da tintura, na oficina denominada propriagem. .

Agradecimento. Fábrica de Chapéus do Sr. José Luiz Fernandes Braga, à rua de S. Pedro n. 104. Os operários da repartição de fula, tendo pedido aumento de salário ao [...] mesmo senhor e sendo atendidos, não só desta vez como de outras, vêm por este meio patentear o seu reconhecimento pela gentileza que nos tem feito atendendo a carestia da vida. Capital Federal, 3 de agosto de 1892. Os operários de fula (O PAIZ, ano VIII, n. 3747, p. 2, 4 ago. 1892O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1892.).11 11 Os operários da fula eram os responsáveis pela preparação do feltro para os chapéus (SIQUEIRA, 2018, p. 35).

Entretanto, os propriagistas e os fulistas eram tidos como uma categoria de chapeleiros mais qualificados e identificados com os interesses dos proprietários, tidos como seus “muito humildes lambe-cus” que os mandavam tratar os demais operários com severidade e imposição de silêncio (HALL; PINHEIRO, 1979HALL, Michael M.; PINHEIRO, Paulo Sérgio. A Classe Operária no Brasil: documentos (1889 a 1930), Vol. I - O Movimento Operário. São Paulo: Alfa Omega, 1979. , p. 41-42).

O que intentamos demonstrar é que tal conciliação, outrora feita com certas categorias de chapeleiros e marcada pelo paternalismo, deixou de ocorrer devido ao maior achatamento das diárias e dos salários, ao período de horas de trabalho diários e a maior organização dos trabalhadores em associações. Em 17 de agosto de 1903, foi iniciado o movimento paredista na Mangueira, sendo a comissão de grevistas dispersa pela polícia (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 51). Dois dias depois, os operários,

por volta das 5 horas, [...], reuniram-se do lado de fora da fábrica, sem fazer tumulto. Quando, porém, silvou o apito chamando os operários ao serviço, eles não atenderam. Diante da atitude dos trabalhadores, o gerente chegou ao portão para convencê-los a trabalhar. Como permaneceram irredutíveis, o dr. Vicente Reis, delegado da 15ª circunscrição, que ali também se encontrava em companhia do inspetor Quintanilha, tentou obrigar os operários a entrar para trabalhar, mas também não teve sucesso. Esgotados todos os meios, o gerente da fábrica resolveu fechá-la (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 73).

A Associação de Classe dos Chapeleiros reivindicava “a adoção de diárias de oito horas e o aumento de 40% dos salários”, que aos poucos foram sendo acatadas pelos proprietários (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 77, 103, 204). As operárias chapeleiras, que representavam cerca de 30% a 40% da mão de obra, “decidiram acompanhar seus companheiros na parede”, pois seus salários eram cerca de 15% inferior aos dos homens (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 124-131).

As mulheres representavam boa parte da mão de obra da fabricação dos chapéus nas seções de forração e de palha. Eram costureiras e forradeiras responsáveis pelo acabamento dos chapéus finalizados manualmente, incluindo serviços levados para casa.

A repartição era dividida em setores com funções diferentes e definidas também as cotas diárias para cada forma de chapéu. As duas funções básicas eram a forração e a debria, além de arremates à mão. Havia as forradeiras de 1ª, 2ª e 3ª e as regulares, de acordo com a qualidade do material usado no chapéu, do tempo de serviço e da eficiência (SANTOS, 2017SANTOS, Lyndon de Araújo. Os Mascates da Fé: História dos Evangélicos no Brasil (1855-1900). Curitiba: CRV, 2017., p. 149).

O trabalho das operárias não se diferenciava somente pela inferioridade salarial em relação à mão de obra masculina. As seções eram vigiadas por homens e mantidas sob disciplina e regramento das posturas e dos padrões de comportamento a serem internalizados que, no caso da Mangueira, teve relação também com uma ética religiosa aplicada no contexto da produção.12 12 O nascente mundo protestante marcado pela ética puritana calvinista primava, do mesmo modo, pelo trabalho, pela disciplina, pelo controle do tempo e pelo comportamento social sem dubiedades morais. Um equivalente ao mundo fabril eram os serviços religiosos (cultos e reuniões) que demonstravam, em sua estrutura, a conjugação desses elementos numa ordenação racional do tempo e sob a vigilância dos olhares de representantes divinos, onde o cumprimento de todas as regras produziria dividendos espirituais por parte dos fiéis. Sobretudo às mulheres dirigia-se um discurso de perfeição e sobriedade que deveria expressar-se nos modos socialmente compartilhados das conversas, das roupas, dos gestos, da obediência e da não sensualidade. Uma das expressões dessa ordenação do universo feminino religioso era a Associação Cristã de Moças, um movimento equivalente à Associação Cristã de Moços (ACM), que agregava mulheres em atividades religiosas, de lazer, proselitistas e de sociabilidade (O Christão, ano IX, n. 108, p. 15, dez. 1900). Partindo da experiência inglesa, Thompson pontua que a questão da internalização da disciplina no trabalho deve ser situada “dentro da evolução da ética puritana” tornada mais insistente em relação ao tempo, resultando, no transcorrer do século XIX, numa “reestruturação radical da natureza social do homem e de seus hábitos de trabalho” (THOMPSON, 1998THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras , 1998., p. 295). Essa relação entre tempo e internalização da disciplina apareceu num regulamento para a repartição de forração instituído em março de 1899, definindo horários, comportamentos e punições:

Todos têm de estar no trabalho na hora marcada. Quem entrar depois da hora, de 5 a 15 minutos terá de trabalhar esse tempo na hora do descanso, ou depois da hora. É expressamente proibido conversar na hora do trabalho, a não ser sobre o mesmo trabalho. Quem faltar ao respeito à pessoa encarregada será despedida. Para qualquer ser considerada forradeira terá de fazer os seguintes trabalhos e daí para cima bem feitos. [...] Quem não fizer este trabalho, será despedida ou considerada aprendiz. Rio, 2 de março de 1899. José Luiz Fernandes Braga. (SANTOS, 2017SANTOS, Lyndon de Araújo. Os Mascates da Fé: História dos Evangélicos no Brasil (1855-1900). Curitiba: CRV, 2017., p. 148).

Na fotografia da Seção de Palha (Figura 2), com data provável dos anos de 1918/1921, percebe-se a presença de trabalhadoras brancas e negras, adolescentes e homens.13 13 A seção ainda estocava a matéria-prima, a palha, em meio a máquinas de costuras, num ambiente menor e mais fechado. O chapéu de palha era mais barato e mais consumido pelas camadas mais baixas da população, além de ser mais afeito ao clima quente da cidade, ao contrário das unidades feitas de feltro e pele de animais (lã, lebre e castor). O Sr. Francisco Teixeira, gerente geral da FCM, situa-se ao fundo, diferenciado pelo terno com a postura de austeridade e de controle.

Figura 2.
Seção de Palha (acervo particular da Família Fernandes Braga).

A greve de 1903 na Mangueira se encerrou juntamente com as demais fábricas quando os chapeleiros começaram a voltar ao trabalho, guardadas pelo aparato policial, sempre chamado a mediar os conflitos e garantir a segurança patrimonial, reprimindo os trabalhadores:

Com exceção da fábrica Costa Braga, todas as fábricas de chapéus funcionaram, embora com pessoal reduzido, e com maior comparecimento de mulheres. A fábrica de chapéus de palha da rua do Itapiru abriu com a presença do capitão Amador Bueno, suplente da 11ª circunscrição, controlando a entrada e saída dos funcionários. Trabalhou com 53 operários a fábrica J. L. Bernardes [sic Fernandes] Braga, sob a vigilância do dr. Vicente Reis, delgado da 15ª circunscrição, que ficou de prontidão na empresa. Por volta das 13 horas, foi preso nas imediações da empresa um indivíduo chamado Manoel Ferreira Junior, recolhido ao xadrez por estar aliciando operários. (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 162).

As reivindicações foram atendidas por parte das empresas com o aumento de salário e a redução da carga horária de trabalho. “Nas fábricas de chapéus houve um aumento de 60 para 100 réis por peça na seção de fula. Este aumento ocorreu na fábrica do Largos dos Leões e na da Visconde de Inhaúma e é provável que o exemplo seja seguido por outras empresas” (AZEVEDO, 2005AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2005., p. 204).

Três anos depois (1906), nova onda grevista ocorreu dentro de outra conjuntura da concorrência entre as fábricas do Rio de Janeiro e de São Paulo, a partir da expansão do poder de compra num mercado crescente e popularizado. Ao que parece, o aumento de 60 para 100 réis conquistado antes, ainda permanecia sob as novas condições da produção. A fabricação de unidades em menor tempo e com qualidade inferior invadiu este mercado, exigindo das fábricas voltadas para chapéus de maior qualidade e preço, os finos, como a Mangueira, que cortassem seus custos na produção e reduzissem salários, a fim de se adaptarem às condições do mercado de chapéus inferiores (GAZETA DE NOTÍCIAS, ano XXXII, n. 126, p. 8, 6 de maio de 1906GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.).

Para os proprietários, este foi o motivo que levou à insatisfação e à não compreensão dos grevistas em 1906. Os operários, porém, se recusavam a trabalhar na confecção dos chapéus inferiores, somente na dos finos, pois nesses almejavam obter proventos melhores e não terem seus salários reduzidos. Segundo o jornal O Paiz, apoiador do ponto de vista dos proprietários, somente alguns insubordinados infiltrados e ligados à Associação dos Chapeleiros não aceitaram os argumentos para a redução dos salários, visando somente a anarquia e a perturbação da ordem e do trabalho. E, apesar da greve pacífica, alguns funcionários foram ameaçados de morte e até agredidos por indivíduos desconhecidos que “de faca em punho, os intimaram a abandonar a fábrica”.

A greve de que se trata não apresenta um só argumento que a justifique. Não se originou de maus-tratos, nem de excesso de trabalho ou de qualquer outro motivo que autorizasse o operário supor-se oprimido pelo patrão. Proviera apenas da conveniência comercial do proprietário do estabelecimento de fabricar uma marca de chapéus com material de inferior qualidade, diminuindo cem réis de cada peça de confecção, sem contudo prejudicar o operário nem no seu salário nem no seu trabalho, visto que a diminuição daquele está compensada pelo maior número de peças confeccionadas e o segundo, embora represente produção maior, não sofre aumento, pois tem para equipará-lo a facilidade muito maior com que as peças são fabricadas. (O PAIZ, ano XXII, n. 7886, p. 9, 6 mai. 1906O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.).

A posição e a visão da Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros eram distintas.14 14 Fundada em 10/06/1905 como “resultado da fusão do Club Protetor dos Chapeleiros com a União dos Chapeleiros (...). Filiou-se à Confederação Operária Brasileira (COB), com a constituição desta em 1908”. (BATALHA, 2009, p. 182). No dia 27 de abril de 1906, a diretoria emitiu uma nota com duras críticas ao proprietário da FCM, contestando as falsas informações feitas no Jornal do Brasil, de 24 de abril. Braga insinuou ter a Associação imposto a não frequência ao trabalho, promovendo distúrbios e ameaças. A Associação defendeu a atitude ordeira e pacífica dos grevistas, reconhecendo que o motivo da greve era “o abatimento de 100 réis em mão de obra”. E, ao contrário, levantou a hipótese de ter sido o próprio industrial a ordenar as desordens por meio de seus capangas, querendo, com isto, exterminar a Associação.

Para Braga, a Associação havia feito propaganda da inferioridade de seus produtos, mas esta defendeu-se dizendo que havia exposto a verdade: “Não é verdade que a Associação tenha feito propaganda da inferioridade de gêneros manufaturados pelo Sr. Braga em sua fábrica; o que a Associação fez foi expor a verdade, o que poderá em qualquer tempo provar, visto que o nosso manifesto foi a expressão justa e verdadeira a qual mantemos por todos os princípios e formas.” (CORREIO DA MANHÃ, ano VI, n. 1750, p. 4, 27 abr. 1906CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.). Por fim, ante a afirmação de que a Associação havia suspendido as beneficências, a justificativa estava nas disposições de seus próprios estatutos. A nota encerrou com o tom de ironia ante o humanitarismo do industrial em contraste com sua política de reduções salariais e no tratamento da mão de obra dos menores aprendizes, disposição oposta a dos agradecimentos de 1890.

Estranhamos muito que quem tão humanitário se quer mostrar, trazendo este facto ao conhecimento público, não se recorde de que com as suas arcas cheias de ouro, ajudando a ganhar pelos operários de 20 e mais anos de serviços, viesse sem motivo retirar a miserável parcela de 100 réis em obra, o que não é a primeira vez, visto que com ardil e astúcia de hábil prático tem o Sr. Braga, já feito por diversas outras vezes reduções em geral ao seus operários, durante a permanência de sua fábrica na estação da Mangueira. Ora argumentamos que a diminuição de 100 réis em mão de obra, é sério motivo para greve, por quê? O operário consome o mesmo tempo fazendo um chapéu de inferior qualidade como fazendo um chapéu fino. Agora, para terminar, devemos declarar ao Sr. Braga o que se dá em sua fábrica, o que é de bom aviso o público também conhecer. Tratamos dos menores que em todos os países gozam de mais vantagens que o operário adulto. Na fábrica do Sr. Braga são explorados e sacrificados, tirando-lhes até o tempo das refeições, para obrigá-los à limpeza de sua fábrica, admitindo-os a título de aprendizes, torna-os criados de vassoura pela fortuna de 400 e 500 réis diários. (CORREIO DA MANHÃ, ano VI, n. 1750, p. 4, 27 abr. 1906CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.).

Ora, Braga era protestante e líder religioso em sua Igreja Evangélica Fluminense, portador de uma ética religiosa de matriz puritana e cioso de sua conduta pública.15 15 O puritanismo foi uma derivação do calvinismo como uma das vertentes do protestantismo europeu. Trata-se de uma postura religiosa preocupada com os valores, a moral e o comportamento como expressões da fé exercitada nos espaços público e da religião. Max Weber identificou, histórica e culturalmente, como essa ética proporcionou o surgimento de uma classe de capitalistas que acumularam riqueza a partir da prática de uma ética religiosa intramundana, como evidência da eleição divina (WEBER, 2001). Nas condições da vivência protestante na capital da República, o lusitano Braga aplicou, ao seu modo e no seu contexto, uma ética religiosa de matriz puritana de acordo com os seus limites e sua visão de mundo. A Igreja Evangélica Fluminense (IEF), da qual fazia parte, foi fundada pelo missionário Robert Reid Kalley, em 1858, desde a perspectiva calvinista e puritana. A IEF tinha como regime eclesiástico o congregacionalismo ao afirmar a sua autonomia e independência em decisões e separada do Estado. Outras igrejas protestantes cariocas também tinham o puritanismo calvinista como referência teológica e de conduta religiosa (SANTOS, 2017). Essa ética amparou-se num discurso que dava sentido às ações no complexo mundo das relações fabris. A Associação volveu sua crítica pessoal mais mordaz usando como fonte a Bíblia com o objetivo de atingir a sua idoneidade e mostrar suas incoerências. Certamente, a FCM era conhecida também pela prática religiosa de seus proprietários, dentro da visão mais ampla que se tinha dos evangélicos, naquele momento do alvorecer da república laica. O cotidiano da fábrica era permeado de posturas, discursos e visões oriundos da ética protestante aplicada ao mundo do trabalho, sendo Fernandes Braga conhecido como benfeitor e um patrão que tentava conciliar os conflitos pelas atitudes de polidez e bondade.16 16 Um exemplo de aplicação da ética religiosa no mundo do trabalho fabril foi a planilha afixada na repartição de forração, datada de 2 de março de 1899, e assinada por Braga, onde se regulamentava o horário de entrada e saída das operárias com a reposição dos eventuais atrasos, a proibição de conversas no horário de trabalho, a exigência do respeito no relacionamento com os encarregados e a execução das tarefas “daí pra cima bem feito”. Exigia-se o comportamento das operárias dentro de um padrão moral imposto pela sociedade patriarcal que era reforçado pelo discurso religioso (SANTOS, 2017, p. 148-149).

No entanto, o conflito de fundo entre capital e trabalho foi transposto para o campo da crítica religiosa, como forma de combate pelo descrédito moral do patronato. Chama a atenção a forma como a passagem das escrituras foi utilizada, atingindo sua condição como rico e inserindo uma dúvida quanto à salvação da alma. Na falta de Marx, foi Tiago, o apóstolo, a base da crítica social e política dos trabalhadores organizados:

Esta é uma das causas que deixamos consignadas, aguardando qualquer contestação para então pormos os pontos nos ii [sic], lembrando desde já que talvez o Sr. Braga tenha se esquecido de suas multiplicadas leituras da Bíblia sagrada, são as considerações expendidas por S. Thiago, capitulo V. 1º. - Eia, vós agora, ó ricos, chorai, dando urros na consideração de vossas misérias que virão sobre vós. 2º. - As vossas riquezas apodreceram e os vossos vestidos têm sido comidos pela traça. 3º. - O vosso ouro e vossa prata se enferrujaram, e a ferrugem deles dará testemunho contra vós, e devorará a vossa carne como um fogo. Juntastes para vós um tesouro que irá lá para os dias últimos. 4º. - Sabei que o jornal que retivestes (ou rebaixastes) aos trabalhadores, que ceifaram os vossos campos, clama, e que os seus gritos subirão até aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Conclusão: - O Sr. Braga fará o favor de ler o capítulo citado e tirar o que de melhor encontrar para a salvação de sua alma. A diretoria (CORREIO DA MANHÃ, ano VI, n. 1750, p. 4, 27 abr. 1906CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.).

No mês de maio, uma sequência de artigos assinados pelos operários sensatos procurou demonstrar a incoerência da greve por parte de um segmento pequeno dos empregados, os fulistas, diante da razoabilidade da diminuição do custo dos salários ante o menor custo da fabricação de chapéus de menor qualidade, visando a concorrência com as fábricas paulistas. De igual modo, desqualificou a Associação de Chapeleiros questionando sua legitimidade e afirmando ser influenciada por doutrinas estrangeiras, anárquicas e de “literatura sociocrática”, transformada em sociedades de resistência e não mais de beneficência. Em sua versão, deu por encerrada a greve atribuindo aos grevistas a condição de terem sido levados pela Associação, mas que agora “voltam a pedir serviço” (CORREIO DA MANHÃ, ano VI, n. 1764, p. 3-4, maio 1906CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.).17 17 Os grevistas deram pronta resposta aos artigos provocando aos operários sensatos, identificando-os como sendo os explorados ao lado do explorador, demonstrando não terem sido atingidos com as críticas e que recorreriam à justiça ante as possíveis acusações (CORREIO DA MANHÃ, ano VI, n. 1764, p. 3-4, maio 1906).

Nos meses de julho e de agosto de 1917, a nova onda grevista atingiu o setor chapeleiro e a FCM teve de ser guardada por escolta policial, com o apoio de seus operários (O PAIZ, ano XXXIII, n. 11980, p. 3, 25-26 jul. 1917O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1917.). Os chapeleiros participaram de uma intensa mobilização ao lado de trabalhadores têxteis, metalúrgicos, marceneiros, da construção civil, etc. (TOLEDO, 2017TOLEDO, Edilene. Um ano extraordinário: greves, revoltas e circulação de ideias no Brasil em 1917. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 497-518, mai./ago. 2017., p. 504), sendo, portanto, orgânicos nos movimentos paredistas. A mesma autora situou as greves e manifestações de 1917 num cenário global de agitação social nos países atingidos pela desestabilização econômica nos tempos derradeiros e posteriores da Primeira Guerra Mundial (TOLEDO, 2017TOLEDO, Edilene. Um ano extraordinário: greves, revoltas e circulação de ideias no Brasil em 1917. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 497-518, mai./ago. 2017., p. 499-500).

No Brasil, a luta contra os preços dos aluguéis e dos alimentos foi a experiência comum que levou às reivindicações dos trabalhadores organizados nos sindicatos, num novo ciclo de lutas trabalhistas.

As reivindicações dos trabalhadores nos protestos de 1917 eram, em termos gerais, jornada de oito horas, semana de cinco dias e meio, fim do trabalho de crianças, restrições à contratação de mulheres e adolescentes, segurança no trabalho, pagamento pontual dos salários, aumento salarial, redução do preço dos aluguéis e do custo dos bens de consumo básicos, respeito ao direito de sindicalização, libertação dos trabalhadores presos durante as greves e recontratação de todos os grevistas demitidos. (TOLEDO, 2017TOLEDO, Edilene. Um ano extraordinário: greves, revoltas e circulação de ideias no Brasil em 1917. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 497-518, mai./ago. 2017., p. 500, 501 e 507).

Fausto identificou o fim de um ciclo econômico com penosa recessão que abateu as classes populares durante e depois da guerra (FAUSTO, 1986FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1986., p. 157). Mas a greve, no Rio e em outros estados, reivindicou questões que eram estruturais ao lado das conjunturais, exigindo “a ação tanto do Estado como dos empregadores, e nos dizem muito sobre as dificuldades da vida e do trabalho da população pobre das cidades naquele período, mas também sobre a mudança na relação com o Estado” (TOLEDO, 2017TOLEDO, Edilene. Um ano extraordinário: greves, revoltas e circulação de ideias no Brasil em 1917. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 61, p. 497-518, mai./ago. 2017., p. 507).

Nesse cenário concorrencial, de conflitos e de contradições, o mundo do trabalho imbricava-se ao mundo religioso de algum modo, na construção de um sentido de missão instrumentalizado à existência da FCM.

O sentido: uma fábrica missionária

Quando a fábrica foi construída na Mangueira, Fernandes Braga inaugurou uma casa de oração num terreno ao lado, com os custos da construção supridos por ele, mas que teve curta duração. Braga procurava estabelecer os nexos entre o mundo da produção e do sagrado protestante compondo num mesmo espaço físico as dependências da fábrica, um templo e as casas para os operários (O CHRISTÃO, ano XVI, n. 184, p. 13, mar. 1907O CHRISTÃO. Rio de Janeiro: [s.n], 1907.). Cultivava uma ética de matriz puritana que dava sentido às suas ações tanto no espaço da produção como no cotidiano da crença.

Nesse sentido, as condições deveriam ser dadas para que todos ouvissem a pregação da fé evangélica. O operariado era visto não somente como mão de obra empregada, mas como futuros conversos, embora as conversões não tenham ocorrido como se esperava. No processo de contratação de novos funcionários, o critério de escolha passava pelo pertencimento à fé reformada e, caso não houvesse, como na maioria dos casos, o comportamento deveria equivaler ao de um protestante. A fábrica foi usada como um veículo de evangelização de operários que, por sua vez, eram supridos com moradia, assistência médica e um templo religioso. O proprietário supria o alimento do corpo e da alma, através do trabalho e da salvação.

Muitos de seus funcionários eram protestantes, parte de seus lucros eram utilizados para o proselitismo não apenas no Rio de Janeiro, mas também em Portugal. Seu proprietário foi também um dos fundadores do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro e da Associação Cristã de Moços (...). Antes de falecer, legou à Igreja Evangélica Fluminense, a quantia de 100.000$00, sendo oitenta para a construção de um edifício de educação religiosa e vinte para a caixa dos pobres. (LIMA, 2016LIMA, Sérgio Prates. Uma ética protestante tropical: José Luiz Fernandes Braga e a Fábrica de Chapéus Mangueira (1858 a 1920). 2016. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 78).

A FCM serviu como suporte para ações do incipiente universo protestante carioca em tempos de laicidade do estado, financiando a construção de templos e de hospitais, a publicação de literaturas e de hinários de cânticos sacros e o sustento de pastores, missionários e obreiros.18 18 Nesse período, poucas eram as igrejas protestantes na capital, a exemplo da Igreja Evangélica Fluminense, no bairro da Saúde, da Igreja Presbiteriana que se reunia num edifício no Campo de Santana, a Igreja Metodista no bairro do Catete e a Igreja Batista, na rua de Santana, depois Frei Caneca, na região do Estácio. Essas igrejas contavam com avanços proselitistas na direção dos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, seguindo as estações da linha de ferro. Pelas ligações familiares com Portugal, Braga envidou esforços para levar a fé reformada aos parentes em Braga, assim como nas cidades de Lisboa, Vizeu e do Porto, onde templos protestantes foram erigidos (O PURITANO, ano X, n. 429, p. 1, 13 jan. 1908O PURITANO. Rio de Janeiro: [s.n], 1908.; tb. ano X, n. 451, p. 5, 16 jul. 1908).

Desse modo, a fábrica foi instrumentalizada para a divulgação da religião, sendo missionária no sentido de que promoveu e financiou ações a favor do protestantismo em formação. Isto pode ser demonstrado em pelo menos três inserções diretas nas construções do templo da Igreja Evangélica Fluminense, inaugurado em 1914, na Rua Camerino, Bairro da Saúde, e das dependências do Hospital Evangélico, inaugurado em 1911, na Tijuca. Além dessas, a aquisição do prédio da Associação Cristã de Moços (ACM) ocorreu em 1896, no centro da cidade, revelando a sua participação no universo protestante carioca.

No início, as reuniões da Associação Cristã de Moços do Rio de Janeiro aconteciam na rua 7 de setembro, em uma sede improvisada. Em 1896, José Luiz Fernandes Braga, evangélico, dono de indústria, comprou uma casa para sediar a nova Associação, “hipotecando-a com pagamentos parcelados, por cinco anos, em juros módicos” (MOCIDADE, nº 343, set. de 1922). José Luiz F. Braga, que estava entre os integrantes que fundaram a ACM do Rio de Janeiro, permanecendo como sócio ao longo de toda a sua vida, contribuiu frequentemente para a instituição por meio de doações. O gesto de disponibilizar à instituição um imóvel demonstra a sua confiança e empenho na concretização do projeto que a Associação apresentava à sociedade carioca, assim como a sua vinculação com a religião protestante e com o setor produtivo reforça o vínculo da instituição com a formação de jovens trabalhadores. (BAÍA; MORENO, 2014BAÍA, Anderson da Cunha; MORENO, Andrea. O movimento de implantação e consolidação das Associações Cristãs de Moços no Brasil (1891-1929). Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 13, n.1, p. 157-179, jan./jun. 2014., p. 164).

Em torno da ACM formou-se uma rede de relacionamentos integrada por agentes portadores de um projeto de modernidade, oriundos do universo protestante carioca. O mundo da produção não estava divorciado dos valores religiosos e reciprocamente se legitimavam. A própria ACM, com seu projeto civilizador voltado à juventude, nutria-se dessa proximidade e da confluência de interesses dos patrões, donos de comércios, indústrias e fábricas, que contribuíam para sua manutenção e consolidação. Por sua vez, a entidade em contrapartida “possibilitava a formação dos funcionários, compensando o desgaste das horas trabalhadas e contribuindo, no âmbito religioso do protestantismo, com o enquadramento deles no caminho que os aproximaria das suas vocações” (BAÍA; MORENO, 2014BAÍA, Anderson da Cunha; MORENO, Andrea. O movimento de implantação e consolidação das Associações Cristãs de Moços no Brasil (1891-1929). Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 13, n.1, p. 157-179, jan./jun. 2014., p. 165).

Na fotografia abaixo (Figura 3), provavelmente feita antes do ano de 1910, encontramos a liderança da ACM, que se compunha de integrantes das principais igrejas protestantes no Rio de Janeiro, uma elite ligada ao setor da produção e do comércio: atrás, estão Myron Clark, fundador da ACM no Brasil, membro da Igreja Presbiteriana e Secretário Geral da ACM do Rio de Janeiro (BAÍA; MORENO, 2014BAÍA, Anderson da Cunha; MORENO, Andrea. O movimento de implantação e consolidação das Associações Cristãs de Moços no Brasil (1891-1929). Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 13, n.1, p. 157-179, jan./jun. 2014., p. 159) e Nicolau Soares Couto Esher; na frente, à direita na ponta, José Luiz Fernandes Braga Júnior, industrial da FCM e membro da Igreja Evangélica Fluminense; na outra ponta, Joaquim Nogueira Paranaguá, diácono da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro e senador da república; ao lado de Paranaguá, Domingos Antônio Silva Oliveira, industrial da Companhia Industrial e Importadora Atlas e da Companhia de Calçado Cleveland, ligado à Igreja Evangélica Fluminense; à sua esquerda estão Thomaz Lourenço da Costa (no centro) e um não identificado. Assim, a ACM reunia representantes das elites dessas igrejas e da sociedade, marcados por uma ética religiosa aplicada ao mundo dos negócios e da produção.

Figura 3.
Liderança da ACM no Rio de Janeiro (acervo privado da Família Fernandes Braga).

A ACM foi um projeto levado a efeito por componentes das elites das igrejas protestantes ligadas ao mundo da produção e do comércio. O acesso dos trabalhadores a esse espaço se daria a partir das ações educativas, religiosas e civilizatórias promovidas pela entidade, numa relação assistencial. Certamente um conjunto de jovens conformados aos padrões da associação serviria como mão de obra à disposição dos empreendimentos comerciais e fabris dirigidos por essas elites.

O pequeno mundo protestante também esteve articulado na criação de um hospital para atendimento, num primeiro momento, aos próprios evangélicos mais pobres da Igreja Evangélica Fluminense, pois estes eram alvos de reservas, se não de preconceitos, por parte dos hospitais católicos (Santa Casa de Misericórdia), quando os enfermos se recusavam a receber os sacramentos e se submeterem aos rituais da missa e da confissão. Esses eram os argumentos dos próprios protestantes nos enfrentamentos que tinham no cotidiano de uma sociedade católica e de um estado laico, mas que ainda mantinha favores à outrora Igreja oficial em tempos de império. Porfírio José Tavares, membro da Igreja Evangélica Fluminense, lançou a ideia que fora acolhida por outras igrejas da cidade, sendo criada uma sociedade em 8 de novembro de 1887 (LUZ, 1932LUZ, Fortunato Gomes da. Esboço histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense (1855-1932). Rio de Janeiro: Igreja Evangélica Fluminense, 1932., p. 398).1 1 Maria Eulália Lobo discorreu sobre a fabricação de chapéus no século XIX favorecida por medidas protecionistas (LOBO, 1978, p. 173). A maior mecanização da produção com o uso de máquinas a vapor e da eletricidade, a formação de associações de chapeleiros e a ampliação do mercado consumidor, juntamente com o aumento da concorrência foram processos responsáveis pela consolidação de uma produção nacional.

JLFB ofereceu um terreno na Mangueira para a sua construção, mas foi preferido adquirir um terreno na rua Bom Pastor, no Engenho Velho, próximo à Fábrica das Chitas, provavelmente em função de ser um local mais aprazível que a Mangueira, esta já uma região mais popularizada. Foi seu vice-presidente nos anos de 1915/1916 e presidente entre 1917-1918, sendo nomeado presidente honorário e grande benfeitor em 1919, compondo o seu quadro de conselheiros (HOSPITAL EVANGÉLICO, 1915HOSPITAL EVANGÉLICO DO RIO DE JANEIRO. Relatório de 1914-1915, apresentado à Assembleia Geral em 25 de agosto de 1915. Rio de Janeiro: Oficina Tipográfica do "Puritano”, 1915.). A rua Bom Pastor ficava numa região menos acessível para a população mais pobre, num terreno íngreme, conforme a fotografia (Figura 4).

Figura 4.
Entrada do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro em 1922 (Associação do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro, 1922, p. 2ASSOCIAÇÃO DO HOSPITAL EVANGÉLICO DO RIO DE JANEIRO. Relatório Anual correspondente ao ano de 1921 a 1922. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Baptista, 1922, p. 2.).

Uma rede de apoio filantrópico foi acionada por parte das igrejas protestantes ao Hospital Evangélico Fluminense, sobretudo pela ação voluntária de mulheres, suprindo as necessidades básicas e imediatas dos internados, assistida pelos pastores dessas comunidades. Chamava-se Esforço Cristão o movimento de mobilização para a ação social e beneficente por parte dos religiosos protestantes da época, tendo a caridade como imperativo de um discurso e de uma prática voltada aos mais carentes. Ao mesmo tempo, seu funcionamento dependia não somente do suporte dessas igrejas, mas de festas, quermesses, donativos e cupons oriundos da distribuição de prêmios, como a feita pela Companhia Ferro Carril de Vila Izabel, em 1902 (CORREIO DA MANHÃ, ano II, n. 272, p. 2, 13 mar. 1902CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1902.).

Um hospital, ao mesmo tempo, integrava um conjunto de ações por parte desse protestantismo como demonstração de modernidade e de afinidade com os avanços da medicina, integrando a fé ao espaço público como estratégia de legitimação social. Braga e a FCM também foram importantes na construção do que foi inicialmente chamado Hospital Evangélico Fluminense, localizado, então, na rua Bom Pastor, 83, Engenho Velho (atual Tijuca), que, desde cerca de 1902, arrecadava recursos com campanhas para a sua construção. A conclusão das obras do edifício e a inauguração dos serviços médicos e farmacêuticos, se deram no dia 12 de outubro de 1912, numa festa promovida com a presença do prefeito general Bento Ribeiro e de outras autoridades (CORREIO DA MANHÃ, ano XII, n. 5003, p. 6, 12 out. 1912CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1912.).

A partir de 1912, com a sua fundação, o hospital passou a atender os operários da Mangueira em casos de acidentes de trabalho, bem como de outras companhias, como os trabalhadores da Estrada de Ferro, nas décadas de 1920 e 1930. Além desses, recebeu uma crescente demanda de indigentes e de pacientes, em geral vítimas de acidentes domésticos, como queimaduras, de trânsito, de violências do cotidiano e de trabalho. Estabeleceu convênios com a prefeitura da cidade a fim de receber casos emergenciais e de cirurgia mais tarde.

As ligações entre a fábrica e a Igreja Evangélica Fluminense eram inseparáveis. Nos Relatórios Espirituais e Financeiros da I. E. Fluminense (1885 a 1917), a Fernandes Braga & Cia. contribuiu diretamente para a IEF com valores que foram de 120$000 em 1885 a 1:000$000 no ano de 1917, além das contribuições individuais dos membros da família à “manutenção do culto” e para a escola diária. Fernandes Braga foi o presidente da Administração do Patrimônio, Manutenção do Culto e Escola Diária, desde o ano de 1895, e empenhava-se por um zelo religioso e proselitista no contexto da sua comunidade. Exemplo disso foi a viagem que fez com o Pr. João Manoel Gonçalves dos Santos para São Paulo, a fim de “fundar ali uma congregação do regime fluminense, filial à igreja desta capital” (O PAIZ, ano XXV, n. 8926, p. 3, 13 de março de 1909O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1909.).

Em 1912, a igreja, então situada na rua Larga de S. Joaquim, 185, mais tarde Marechal Floriano Peixoto, estava incomodada com o barulho da rua nos cultos, pois havia sido asfaltada com acesso e fluxo dos bondes. O terreno para a construção do novo templo foi encontrado na rua Camerino, 102-104, pertencente, na época, aos Operários Estivadores, e foi comprado pela quantia de 52 contos de réis. A intervenção de Fernandes Braga foi evidente: “Quanto a importância para a compra efetuada, o presbítero Sr. Braga que já tinha voltado de Portugal, emprestou-o sem que para isso fosse preciso fazer hipoteca alguma” (IGREJA EVANGÉLICA FLUMINENSE, 1913, p. 4IGREJA EVANGÉLICA FLUMINENSE. Relatório da Administração do Patrimônio da Igreja Evangélica Fluminense eletivo ao ano de 1912. Rio de Janeiro: Tipografia Guttemberg, 1913.). A propriedade anterior foi vendida e o valor para a construção foi completado pelo esforço de contribuição da comunidade e, principalmente, pela intervenção direta de Braga. O templo foi construído em cerca de seis meses no ano de 1914.

A imagem mostra, numa ponta, Braga segurando a planta baixa do templo no local da sua construção, rodeado pela liderança masculina da Igreja (Figura 5). Na outra ponta, segurando a planta, um trabalhador negro que, muito provavelmente, seria um responsável ou mestre de obra, quem sabe, um operário da FCM especialista em construção. A proximidade da construção do novo prédio da fábrica, em 1911, com o novo templo, leva-nos a considerar ainda mais as relações com a Igreja, alvo de um maciço investimento por parte de Braga em termos patrimoniais e missionários, tanto no Rio de Janeiro como em Portugal. Ainda, “antes de falecer, legou à Igreja Evangélica Fluminense, a quantia de 100.000$00, sendo oitenta para a construção de um edifício de educação religiosa e vinte para a caixa dos pobres” (LIMA, 2016LIMA, Sérgio Prates. Uma ética protestante tropical: José Luiz Fernandes Braga e a Fábrica de Chapéus Mangueira (1858 a 1920). 2016. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 116).

Figura 5.
José Luiz F. Braga com a planta do templo da IE Fluminense (acervo da Igreja Evangélica Fluminense).

Dessa forma, o protestantismo carioca, embora minoritário, construía seus espaços de visibilidade social como templos e hospitais, desde um esforço conjunto das suas principais igrejas e instituições, por meio de lideranças letradas e elites econômicas e políticas.

Considerações finais

José Luiz Fernandes Braga faleceu em 16 de março de 1920, encerrando um ciclo da trajetória da fábrica que se confundia com as suas próprias ações. Foi um agente de mundos complementares, o da produção e o do sagrado protestante, ambos afinados ao modelo da modernização em curso. Seu enterro mobilizou distintos segmentos da sociedade, desde o industrial, o cultural (mordomo da Sociedade Portuguesa de Beneficência) e o religioso, e com grande repercussão (LIMA, 2016LIMA, Sérgio Prates. Uma ética protestante tropical: José Luiz Fernandes Braga e a Fábrica de Chapéus Mangueira (1858 a 1920). 2016. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 112-124).

As condições do fabrico e do mercado consumidor dos chapéus, juntamente com as políticas protecionistas e a organização dos industriais, garantiram a projeção da Mangueira. As greves no setor chapeleiro, que giraram em torno das reivindicações concretas de melhores salários e menor jornada diária de trabalho, evidenciaram o universo de relações, conflitos e contradições nesse mundo do trabalho (HOBSBAWN, 2015HOBSBAWN, Eric. Mundos do trabalho: novos estudos sobre a história operária. 6. ed. Tradução de Waldea Barcellos e Sandra Bedran. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.), sobretudo para a mão de obra feminina, submetida a um processo de disciplinamento maior. A produção chapeleira foi marcada por intensas mudanças e mobilizações por parte de um operariado que se organizava em associações, a exemplo da Associação dos Chapeleiros, responsável pelas paralisações.

A organicidade com o segmento protestante, enquanto fábrica missionária, se deu ao ser mobilizada como suporte e apoio a empreendimentos como a construção de templos, o sustento de missionários, o financiamento de obras assistencialistas e de ações sociais como o Hospital Evangélico, e a direta participação na promoção da ACM (Associação Cristã de Moços). Desse modo, contribuiu para a expansão de igrejas e denominações, mas também para a afirmação e a legitimação dessa religião na nova ordem laica republicana. Algo dessa ética puritana de fundo, alimentada pelos proprietários, foi transposta para o espaço público e para as relações no cotidiano fabril, regulando o tempo, a disciplina e os comportamentos.

Os campos da religião e da economia estabelecem padrões e estruturas homólogos entre si (WEBER, 2001WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001; BOURDIEU, 1999BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. Tradução de Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1999.). Enquanto prática cultural e resultado do processo de criação e de reprodução simbólica da vida, a religião também compõe a experiência humana no mundo do trabalho. Essa relação, ou mesmo imbricação do religioso no mundo da produção, pode, portanto, ser percebida na especificidade da FCM em sua historicidade, vivida por sujeitos subordinados ou não à ordem republicana, inventada em suas contradições, conciliações e legitimações.

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Jornais

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  • CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.
  • CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1912.
  • CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1918.
  • CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1926.
  • GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s.n], 1880.
  • GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.
  • JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro: [s.n], 1908.
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  • O PURITANO. Rio de Janeiro: [s.n], 1899.
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  • O PURITANO. Rio de Janeiro: [s.n], 1908.
  • REVISTA DA SEMANA. Rio de Janeiro: [s.n], 1909
  • 1
    Maria Eulália Lobo discorreu sobre a fabricação de chapéus no século XIX favorecida por medidas protecionistas (LOBO, 1978LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro, volume 1. Rio de Janeiro: IBMEC, 1978., p. 173). A maior mecanização da produção com o uso de máquinas a vapor e da eletricidade, a formação de associações de chapeleiros e a ampliação do mercado consumidor, juntamente com o aumento da concorrência foram processos responsáveis pela consolidação de uma produção nacional.
  • 2
    José Luiz Fernandes Braga foi um imigrante português que chegara ao Brasil em 1854, aos 12 anos de idade, vindo da freguesia de Sampaio de Merelim, cidade de Braga, a fim de ajudar seu irmão mais velho, José Antônio Fernandes Lopes. José Luiz assumiu a fábrica em 1868, depois da morte do irmão, e levou-a à condição de uma das maiores do país no setor chapeleiro. A cidade de Braga, na região do Minho, e próxima à cidade do Porto, era um dos centros de produção chapeleira desde os tempos pombalinos, fabricando chapéus baratos e rudes, baseada também na produção familiar (SANTOS, 2015aSANTOS, Lyndon de Araújo. Os Brácaros Chapeleiros: mundos e representações dos chapéus no Rio de Janeiro (1825-1898). Varia História, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 787-818, set./dez. 2015a., p. 787-818).
  • 3
    O presente artigo integra uma sequência de outros já publicados, resultantes da pesquisa de pós-doutorado realizada nos anos de 2013/2014 junto ao Programa de Pós-graduação em História da UFF (SANTOS, 2015aSANTOS, Lyndon de Araújo. Os Brácaros Chapeleiros: mundos e representações dos chapéus no Rio de Janeiro (1825-1898). Varia História, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 787-818, set./dez. 2015a., p. 787-818; SANTOS, 2018SANTOS, Lyndon de Araújo. Essa fina gente do morro: ocupação, conflitos e representações da Mangueira (1910-1930). In: ABREU, Martha et al. Cultura negra: festas, carnavais e patrimônios negros. Niterói: Eduff, 2018. p. 162-191. , p. 162-191; SANTOS, 2020SANTOS, Lyndon de Araújo. O mundo do trabalho carioca: chapeleiras e chapeleiros na Fábrica de Chapéus Mangueira (1920-1940). Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 12, p. 1-22, 2020., p. 1-22). A pesquisa analisou a relação entre a produção dos chapéus, a crença religiosa protestante dos proprietários e o mundo do trabalho, em que operários e operárias vivenciaram crescentes conflitos naquele contexto carioca. Reuniu-se um conjunto de fontes documentais, orais e iconográficas, desde os depoimentos de descendentes dos proprietários, notícias de jornais, inventários, testamentos, planilhas de empregados, relatórios financeiros, propagandas, fotografias, instruções e manuais destinados aos operários. O cruzamento de dados e informações possibilitou a composição de um material analisado criticamente de acordo com a natureza, estilo, enquadramento, lugar de fala e de produção. Todo esse conjunto reunido foi denominado Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira.
  • 4
    Em 1918, nas suas dependências funcionou uma enfermaria provisória administrada pelo exército durante as epidemias de varíola e febre amarela que atingiram a região, ante a falta de leitos em hospitais (CORREIO DA MANHÃ, ano XVIII, n. 7183, p. 1, 27 out. 1918CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1918..
  • 5
    Em 1925, o periódico comunista A Classe Operária, assim descreveu a desigualdade entre os rendimentos dos operários e das operárias: “EM MANGUEIRA. Na estação de Mangueira trabalham centenas de operários. NA FÁBRICA DE CHAPÉOS. Os operários ganham de 5$ a 5$500. As operárias de 2$500 a 3$. O trabalho vai das 7 ás 16 horas. Os extraordinários prolongam-se até ás 17 1/2 horas. Os salários não chegam para o alimento. Tal situação não pode continuar. A vanguarda deve lutar contra o patronato, apoiando-se no único jornal operário, escrevendo para ele sobre seus sofrimentos e aspirações. NA FÁBRICA DE LADRILHOS. Os salários na fábrica de ladrilhos da rua Visconde de Niterói regulam os mesmos da fábrica de Chapéus Mangueira. Os patrões estabeleceram uma cozinha econômica com mercadoria fornecida pela feira livre. Dão abono no dia 30 e pagam no dia 15. A exploração é demasiada - F.P.” (A CLASSE OPERÁRIA, ano I, n. 10, p. 4, 4 jul. 1925A CLASSE OPERÁRIA. Rio de Janeiro: Partido Comunista do Brasil, 1925.).
  • 6
    Antonio Gonçalves Lopes, provavelmente de nacionalidade portuguesa, fazia parte do círculo industrial e comercial da cidade e do círculo religioso de José Luiz Fernandes Braga, sendo igualmente presbítero da Igreja Evangélica Fluminense e parte do conselho do nascente Hospital Evangélico (O Puritano, ano IV, n. 161, p. 3, 1899O PURITANO. Rio de Janeiro: [s.n], 1899.; O Christão, ano XI, n. 128, p. 15, 1902O CHRISTÃO. Rio de Janeiro: [s.n], 1902.; O Puritano, ano VII, n. 327, p. 2, 1906O PURITANO. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.). Em 1880, quando da inauguração da Associação Industrial, em 10 se setembro, integrou a comissão de redação do estatuto da entidade, com a eleição provisória da diretoria sob a presidência de Evaristo Xavier da Veiga e Fernandes Braga como um dos integrantes (Gazeta de Notícias, ano VI, n. 253, p. 2, set. 1880GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s.n], 1880.).
  • 7
    A FCM estava situada num terreno ao lado da estação da Mangueira em formato triangular com 92m de frente para 140m de fundos. O edifício ocupava uma área de 2500m, construído pelas regras “de um estabelecimento modelo em seu gênero” (VISITAS ÀS FÁBRICAS pelo Exmº Senhor Presidente da República em dezembro de 1899 e janeiro de 1900, Rio de Janeiro, 1900, p. 59-60VISITAS ÀS FÁBRICAS pelo Exmº Senhor Presidente da República em dezembro de 1899 e janeiro de 1900. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900). Mas a projeção era de uma área total de construção de 4000m depois de construídos o frontispício, o almoxarifado, escritórios e outros espaços.
  • 8
    “À PRAÇA. Participo a esta praça, às do interior da República e aos meus comitentes do exterior que, nesta data, fiz uma sociedade com os meus filhos José Luiz Fernandes Braga Junior e Luiz Fernandes Braga para a continuação do fabrico de chapéus de feltro da Fábrica Mangueira. Agradecendo aos meus amigos e fregueses a coadjuvação que sempre me dispensaram, espero continuar a merecê-la a nova firma de Fernandes Braga & C. constituída em sucessão à J. L. Fernandes Braga que entra em liquidação. Rio de Janeiro, 18 de março de 1909. José Luiz Fernandes Braga”. (O Paiz, ano XXV, n. 8942, p. 6, 29 mar. 1909O PAIZ. Rio de Janeiro: [s.n], 1909.).
  • 9
    A categoria dos chapeleiros historicamente foi tão importante quanto as demais nas lutas do movimento operário. A primeira organização sindical, fundada em 1888, em São Paulo, foi a dos chapeleiros (HALL, 2004HALL, Michael. O movimento operário na cidade de São Paulo: 1890-1954. In: PORTA, Paula (org.). História da Cidade de São Paulo: a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 3 v. p. 258-289., p. 20; SIQUEIRA, 2018SIQUEIRA, Uassyr de. Entre sindicatos, clubes e botequins: identidades, associações e lazer dos trabalhadores paulistanos (1890-1920). 2018. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018., p. 27).
  • 10
    Os propriagistas executavam o trabalho de acabamento dos chapéus depois da tintura, na oficina denominada propriagem.
  • 11
    Os operários da fula eram os responsáveis pela preparação do feltro para os chapéus (SIQUEIRA, 2018SIQUEIRA, Uassyr de. Entre sindicatos, clubes e botequins: identidades, associações e lazer dos trabalhadores paulistanos (1890-1920). 2018. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018., p. 35).
  • 12
    O nascente mundo protestante marcado pela ética puritana calvinista primava, do mesmo modo, pelo trabalho, pela disciplina, pelo controle do tempo e pelo comportamento social sem dubiedades morais. Um equivalente ao mundo fabril eram os serviços religiosos (cultos e reuniões) que demonstravam, em sua estrutura, a conjugação desses elementos numa ordenação racional do tempo e sob a vigilância dos olhares de representantes divinos, onde o cumprimento de todas as regras produziria dividendos espirituais por parte dos fiéis. Sobretudo às mulheres dirigia-se um discurso de perfeição e sobriedade que deveria expressar-se nos modos socialmente compartilhados das conversas, das roupas, dos gestos, da obediência e da não sensualidade. Uma das expressões dessa ordenação do universo feminino religioso era a Associação Cristã de Moças, um movimento equivalente à Associação Cristã de Moços (ACM), que agregava mulheres em atividades religiosas, de lazer, proselitistas e de sociabilidade (O Christão, ano IX, n. 108, p. 15, dez. 1900).
  • 13
    A seção ainda estocava a matéria-prima, a palha, em meio a máquinas de costuras, num ambiente menor e mais fechado. O chapéu de palha era mais barato e mais consumido pelas camadas mais baixas da população, além de ser mais afeito ao clima quente da cidade, ao contrário das unidades feitas de feltro e pele de animais (lã, lebre e castor).
  • 14
    Fundada em 10/06/1905 como “resultado da fusão do Club Protetor dos Chapeleiros com a União dos Chapeleiros (...). Filiou-se à Confederação Operária Brasileira (COB), com a constituição desta em 1908”. (BATALHA, 2009BATALHA, Claudio H. de M. Dicionário do movimento operário: Rio de Janeiro do século XIX aos anos 1920, militantes e organizações. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009., p. 182).
  • 15
    O puritanismo foi uma derivação do calvinismo como uma das vertentes do protestantismo europeu. Trata-se de uma postura religiosa preocupada com os valores, a moral e o comportamento como expressões da fé exercitada nos espaços público e da religião. Max Weber identificou, histórica e culturalmente, como essa ética proporcionou o surgimento de uma classe de capitalistas que acumularam riqueza a partir da prática de uma ética religiosa intramundana, como evidência da eleição divina (WEBER, 2001). Nas condições da vivência protestante na capital da República, o lusitano Braga aplicou, ao seu modo e no seu contexto, uma ética religiosa de matriz puritana de acordo com os seus limites e sua visão de mundo. A Igreja Evangélica Fluminense (IEF), da qual fazia parte, foi fundada pelo missionário Robert Reid Kalley, em 1858, desde a perspectiva calvinista e puritana. A IEF tinha como regime eclesiástico o congregacionalismo ao afirmar a sua autonomia e independência em decisões e separada do Estado. Outras igrejas protestantes cariocas também tinham o puritanismo calvinista como referência teológica e de conduta religiosa (SANTOS, 2017SANTOS, Lyndon de Araújo. Os Mascates da Fé: História dos Evangélicos no Brasil (1855-1900). Curitiba: CRV, 2017.).
  • 16
    Um exemplo de aplicação da ética religiosa no mundo do trabalho fabril foi a planilha afixada na repartição de forração, datada de 2 de março de 1899, e assinada por Braga, onde se regulamentava o horário de entrada e saída das operárias com a reposição dos eventuais atrasos, a proibição de conversas no horário de trabalho, a exigência do respeito no relacionamento com os encarregados e a execução das tarefas “daí pra cima bem feito”. Exigia-se o comportamento das operárias dentro de um padrão moral imposto pela sociedade patriarcal que era reforçado pelo discurso religioso (SANTOS, 2017SANTOS, Lyndon de Araújo. Os Mascates da Fé: História dos Evangélicos no Brasil (1855-1900). Curitiba: CRV, 2017., p. 148-149).
  • 17
    Os grevistas deram pronta resposta aos artigos provocando aos operários sensatos, identificando-os como sendo os explorados ao lado do explorador, demonstrando não terem sido atingidos com as críticas e que recorreriam à justiça ante as possíveis acusações (CORREIO DA MANHÃ, ano VI, n. 1764, p. 3-4, maio 1906CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: [s.n], 1906.).
  • 18
    Nesse período, poucas eram as igrejas protestantes na capital, a exemplo da Igreja Evangélica Fluminense, no bairro da Saúde, da Igreja Presbiteriana que se reunia num edifício no Campo de Santana, a Igreja Metodista no bairro do Catete e a Igreja Batista, na rua de Santana, depois Frei Caneca, na região do Estácio. Essas igrejas contavam com avanços proselitistas na direção dos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, seguindo as estações da linha de ferro.
  • 19
    Sobre a origem do Hospital Evangélico. Disponível em: http://www.hospitalcasaevangelico.com.br/hospital.html. Acesso em: 16 ago. 2018.
  • A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da FAPERJ [Proc. E-26/102.008/2013 (125530)].

Editado por

Lyndon de Araújo Santos

possui Graduação em História Licenciatura pela UNESP-Franca, SP (1992), Mestrado em Ciências da Religião pela UMESP (1995) e Doutorado em História pela UNESP, Assis, SP (2005). Pós-doutorados pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFF (2014) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ (2021). Professor Associado IV do Depto. de História (UFMA). Tem experiência nas áreas de História e Ciências Sociais, com ênfase nos estudos do campo religioso brasileiro, atuando principalmente nos seguintes temas: história das religiões e religiosidades, história cultural e teoria da história. Integra o quadro de pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em História da UFMA. Coordena o REHCULT - Grupo de Pesquisa História, Religião e Cultura Material. Coordenador nacional do GT-ANPUH História das Religiões e Religiosidades.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2018
  • Aceito
    29 Out 2020
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