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Pedro João: um marinheiro negro entre o catolicismo português e o protestantismo inglês (1614-1637)

Pedro João: A black sailor between Portuguese Catholicism and English Protestantism (1614-1637)

Resumo

Este artigo analisa a religiosidade de um marinheiro escravo seiscentista, Pedro João, preso pela inquisição portuguesa. Forçado a professar a fé dos seus senhores, Pedro João passou do catolicismo (no qual foi batizado e crismado em Olinda, sua cidade natal) para o protestantismo ao ser aprisionado em alto-mar por um corsário inglês, em 1629. Levado à Vila de Plymouth e depois à Millbrook, lá se casou com uma mulher protestante e teve um filho. Em 1637, ao aportar em Lisboa a bordo do navio em que trabalhava, Pedro João foi preso pela inquisição. Questionado pelos inquisidores em matéria de fé, Pedro João nos legou elementos para sondar o seu protestantismo, de cunho calvinista-zwingliano, embora convivesse com reminiscências católicas. Procuramos demonstrar que nosso personagem, uma figura atlântica, nasceu católico na América portuguesa e teve sua alma “pescada” no Atlântico pelo protestantismo inglês, vivenciando na pele as agruras dos conflitos religiosos que marcaram a chamada primeira modernidade europeia.

Palavras-chave:
marinheiro negro; inquisição; catolicismo; protestantismo

Abstract

This article analyzes the religiosity of a 16th century slave sailor, Pedro João, imprisoned by the Portuguese inquisition. Forced to profess the faith of his masters, Pedro João went from Catholicism (in which he was baptized and confirmed in Olinda, his hometown) to Protestantism when he was imprisoned on the high seas by an English privateer in 1629. Taken to the village of Plymouth and then to Millbrook, there he married a Protestant woman and had a son. In 1637, when he landed in Lisbon on the ship he worked on, Pedro João was arrested by the inquisition. Questioned by the inquisitors in matters of faith, Pedro João provided us with elements to probe his Puritan Protestantism, of a Calvinist-Zwinglian nature, although mixed with Catholic reminiscences. We tried to demonstrate that our agent, an Atlantic figure, was born a Catholic in Portuguese America and had his soul “caught” in the Atlantic by English Protestantism, experiencing the hardships of religious conflicts that marked the so-called first European modernity.

Keywords:
black sailor; inquisition; catholicism; protestantism

“Pesca de almas” no Atlântico moderno

Em 1614, Adriaen van de Venne (1589-1662) pintou a alegoria Zielenvisserij (Pesca de Almas). Esta pintura a óleo em painel - hoje depositada no Rijksmuseum, em Amsterdã - foi concebida no contexto dos conflitos entre espanhóis e holandeses. Pintada durante a Trégua dos Doze Anos (1609-1621), quando os Países Baixos já formavam uma república confederada calvinista e independente do império espanhol, Pesca de almas representa alegoricamente a chamada Guerra dos Oitenta Anos. Esta guerra, que terminou em 1648 com o reconhecimento espanhol da independência da República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, revestia-se de fortes significados religiosos, configurando-se como um conflito entre católicos e protestantes. Para retratar o desejo de expansão das igrejas cristãs rivais, van de Venne pintou a peculiar cena de uma pesca em um rio: ocupando as margens opostas, católicos e protestantes lançam-se ao rio com seus botes para disputar almas náufragas de indecisos em matéria de confissão religiosa.

Pesca das almas representa os calvinistas na margem esquerda, e os católicos na direita. Pequenos botes no rio, uns tripulados por calvinistas e outros por católicos, disputam as almas que nadam. Deixando de lado o seu proselitismo calvinista, o quadro de van de Venne ilustra bem a problemática deste artigo: a disputa entre católicos e protestantes pelas almas de cristãos indecisos e “pagãos” durante a época moderna. O “rio” aqui considerado é, na verdade, um oceano - o Atlântico - e os “botes” são, em realidade, os corsários (do lado protestante) e a inquisição (do lado católico). Os Estados envolvidos nesta “pesca” não são o espanhol e o neerlandês, mas o português e o inglês. Dentre as almas em disputa, escolhemos a de um negro, ou seja, um indivíduo da diáspora africana.

O personagem analisado neste artigo é Pedro João, um marinheiro escravo nascido em Olinda em 1614 - mesmo ano em que van de Venne pintou Zielenvisserij. Como o pintor holandês, o negro olindense vivenciou as tensões bélicas e religiosas entre católicos e protestantes. Em 1629, aos 16 anos, Pedro João acompanhou seu senhor em uma viagem pelo Atlântico, de Olinda para Viana do Castelo (Portugal), quando seu navio foi tomado por um corsário inglês, sendo ele capturado e enviado para a Vila de Plymouth. Uma vez na Inglaterra, onde viveu dos 16 aos 24 anos, Pedro João se converteu ao protestantismo, casando-se na igreja reformada inglesa. Ao que tudo indica, a religião reformada lhe fora, a princípio, imposta pelo seu novo amo inglês, sendo, porém, assimilada parcialmente por Pedro João somente após ele se casar com Joana, uma mulher inglesa e protestante.

Continuando a trabalhar como marinheiro, Pedro João aportou em Lisboa no ano de 1637 em uma nau que transportava trigo. Cometeu a imprudência de palestrar abertamente com o língua Cristóvão Olanda, acabou denunciado ao Santo Ofício como “herege protestante” e enviado aos cárceres da penitência1 1 “Os cárceres da penitência, segundo o Regimento de 1640, eram os que abrigavam os réus penitenciados pelo Santo Ofício para receber instrução e sacramentos antes de cumprirem suas sentenças” (VAINFAS, 2008, p. 11-12). da “Casa Negra do Rossio”, como era conhecido o Palácio dos Estaus (VAINFAS, 2008VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. 384 p., p. 11), sede da inquisição lisboeta. Nas malhas da inquisição, Pedro João viu-se obrigado a abjurar publicamente o protestantismo e retornar ao catolicismo, no qual havia sido batizado nos tempos em que viveu em Olinda. Além de receber instruções de padres anglófonos, nosso personagem foi submetido a uma série de interrogatórios, nos quais foi questionado sobre a sua adesão à “seita dos protestantes.” A presença de Cristo na Ceia, o papel da confissão e dos sacerdotes, a crença em santos e na Virgem, a infalibilidade papal, entre outros, foram temas sondados pelos inquisidores - o que nos permite um raro vislumbre do modo como um escravo crioulo, ou seja, um negro nascido no Brasil, assimilou aspectos das confissões protestantes inglesas.

A metáfora da “pesca de almas”, subtítulo desta introdução, descreve os esforços despendidos pelas igrejas reformadas e tridentina para converter “gentios”, “idólatras” e “hereges”. O pano de fundo é o de uma cristandade dividida pelas reformas religiosas de inícios da época moderna: na ótica católica, os protestantes eram “hereges” cismáticos que fundaram seitas cristãs a partir dos seus “erros” doutrinários; do lado protestante, papas e concílios católicos degeneraram a igreja primitiva dos apóstolos de Cristo e deturparam a palavra de Deus revelada nos sagrados evangelhos. No centro do debate estava a salvação da alma, inquietude tipicamente moderna que perturbou Martinho Lutero (FEBVRE, 1956FEBVRE, Lucien. Martín Lutero: un destino. México: Fondo de cultura econômica, 1956. 287 p.) e o levou a elaborar o que, no dizer de Jean Delumeau (1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. ), tornou-se a “abóbada do edifício doutrinal protestante”: a teoria da justificação pela fé.

Pedro João é uma figura atlântica. Como marinheiro, nosso personagem cruzou mares e viu deles brotar o seu infortúnio. Passando de um lado para o outro, viu sua alma ser pescada por católicos e protestantes em meio aos processos de confessionalização que marcaram a primeira modernidade europeia (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Rui Luis. Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da história do Ocidente na primeira modernidade (1530-1650). Revista Tempo, Niterói, v. 23, n. 1, p. 1-21, jan./abr. 2017.). Tido por “boçal”, o negro olindense foi tratado pelos inquisidores como incapaz em matéria de fé. Nos interrogatórios inquisitoriais, Pedro João construiu uma imagem passiva de si para explicar a sua conversão ao protestantismo, afirmando caber-lhe professar a fé do povo em meio ao qual se encontrava. Para além de uma estratégia de defesa, esta afirmação demonstra uma lúcida consciência das crescentes imposições confessionais que grassavam no seio das sociedades modernas e que, no caso de cativos como ele, se imiscuíam ao paternalismo senhorial.

A principal fonte deste artigo é o processo inquisitorial de Pedro João, datado de 1637. Trata-se de um manuscrito de 86 páginas, contendo a acusação contra o réu, o auto de sua entrega ao cárcere da penitência, sete interrogatórios, um requerimento de soltura, uma confissão, a sentença e a abjuração in forma. Além disso, há referências ao auto de fé e às penitências: vestido em um sambenito (hábito penitencial), Pedro João saiu no auto de fé da Ribeira Velha de Lisboa de 11 de outubro de 1637; após abjurar seus erros publicamente e se reconciliar com a Igreja católica, foi penitenciado com o envio para o Colégio de Santo Antão de Lisboa, onde ficou recluso a fim de receber instrução religiosa de jesuítas. Infelizmente, não sabemos se ou quando retornou à Inglaterra.

Este estudo se conjuga às pesquisas sobre fenômenos culturais baseadas em processos inquisitoriais, alavancadas nos anos 1990 sob a influência do magistral O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg (2006GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2006. 300 p.). A leitura que procedemos do processo de Pedro João se inscreve, assim, no que Andrea Del Col (2006DEL COL, Andrea. I documenti del Sant’Ufficio come fonti per la storia istituzionale e la storia degli inquisiti. Cromohs, Firenze, v. 11, p. 1-6, 2006., p. 1-6) chamou de “uso indireto” das fontes inquisitoriais, ou seja, perscruta as ideias do réu, e não o funcionamento do tribunal e a mentalidade dos seus ministros. Estamos cientes de que as confissões e respostas que Pedro João deu em seus interrogatórios foram reelaboradas pelos notários e inquisidores do Santo Ofício português, com vistas tanto ao enquadramento aos seus modelos prévios de “heresias” protestantes (GINZBURG, 2007GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras , 2007. p. 280-293., p. 292), quanto à normatização da linguagem processual necessária ao próprio funcionamento do tribunal (FEITLER, 2014FEITLER, Bruno. Quando Trento chegou ao Brasil? In: GOUVEIA, António Camões; BARBOSA, David Sampaio; PAIVA, José Pedro (org.). O Concílio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares novos. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, 2014a. p. 157-173.b, p. 60). Sabemos, igualmente, que os réus do Santo Ofício, amargando as péssimas condições de cárcere e, em casos mais graves, submetidos à tortura, poderiam urdir respostas parcial ou totalmente inverídicas para amenizar as suas penas ou abreviar os seus suplícios. Todavia, mesmo com essas limitações do registro documental escolhido, foi possível acessar o protestantismo assimilado por Pedro João que chegou até nós pela pena dos inquisidores, ainda que permeado pelas formalidades e filtros dos seus interrogatórios e confissões. Para tanto, como se verá nas páginas a seguir, interpretamos cuidadosamente cada uma das respostas do réu, procedendo a uma acurada análise hermenêutica do registro documental.

Nossa abordagem das reformas religiosas da época moderna aproxima-se das de Jean Delumeau (1973DELUMEAU, Jean. El catolicismo de Lutero a Voltaire. Barcelona: Editorial Labor, 1973.) e John Bossy (1970BOSSY, John. The counter-reformation and the people of catholic Europe. Past and Present, v. 47, p. 51-70, maio 1970.), historiadores que abandonaram a tradicional ênfase nas ações oficiais das igrejas para estudar as formas de recepção das reformas religiosas pela população comum. Pedro João era, de fato, um personagem do vulgo: um cativo que não sabia ler. Nosso objetivo principal será analisar o modo como nosso personagem, um marinheiro negro, vivenciou as reformas tridentina e protestante em uma atmosfera de crescente confessionalização. A análise seguinte situa-se, ademais, nos marcos da história atlântica e se distancia dos estudos tradicionais sobre os protestantes na América portuguesa, dedicados basicamente às atividades missionárias calvinistas realizadas durantes as invasões francesas e holandesas.

Escravo no Brasil e na Inglaterra

Pedro João nasceu em Olinda no ano de 1614. Por ser um escravo crioulo, era filho de pais católicos e, provavelmente, foi batizado dias ou semanas após nascer. Como não há genealogia no seu processo inquisitorial, nada sabemos sobre os seus pais. Não parece, porém, ter sido ele um mestiço, mas um “crioulo da cor preta,”2 2 Esta expressão aparece em alguns compromissos (regimentos internos) de irmandades leigas fundadas por negros nascidos na América portuguesa. Vide, por exemplo, o Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Estatutos dos confrades de N. S. das Mercês da Redenção dos Cativos de sua capela do Ouro da Vila Real de Sabará (1778), Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, livro 4, fls. 26v. isto é, um filho de pai e mãe africanos. Estes vieram para o Brasil em uma destas duas correntes do tráfico transatlântico de escravizados: a da Guiné (saindo, sobretudo, do Castelo de São Jorge da Mina, tomado pelos holandeses em 1637, ano da prisão de nosso personagem pela inquisição portuguesa); e a de Angola (aberta a partir da década de 1580 em decorrência das chamadas guerras angolanas, impingidas pelos invasores portugueses e das quais resultaram muitos escravizados). Apesar da última corrente de tráfico ser, no início do século XVII, muito mais volumosa que a primeira, infelizmente não podemos arriscar qualquer palpite sobre a procedência africana dos pais de Pedro João.

Não obstante fosse ladino3 3 “Ladino” era um sinônimo de “esperto” ou “capaz”, consistindo em um termo empregado para designar o negro que conhecia a língua e os costumes da sociedade portuguesa. Aplicava-se, sobretudo, aos crioulos (ou seja, àqueles negros nascidos nas próprias sociedades em que viviam como escravos), mas também poderia ser usado para se referir aos africanos que já vinham “aportuguesados” da África (como é o caso de muitos angolanos e congoleses) ou que aprenderam rapidamente a língua e os costumes da sociedade portuguesa em que passaram a viver. Em oposição ao “negro ladino”, o “negro boçal” era tido por “ignorante” porque desconhecia a língua e os costumes da sociedade portuguesa. , nosso personagem pode ter absorvido a cultura de seus pais, aprendendo palavras e costumes africanos, mas o certo é que fora instruído no catolicismo, religião dos colonizadores ou, como ele mesmo disse, religião do seu senhor. Afinal, era disso que se tratava: o escravo era uma propriedade privada, cabendo aos senhores a sua instrução nos assuntos da fé. Sua confissão “oficial” era a católica, imposta pelo senhor, ainda que pudesse vivenciar “clandestinamente” a religiosidade africana, se não pela via do sincretismo, pela contra hegemônica, colocando, neste caso, a sua fé a serviço da resistência à escravidão (SWEET, 2007SWEET, James. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007. 353 p.).

A nau de Pedro João foi tomada nas águas atlânticas pelos ingleses às vésperas da invasão holandesa de Pernambuco. A passagem de nosso personagem ao protestantismo soa como um prenúncio da conversão de muitas outras almas de negros no Brasil holandês. Com efeito, calvinistas holandeses estabelecidos em Recife e Olinda batizaram e instruíram seus negros na fé reformada, já que, como dissemos, os escravizados tinham de seguir, ao menos formalmente, a fé dos seus senhores. Ronaldo Vainfas (2008VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. 384 p.) e Francisca Viração (2012VIRAÇÃO, Francisca Jaquelini de Souza. Igreja Reformada Potiguara (1625-1692): a primeira igreja protestante do Brasil. 2012. 98 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.) notaram que, no Brasil holandês, predicantes calvinistas levaram a cabo uma verdadeira obra missionária para resgatar os “gentios”. Fé escrava, proselitismo senhorial.

A Vila de Olinda, fundada em 1537, antes de ser destruída pela invasão holandesa de 1630, era muito próspera, com “grande trato de mercadorias,” bem arranjadas moradias e “quatro mosteiros de religiosos” (SANTIAGO, 2004SANTIAGO, Diogo Lopes. História da guerra de Pernambuco. Recife: CEPE, 2004., p. 14). O abastecimento da população urbana era garantido pelos gêneros produzidos nas propriedades rurais (chácaras) que se localizavam nos entornos da vila. Segundo Nestor Goulart Reis Filho (1968REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução urbana do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1968. 235 p., p. 95): “Estas chácaras eram habitações mais confortáveis, com regime próximo de autossuficiência, com engenhos e funcionavam ao mesmo tempo como prolongamento das habitações urbanas propriamente ditas, para as quais enviavam os produtos”. O senhor de engenho português Ambrósio Fernandes Brandão (1966BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Recife: Imprensa Universitária, 1966. 329 p.), que viveu em Olinda entre fins do século XVI e inícios do XVII, observou que “dentro da Vila de Olinda habita[va]m inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda sorte, em tanta quantidade que assemelha[va] uma Lisboa pequena” (BRANDÃO, 1966BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Recife: Imprensa Universitária, 1966. 329 p., p. 26-27). Fr. Manuel Calado (1985CALADO, Frei Manuel. O valoroso lucideno e o triunfo da liberdade. Recife: FUNDARPE, 1985.), que presenciou a invasão holandesa, também assinalou a abundância e a prosperidade da vila, por ele classificada como a “mais rica” do ultramar português.

De acordo com os dados apresentados pelo sargento-mor Diogo de Campos Moreno (apudCARRARA, 2014CARRARA, Ângelo. A população do Brasil, 1579-1700: uma revisão historiográfica. Tempo, Niterói, v. 20, p. 1-21, 2014., p. 8), incumbido de averiguar as fortalezas do Estado do Brasil, o Termo de Olinda possuía, no início do século XVII, 4 mil “moradores brancos”. Ficam de fora deste cômputo, contudo, os negros e índios, que compunham o grosso da população olindense. Para a segunda metade do século XVII, estima-se que a população livre da Vila de Olinda era de cerca de 3 mil pessoas. De acordo com Ângelo Carrara (2014CARRARA, Ângelo. A população do Brasil, 1579-1700: uma revisão historiográfica. Tempo, Niterói, v. 20, p. 1-21, 2014.), podemos projetar este número, retrospectivamente, para a época em que lá viveu nosso personagem (1614-1629), pois houve uma estagnação populacional em virtude da guerra holandesa, que provocou “um despovoamento das capitanias do norte de colonos portugueses que se dirigiam para a Bahia ou Rio de Janeiro.” (CARRARA, 2014, p. 12).4 4 Temos, porém, dados mais concisos sobre a população de Olinda apenas para o ano de 1701, quando ocorria uma diminuição da população da então cidade (elevada a este título em 1676) frente à de Recife. Em 1693, o Recife “já contava com 2 mil fogos, enquanto que Olinda teria, mesmo contando em conjunto as freguesias de Maranguape e São Pedro Mártir, 980 fogos em 1701. Contando-se somente a vila, 660 fogos para o mesmo ano” (DANTAS, 2018, p. 43-44).

Nos perímetros urbanos das vilas de Olinda e Recife, a maioria dos escravizados atendia à materialidade cotidiana, ocupando-se com ofícios mecânicos, tais como os de barbeiro, sapateiro, ferreiro, carpinteiro, alfaiate, pedreiro etc. Nosso personagem, contudo, integrava outro grupo importante de trabalhadores que viviam em ambiente urbano: os portuários. Eram eles: estivadores, embarcadiços, pescadores e, como Pedro João, embarcados ou marinheiros. A escassez de trabalhadores qualificados nos estaleiros da América portuguesa era suprida pelos escravizados, os quais eram adquiridos especialmente para esta finalidade ou eram capacitados para tal, precisamente o que ocorreu com o nosso personagem. A maioria dos marinheiros trabalhava embarcada em navios que transportavam açúcar para Portugal. Foi no interior de um destes navios que Pedro João acabou capturado pelos ingleses em alto-mar no ano de 1629, ao realizar a travessia marítima de Olinda para Viana do Castelo. Um corsário inglês rendeu a nau mercante em que se encontrava nosso personagem, levando-o preso para o Reino da Inglaterra.

Pedro João viveu na Inglaterra dos 16 aos 24 anos, entre 1629 e 1637. Foi levado pelos seus aprisionadores à Plymouth, uma vila portuária do Condado de Devon, no Sul da Inglaterra, atravessando depois o rio Tamar para estabelecer-se no vilarejo vizinho de Millbrook, na Cornualha - tendo, provavelmente, transitado entre um e outro lugar ao longo de sua estadia na Inglaterra. Em Millbrook, nosso personagem constituiu família, se casou e teve um filho, aderindo ao protestantismo em um Reino cuja prática pública do catolicismo era proibida, não obstante, como veremos, alguns de seus aspectos ainda continuassem presentes na Igreja anglicana.5 5 Após os Acts of Supremacy (1534) - com exceção da restauração católica promovida por Maria I - os católicos ficaram sujeitos a várias formas de perseguição, como veremos adiante.

Em Millbrook, Pedro João continuou a empregar-se como marinheiro. Ganhava a vida a bordo de navios mercantes que transportavam, além da lã produzida localmente, grãos e, possivelmente, escravos. Pedro João chegou ao Sul da Inglaterra apenas oito anos após a criação da companhia de Plymouth, empresa marítima que, à época, empreendia a colonização da porção norte da América inglesa continental. Encontrou uma Inglaterra em crescente tensão, sendo preso em Lisboa apenas três anos antes do episódio conhecido como “curto parlamento”, que marcou a escalada das hostilidades entre Carlos I Stuart e o parlamento inglês - e que culminaria, em 1642, na guerra civil. Durante a guerra civil, Plymouth tomou o partido dos exércitos parlamentares, o que lhe custou um estado de sítio de quase quatro anos.

Plymouth serviu de porto para abastecimento de frotas e tropas a serviço dos ingleses desde o século XIII. Companhias armadas eram supridas com armamentos e víveres pelo porto de Sutton Harbour. Porto de origem de comerciantes marítimos de sucesso, Plymouth integrava o grupo dos 13 portos ingleses que mais embarcavam mercadorias nos seiscentos (ALVAREZ-PALAU; DUNN, 2019ALVAREZ-PALAU, Eduard; DUNN, Olivier. Database of historic ports and coastal sailing routes in England and Wales. Journal Data in Brief, v. 25, p. 2-15, ago. 2019.). À época de Pedro João, o vilarejo vizinho de Millbrook - fronteiriço à vila portuária de Plymouth - possuía reputação de próspero povoado de pescadores, não obstante estivesse localizado na Cornualha, região inglesa então caracterizada como pobre e humilde.6 6 Apesar de separadas pelo rio Tamar, havia trânsito cultural e humano entre as vilas de Plymouth (Condado de Devon) e Millbrook (Cornualha). A este respeito nos deixou testemunho o pregador da Cornualha Charles Fitz-Geffry, que, em 1636, referiu-se aos habitantes do Condado de Devon e da Cornualha “não apenas como compatriotas, mas como ‘parentes próximos’” (ESRA, 2013, p. 28). Em fins do século XVI, Millbrook contava com 40 embarcações e um número crescente de marujos ex-combatentes na guerra anglo-espanhola do último quartel do século XVI (ESRA, 2013ESRA, Jo Ann. The Shaping of ‘West Barbary’: the re/construction of identity and West Country Barbary Captivity. 2013. 591 f. PhD thesis (Doctoral in History) - Department of History, University of Exeter, Exeter, 2013. ).

O desemprego marítimo fez crescer a pirataria e a atividade dos corsários ingleses no Atlântico (MALLET, 2009MALLET, George. Early seventeenth century piracy and Bristol. BA Thesis Historical Studies, April 2009.). Das coroas ibéricas unidas os corsários ingleses pilhavam não apenas o açúcar7 7 O açúcar brasileiro pilhado no Atlântico era processado na Sugar House, uma “indústria” açucareira plymouthiana localizada em Coxside e pertencente a Samuel Buttall. , o ouro e a prata extraídos da América, mas também escravos. Plymouth - porto que desempenhou um papel pioneiro no comércio inglês de escravos desde a primeira incursão de John Hawkins à Guiné, em 1562 (WORTH, 1873WORTH, Richard Nicholls. The History of Plymouth from the Earliest Period to the Present Time. Plymouth: Brendon and Son, 1873.) -, em inícios do século XVII recebeu um número crescente de escravizados, oriundos do tráfico transatlântico ou aprisionados por corsários no Caribe, Canárias e nos arredores marítimos da Península Ibérica (GUASCO, 2000GUASCO, Michael Joseph. Encounters, identities, and human bondage: the foundations of the racial slavery in the Anglo-Atlantic world. 2000. 548 f. PhD thesis (Doctoral in History) - Department of History, The College of William and Mary in Virginia, Virgínia, 2000.). Retornar dos mares com africanos e descendentes para servir como tradutores ou escravos se tornou uma prática cada vez mais comum. “Corsários ingleses, incluindo Sir Walter Raleigh, também empregavam rotineiramente africanos como membros da tripulação e transportavam escravos negros capturados de navios espanhóis ou de colônias espanholas ou portuguesas de volta à Inglaterra.” (GUASCO, 2000, p. 246-247). Entre estes escravos incluía-se o nosso personagem.

Envolvidas com os empreendimentos atlânticos, as vilas costeiras de Plymouth e Millbrook tornaram-se receptáculos de um número crescente de africanos, que, se não chegavam a compor um número significativo de habitantes locais, levaram a Coroa britânica a emitir diretivas ordenando a remoção de todos os africanos da Inglaterra. Entendia-se que os cativos africanos, tirando o emprego dos ingleses pobres, faziam aumentar a já volumosa camada de ociosos e vadios que inundava o .8 8 A explosão demográfica inglesa, ocorrida entre 1500 e 1650, elevou a população de três para 4 milhões e meio (THIRSK, 1967, p. 531). Porém, sofrendo a oposição dos senhores de escravos ingleses, “no longo prazo, o ideal de remoção de africanos provou ser bastante difícil de alcançar”. De fato, já na virada do século XVII, “os negros haviam se entrincheirado na sociedade inglesa como escravos, servos, marinheiros e artistas. Muitos africanos foram batizados na fé cristã protestante. E os negros continuaram a residir na Inglaterra e a aumentar em número ao longo das décadas subsequentes” (GUASCO, 2000GUASCO, Michael Joseph. Encounters, identities, and human bondage: the foundations of the racial slavery in the Anglo-Atlantic world. 2000. 548 f. PhD thesis (Doctoral in History) - Department of History, The College of William and Mary in Virginia, Virgínia, 2000., p. 249-251).

Na época em que Pedro João viveu nos limites atlânticos de Devon e Cornualha, lá havia apenas uma igreja paroquial, a de St. Andrew, localizada em Plymouth. Ela comportava 1,2 mil pessoas em uma época em que população local era de 8 mil habitantes. Plymouth era, então, uma vila puritana, sendo os pregadores puritanos bem recebidos e acolhidos na localidade. Pretendendo afirmar a Igreja Anglicana na vila, Carlos I Stuart passou a nomear frequentemente conferencistas para o ministério na Igreja de St. Andrew, o que desagradou a maioria puritana. Batalhas foram travadas entre o rei e os habitantes da vila para a escolha destes ministros, sendo muitas vezes recusados pelo rei os indicados pelos habitantes locais. Seguidamente tolhidos pelo rei, os habitantes de Plymouth, via conselho local, solicitaram, em 1634, a divisão da paróquia e a construção de uma nova igreja, o que, porém, só se deu em 1641. As obras da nova igreja foram interrompidas durante a guerra civil, sendo retomadas apenas em 1646 e arrastando-se até 1657 (JEWITT, 1873JEWITT, Llewellyn Frederick. A history of plymouth. Oxford: Oxford University, 1873.).

Nosso personagem teria, portanto, vivido no arredor de uma vila cuja maioria era puritana, mas que a interferência real impedia que o ministério da única igreja paroquial ficasse a cargo dos que não se conformavam à Igreja estatal. Assistiu, assim, aos embates entre puritanos locais e o rei da Inglaterra para a eleição dos ministros e conferencistas de St. Andrew. Também acompanhou o empenho dos puritanos plymouthianos em dividir a paróquia. Contudo, em 1637, ano de sua prisão no porto de Lisboa, Carlos I Stuart ainda não havia aprovado esta divisão. Pedro João teria ficado, portanto, entre o puritanismo ensinado pelo seu senhor e as prédicas frequentemente anglicanas ouvidas na Igreja de St. Andrew. Puritanismo privado, anglicanismo público.

Pedro João, homem do mar

A presença de marinheiros no Atlântico foi expressiva durante a época moderna. Um cotidiano penoso regia a vida destes marinheiros em navios mercantes ou de guerra (LAPA, 1968LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Cia. Ed. Nacional/Edusp, 1968. 382 p.; RODRIGUES, 1999RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiro e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 15-53, 1999. ). Desprezados por administradores e oficiais das embarcações em plena “era das navegações”, eles eram mal remunerados e espoliados. Via de regra, eram definidos pelos homens da Igreja como maus cristãos (RODRIGUES, 2019). Pior era a condição dos marinheiros escravos que, como Pedro João, lutavam pela sobrevivência em naus mercantes: sobravam-lhes, frequentemente, os piores quinhões de alimentos e águas, muitas vezes estragados.

A vida no mar também se caracterizava pela mobilidade espacial, o que permitia aos marinheiros contatar “práticas culturais mundo (ou mar) afora”. Diversidade era, aliás, a palavra de ordem nas embarcações: diferença social entre membros das tripulações, variação etária, multiplicidade religiosa, de nacionalidade, de etnia, etc. Uma constante, invariavelmente, era a de gênero e a social: “as profissões do mar eram uma parte exclusivamente masculina do mundo do trabalho ocidental, e principalmente homens pobres se empregavam nelas” (RODRIGUES, 1999RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiro e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 15-53, 1999. , p. 19-20). Indivíduos de nacionalidades diversas estavam a serviço da Coroa britânica: franceses, alemães, portugueses, espanhóis, escandinavos, africanos, asiáticos e americanos (REDIKER, 1989REDIKER, Marcus. Between the Devil and the Deep Blue Sea: Merchant Seamen, Pirates, and the Anglo-American Maritime World (1700-1750). Nova York: Cambridge University Press, 1989. 340 p.). Esta variedade de origens não refletia apenas o caráter marginal dos marinheiros, cujo ofício reunia excluídos de toda sorte e nacionalidade, mas também uma maior versatilidade linguística dos tripulantes. Em corsários e navios piratas, como assinalou Peter Linebaugh (1983LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 7-46, set. 1983.), esse “caldeirão de internacionalismo” era ainda mais presente. Nosso personagem, de fato, conhecia diferentes línguas - pelo menos, a portuguesa e a inglesa - e trabalhava lado a lado com marujos de outras nacionalidades.

Outra característica importante da cultura marítima é a presença marcante de escravos - africanos ou seus descendentes crioulos, isto é, já nascidos na sociedade escravista europeia - entre os tripulados, seja como marinheiros ou como moços ou grumetes9 9 “Moço ou grumete” é o tripulante “cuja praça medeia entre os marinheiros e os pajens, e que sobe às gáveas e faz outros misteres” (FREITAS, 1855, p. 209). O termo “moço”, em relação aos escravos, se referia menos a idade e mais ao grau de aprendizado do ofício (RODRIGUES, 1999, p 24). . Caso os seus senhores não fossem os oficiais (capitães, mestres, contramestres, pilotos, capelães, cirurgiões, despenseiros e barbeiros) dos navios em que viajavam, os escravos marinheiros ficavam sob a autoridade dos capitães do navio. Estavam submetidos ao domínio dos oficiais da embarcação, como todos os demais marinheiros tripulantes - marinheiros livres e moços ou grumetes livres -, mas eram discriminados cotidianamente pelos marujos de condição livre, sendo punidos com maior severidade pelos oficiais quando cometiam alguma falta, inclusive, com castigos físicos (açoites).

Embora as formas de engajamento no trabalho marítimo fossem, não raro, compulsórias, o que levava muitos (quando em terra) à deserção, o caso de Pedro João aponta para um engajamento senhorialmente motivado e, assim, o abandono da função não era considerado uma deserção, mas uma fuga. Muitos homens livres e pobres se engajavam na profissão para aprenderem um ofício e para se inserirem no mercado de trabalho condizente com a sua baixa condição. Diante das raras possibilidades de emprego, restava-lhes a penosa carreira marítima. O engajamento dos escravos no trabalho marítimo era, portanto, compulsório e se iniciava, geralmente, cedo. “Para cumprir as suas funções, eles tinham que conhecer a profundidade das águas, o sistema de ventos, marés, chuvas e outros fatores climáticos que interferiam na navegação de cabotagem” (RODRIGUES, 2013RODRIGUES, Jaime. Escravos, senhores e vida marítima no Atlântico: Portugal, África e América portuguesa, c. 1760-c.1825. Almanack, Guarulhos, n. 5, p. 145-177, jan./jun. 2013., p. 149). No século XVII, tendo em vista o relato de 1695 de François Froger, era comum que capitães escalassem escravos mais robustos entre os estivadores para substituírem os tripulantes mortos em viagem (TAUNAY, 1921TAUNAY, Affonso d’E. Rio de Janeiro de antanho. Revista do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 90, n. 144, p. 413-428, 1921.).

Diante das péssimas condições de vida dos tripulantes, agarrar-se à fé era uma forma de os marinheiros aplacarem os perigos dos mares. As forças divinas invocadas por eles não eram apenas as do Deus cristão, mas também, no caso dos marujos africanos e seus descendentes, dos antepassados mortos (e divinizados) e das forças (ou gênios) da natureza.10 10 Divindades “pagãs” europeias também eram invocadas em alto-mar. “Netuno era a mais proeminente de todas as figuras do panteão marítimo, produto da combinação de referências cristãs e pré-cristãs, da mitologia clássica, dos relatos bíblicos e das tradições inventadas pelos homens do mar.” (RODRIGUES, 1999, p. 44; REDIKER, 1989, p. 184 e 187). Keith Thomas (1991THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia: crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras , 1991.) chama atenção para o fato de que, em alto-mar, religiosidades de tipo “mágico” eram facilmente afloradas, como, por exemplo, diante de tempestades, quando era comum um marinheiro barganhar proteção divina em troca de preces, oferendas e oblações. Mesmo entre os católicos, havia margem para um “catolicismo mágico” do tipo “toma lá dá cá”, permutando-se a intervenção divina em momentos de apuros por promessas como colocar “velas para um altar” ou fazer “peregrinação.” (THOMAS, 1991THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia: crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras , 1991., p. 49). Desta feita, a vida no mar, repleta de perigos, tornava os marujos “pessoas notoriamente ‘supersticiosas’ e gerava um grande número de precauções rituais destinadas a garantir um clima favorável e a segurança do navio” (THOMAS, 1991, p. 529).

Apesar desta inclinação “mágica” e “pagã”, a vida nos mares também era permeada pela fé da Contrarreforma e pela fé cristã reformada, ambas avessas às práticas religiosas que consideravam “supersticiosas”. É certo que a religiosidade do “catolicismo popular”, distante do ideal tridentino, poderia se encaixar neste tipo de “religião dos mares”. São, aliás, bem conhecidas as críticas dos reformados acerca dos aspectos mágicos dos sacramentos, dos sacerdotes e da transubstanciação católica. Como se comportaria nosso personagem - filho de africanos, criado em Olinda dentro de um catolicismo popular, mas convertido pelos idos de 1631 ao protestantismo - durante as tormentas marítimas? Como asseverou Jaime Rodrigues:

A verdade é que pouco se sabe sobre o que esses homens pensavam a respeito de temas teológicos clássicos do cristianismo: o que seria do corpo e da alma após a morte, qual era o caminho da salvação ou a natureza do céu e do inferno. No entanto, pode-se afirmar que o leque da filiação religiosa era amplo, indo do catolicismo e do protestantismo à imensa gama de crenças religiosas de tripulantes africanos, asiáticos e nativos americanos, todas elas coexistindo a bordo. (RODRIGUES, 1999RODRIGUES, Jaime. Deus é o dono do navio: religiosidades marítimas no Atlântico moderno. ACHSC, Bogotá, v. 46, n. 2, p. 295-316, jul./dez. 2019., p. 39).

Desta feita, parece certo que “doutrinas e liturgias ortodoxas não se conjugavam com o trabalho no mar” (RODRIGUES, 1999RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiro e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 15-53, 1999. , p. 39). O resguardo do domingo e dos dias santos não poderia sempre ser cumprido pelos marinheiros católicos em alto-mar, onde o ritmo do trabalho era imposto pelas condições climáticas. A inclusão de capelães para o ministério dos sacramentos aos tripulantes de navios saídos de territórios católicos não era suficiente para manter a ortodoxia tridentina a bordo. Como foi dito, santos eram invocados ao lado de “entidades pagãs” durante as tormentas marítimas, atuando todos como intercessores dos pedidos dos marinheiros oriundos - ou em algum momento moradores - de territórios católicos. Mesmo em se tratando dos protestantes, que não guardavam dias santos, dispensavam a intermediação de sacerdotes e possuíam uma religiosidade mais interiorizada, esta relação pessoal e direta com Deus não redundava, necessariamente, em ortodoxia religiosa.

Apesar deste pluralismo religioso, não acreditamos que a religião era uma questão secundária para a identidade dos homens do mar, como afirmou Rediker (1989REDIKER, Marcus. Between the Devil and the Deep Blue Sea: Merchant Seamen, Pirates, and the Anglo-American Maritime World (1700-1750). Nova York: Cambridge University Press, 1989. 340 p.). Entre os séculos XVI e XVIII, o Atlântico tornou-se um dos “campos de batalha” das guerras religiosas. As naus que o cruzavam, de norte e sul e de leste a oeste, hasteavam bandeiras de reinos, impérios e repúblicas confessionais, não obstante a coexistência de diferentes religiosidades a bordo. Para além da prática comercial, os marinheiros poderiam se tornar veículos de propagação de diferentes confissões religiosas cristãs, ainda que amalgamadas em maior ou menor grau entre si e com “paganismos” - hipótese esta que, no entanto, só poderá ser comprovada mediante uma análise sistemática e exaustiva de outros processos envolvendo marinheiros perseguidos pela inquisição.

Sob a ótica de jesuítas como Antônio Vieira, os “pagãos” escravizados em África, uma vez cruzando o Atlântico, adentravam a Igreja de Cristo na América. Cruzar o mar significava, então, navegar no sentido da redenção, que se dava - na visão do jesuíta - pela entrada na Santa Madre Igreja católica. Uma maneira de arregimentar prosélitos se dava pelo que chamamos de “pesca atlântica de almas”, ou seja, pela captura de navios de nações estrangeiras e inimigas por corsários no Atlântico. As almas pescadas pelas confissões rivais cristãs eram, muitas vezes, de escravos embarcados. Foi este, precisamente, o caso de nosso personagem. À serviço do seu senhor pernambucano, Pedro João foi capturado por um corsário inglês em 1629, quando viajava para o Reino de Portugal. Levado à Inglaterra, foi convertido - primeiro à força e, depois de se casar, voluntariamente - a uma confissão protestante. Seu protestantismo, contudo, não era ortodoxo, conjugando aspectos de diferentes confissões cristãs. Seu novo amo inglês continuou a empregá-lo como marinheiro, sendo a sua função carregar e descarregar naus mercantes a serviço dos ingleses. Figura marítima por excelência, nosso personagem viveu a maior parte de sua vida a bordo de navios, cruzando oceanos.

Uma vez convertido à “seita dos protestantes”, Pedro João - como temiam os inquisidores - pode ter se tornado um agente de proselitismo junto a pessoas batizadas no catolicismo e residentes em cidades portuárias. Servindo seu amo inglês, Pedro João circulou por águas atlânticas e mediterrânicas, aportando em diferentes terras católicas nas penínsulas ibérica (Galícia, Lisboa e Málaga) e itálica (Gênova). Embora nosso personagem tenha negado aos inquisidores ter influenciado algum católico a se converter ao protestantismo, o que, provavelmente, não era de fato o seu propósito, travou conversas nos locais em que desembarcava sobre “assuntos de consciência” - o que, aliás, motivou a sua prisão pela inquisição portuguesa em 1637.

O catolicismo de Pedro João

A Igreja Católica não apenas reagiu ao avanço do protestantismo. Hubert Jedin (1972JEDIN, Hubert. História el Concilio de Trento. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1972. 665 p.) demonstrou que, para além desta reação denominada Contrarreforma, ocorreu uma autêntica reforma católica, independentemente de Lutero e Calvino.11 11 A abordagem tradicional da Contrarreforma (H. O. Evenett, A. G. Dickens e B. J. Kidd) enfatiza medidas institucionais na curta duração: a aprovação dos estatutos da Companhia de Jesus, a fundação da inquisição italiana, o Concílio de Trento, a aprovação do Index e os “papas reformistas”, raramente transcendendo cronologicamente o século XVI (MULLETT, 1985, p. 8). Nos anos 1970, Jean Delumeau (1973) e John Bossy (1974, p. 51-70) propuseram outra abordagem para o estudo da Contrarreforma, expandindo em longa duração os seus limites cronológicos para contemplar processos históricos ocorridos durante a Baixa Idade Média e os séculos XVII-XVIII. Delumeau e Bossy atentaram, assim, por um lado, para os antecedentes da Contrarreforma e, por outro, para a sua implementação nos dois séculos seguintes ao do Concílio de Trento. O foco nas medidas institucionais da Igreja romana foi substituído pelo problema do vivenciamento - ou não - do catolicismo pelo “povo vulgar”. O Concílio de Trento (1545-1563) reafirmou o poder dos sete sacramentos, assim como a doutrina do Purgatório e o papel das obras e das indulgências para a salvação das almas. Embora o latim tenha permanecido como a língua litúrgica dos cultos e da Bíblia católica, inacessível ao vulgo, a Igreja de Roma buscou instruir melhor seus fiéis pela via da catequese. Instrumentos inovadores foram introduzidos nos templos: púlpitos para os sermões e confessionários para confitentes cada vez mais preocupados com suas faltas íntimas. Para atender à crescente demanda pela palavra de Deus a partir de fins da Idade Média (DELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 267-271), a Igreja Católica ampliou sua rede de seminários e proibiu o absenteísmo dos bispos. Procurava, assim, aumentar o número de sacerdotes com boa formação para o ministério dos sacramentos. Ofertando melhor instrução aos fiéis, a Igreja Católica também pretendia extirpar as práticas que considerava “pagãs” e “mágicas”.12 12 O catolicismo se afirmou durante a Idade Média, sobrepondo-se a antigas festas “pagãs” e explorando os espaços de correlação de mitologias pré-católicas com as hagiografias de santos da Igreja. A noite de São João, por exemplo, correspondia ao solstício de verão, e era “uma importante festa organizada em torno do tema da renovação” (BURKE, 2010, p. 334). No Portugal quinhentista, o cristianismo ainda “emprestava nomes de santos e de festas católicas a forças da natureza e a consagrações pagãs” (OLIVEIRA MARQUES, 1981, p. 170).

O primeiro bispado da América portuguesa foi fundado na Bahia, em 1551. Assim, no primeiro meio século de domínio português, a conquista americana ficou sujeita à jurisdição do bispado de Funchal. Nos cem anos seguintes à criação do bispado da Bahia, nenhuma outra diocese foi criada no vasto território da América portuguesa. Os jesuítas foram os primeiros organizadores do catolicismo no território brasileiro. No regime de padroado, o rei de Portugal e a Ordem de Cristo eram os patronos das missões católicas e instituições eclesiásticas nas suas possessões americanas (XAVIER; OLIVAL, 2018XAVIER, Ângela Barreto; OLIVAL, Fernanda. O padroado da coroa de Portugal: fundamentos e práticas. In: XAVIER, Ângela Barreto; PALOMO, Federico; STUMPF, Roberta (org.). Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (séculos XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos político-administrativos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018. p. 123-160.). Embora o bispado da Bahia tenha sido criado em meio ao Concílio de Trento, como observou Laura de Mello e Souza (1986SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. 396 p.), este não colocou o mundo ultramarino no centro de suas preocupações, então voltadas para a cristandade meridional da Europa. Ademais, o ideal tridentino de controle religioso dos fiéis pela via episcopal esbarrou na reticente postura da monarquia lusitana em ampliar as suas dioceses em territórios americanos (FEITLER, 2014FEITLER, Bruno. Processos e práxis inquisitoriais: problemas de método e de interpretação. Revista de Fontes, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 55-64, 2014b.a; SOUZA, 2014SOUZA, Evergton Sales. A construção de uma cristandade tridentina na América portuguesa (séculos XVI e XVII). In: GOUVEIA, António Camões; BARBOSA, David Sampaio; PAIVA, José Pedro (org.). O Concílio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares novos. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa , 2014. p. 175-195.). Apenas no século XVII Roma passou a intervir mais diretamente na evangelização do Novo Mundo.13 13 Prova disso é a criação, em 1622, da Congregação para a Propagação da Fé.

Mas que tipo de catolicismo era praticado na Olinda de Pedro João? Diante de tão parca rede episcopal, teria a Igreja Católica obtido êxito na implementação das diretrizes tridentinas na América portuguesa?

Duas formas diversas de catolicismo coabitaram na América portuguesa: a dos clérigos (missionários, párocos e bispos) e a dos leigos.14 14 Sobre o distanciamento do catolicismo na América portuguesa em relação ao modelo tridentino, Gilberto Freyre já havia apontado a proeminência de um catolicismo familiar frente ao oficial e, Eduardo Hoornaert, a perpetuação da espiritualidade medieval portuguesa por meio das irmandades leigas. Cf. este debate em Laura de Mello e Souza (1986, p. 88). A última era permeada por uma concepção “mágica” do mundo (SOUZA, 1986SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. 396 p.). Apenas no início do século XVIII, com o sínodo da Bahia - de que resultaram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) - é que a igreja da América portuguesa procurou, de forma mais sistemática, sintonizar a religiosidade colonial com os preceitos emanados de Trento (FEITLER; SOUZA, 2011FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (org.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora UNIFESP, 2011. 512 p.). Porém, o distanciamento do catolicismo popular luso-americano em relação àquele modelo oficial permaneceria até meados do século XIX, quando as tentativas de romanização surtiram maior efeito.

O catolicismo popular desenvolvido na América portuguesa ao longo do século XVII, geralmente chamado de “catolicismo barroco” (SOUZA, 1986SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. 396 p.; REIS, 1991REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras , 1991.), caracterizava-se por elaboradas manifestações públicas de fé: missas celebradas por dezenas de padres, acompanhadas por corais e orquestras, templos com abundante decoração e, sobretudo, funerais grandiosos e procissões cheias de alegorias que contavam com a participação de centenas de fiéis. Os veículos fundamentais deste catolicismo popular eram as irmandades leigas com seus santos patronos. As festas das confrarias católicas possuíam música, danças, mascaradas, banquetes, fogos de artifício e apoteóticas homenagens aos santos de devoção. Nesta forma de catolicismo, os santos muitas vezes ganhavam precedência sobre o Deus Todo-Poderoso. Embora algumas destas práticas estivessem em desacordo com os ditames de Trento, como salientou Sérgio da Mata (1997MATA, Sérgio da. Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial. Revista de História, São Paulo, n. 136, p. 41-57, jan./jun. 1997.), as grandiloquentes manifestações, ditas “barrocas”, não deram origem a uma “religião de vaidade”, da “estética antes da ética”, nem a uma ausência de espiritualidade.15 15 Sérgio da Mata (1997, p; 41-57) apontou os equívocos inerentes à tese de “exteriorismo” do catolicismo barroco, entendido como uma afeição antes à imagem que à coisa figurada, ao aspecto externo que ao espiritual.

As irmandades encarnavam o que Laura de Mello e Souza (1986SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. 396 p., p. 109) chamou de “economia religiosa do toma-lá-dá-cá”: por meio delas promoviam-se grandiosos gestos de devoção aos santos devotos em troca de proteção espiritual e material. Uma relação de barganha ou permuta de favores estava embutida na prática da “promessa ao santo”. Ademais, o desejo de converter os africanos escravizados deu origem a um catolicismo africanizado ou crioulo, isto é, a um tipo de catolicismo que incorporou práticas religiosas africanas. Por exemplo, no interior das irmandades negras, tornou-se comum o uso de rosários, terços e escapulários como amuletos, para fechar o corpo e para proteger seu portador contra alguma aflição severa ou doença particular (REIS, 1991REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras , 1991.).

Foi este o catolicismo - popular, barroco e africanizado - vivenciado por Pedro João até os seus 16 anos. Nosso personagem, um escravo crioulo (filho de africanos) nascido em Olinda em 1614, certamente participava - talvez como associado - das festas da Virgem do Rosário, associação organizada por africanos da mesma procedência (da mesma “nação”) de seus pais: de Guiné ou Angola, estes, como já dissemos, mais numerosos em Pernambuco desde a década de 1580.16 16 Embora Eduardo Hoornaert (1982, p. 88) aponte 1688 como sendo o ano de constituição da Irmandade do Rosário de Olinda, certamente esta é a data de institucionalização da associação, que já existia como mera devoção, sem compromisso aprovado por tribunais régios, desde o século XVI. Antonia Aparecida Quintão (2005, p. 76-77) documenta cerimônias realizadas em Olinda por negros em honra da Senhora do Rosário ainda na década de 1550 (isto é, desde o estabelecimento das primeiras igrejas na vila). Seu compromisso não era com o catolicismo romano, tridentino, mas com aquele africanizado, impregnado pelo que os padres consideravam “mágico e pagão”, adotado pelo povo e, até mesmo, por parte da elite: “um catolicismo ligado de maneira especial aos santos de devoção” (REIS, 1991REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras , 1991., p. 60-61).

Em seus interrogatórios inquisitoriais, Pedro João afirmou que, ao chegar à Inglaterra, manteve-se católico por dois anos e meio.17 17 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 18v. Com o cisma anglicano, os recusantes católicos foram perseguidos. Do período elisabetano ao reinado de Jorge III, diversas leis foram editadas, embora nem sempre postas em execução com rigor (BURTON, 1911BURTON, Edwin. English recusants: the catholic encyclopaedia. New York: Robert Appleton Company, 1911. 12 v.; MAROTTI, 1999MAROTTI, Arthur F. (ed.). Catholicism and Anti-Catholicism in Early Modern English texts. London: Palgrave MacMillan, 1999. 284 p.). As perseguições aos católicos durante o reinado de Elizabeth I levaram o papa Pio V a publicar a bula Regnans in excelsis, de 25 de fevereiro de 1570, condenando as perseguições e excomungando a rainha por promover heresia. A bula arrola as restrições ao culto católico e a perseguição aos seus praticantes na Inglaterra pós-Reforma: o sacrifício da missa e as procissões católicas foram abolidos, assim como as preces, jejuns, celibato e ritos católicos; os bispos e sacerdotes católicos foram interditados e expulsos das suas igrejas e benefícios; os recusantes católicos mais obstinados eram presos e enforcados (VARGAS, 2003VARGAS, Maria Ester. Isabel II e a bula Regnans in exclesis, do Papa Pio V. Millenium, Viseu: Revista do Instituto Politécnico de Viseu, Viseu, n. 27, p. 1-15, abr. 2003.).

O documento pontifício fez recrudescer a perseguição estatal ao significativo número de recusantes católicos, estabelecidos, sobretudo, no Norte da Inglaterra. Com efeito, a intolerância aos católicos e ao catolicismo foi uma das características mais conhecidas da Inglaterra do século XVII, articulando anticatolicismo e política. O catolicismo internacional, especialmente em suas formas militantes da Contrarreforma, foi considerado perigoso e odioso. Conformidade religiosa e lealdade política estavam inextricavelmente ligadas (MAROTTI, 1999MAROTTI, Arthur F. (ed.). Catholicism and Anti-Catholicism in Early Modern English texts. London: Palgrave MacMillan, 1999. 284 p.). O medo dos católicos era alimentado pelas memórias das conspirações católicas das décadas de 1580-1590 e da conspiração papista de 1605. Porém, o número de recusantes assumidamente católicos não devia passar de 5% da população em 1630.18 18 Não obstante, como argumentou Bossy (1973, p. 91-105), houve um aumento constante na não-conformidade de 1570 a 1640. Em 1603, o número de recusantes reais (entre os quais não se encontravam apenas os católicos convictos) chegava a 30 ou 40 mil, aumentando para 60 mil em 1641. Reduzidos em número e resignados à derrota, os católicos não-conformistas ativos foram enfraquecidos no século XVII (CLIFTON, 1971CLIFTON, Robin. The popular fear of catholics during the English Revolution, 1640-1660. Past and Present, Oxford, n. 52, p. 23-55, 1971.).

Após 1560, aos olhos dos anglicanos e puritanos ingleses, o catolicismo inglês era uma “seita” (BOSSY, 1973BOSSY, John. The english catholic community, 1603-1625. In: SMITH, Alan (ed.). The Reign of James VI & I. London, 1973. p. 91-105.). Embora, sob os Stuart, os recusantes católicos tenham se afastado dos compromissos políticos que marcaram o período elisabetano, houve o crescimento de um “sacerdócio missionário, de um sistema educacional católico ultramarino e da produção literária católica” (HIBBARD, 1980HIBBARD, Caroline M. Early Stuart Catholicism: revisions and re-revisions. Journal of Modern History, Chicago, v. 52, n.1, p. 1-34, mar. 1980., p. 10). A circulação de padres católicos pela Inglaterra não era, porém, livremente tolerada. Em janeiro de 1635, por exemplo, o prefeito de Plymouth relatou a prisão de dois padres irlandeses no porto da Vila disfarçados de mendigos, “em roupas pobres e esfarrapadas”, para que as suas vestes sacerdotais católicas não fossem descobertas na inspeção das bagagens. O artifício não deu certo, sendo ambos desmascarados (JOHANESEN, 2020JOHANESEN, Sarah. “That silken Priest”: Catholic disguise and anti-popery on the English Mission (1569-1640). Historical Research, Oxford, v. 93, n. 259, p. 38-51, fev. 2020. ).

Caso Pedro João tenha, de fato, se mantido católico nos dois primeiros anos em que se estabeleceu no Sul da Inglaterra, na imediação atlântica entre o Condado de Devon e a Cornualha, não lhe fora facultado praticar publicamente o seu catolicismo, como sugerem os estudos acima e o episódio ocorrido em 1635 no porto de Plymouth. A persuasão de seu senhor para a sua conversão ao protestantismo também torna implausível a hipótese de um catolicismo privado. Se realmente nosso personagem se manteve católico na Inglaterra entre 1629 e 1631, o seu catolicismo era apenas “interno” ou velado, isto é, uma confissão escondida das autoridades eclesiásticas locais e do seu senhor. Neste caso, Pedro João se aproximaria do que John Bossy (1973BOSSY, John. The english catholic community, 1603-1625. In: SMITH, Alan (ed.). The Reign of James VI & I. London, 1973. p. 91-105.) chamou de “papista da Igreja”, ou seja, de um católico inglês que se fingia de reformado: comparecia às cerimônias anglicanas para escapar das penas e sanções aos não-conformistas. De todo modo, parece arriscado exagerar a convicção católica de um escravo crioulo de 16 anos, podendo ser a afirmação de Pedro João de que se manteve católico nos seus dois primeiros anos na Inglaterra uma estratégia de defesa frente à inquisição.

Conjeturas a parte, qual era o catolicismo de Pedro João a partir dos dados que ele próprio forneceu durante os seus interrogatórios inquisitoriais?

Na sua primeira confissão, em 23 de setembro de 1637, Pedro João afirmou ser cristão batizado, mas não soube dizer em qual igreja e por qual sacerdote, nem quem foram os seus padrinhos.19 19 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 17. Disse que, no tempo em que viveu em Pernambuco, lembrava-se de ter sido crismado, embora não soubesse por quem e nem quem foi o seu padrinho.20 20 Idem, fls. 17v. Perguntado sobre a sua instrução nos mistérios da fé católica, respondeu que “fora ensinado a se benzer e a dizer as orações do Padre Nosso, Ave Maria e Credo, e que se confessara sacramentalmente e comungara, mas que lhe parece que uma só vez, e que ouvia missa e pregação como católico cristão”.21 21 Idem. Para provar o que disse, pôs-se de joelhos e, em língua inglesa, rezou o Padre Nosso - o que foi confirmado pelo língua Cristóvão Olanda.22 22 Idem.

Confessando-se, novamente, em 2 de outubro de 1637, Pedro João reafirmou ser batizado e crismado e que fora instruído em Pernambuco na fé católica, acrescentando que “no dito tempo lhe instruíram nos mandamentos das leis de Deus”,23 23 Idem, fls. 25v. porém, não se recordava - com exceção do Padre Nosso - das preces (Ave Maria e Credo) aprendidas. Afirmou também que “no dito tempo cria na Santíssima Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas e um só Deus,” assim como “nos mais mistérios da santa fé católica.”24 24 Idem, fls. 25. Antes de se confessar, Pedro João foi interrogado por quatro padres ingleses e deu algumas respostas que vão de encontro às suas confissões. Para o padre Duarte Daniel, sacerdote mestre em teologia e residente no Colégio Inglês de Lisboa, disse que não sabia se Cristo era filho de Maria, nem se era homem ou Deus. Ao mesmo padre afirmou que nunca havia comungado. Idem, fls. 14.

Batismo e Crisma, dois sacramentos da Igreja Católica, formam um par. Não por acaso, a Crisma é chamada de Sacramento da Confirmação. Ao chegar à idade do uso da razão, aquele que foi batizado deve se apresentar ao bispo para confessar a sua fé, de forma semelhante ao batismo dos “pagãos” convertidos ao catolicismo. Assim, os que são batizados na infância, por não terem formulado esta confissão no Batismo, chegando ao uso da razão, após se confessarem, têm que se apresentar ao prelado para o Sacramento da Confirmação. Por esse motivo, os inquisidores enfatizaram que Pedro João era batizado e crismado, ou seja, confirmou sacramental e conscientemente a sua fé católica perante o ordinário, tendo antes recebido a absolvição dos pecados pela confissão.25 25 Uma vez passado à “nova fé dos ingleses”, Pedro João desacreditou o sacramento da confirmação. Calvino (2002, p. 56-57) considerava a crisma católica uma desonra ao batismo, um dos dois sacramentos mantidos pelos calvinistas. Ao que parece, foi a única vez que nosso personagem realizou a confissão auricular dos seus pecados até ser preso pela inquisição.

De acordo com a Igreja Católica, o cristão que comunga sacramentalmente evolui no processo de reconciliação com Deus, iniciado na confissão. Mas, como observou Adalgisa Arantes Campos (2013CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as almas do purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. 248 p.), não se comungava com frequência na América portuguesa. A comunhão ocorria, geralmente, apenas antes da Crisma e nas desobrigas quaresmais. Ao que tudo indica, Pedro João não se confessava ao pároco, nem comungava por ocasião da Quaresma. Como ele próprio afirmou: ir à missa era a prática católica que mais observava. A missa era, de fato, a principal prática católica dos homens da sua época.26 26 A frequência à missa na época moderna “não deve ser interpretada imediatamente como frequência à comunhão” (CAMPOS, 2013, p. 91). A comunhão frequente, sem o devido preparo e discernimento (i.e., a confissão sacramental sem a autorização do superior), era vista como nociva. Um grande valor salvífico era atribuído a ela no “catolicismo barroco”. Para além das missas dominicais e solenes, todos os dias da semana pequenas missas privadas (de cerca de um quarto de hora) eram rezadas nas frentes dos altares laterais dos templos em sufrágio às almas do Purgatório. Nosso personagem, certamente, frequentou diversas delas, mais do que as missas dominicais e solenes, nas quais o Corpo de Cristo era ofertado, transubstanciado (dogma severamente recusado pelos protestantes, mas confirmado pelo Concílio de Trento), durante a consagração eucarística, mas que poucas pessoas comungavam.27 27 Ao invés de relaxamento, este escrúpulo em comungar poderia decorrer de um excesso de zelo religioso de fiéis que não se julgavam suficientemente purificados para receberem o corpo sacramentado de Cristo. Essa hipótese foi lançada por Sérgio da Mata (1997, p. 50).

Pedro João acompanhava as missas em latim, de pé, vendo o padre com sobrepeliz e estola rezar de costas para o povo e de frente para o altar-mor. Nas missas dominicais e solenes, nosso personagem ouvia os sermões, com longas citações em latim depois traduzidas à língua vulgar, que incentivavam as práticas tridentinas e a devoção aos santos de sua cor, como a Virgem do Rosário. Embora o latim lhe fosse incognoscível, Pedro João sabia - como todo o vulgo - ler as imagens sagradas (escultóricas e pictóricas) e o seu simbolismo religioso. Passagens dos evangelhos e das vidas dos santos eram decodificadas por ele em altares e forros da Igreja do Rosário dos Homens Pretos de Olinda, já existente no ano de sua captura pelos ingleses,28 28 “Esta igreja, que já existia em 1630, foi citada em 1645, quando da ocasião de uma procissão de negros, instituída por Henrique Dias, no primeiro domingo de outubro para comemorar a festa da Virgem do Rosário.” (BAZIN, 1983, p. 129). mas também nas igrejas de Nossa Senhora da Graça (Real Colégio), de Nossa Senhora do Amparo, de Nossa Senhora da Conceição, de Nossa Senhora de Guadalupe, do Mosteiro de São Bento e dos conventos franciscano e carmelita e a Sé de São Salvador, templos erguidos em Olinda entre 1540 e 1620.

De resto, como de costume, Pedro João aprendeu umas poucas rezas católicas: o Padre Nosso, a Ave Maria e o Credo. Certamente, foi instruído nos 10 mandamentos, no mistério da Santíssima Trindade e na doutrina do Purgatório. A crença na existência de um espaço da geografia celeste para purgar as penas temporais não cumpridas na Terra era central no imaginário religioso “barroco”. O catolicismo popular de Pedro João aprendeu a temê-lo e a providenciar uma boa morte. Como escravo, Pedro João já vivia o seu “purgatório terrestre”, mas deveria preparar-se para enfrentá-lo no post-mortem.

Em 1629, capturado em alto-mar pelos ingleses quando estava a caminho de Portugal, Pedro João veria sua mentalidade religiosa ser contestada pelos ingleses, sendo obrigado a abraçar outra “lei”: a protestante.

Anglicanos e puritanos na Inglaterra de Pedro João

A aprovação, pelo parlamento inglês, dos Acts of Supremacy (1534) marca o início da reforma religiosa na Inglaterra e o rompimento de relações entre a monarquia inglesa e a Igreja Católica. A lei de 1534 outorgava ao rei Henrique VIII (e aos seus sucessores) o título de chefe supremo da igreja na Inglaterra. Originava-se, assim, a Igreja Anglicana, uma igreja nacional, que não reconhecia a autoridade do papa. Como se convencionou observar, a Igreja Anglicana adotou a teologia reformada, mas manteve a organização e a liturgia católicas (DELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. ). Essa reforma, vista por alguns como a meio caminho, deu origem à divisão dos protestantes ingleses entre anglicanos e puritanos.

Esta divisão não é, contudo, consensual. Basil Hall (1965HALL, Basil. Puritanism: the problem of definition. Studies in Chuch History, v. 56, p. 283-296, 1965.) afirmou que os “verdadeiros puritanos” foram os anglicanos que continuaram na igreja da Inglaterra, embora sustentassem uma doutrina puritana. Esta definição exclui, assim, os presbiterianos, separatistas e outros. Já John F. H. New (1964NEW, John Frederick Hamilton. Anglican and Puritan: the basis of their opposition, 1558-1640. London: Adam & Charles Black, 1964. 140p.) assinalou diferenças fundamentais entre puritanos e anglicanos em termos doutrinários (doutrinas do homem, da igreja e dos sacramentos) e no que diz respeito à escatologia. M. M. Knappen (1939KNAPPEN, Marshall Mason. Tudor puritanism: a chapter in the history of idealism. Chicago: University of Chicago Press, 1939. 555 p.), William Haller (1938HALLER, William. The rise of puritanism. New York: Columbia University Press, 1938. 464 p.) e Patrick Collinson (1967COLLINSON, Patrick. The elizabethan puritan movement. London: Cape, 1967. 528 p.) também apontaram diferenças entre os puritanos, além de mudanças de posições ao longo do tempo. Seja como for, prosperou neste debate a tese de Basil Hall (1990HALL, Basil. Humanists and protestants, 1500-1900. Edinburgh: T & T Clark, 1990. 380 p.), segundo a qual o puritanismo identificava-se, exclusivamente, com o ensino e a teologia pastoral, existindo, assim, apenas ao nível dos “casos de consciência”. Para Hall, puritanismo era só isso. Coube à D. M. Lloyd-Jones (1993) revisar essa tese. Para Lloyd-Jones, os puritanos eram aqueles que enxergavam a reforma religiosa inglesa (e, assim, a Igreja Anglicana) como inconclusa. Os puritanos pretendiam suprimir a autoridade de bispos e do próprio rei em assuntos da igreja, banir as vestes sacerdotais (sobrepelizes) e resquícios católicos da missa, como ajoelhar-se no momento da Ceia.

Assim entendido, como uma mentalidade29 29 A mentalidade puritana se caracterizava por uma atitude de colocar a “verdade antes das questões de tradição e autoridade, e uma insistência na liberdade de servir a Deus da maneira como cada qual julga certa” (LLOYD-JONES, 1993, p. 250). que pretendia expurgar totalmente a Igreja Anglicana daquilo que havia permanecido da Igreja Romana, o puritanismo emergiu já em meio ao contexto de aprovação dos Atos de Supremacia.30 30 Lloyd-Jones (1993, p. 248) rejeita a tese de Basil Hall (1965), segundo a qual a ideia e o conceito anglicano do puritanismo começaram com Richard Greenham e Richard Rogers no fim da década de 1570 e início da de 1580, sendo continuado por William Perskings (LLOYD-JONES, 1993, p. 248). Embora a palavra “puritanismo”, como observou Basil Hall, tenha sido empregada pela primeira vez apenas na década de 1560, o “espírito do puritanismo” já estava presente desde o princípio da reforma inglesa (LLOYD-JONES, 1993LLOYD-JONES, Martyn. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São Paulo: Editora PES, 1993.).31 31 Lloyd-Jones (1993, p. 249) se aproxima de Knappen (1939), que, em Tudor puritanism, afirmou que o puritanismo “começou a se manifestar em William Tyndale, e nos idos de 1524”. Os puritanos começaram por reivindicar a abolição do uso de sobrepelizes e a eliminação de resquícios romanos remanescentes no culto anglicano, mas frustrados diante das perseguições impingidas, sobretudo durante o reinado de Maria I (1553-1558), e influenciados pelo modelo genebrino durante exílios nos cantões suíços, passaram a defender o separatismo. Vicejavam um calvinismo internacional, diferenciando-se dos anglicanos pelo “rosto nacional” que pretendiam para a sua igreja. Desejavam o aprofundamento da reforma, despindo totalmente a Igreja Anglicana de seus traços romanos, acabando por abraçar o separatismo, contestando a chefia do rei como um traço do detestado “papismo”.

A teologia protestante - mais especificamente, o calvinismo - prosperou no interior da igreja nacional inglesa no reinado do sucessor de Henrique VIII, seu filho com Jane Seymour, Eduardo VI (1547-1553). Este, que ascendeu ao trono com apenas nove anos e morreu prematuramente aos 14, teve o seu governo dirigido, sucessivamente, por dois protetores, seu tio Eduardo Seymour (1547-1549) e John Dudley (1549-1553). O primeiro se aproximava do luteranismo melanchtoniano, ao passo que o segundo professava o calvinismo. Sob a proteção de Seymour, Eduardo VI permitiu a comunhão sob duas espécies, o casamento de padres e excluiu da missa toda a ideia de sacrifício. Sob a proteção de Dudley, houve destruição das imagens e estátuas e os altares das igrejas foram substituídos por simples mesas (DELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. ). Estes substanciais avanços protestantes durante o reinado de Eduardo VI retrocederam sob o reinado de sua meia-irmã, a rainha Maria I (1553-1558), filha de Catarina de Aragão, uma católica ferrenha, que promoveu uma verdadeira caça aos puritanos do Reino, executando 273 reformados e forçando outros 800 ao exílio na Alemanha e na Suíça (DELUMEAU, 1989). Apesar de a perseguição aos puritanos permanecer no longo reinado de Elizabeth I (1558-1603) e, sobretudo com a ascensão dos Stuart, no século XVII, a teologia reformada consolidou-se no seio da Igreja Anglicana após a morte da rainha Maria I, não obstante a permanência de resquícios indumentários, hierárquicos e cerimoniais do culto católico romano.

Se, por um lado, o reinado de Elizabeth I sancionou a teologia calvinista no reino com a aprovação dos XXXIX Artigos, que, apontando os “erros dos concílios”, extirparam a crença do purgatório, indulgências, relíquias e cultos das imagens e mantiveram apenas dois sacramentos (Batismo e Ceia), por outro, a rainha consagrou a perspectiva tipicamente anglicana, que consistia, como definiu Jean Delumeau (1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 141), em uma “solução intermediária entre o catolicismo e o calvinismo”. Defensora da subordinação da igreja pelo Estado, Elizabeth I se recusava a obedecer ao papa, mas também tinha pouca simpatia por certos reformadores radicais que haviam se refugiado em Genebra durante o reinado precedente. Elizabeth I reprovava, ainda, os presbiterianos escoceses e os puritanos separatistas, sobretudo em suas hostilidades por qualquer princípio de hierarquia episcopal.

A atitude puritana típica apareceu justamente em oposição a esta atitude conciliatória - apontada por Delumeau - da Igreja Anglicana. Mas o que diferenciava anglicanos e puritanos? Ambos eram protestantes, mas os primeiros adotaram uma perspectiva reformista, confiando na mudança de postura dos monarcas ingleses e defendendo a permanência dos quadros calvinistas no interior da Igreja Anglicana - já que, se estes debandassem, os criptocatólicos e católicos assumidos tomariam conta da igreja nacional inglesa, o que tornaria ainda maiores os retrocessos ocorridos após a morte de Eduardo VI. Os puritanos, por seu turno, eram inflexíveis e não negociavam em termos doutrinários. Pretendiam o completo e rápido expurgo de todos os traços católicos do culto anglicano, mas não formavam doutrinariamente um grupo coeso.32 32 Os puritanos defendiam que, nos serviços da Igreja, deveria ser usada a toga de Genebra, e não a sobrepeliz. A influência de Zwinglio na limpeza de cerimônias e vestes clericais radicalizou as posições de alguns. Desde o início da reforma religiosa inglesa grupos protestantes ficaram ao lado de homens como William Tyndale (1494-1536), que toleravam cerimônias e vestes católicas desde que a doutrina transmitida ao povo fosse reformada, ao passo que outros se postaram ao lado dos que achavam esta concessão intolerável, defendendo a eliminação dos “restos do catolicismo”.

O historiador inglês Patrick Collinson (1967COLLINSON, Patrick. The elizabethan puritan movement. London: Cape, 1967. 528 p.), acertadamente, define o anglicanismo como uma espécie de “catolicidade reformada caracterizada por centralidade e moderação.” Durante o longo reinado de Elizabeth, a situação começou a endurecer de ambos os lados, aliás, com certos extremismos, já que alguns puritanos se inspiraram no anabatismo “do continente”. Perdida a esperança de reformar completamente a Igreja Anglicana, os puritanos abandonaram qualquer ideal de reconciliação com a igreja nacional. O presbiterianismo surgiu, assim, da constatação puritana, gestada por John Knox (1514-1572) em Frankfurt e Genebra, de que “o monarca não deveria ter poder sobre os assuntos da igreja, e que os bispos também não deveriam ter essa autoridade.” Levantou-se, inclusive, “a questão quanto a se deveriam sequer existir bispos. Decidiram que não deveria existir esse ofício na Igreja” (LLOYD-JONES, 1993LLOYD-JONES, Martyn. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São Paulo: Editora PES, 1993., p. 260).

Porém, o presbiterianismo foi apenas uma das posições assumidas pelo puritanismo mais radical - e, na Escócia sob John Knox, pois seguiu outra linha, a separatista, na Inglaterra. Diferentes homens começaram a dizer que era necessário haver um total abandono da ideia de Igreja estatal. Assim, “o puritanismo mais radical ou verdadeiro dividiu-se em presbiterianismo e separatismo. O primeiro ainda acreditava que a igreja da Inglaterra podia ser reformada e tornar-se uma Igreja Presbiteriana; o segundo a abandonou” (LLOYD-JONES, 1991, p. 262). Como sabemos, a tentativa de transformar a igreja estatal em presbiteriana falhou. Em 1593, John Penry (1563-1593), Henry Barrowe (1550-1593) e outros foram mortos por causa do seu ensino e prática separatista. Restou aos separatistas a resignação ou o exílio, sobretudo nos Países Baixos - parcela dos quais, chamados pilgrim fathers, foram, diga-se de passagem, enviados pela Companhia de Plymouth para a Nova Inglaterra em 1620. Os resignados permaneceram na Inglaterra, mas se concentraram, exclusivamente, no ensino e na teologia pastoral. Fora justamente esse processo final, de desilusão, que levou Basil Hall (1965HALL, Basil. Puritanism: the problem of definition. Studies in Chuch History, v. 56, p. 283-296, 1965.) a identificar o puritanismo exclusivamente ao ensino e às pastorais sobre “casos de consciência”.

Sob os reis Stuarts, os puritanos que permaneceram na Inglaterra continuaram com o seu ensino e pregação moral e espiritual, como se vê nas obras de Richard Sibbes (1577-1635) e John Preston (1587-1628). A ascensão ao trono de Jaime I (1603-1625) reacendeu a esperança dos puritanos, já que o novo rei era escocês e, assim, vinha de um país onde o presbiterianismo era a religião de Estado. Contudo, logo os puritanos tiveram as suas esperanças frustradas, pois Jaime se mostrou episcopaliano, respondendo rispidamente os pedidos puritanos de reforma do ritual e disciplina da Igreja Anglicana com a frase: “Onde não há bispo, não há rei” (DELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 231). Com a ascensão de Carlos I (1625-1649), tido por católico e ainda mais episcopaliano que seu pai, a queda de braço entre anglicanos episcopalianos e puritanos independentes no interior da Igreja Anglicana ganhou contornos políticos, envolvendo a relação rei-parlamento. Este embate se exacerbou até chegarmos aos anos 1640, quando irrompeu a guerra aberta entre o rei e os puritanos.

Nosso personagem assistiu essa escalada de violência durante sua estadia no Reino da Inglaterra. Como vimos, as vilas de Millbrook-Plymouth, locais onde residiu entre 1629 e 1637, se posicionaram ao lado dos puritanos (Partido Whig) durante a Guerra Civil Inglesa (1642-1649). Antes mesmo da guerra civil, como ressaltamos, os puritanos de Plymouth buscaram, por meio do Conselho da Vila, dividir a única paróquia da localidade, esperançosos de colocarem a nova paróquia sob a autoridade puritana.

O puritanismo encontrou a sua forma acabada com os presbiterianos na Escócia e com o separatismo (puritanos independentes) na Inglaterra. Reuniu em seu bojo os não conformistas e os independentes, além dos batistas. Os últimos, organizados em 1608 sob a liderança de John Smyth (1554-1612) e Thomas Helwys (1575-1516), eram formados por grupos de dissidentes ingleses refugiados na Holanda. Como os puritanos separatistas, os batistas alinhavam-se aos movimentos de anticonformismo de fins do século XVI, adotando uma forma de governo congregacional e tendo por princípio a separação entre igreja e Estado (LEE, 2003LEE, Jason. The Theology of John Smyth: puritan, separatist, baptist, mennonite. Macon: Mercer University Press, 2003. 310 p.). Professavam um cristianismo mais evangélico e, como os calvinistas, reduziram os sacramentos a dois: Ceia e Batismo. Diferente dos puritanos (seguidores do calvinismo), que batizavam as suas crianças, os batistas apenas eram batizados em idade suficiente para ter consciência e anuência do ato, atitude da qual derivou, aliás, o nome desta igreja reformada.

Mas a qual protestantismo Pedro João se converteu durante sua estadia na Inglaterra? A qual das duas vertentes protestantes inglesas, anglicana ou puritana, pertencia o seu amo? As respostas do próprio Pedro João aos interrogatórios dos inquisidores nos ajudarão a entrever as cores de seu protestantismo.

O protestantismo de Pedro João

Logo após lavrarem o “auto de entrega nos cárceres da penitência”, os inquisidores chamaram dois sacerdotes ingleses do Seminário do Espírito Santo e São Paulo de Lisboa - Duarte Daniel e Onofre Elizeu - para falar com Pedro João. Os dois padres compareceram ao Estaus no dia 25 de setembro de 1637 e foram levados pelo alcaide aos cárceres da penitência. Interrogado por eles, Pedro João afirmou que “fez mudança de religião depois que esteve na Inglaterra” e “confessou que ia às igrejas dos protestantes e assistia as suas predições e rezas”.33 33 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 7.

No dia 13 de setembro de 1637, os inquisidores convocaram dois outros religiosos ingleses, residentes no Colégio das Fangas da Farinha de Lisboa, fr. Domingos do Rosário e Eduardo Nogle Meneses. Ficaram os religiosos incumbidos das mesmas atribuições dos dois anteriores - i.e., inquirir Pedro João, em língua inglesa, sobre matérias de religião. Novamente inquirido sobre a sua mudança de fé, Pedro João respondeu que “entendia que com a mudança da terra podia viver ao modo como os ingleses entre os quais estava”. Podemos compreender de diferentes maneiras esta afirmação: por ser ele escravo, deveria professar a fé de seus senhores, não lhe cabendo escolha própria; a religião era um assunto “nacional”, cabendo a cada Estado ditar o seu credo; ou Pedro João estava imbuído de uma concepção tipicamente moderna, pluralista, que colocava o homem como responsável pela escolha da fé, e não o Estado.

Nos dois últimos casos, a resposta de Pedro João se aproximaria das concepções protestantes. Ao afirmar o caráter estatal da escolha religiosa, Pedro João sintonizava-se com a ideia de uma igreja nacional, com a crescente confessionalização da época e, consequentemente, com o anglicanismo; ao afirmar que os homens poderiam viver sob a religião do lugar em que se encontravam, Pedro João flertava com a concepção de que toda religião salva. Porém, a visão de que todas as religiões salvam e de que as pessoas devem viver de acordo com a fé de seus ancestrais contraria, ao mesmo tempo, a doutrina católica e a calvinista, confissões cristãs que se pretendiam como únicas vias verdadeiras para a salvação. Sendo assim, parece-nos que esta visão não foi construída por Pedro João na Inglaterra, mas no trânsito que ele promoveu entre confissões religiosas exclusivistas em matéria de salvação. Pedro João via-se “entre dois fogos”, sentindo-se impotente para fazer valer a sua opinião sobre religião: como escravo, seus senhores impunham-lhe suas fés; vivendo entre um povo, professava a fé deste mesmo povo.34 34 Poder-se-ia dizer que este argumento foi urdido para amenizar a sua “culpa”, afinal ele punha-se passivamente diante da sua conversão ao imputa-la ao seu senhor e ao reino em que se encontrava. Porém, como estratégia de defesa, a afirmação causaria - como, de fato, causou - justamente o efeito contrário: os inquisidores acabaram por concluir que, se voltasse à Inglaterra, retornaria à “seita dos protestantes”, o que embargou sobremaneira a sua soltura.

Quando se viu pela primeira vez frente a frente com os inquisidores, durante sua primeira confissão, Pedro João afirmou que, uma vez na Inglaterra, “se casara com uma mulher por nome Joana, que segue a religião nova dos ingleses, com as cerimônias que lá se rezam”.35 35 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 18. Confessou também que, durante todo o tempo em que esteve na Inglaterra, não ouviu missa católica, nem confessou ou comungou - o que, como vimos, não era permitido na Inglaterra pós-Reforma. Pedro João “dançou conforme a música”, adaptando-se à nova vida entre os ingleses: permaneceu, no íntimo, católico, mas externamente reformado. Só abandonou intimamente a fé trazida de Olinda após se casar com uma mulher protestante. Contudo, antes mesmo de aderir à “nova religião inglesa” pela via marital, Pedro João foi submetido a prédicas protestantes que, ao que parece, pouco lhe interessaram. Em sua segunda confissão, Pedro João apontou o tom ameaçador das prédicas do seu amo inglês: deveria ele viver na fé dos protestantes “porque nela se havia de salvar e não na fé católica”.36 36 Idem, fls. 26. Como observou Rui Luis Rodrigues: “Nos territórios calvinistas, (...) a disciplina era mantida e administrada pelo consistório, mas sustentada por microrredes que passavam pelo interior dos relacionamentos cotidianos” (RODRIGUES, 2017, p. 15-16). As ameaças não surtiram o efeito desejado, posto que não despertaram em Pedro João uma verdadeira crença na fé reformada. Ele parece ter resistido à conversão - ao menos, interiormente - por dois anos e meio, quando seu senhor consentiu ou propôs que ele se casasse com Joana, uma mulher protestante. A nova estratégia senhorial, tipicamente paternalista, deu certo.

Mas nem sempre os senhores adotavam a estratégia paternalista para a conversão religiosa dos seus escravos. Guilherme Her, inglês residente em Lisboa, por exemplo, foi denunciado ao Santo Ofício em 1728 por tentar reduzir seu escravo João de Barros ao protestantismo à base de “castigos e pancadas”,37 37 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Avulsos, Santo Ofício. Denúncia contra Guilherme Her, inglês, por induzir a um seu escravo a seita dos protestantes. estratégia diferente daquela usada pelo amo do nosso personagem, que, a princípio, tentou converter Pedro João por meio do “ensino e persuasões”. No dia 3 de outubro de 1637, chamado novamente à presença dos inquisidores para ser interrogado, Pedro João esclareceu quais eram estes ensinamentos: “o dito seu senhor lhe ensinou que não havia de confessar, nem fazer o que fazia em Pernambuco como cristão. E que também lhe ensinou seus mandamentos particulares (...) e que lhe não ensinara nenhumas orações”.38 38 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 29. Pedro João, portanto, não foi instruído em escola protestante na Inglaterra, mas privadamente, pelas prédicas de seu senhor e dos pastores dos templos que frequentava.39 39 Estes eram, em sua maioria, anglicanos, o que depreendemos do já referido pedido de divisão, feito pelos puritanos, da única paróquia de Plymouth.

Como os escravos eram comparados a crianças, tutelados pelos seus senhores como “pais”, a instrução de Pedro João se baseou, provavelmente, n’O Catecismo da Igreja de Genebra, isto é, um plano para instruir as crianças na doutrina de Cristo, de Calvino. Como explicita o subtítulo do manuscrito original do Catecismo, este se voltava à instrução das crianças e novatos na fé reformada. Tendo este público-alvo, Calvino escreveu o catecismo em forma de diálogo: ao todo, 373 perguntas e respostas. O Catecismo de Genebra, como ficou conhecido, foi escrito em 1542, durante a segunda estadia de Calvino na cidade suíça, sendo esta uma versão aperfeiçoada da sua Instrução na fé, de 1537. O Catecismo de Genebra foi o manual mais difundido na instrução de neófitos na teologia reformada até a publicação dos Catecismos de Westminster40 40 A Assembleia de Westminster (1643-1649) foi um concílio convocado para reestruturar a Igreja da Inglaterra, resultando na produção da Confissão de fé de Westminster e de dois catecismos (o Catecismo maior e o Breve catecismo) (LINGLE, 1960). , em 1648. Ao se referir aos “mandamentos”, Pedro João pode ter se recordado do conjunto de perguntas e respostas do Catecismo de Genebra, dedicado a este assunto. A igreja reformada concordava, em geral, com a estrutura mandamental original bíblica (dos dez mandamentos), enfatizando que os homens são servos da vontade de Deus.

As prédicas ouvidas por Pedro João não se restringiam aos ensinamentos domésticos do seu senhor, mas também àqueles ministrados nas igrejas reformadas de Millbrook e Plymouth. Pedro João confessou aos inquisidores que “ia ao templo” dos protestantes “e fazia cerimônias que eles costumam fazer, dando vezes, rezando salmos e fazendo meneios com as mãos”.41 41 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 26. Infelizmente ele não descreveu as tais “cerimônias”, dissuadindo os inquisidores de que “não se lembra em particular coisa que possa dizer”.42 42 Idem. Uma das cerimônias protestantes que o nosso personagem participou foi a do seu casamento. Curiosamente, o matrimônio - ao lado do batismo - foi assinalado por Pedro João como um dos sacramentos em que foi ensinado a crer, embora, entre os calvinistas, o matrimônio fosse apenas união legal, não um sacramento, como entre os católicos.

Ao falar de sua esposa, Joana, Pedro João confessou que se casou segundo a “cerimônia que se costumam fazer no dito Reino [da Inglaterra]”.43 43 Idem, fls. 26v. Aliás, a exemplo do que ocorreu com o jesuíta mameluco apóstata Manoel de Moraes, estudado por Ronaldo Vainfas, a acusação contra Pedro João repousava, sobretudo, no fato de ter se casado com “mulher herege”, em “templo dos hereges” e segundo as “cerimônias dos hereges”. Como observou Vainfas (2008, p. 283): “se houve predicante no casamento, houve rito, logo religião; e se houve religião, esta foi a ‘seita herética de Calvino’, pois as mulheres de Manoel eram ambas holandesas calvinistas, não católicas”. O casamento com mulheres protestantes era, assim, uma evidência cabal da adesão do ex-jesuíta ao calvinismo. A mesma linha de raciocínio pode ser usada no caso de Pedro João: o casamento com uma “mulher herege” consolidava a sua condição de protestante. Sua heresia decorria do fato de ter cumprido os rituais nupciais protestantes. Como o protestantismo de Pedro João era basicamente calvinista, concluímos que a sua cerimônia nupcial foi “celebrada em série, na igreja, perante um predicante, ou na Câmara Municipal, perante um funcionário leigo. Ambos valiam o mesmo, sendo o matrimônio essencialmente um contrato, não mais um sacramento” (VAINFAS, 2008VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. 384 p., p. 156).

Por que Pedro João afirmou aos inquisidores que o matrimônio era um sacramento? Seria mais fácil - como fez o referido jesuíta Manoel de Moraes - ter assinalado que o casamento não havia sido oficializado pela igreja e, por isso, era inválido. Preferiu, contudo, reafirmar a sacralidade do seu contrato nupcial, mesmo que por intermédio de uma cerimônia que os inquisidores consideravam herética. Pode ser que em Millbrook/Plymouth a Igreja Anglicana preservasse a noção do matrimônio (sacramento)? Não parece factível esta hipótese, tendo em vista o alinhamento puritano destas localidades durante a Guerra Civil Inglesa. Nossa hipótese é a de que a inclusão do matrimônio entre os sacramentos da igreja reformada por Pedro João foi uma forma de ele imprimir um caráter sagrado à sua família perante os inquisidores, já que nosso personagem desejava retornar ao convívio da mulher e filho. Também podemos vislumbrar aí um protestantismo convivendo com elementos remanescentes de sua formação católica em Olinda, o que faria de Pedro João um protestante “com semitom católico”.

Sobre os domingos e dias santos, Pedro João afirmou que os guardava “porque também os guardam naquele Reino”.44 44 Idem, fls. 29v. Teria ele mentido sobre esse assunto? Certamente os protestantes não guardavam datas como o Dia de Todos os Santos, mas apenas aquelas referentes à Paixão de Cristo. Mesmo nestes dias não podemos dizer que os calvinistas se mantivessem apartados do trabalho e muito menos que fizessem jejuns e abstinências. Eram comuns denúncias feitas à inquisição portuguesa contra protestantes, acusando-os de comer carne em dias proibidos pela igreja. Assim ocorreu com o supracitado Manoel de Moraes, estudado por Ronaldo Vainfas (2008VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. 384 p.) - e também com o já citado inglês Guilherme Her, morador em Lisboa, que foi denunciado ao Santo Ofício em 1728 por induzir seu escravo João de Barros a seguir a “seita dos protestantes”, forçando-o a “comer carne sexta-feira e sábado.”45 45 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Avulsos, Santo Ofício. Denúncia contra Guilherme Her, inglês, por induzir a um seu escravo a seita dos protestantes. De fato, os calvinistas do Brasil holandês escandalizaram os católicos pernambucanos ao comerem carne na Quinta-Feira de Endoenças. Desse modo, a afirmação de Pedro João de que guardava os dias santos deve ser matizada, podendo ser um subterfúgio para livrar-se de qualquer suspeita de profanação aos santos em seus dias comemorativos,46 46 Ao ser questionado pelos inquisidores, no interrogatório de 3 de outubro de 1637, se profanou imagens de Cristo, da Virgem e dos mais santos, Pedro João disse que nunca o fizera. Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 29v-30. ou, ainda, outro “semitom católico” de seu protestantismo.

Como esperado, ao ser questionado sobre a autoridade papal, Pedro João afirmou que, conforme lhe ensinaram, “não conhecia o papa por cabeça da Igreja e que não tinha nenhum poder.”47 47 Idem, fls. 29v. Esta confissão acabava por reforçar a visão inquisitorial (e tridentina) de que os ingleses - como todos os demais protestantes - eram cismáticos e hereges. Durante todo o processo de Pedro João, a expressão utilizada pelos inquisidores para se referir à fé abraçada pelo réu, via de regra, foi “seita dos protestantes”, permutada, às vezes, por “seita dos hereges.”48 48 Na linguagem inquisitorial, “seita” era um termo abrangente para designar todos os “hereges cismáticos” ou sectários, como eram os arrianos, maniqueus, nestorianos, luteranos e calvinistas (BLUTEAU, 1712-1728, p. 557, t. 7). Referia-se, assim, aos “hereges” que rompiam a unidade da Igreja católica, contestando a autoridade do papa e dos concílios. Na época dos interrogatórios de Pedro João, a inquisição portuguesa não fazia distinção entre “seita de Calvino” e “seita de Lutero”: “dava tudo quase no mesmo na versão oficial (inquisitorial e tridentina) da Igreja de Roma” (VAINFAS, 2008VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. 384 p., p. 161). Tanto uma quanto outra seita era considerada “heresia contestatória da autoridade do papa, dos sacramentos e dos santos. Somente a partir de 1641 a inquisição portuguesa procuraria estabelecer sutis diferenças entre as duas ‘seitas’ para melhor combater o protestantismo” (VAINFAS, 2008, p. 161).

Em apenas um momento, os inquisidores usaram a expressão “religião nova dos ingleses”49 49 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 18. no processo de Pedro João. Esta definição é, contudo, tão vaga quanto “seita dos protestantes,” pois refere-se apenas à reforma religiosa inglesa deflagrada pelos Acts of Supremacy de Henrique VIII. Logo, não encontramos no processo de Pedro João uma declaração explícita da sua afiliação protestante. Caberá, portanto, ao autor destas linhas sondar a que igreja inglesa protestante Pedro João pertencia, tarefa que se torna possível a partir dos indícios que o próprio personagem histórico estudado nos legou em seus depoimentos e confissões - precisamente, aqueles realizados nos dias 2 e 3 de outubro de 1637, quando os inquisidores o questionaram sobre temas controversos entre católicos e protestantes. As questões envolveram quatro eixos temáticos: a autoridade papal, os sacramentos, os santos e a trindade e a noção de purgatório. Especificamente nas respostas dadas por Pedro João a respeito dos sacramentos é que encontramos as pistas mais importantes para conjeturar qual era a sua afiliação protestante, sem, com isso, afirmar uma pretensa ortodoxia.

Levado à presença dos inquisidores, em 23 de setembro de 1637, Pedro João confessou que, na Inglaterra, lhe ensinaram a não crer nos sete sacramentos, mas, estrategicamente, procurando demonstrar conformidade com a visão católica, emendou que entendia que o sacramento da confissão consistia em “contar ao padre todos os males que tinha feito” e que “era bom para sua alma.” Na terceira vez que esteve frente a frente com os inquisidores, voltou atrás neste assunto, afirmando que “pela confissão entendia que se não perdoavam pecados.” Esta imprecisão reflete uma mente indecisa, entrecortada por duas confissões cristãs que ele, como homem da diáspora africana, viu-se na contingência de abraçar em diferentes momentos da sua vida. Pedro João estava, certamente, ciente das controvérsias entre católicos e protestantes sobre a confissão auricular, reafirmada e aperfeiçoada pela Igreja da Contrarreforma e condenada pelos protestantes, mas, indeciso nesta matéria de fé, titubeou diante dos inquisidores.

Questionado duas vezes sobre o tema da presença de Cristo na Ceia, Pedro João deu, uma vez mais, respostas desencontradas. Na sua primeira confissão, afirmou que “na hóstia que comungara estava verdadeiramente o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo”, mas voltou atrás no seu último interrogatório, afirmando que “na Eucaristia não está real e verdadeiramente o corpo de Cristo”.50 50 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls.18-18v e 30. Nesta matéria, sua contradição reflete não apenas uma consciência indecisa frente as diferentes confissões cristãs às quais foi submetido, mas as próprias indefinições a respeito da Ceia entre os teólogos reformados. Ao dizer que “na hóstia que comungara estava verdadeiramente o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo,” Pedro João poderia filiar-se tanto à concepção católica (transubstanciação) quanto à luterana (consubstanciação), embora esta confissão fosse, na Inglaterra, menos recorrente que a calvinista. Ao negar a presença de Cristo na Ceia, poderia filiar-se a uma concepção calvinista (ainda que mal compreendida) e, mais provavelmente, à zwingliana. Pedro João sabia que a presença real de Cristo na Eucaristia era defendida pela Igreja Católica, mas não podemos afirmar que nosso personagem tinha consciência da concepção luterana, nem de que ambas (a católica e a luterana) eram recusadas integralmente pelos zwinglianos.

A concepção calvinista dos sacramentos aproximava-se da luterana e distanciava-se, ao mesmo tempo, da católica e da zwingliana. Opunha-se à concepção católica dos sacramentos porque Calvino não entendia que o batismo e a penitência nos justificam perante Deus, a ponto de capacitar-nos por si só como merecedores da salvação. Distancia-se também da concepção zwingliana porque Calvino não acreditava que os sacramentos eram simples cerimônias que comemoravam passagens bíblicas. Para Calvino, os sacramentos eram “meios de graça”, um complemento à palavra de Deus escrita nos Evangelhos,51 51 A primeira pergunta da seção sobre Sacramentos do “Catecismo de Genebra” é se existem outros meios, além da palavra, para que Deus se comunique conosco. A resposta é: “Ele acrescenta os sacramentos à pregação de sua Palavra” (CALVIN, 1934, p. 110). consistindo a sua prática em uma forma dos eleitos da “igreja invisível” confirmarem a sua fé em Cristo.52 52 Em sua obra magna, Instituição Cristã, Calvino define sacramento como “o sinal visível de uma coisa sagrada” ou “a forma visível de uma graça invisível” (CALVINO, 2002, p. 19).

Informações mais detalhadas sobre a (des)crença de nosso personagem nos sacramentos católicos são fornecidas no seu último interrogatório, ocorrido no dia 3 de outubro de 1637. Questionado se quando morava na Inglaterra acreditava nos sacramentos e em especial nos da Confissão e Eucaristia, Pedro João respondeu que, quando se converteu ao protestantismo, passou a crer “nos sacramentos de Batismo e Matrimônio, mas não na Confissão nem no santíssimo sacramento da Eucaristia”.53 53 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 29v-30.

A contestação da confissão auricular é comum ao luteranismo e ao calvinismo. Tanto Lutero quanto Calvino duvidavam do poder que os sacerdotes tinham de absolver os pecados. Somente Deus poderia fazê-lo, desde que houvesse contrição interna e perpétua do fiel. O sacramento católico da penitência, em que o sacerdote confessor possui o poder de absolver o fiel confitente do fogo do inferno, era visto pelos protestantes como “mágico” e, até mesmo, “diabólico” (apudDELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 132). Apenas o arrependimento sincero e a fé verdadeira em Cristo eram passíveis da misericórdia de Deus. A teoria da justificação pela fé, como salientou Jean Delumeau (1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. ), era o “fecho da abóboda” de todo o edifício protestante: não são as obras que salvam, mas a fé e a contrição verdadeiras. Cabia ao fiel confessar-se sempre em pensamento e viver em perpétua penitência (contrição permanente) para alcançar a misericórdia divina, afinal a devotio moderna era essencialmente individual. Até aqui as diferentes confissões protestantes estavam em conformidade. Esta discussão, portanto, nada informa sobre o tipo de protestantismo abraçado por Pedro João.

É no tema da Ceia que as divisões entre os próprios protestantes se tornaram mais evidentes. Todos concordavam que o sacramento da eucaristia da Igreja Católica era “mágico”, não sendo o pão e o vinho transformados pelo sacerdote oficiante da missa em sangue e corpo de Cristo. Lutero substituiu esta doutrina católica (transubstanciação) pela doutrina da consubstanciação: o vinho e o pão continuavam sendo tais, mas a consagração fazia com que o corpo e o sangue de Cristo também estivessem presentes. Para Zwinglio, a Ceia apenas simbolizava uma passagem bíblica, não havendo presença real de Cristo. Calvino adotou o ponto de vista mais complexo sobre o assunto: ao mesmo tempo em que rejeitava a presença real de Cristo na Ceia (pois este estava ao lado de Deus e não poderia se materializar entre nós), rejeitava também a concepção zwingliana que a reduzia à mera simbologia (cerimônia comemorativa). O “cristocentrismo” de Calvino o levava a pensar em uma comunhão real, mas não em uma presença. A “substância” de Cristo era comungada na Ceia, embora não houvesse transformação mágica de vinho e pão em sangue e corpo de Cristo. Como sintetizou Delumeau (1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 134): “trata-se (...) de um compromisso entre o objetivismo dos católicos e dos luteranos e o simbolismo dos zwinglianos”.

O fiel recebia, assim, realmente a “substância” do Salvador, mas este permanecia no céu. Calvino, um vigoroso defensor do dogma da Trindade, acreditava que Cristo poderia descer até nós pela secreta operação de seu espírito (CALVINO, 1959CALVINO, Juan. Tratados breves: la santa cena (1541). Buenos Aires: La Aurora, 1959.). A concepção calvinista da Ceia aproximava-se, portanto, mais da luterana do que da zwingliana, mas após a morte de Calvino, os suíços rejeitavam a sua concepção da Ceia e se voltaram à doutrina de Zwinglio. Tendo em vista que muitos refugiados ingleses durante a época mariana se estabeleceram na Suíça, pode ser que Pedro João tenha sido instruído por puritanos formados pela “Reforma zwinglio-calvinista, chamada pela História, para simplificar, muito simplesmente calvinista” (DELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 135). A afirmação de Pedro João, feita em seu último interrogatório, de que, na Inglaterra, lhe ensinaram a descrer na presença real de Cristo na Eucaristia é um forte indício de que seu amo e sua esposa eram puritanos - educados no calvinismo-zwinglianismo - que pretendiam expurgar da Igreja anglicana os seus traços cerimoniais romanos, tal como apontamos na seção anterior.

Poder-se-ia questionar o leitor se o nosso personagem não seria um batista. A resposta é negativa. Como já dissemos, Pedro João acreditava no sacramento do batismo. Este dado afasta qualquer possibilidade de ele ser anabatista e mesmo batista, pois estes também defendiam o batismo apenas na idade adulta. Calvino era um defensor do batismo das crianças. Como profundo defensor da autoridade da Bíblia, e não da tradição, não ancorou a defesa do batismo das crianças no costume. Foi encontrar esta defesa nos Evangelhos, precisamente na passagem em que Jesus teria dito: “Deixai vir a mim os pequeninos” (Mateus 19:14). Neste sentido, Calvino discordava da defesa que Zwinglio fazia da supressão “daquilo que no batismo é fundamental,” a saber, “a promessa de que todos os que crerem e forem batizados serão salvos”. Embora fosse um “rito exterior,” Calvino concorda com os católicos que o batismo veste no fiel “a libré” de Cristo: “O batismo nos foi dado por Deus, primeiramente para servir à nossa fé com Ele, secundariamente para servir de nosso reconhecimento perante os homens” (apudDELUMEAU, 1989DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. , p. 132). O batismo era uma forma de reforçar a aliança de Cristo com os homens, sobretudo, os predestinados à salvação. Deixar de batizar os filhos seria “uma ingratidão” e um “não reconhecimento da misericórdia de Deus para conosco” (apud DELUMEAU, 1989, p. 133), afirmou Calvino. Os pais cristãos não poderiam, assim, negligenciar a instrução dos filhos no temor e na disciplina da lei de Cristo e no conhecimento do Evangelho.

Qual era, então, o protestantismo de Pedro João? Acreditamos ter sido ele educado por puritanos, como na Inglaterra se chamavam os calvinistas-zwinglianos críticos aos traços católicos remanescentes na Igreja anglicana. Suas confissões e respostas às inquirições do Tribunal do Santo Ofício apontam - não sem contradições e reticências - para um puritanismo calvinista-zwingliano em se tratando das concepções sacramentais: aproximava-se, por um lado, de Zwinglio em seu entendimento sobre a Ceia, a qual não incluiu entre os sacramentos mantidos pela sua igreja; e, por outro, de Calvino em sua adesão ao batismo das crianças - o que, como assinalamos, afasta a hipótese de Pedro João ser um batista ou anabatista. Fato curioso é o de que nosso personagem arrolou o Matrimônio como um dos sacramentos da sua igreja protestante - o que, porém, como conjeturamos, pode se tratar de uma estratégia do réu para reafirmar a validade (sacralidade) do seu casamento com Joana.

Não podemos, porém, desconsiderar as respostas antitéticas dadas por Pedro João em seus interrogatórios inquisitoriais. Elas resultaram da desencontrada evangelização protestante - puritana no privado, e anglicana no público - a que ele foi submetido na Inglaterra. Das prédicas anglicanas teria advindo o assinalado “semitom católico” do seu protestantismo, ainda que este também possa ser fruto de reminiscências do catolicismo olindense. Pedro João era um homem atravessado por essas contradições em matéria de fé: uma vez em Millbrook/Plymouth, convertido à religião protestante por puritanos, não rechaçou, porém, completamente o catolicismo no qual viveu até os 16 anos e que encontrava, ainda, algumas sobrevivências espectrais na igreja anglicana.

Epílogo: Pedro João no auto de fé e no Colégio de Santo Antão

Em 3 de outubro de 1637, Pedro João foi condenado a vestir o sambenito e sair no auto de fé. Com efeito, nosso personagem saiu no fatídico dia 11 de outubro de 1637 naquele que seria o primeiro auto de fé celebrado na Ribeira Velha de Lisboa (MELLO, 1637MELLO, Luis de. Sermoens, que pregou o Doutor Dom Luiz de Mello. Lisboa: por Jorge Rodrigues, 1637.).

Após marchar enfileirado aos demais condenados na procissão do auto de fé, Pedro João ouviu o inquisidor, D. Luís de Melo, recitar um sermão com diversas frases em latim, retiradas dos Evangelhos e atribuídas a diversos santos, salpicadas com longos e funestos comentários contra heresias, dando o tom da sombria atmosfera teatral que tomou conta da Ribeira Velha de Lisboa. A intenção era, ao mesmo tempo, censurar publicamente os “hereges” penitenciados e relaxados (condenados à morte), impingindo-lhes terríveis castigos, e alertar ameaçadora e exemplarmente todos os que assistiam ao triste espetáculo. Era, de fato, o que Bartolomé Bennassar (2008BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisizione o la pedagogia della paura. In: BENNASSAR, Bartolomé (org.). Storia dell’Inquisizione Spagnola - fatti e misfatti dela “Suprema” da XV al XIX secolo. Milano: BUR, 2008. p. 95-126.) chamou de “pedagogia do medo.”

No auto de fé de 11 de outubro de 1637, junto com Pedro João, saíram 76 pessoas: 35 homens e 39 mulheres. Como Pedro João, 33 homens foram penitenciados, sendo dois deles “relaxados” (queimados) em carne e dois “em estátua”, ou seja, não se apresentaram para o processo e foram julgados e condenados à revelia pelo Tribunal do Santo Ofício. Entre as mulheres, foram 36 penitenciadas e três relaxadas em carne (MOREIRA; MENDONÇA, 1980MOREIRA, António Joaquim; MENDONÇA, José Lourenço. História dos principais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1980.). Um dos homens relaxados, João de Sequeira, da Vila de Torres Novas, foi queimado vivo, pois era um “herege e apóstata, convicto, negativo e pertinaz” (PEREIRA, 1995PEREIRA, Isaías da Rosa. A propósito da restauração do Tribunal do Santo Ofício em 1681. Arquipélago História, Ponta Delgada, v. 1, n. 1, p. 225-245, 1995., p. 228). Embora não saibamos quais eram as heresias dos condenados neste auto de fé, a enfática reprovação do judaísmo pelo inquisidor em seu sermão sugere que eles eram, majoritariamente, cristãos novos recalcitrantes, mas não apenas. Outros penitenciados “pardos”, como o preto Pedro João, foram sentenciados como “hereges calvinistas e luteranos” (MELLO, 1637MELLO, Luis de. Sermoens, que pregou o Doutor Dom Luiz de Mello. Lisboa: por Jorge Rodrigues, 1637., fls. 13, v-14).

Após ter se reconciliado com a Igreja Católica no auto de fé de 11 de outubro de 1637, Pedro João foi enviado ao Colégio de Santo Antão, em Lisboa, para receber instrução religiosa dos padres da Companhia de Jesus. Em 6 de novembro de 1637 - ou seja, 26 dias após ter saído no auto de fé -, os jesuítas do Colégio informaram os inquisidores que Pedro João “teve no princípio alguma pertinácia, não querendo comer, nem responder, por se lhe não haver dado lugar a se embarcar logo aquele Reino [da Inglaterra], onde é casado”.54 54 Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 43. Este comportamento de Pedro João demonstra claramente o seu falso arrependimento, um artifício usado por ele para abreviar a sua estadia nos cárceres da penitência. A continuidade das instruções religiosas mesmo após a saída no auto de fé, teria impacientado nosso personagem, que desejava embarcar o quanto antes à Inglaterra para reencontrar a esposa e o filho em Millbrook.

“Pescado” no Atlântico por protestantes ingleses, nosso personagem foi, efetivamente, “fisgado” pela religião reformada em virtude do seu enlace matrimonial. Mas, transitando por diferentes margens do Atlântico, não ancorou sua consciência religiosa na ortodoxia reclamada por uma era de crescente confessionalização.

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  • 1
    “Os cárceres da penitência, segundo o Regimento de 1640, eram os que abrigavam os réus penitenciados pelo Santo Ofício para receber instrução e sacramentos antes de cumprirem suas sentenças” (VAINFAS, 2008VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. 384 p., p. 11-12).
  • 2
    Esta expressão aparece em alguns compromissos (regimentos internos) de irmandades leigas fundadas por negros nascidos na América portuguesa. Vide, por exemplo, o Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Estatutos dos confrades de N. S. das Mercês da Redenção dos Cativos de sua capela do Ouro da Vila Real de Sabará (1778), Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, livro 4, fls. 26v.
  • 3
    “Ladino” era um sinônimo de “esperto” ou “capaz”, consistindo em um termo empregado para designar o negro que conhecia a língua e os costumes da sociedade portuguesa. Aplicava-se, sobretudo, aos crioulos (ou seja, àqueles negros nascidos nas próprias sociedades em que viviam como escravos), mas também poderia ser usado para se referir aos africanos que já vinham “aportuguesados” da África (como é o caso de muitos angolanos e congoleses) ou que aprenderam rapidamente a língua e os costumes da sociedade portuguesa em que passaram a viver. Em oposição ao “negro ladino”, o “negro boçal” era tido por “ignorante” porque desconhecia a língua e os costumes da sociedade portuguesa.
  • 4
    Temos, porém, dados mais concisos sobre a população de Olinda apenas para o ano de 1701, quando ocorria uma diminuição da população da então cidade (elevada a este título em 1676) frente à de Recife. Em 1693, o Recife “já contava com 2 mil fogos, enquanto que Olinda teria, mesmo contando em conjunto as freguesias de Maranguape e São Pedro Mártir, 980 fogos em 1701. Contando-se somente a vila, 660 fogos para o mesmo ano” (DANTAS, 2018DANTAS, Aledson Manoel Silva. Uma vila e seu povo: relações hierárquicas e poder local (Olinda, século XVII). 2018. 118 f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Ciências e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018., p. 43-44).
  • 5
    Após os Acts of Supremacy (1534) - com exceção da restauração católica promovida por Maria I - os católicos ficaram sujeitos a várias formas de perseguição, como veremos adiante.
  • 6
    Apesar de separadas pelo rio Tamar, havia trânsito cultural e humano entre as vilas de Plymouth (Condado de Devon) e Millbrook (Cornualha). A este respeito nos deixou testemunho o pregador da Cornualha Charles Fitz-Geffry, que, em 1636, referiu-se aos habitantes do Condado de Devon e da Cornualha “não apenas como compatriotas, mas como ‘parentes próximos’” (ESRA, 2013ESRA, Jo Ann. The Shaping of ‘West Barbary’: the re/construction of identity and West Country Barbary Captivity. 2013. 591 f. PhD thesis (Doctoral in History) - Department of History, University of Exeter, Exeter, 2013. , p. 28).
  • 7
    O açúcar brasileiro pilhado no Atlântico era processado na Sugar House, uma “indústria” açucareira plymouthiana localizada em Coxside e pertencente a Samuel Buttall.
  • 8
    A explosão demográfica inglesa, ocorrida entre 1500 e 1650, elevou a população de três para 4 milhões e meio (THIRSK, 1967THIRSK, Joan (ed.). The agrarian history of England and Wales. Volume IV: 1500-1640. Cambridge: Cambridge University Press, 1967. 919 p., p. 531).
  • 9
    “Moço ou grumete” é o tripulante “cuja praça medeia entre os marinheiros e os pajens, e que sobe às gáveas e faz outros misteres” (FREITAS, 1855FREITAS, Antonio Gregório de. Novo dicionário de marinha de guerra e mercante. Lisboa: Imprensa Silviana, 1855., p. 209). O termo “moço”, em relação aos escravos, se referia menos a idade e mais ao grau de aprendizado do ofício (RODRIGUES, 1999RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiro e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 15-53, 1999. , p 24).
  • 10
    Divindades “pagãs” europeias também eram invocadas em alto-mar. “Netuno era a mais proeminente de todas as figuras do panteão marítimo, produto da combinação de referências cristãs e pré-cristãs, da mitologia clássica, dos relatos bíblicos e das tradições inventadas pelos homens do mar.” (RODRIGUES, 1999RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiro e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (sécs. XVIII e XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 15-53, 1999. , p. 44; REDIKER, 1989REDIKER, Marcus. Between the Devil and the Deep Blue Sea: Merchant Seamen, Pirates, and the Anglo-American Maritime World (1700-1750). Nova York: Cambridge University Press, 1989. 340 p., p. 184 e 187).
  • 11
    A abordagem tradicional da Contrarreforma (H. O. Evenett, A. G. Dickens e B. J. Kidd) enfatiza medidas institucionais na curta duração: a aprovação dos estatutos da Companhia de Jesus, a fundação da inquisição italiana, o Concílio de Trento, a aprovação do Index e os “papas reformistas”, raramente transcendendo cronologicamente o século XVI (MULLETT, 1985MULLETT, Michael. A Contra-Reforma e a Reforma Católica nos princípios da Idade Moderna Europeia. Viseu: Tipografia Guerra, 1985., p. 8). Nos anos 1970, Jean Delumeau (1973DELUMEAU, Jean. El catolicismo de Lutero a Voltaire. Barcelona: Editorial Labor, 1973.) e John Bossy (1974, p. 51-70) propuseram outra abordagem para o estudo da Contrarreforma, expandindo em longa duração os seus limites cronológicos para contemplar processos históricos ocorridos durante a Baixa Idade Média e os séculos XVII-XVIII. Delumeau e Bossy atentaram, assim, por um lado, para os antecedentes da Contrarreforma e, por outro, para a sua implementação nos dois séculos seguintes ao do Concílio de Trento. O foco nas medidas institucionais da Igreja romana foi substituído pelo problema do vivenciamento - ou não - do catolicismo pelo “povo vulgar”.
  • 12
    O catolicismo se afirmou durante a Idade Média, sobrepondo-se a antigas festas “pagãs” e explorando os espaços de correlação de mitologias pré-católicas com as hagiografias de santos da Igreja. A noite de São João, por exemplo, correspondia ao solstício de verão, e era “uma importante festa organizada em torno do tema da renovação” (BURKE, 2010BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 472 p., p. 334). No Portugal quinhentista, o cristianismo ainda “emprestava nomes de santos e de festas católicas a forças da natureza e a consagrações pagãs” (OLIVEIRA MARQUES, 1981OLIVEIRA MARQUES, António Henrique de. A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1981., p. 170).
  • 13
    Prova disso é a criação, em 1622, da Congregação para a Propagação da Fé.
  • 14
    Sobre o distanciamento do catolicismo na América portuguesa em relação ao modelo tridentino, Gilberto Freyre já havia apontado a proeminência de um catolicismo familiar frente ao oficial e, Eduardo Hoornaert, a perpetuação da espiritualidade medieval portuguesa por meio das irmandades leigas. Cf. este debate em Laura de Mello e Souza (1986SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. 396 p., p. 88).
  • 15
    Sérgio da Mata (1997MATA, Sérgio da. Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial. Revista de História, São Paulo, n. 136, p. 41-57, jan./jun. 1997., p; 41-57) apontou os equívocos inerentes à tese de “exteriorismo” do catolicismo barroco, entendido como uma afeição antes à imagem que à coisa figurada, ao aspecto externo que ao espiritual.
  • 16
    Embora Eduardo Hoornaert (1982, p. 88) aponte 1688 como sendo o ano de constituição da Irmandade do Rosário de Olinda, certamente esta é a data de institucionalização da associação, que já existia como mera devoção, sem compromisso aprovado por tribunais régios, desde o século XVI. Antonia Aparecida Quintão (2005QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá Vem o Meu Parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco. São Paulo: Annablume, 2005. 228 p., p. 76-77) documenta cerimônias realizadas em Olinda por negros em honra da Senhora do Rosário ainda na década de 1550 (isto é, desde o estabelecimento das primeiras igrejas na vila).
  • 17
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 18v.
  • 18
    Não obstante, como argumentou Bossy (1973BOSSY, John. The english catholic community, 1603-1625. In: SMITH, Alan (ed.). The Reign of James VI & I. London, 1973. p. 91-105., p. 91-105), houve um aumento constante na não-conformidade de 1570 a 1640. Em 1603, o número de recusantes reais (entre os quais não se encontravam apenas os católicos convictos) chegava a 30 ou 40 mil, aumentando para 60 mil em 1641.
  • 19
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 17.
  • 20
    Idem, fls. 17v.
  • 21
    Idem.
  • 22
    Idem.
  • 23
    Idem, fls. 25v.
  • 24
    Idem, fls. 25. Antes de se confessar, Pedro João foi interrogado por quatro padres ingleses e deu algumas respostas que vão de encontro às suas confissões. Para o padre Duarte Daniel, sacerdote mestre em teologia e residente no Colégio Inglês de Lisboa, disse que não sabia se Cristo era filho de Maria, nem se era homem ou Deus. Ao mesmo padre afirmou que nunca havia comungado. Idem, fls. 14.
  • 25
    Uma vez passado à “nova fé dos ingleses”, Pedro João desacreditou o sacramento da confirmação. Calvino (2002CALVINO, João. As institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. 1632 p., p. 56-57) considerava a crisma católica uma desonra ao batismo, um dos dois sacramentos mantidos pelos calvinistas.
  • 26
    A frequência à missa na época moderna “não deve ser interpretada imediatamente como frequência à comunhão” (CAMPOS, 2013CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as almas do purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. 248 p., p. 91). A comunhão frequente, sem o devido preparo e discernimento (i.e., a confissão sacramental sem a autorização do superior), era vista como nociva.
  • 27
    Ao invés de relaxamento, este escrúpulo em comungar poderia decorrer de um excesso de zelo religioso de fiéis que não se julgavam suficientemente purificados para receberem o corpo sacramentado de Cristo. Essa hipótese foi lançada por Sérgio da Mata (1997MATA, Sérgio da. Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial. Revista de História, São Paulo, n. 136, p. 41-57, jan./jun. 1997., p. 50).
  • 28
    “Esta igreja, que já existia em 1630, foi citada em 1645, quando da ocasião de uma procissão de negros, instituída por Henrique Dias, no primeiro domingo de outubro para comemorar a festa da Virgem do Rosário.” (BAZIN, 1983BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983., p. 129).
  • 29
    A mentalidade puritana se caracterizava por uma atitude de colocar a “verdade antes das questões de tradição e autoridade, e uma insistência na liberdade de servir a Deus da maneira como cada qual julga certa” (LLOYD-JONES, 1993LLOYD-JONES, Martyn. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São Paulo: Editora PES, 1993., p. 250).
  • 30
    Lloyd-Jones (1993, p. 248) rejeita a tese de Basil Hall (1965HALL, Basil. Puritanism: the problem of definition. Studies in Chuch History, v. 56, p. 283-296, 1965.), segundo a qual a ideia e o conceito anglicano do puritanismo começaram com Richard Greenham e Richard Rogers no fim da década de 1570 e início da de 1580, sendo continuado por William Perskings (LLOYD-JONES, 1993LLOYD-JONES, Martyn. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São Paulo: Editora PES, 1993., p. 248).
  • 31
    Lloyd-Jones (1993, p. 249) se aproxima de Knappen (1939KNAPPEN, Marshall Mason. Tudor puritanism: a chapter in the history of idealism. Chicago: University of Chicago Press, 1939. 555 p.), que, em Tudor puritanism, afirmou que o puritanismo “começou a se manifestar em William Tyndale, e nos idos de 1524”.
  • 32
    Os puritanos defendiam que, nos serviços da Igreja, deveria ser usada a toga de Genebra, e não a sobrepeliz.
  • 33
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 7.
  • 34
    Poder-se-ia dizer que este argumento foi urdido para amenizar a sua “culpa”, afinal ele punha-se passivamente diante da sua conversão ao imputa-la ao seu senhor e ao reino em que se encontrava. Porém, como estratégia de defesa, a afirmação causaria - como, de fato, causou - justamente o efeito contrário: os inquisidores acabaram por concluir que, se voltasse à Inglaterra, retornaria à “seita dos protestantes”, o que embargou sobremaneira a sua soltura.
  • 35
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 18.
  • 36
    Idem, fls. 26. Como observou Rui Luis Rodrigues: “Nos territórios calvinistas, (...) a disciplina era mantida e administrada pelo consistório, mas sustentada por microrredes que passavam pelo interior dos relacionamentos cotidianos” (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Rui Luis. Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da história do Ocidente na primeira modernidade (1530-1650). Revista Tempo, Niterói, v. 23, n. 1, p. 1-21, jan./abr. 2017., p. 15-16).
  • 37
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Avulsos, Santo Ofício. Denúncia contra Guilherme Her, inglês, por induzir a um seu escravo a seita dos protestantes.
  • 38
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 29.
  • 39
    Estes eram, em sua maioria, anglicanos, o que depreendemos do já referido pedido de divisão, feito pelos puritanos, da única paróquia de Plymouth.
  • 40
    A Assembleia de Westminster (1643-1649) foi um concílio convocado para reestruturar a Igreja da Inglaterra, resultando na produção da Confissão de fé de Westminster e de dois catecismos (o Catecismo maior e o Breve catecismo) (LINGLE, 1960LINGLE, Walter L. Presbyterians: their history and beliefs. Richmond: John Knox Press, 1960. 112 p.).
  • 41
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 26.
  • 42
    Idem.
  • 43
    Idem, fls. 26v.
  • 44
    Idem, fls. 29v.
  • 45
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Avulsos, Santo Ofício. Denúncia contra Guilherme Her, inglês, por induzir a um seu escravo a seita dos protestantes.
  • 46
    Ao ser questionado pelos inquisidores, no interrogatório de 3 de outubro de 1637, se profanou imagens de Cristo, da Virgem e dos mais santos, Pedro João disse que nunca o fizera. Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 29v-30.
  • 47
    Idem, fls. 29v.
  • 48
    Na linguagem inquisitorial, “seita” era um termo abrangente para designar todos os “hereges cismáticos” ou sectários, como eram os arrianos, maniqueus, nestorianos, luteranos e calvinistas (BLUTEAU, 1712-1728, p. 557, t. 7BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728.). Referia-se, assim, aos “hereges” que rompiam a unidade da Igreja católica, contestando a autoridade do papa e dos concílios.
  • 49
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 18.
  • 50
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls.18-18v e 30.
  • 51
    A primeira pergunta da seção sobre Sacramentos do “Catecismo de Genebra” é se existem outros meios, além da palavra, para que Deus se comunique conosco. A resposta é: “Ele acrescenta os sacramentos à pregação de sua Palavra” (CALVIN, 1934CALVIN, Jean. Le Catéchisme de Genève. Paris: Je Sers, 1934., p. 110).
  • 52
    Em sua obra magna, Instituição Cristã, Calvino define sacramento como “o sinal visível de uma coisa sagrada” ou “a forma visível de uma graça invisível” (CALVINO, 2002CALVINO, João. As institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. 1632 p., p. 19).
  • 53
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 29v-30.
  • 54
    Arquivo Nacional da Torre Do Tombo (ANTT). Processo de Pedro João, Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Proc. 2439, fls. 43.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2021
  • Aceito
    07 Maio 2021
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