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Uma vida chinesa” em sala de aula: china contemporânea e história em quadrinhos

“A Chinese life” in classroom: Contemporary China in comics

Resumo

O presente artigo pretende apresentar meios de problematizar questões sobre a China contemporânea em sala de aula, tanto do ensino médio quanto no ensino superior de História. Para isso, utilizaremos a história em quadrinhos de Phillipe Ôtié e Li Kunwu intitulada Uma vida chinesa. Nesta história em quadrinhos são apresentados momentos importantes da vida contemporânea chinesa, de forma autobiográfica. Assim, questões relativas à Mao Zedong (Mao Tsé-Tung) e seu governo serão apresentadas de forma a problematizar temas para o ensino de história. Também serão levantadas questões sobre a Revolução Cultural Proletária, que foi muito bem explorada pelos autores da história em quadrinhos. Assim, este trabalho busca se enquadrar na Educomunicação, ao mesmo tempo em que se integra na busca historiográfica por novas e instigantes fontes para a pesquisa e para a docência. Nosso artigo será composto de uma introdução, na qual apresentamos nosso tema e escopo; seguido pelo contexto histórico, no qual discutimos pontos relevantes daquilo que encontraremos posteriormente na história em quadrinhos. Em seguida, faremos uma apresentação formal da obra e sua problematização para o uso em sala de aula, indicando possíveis caminhos e direções para professores interessados. Ao fim, apresentamos nossas conclusões.

Palavras-Chave:
História; China; história em quadrinhos; sala de aula

Abstract

This article aims to suggest ways in which questions about contemporary China can be problematized in the classroom, both in high school and in college history courses. To do so, we will use the comic by Phillipe Ôtié and Li Kunwu entitled A chinese life. In this comic, important moments of contemporary Chinese life are depicted in an autobiographical way. Thus, issues related to Mao Zedong (Mao Tse-Tung) and its government are presented to problematize topics for teaching history. It also raises questions about the Proletarian Cultural Revolution that have been very well explored by the comic writers. Thus, this work intends to fit into Educommunication, but at the same time into the historiographical search for new and exciting sources for research and teaching. Our paper will consist of an introduction in which we present our topic and scope; this will be followed by the historical context in which we discuss relevant points of what we will later find in the comic. Then we will make a formal presentation of the work and its problematization for use in the classroom, pointing out possible ways and directions for interested teachers. Finally, we will present our conclusions.

Keywords:
History; China; comics; classroom

Introdução

O presente artigo pretende discutir uma forma de apresentar o período conhecido como Revolução Cultural ou Grande Revolução Cultural Proletária (无产阶级文化大革命, Wuchan Jieji Wenhua Dageming), que se deu na China a partir de 1966, para os estudantes do ensino médio e universitário, uma vez que este conteúdo é contumaz em diversos vestibulares de universidades brasileiras, é tema do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), e também está presente nos cursos de História nas disciplinas relativas a temas contemporâneos e asiáticos. Para tanto, utilizaremos a história em quadrinhos Uma vida chinesa, escrita por Phillipe Ôtié e Li Kunwu e lançada no Brasil em 2015.

É importante demarcar que a história é contada em primeira pessoa pelo escritor e artista Li Kunwu, então as impressões que se encontram na história são pessoais e, como tal, imprecisas, e requerem uma interpretação específica. Por esse motivo, o que pretendemos fazer aqui é utilizar o relato como fonte historiográfica, ou seja, como promotora de problematizações. Ao mesmo tempo, tentaremos criar uma ponte entre a história chinesa, o professor de História e o aluno. Além disso, algumas questões relativas às relações de poder e a consolidação de estratégias governamentais autoritárias também serão aqui discutidas e podem fazer parte de planos de aula transversais com professores de sociologia ou filosofia do ensino médio.

Assim, este trabalho pretende se encaixar naquilo que Orozco (2014OROZCO GÓMEZ, Guilhermo. Educomunicação: Recepção midiática, aprendizagens e cidadania. São Paulo: Paulinas, 2014.) chama de Educomunicação, ou seja, uma forma de pensar os fenômenos da aprendizagem e do ensino a partir de outros elementos que concorrem com a educação dita formal no cotidiano dos alunos. Neste caso, estamos propondo trazer para a sala de aula uma história em quadrinhos repleta de impressões e informações para que, como coloca Santos (2016SANTOS, R. O. D. Fundamentos da pesquisa histórica. Curitiba: Intersaberes, 2016.), possamos instigar os alunos e problematizar questões relevantes. Esta pesquisa pretende sugerir algumas possibilidades nesse sentido, apresentando novas formas de abordar o conteúdo já lecionado, encaixando-o na pesquisa-ação, alternada com a pesquisa bibliográfica e histórica, como explicam Moreira e Caleffe (2008MOREIRA, H.; CALEFFE, L. G. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.).

Contexto histórico

O longo período em que Uma vida chinesa decorre é difícil de ser abordado e compreendido. É uma época convulsionada na história chinesa, em que movimentos políticos e sociais alternam-se com grande rapidez, mobilizando constantemente o imaginário popular. Talvez por essa razão, Li Kunwu não pretendeu traçar uma história da China em seus detalhes cronológicos, mas sim, única e exclusivamente a partir de sua percepção. Inserido em um contexto intenso, Li recorre aos arquivos de sua memória para recompor uma densa e sofrida narrativa, composta por fragmentos e impressões de cada época abordada nos três volumes da série.

Todavia, o leitor que não dispõe de conhecimentos básicos da história chinesa pode sentir-se perdido em meio à escalada contínua de acontecimentos. Assim, pois, é necessário estruturar um quadro das passagens fundamentais da história chinesa contemporânea que são contempladas em Uma vida chinesa.

O ano de 1949 é o ponto de partida. Após uma longa e desgastante guerra civil, a China está dividida; o continente tornou-se, em 1º de outubro, a República Popular da China, de orientação comunista. Liderados por Mao Zedong (毛泽东, Mao Tsé-Tung) - figura que será onipresente na narrativa de Li - os chineses embarcam em uma nova experiência política e social. O que restou da anterior República da China, comandada por Jiang Jieshi (蒋介石, Chiang Kai-shek), migrou para Taiwan, e tentava dar continuidade a construção de uma China capitalista. Vamos nos ater aqui principalmente à China continental, palco da história que analisaremos.

A instalação do comunismo na China foi um processo longo e doloroso. Apesar da grande ênfase dada aos estudos doutrinários por parte de seus integrantes, o partido tinha uma grande dificuldade em alcançar uma vasta população, grande parte dela analfabeta ou com pouca educação. Desde antes da tomada do poder, congressos como o de Yenan, em 1942, (延安文艺座谈会, Yenan Wan Yì Zuatanhuì) chamavam atenção para a necessidade de priorizar o trabalho com arte e educação (ZEDONG, 1942ZEDONG, M. Talks at the Yenan Forum on Literature and Art. Marxisms, maio 1942. Disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/mao/selected-works/volume-3/mswv3_08.htm . Acesso em: 10 maio 2021.
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). Mesmo assim, a instalação da República Comunista, aos olhos do grande público, passou mais como uma transição de poder entre facções diferentes. O público em geral não tinha uma ideia mais ampla do que fosse o sistema comunista. Isso fez com que o governo trabalhasse acentuadamente em políticas educacionais. Houve um crescimento sem precedentes nos níveis de alfabetização, mas também, de politização (CHEN, 1951CHEN, T. H.-E. Education and Propaganda in Communist China. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 277, p. 135-145, Setembro 1951.).

Alguns autores concordam em afirmar que nesse primeiro período as orientações ideológicas eram assimiladas como políticas públicas e legais, sem que necessariamente o público conseguisse compreender as mensagens de conteúdo comunista. Mao Tsé-Tung, porém, conseguiu captar os sentimentos do povo, galvanizando a atenção dos chineses para a sua personalidade carismática. Como foi estudado por Hannah Arendt (2012ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., parte III), regimes autoritários precisam acionar constantemente o povo, por meio de grandes campanhas públicas, para mantê-lo envolvido com a manutenção do sistema político. Mao parece ter assimilado perfeitamente esse princípio, envolvendo a China em um movimento atrás do outro - e muitas de suas campanhas aconteciam, às vezes, ao mesmo tempo. A população era conclamada a participar ativamente desses processos, o que proporcionou um importante e profundo impacto psicológico na sociedade. Muitos cidadãos se envolveram nessa reforma cultural, atuando diretamente - e de forma legalmente reconhecida - contra tudo que fosse “contrarrevolucionário”. Esse movimento provocou uma onda de perseguições, violências e conflitos por parte daqueles que se consideravam agentes do sistema. Para a revolução perseverar, era necessário eliminar todos os desvios e discordâncias.

Isso ficou personificado nas inúmeras campanhas consecutivas lançadas pelo Partido Comunista para combater os “males ideológicos” da sociedade. As primeiras delas foram “Contra os três” (三反, Sanfan, 1951) e “Contra os cinco” (五反, Wufan, 1952). A campanha “Contra os três” visava combater os três grandes males que afligiam a sociedade chinesa nascente: a corrupção (贪污, Tanwu), o conservadorismo (浪费, Langfei) e os burocratas (官僚主义, Guanliao zhuyi). Do mesmo modo, era preciso eliminar práticas próprias da sociedade burguesa, que contribuíam para dificultar a assimilação dos princípios comunistas. Assim, foi lançada, em 1952, a campanha “Contra os cinco”, que seriam: suborno (行贿, Xinghui), apropriação de bens públicos (盗骗国家财产, Daopian Guojia Caichan), evasão fiscal (偷税漏税, Toushui Loushui), fraude (偷工减料, Tougong Jianliao) e roubo de informações privilegiadas do Estado (盗窃国家经济情报, Daoqie Guojia Jingji Qingbao). Uma onda sem precedentes de perseguições e violência foi instaurada; as denúncias pululavam, as condenações multiplicaram-se, e um movimento de austeridade e pureza ideológica aparentemente havia se instaurado. Para o Partido, tornara-se fundamental eliminar os vestígios da sociedade antiga para estabelecer uma nova.

Esse clima de insegurança interna recebia o reforço de “ameaças externas”. Em 1950, a China se envolveu na Guerra da Coreia (1950-53), sacrificando milhares de jovens (Mao perdeu um de seus filhos nessa guerra, o que reforçou ainda mais seu carisma junto ao povo) e importantes recursos econômicos. Enquanto a guerra se desenrolava, os chineses invadiram também o Tibete (1951), requisitando o sacrifício do povo para essas duas grandes causas. Mesmo assim, o planejamento econômico estatal parecia obter bons resultados no início do governo. A produção rural aumentara, permitindo que a China não sofresse mais de carestia alimentar. Havia um amplo estímulo para reforçar a industrialização. Obviamente, após anos consecutivos de destruição promovidos pela invasão japonesa (1937-1945) e a guerra civil, a tendência era que os números da produção naturalmente subissem. No entanto, certo alívio foi sentido na vida econômica. Um quadro de aparente estabilidade parecia se formar.

Em 1956, Mao Zedong conclama o povo a uma nova movimentação pública: a “Campanha das Cem Flores” (百花运动, Baihua Yundong). Os intelectuais dos mais diversos grupos e origens foram convidados a opinar sobre a vida pública e governamental, exprimindo suas apreciações sobre o regime e sugerindo soluções. Um leve sopro de democratização parecia surgir no ar; mas rapidamente a intensidade da participação popular e o volume de críticas cresceram tanto que o Partido temeu perder o controle da situação, levando a uma nova onda de repressão. Em 1957 - ou seja, em menos de um ano - os críticos foram imediatamente identificados como antirrevolucionários, sendo presos e recebendo as mais diversas punições, desde a reeducação até a execução. Outra grande campanha foi lançada em seu lugar: a “Campanha contra os Direitistas” (反右派运动, Fanyun Dong Youpai), que tinha por objetivo manter vivas as ações de repressão contra os ditos antirrevolucionários (MACFARQUHAR, 1960MACFARQUHAR, R. The hundred flowers campaign and the Chinese intellectuals. New York: Praeger, 1960.).

A capacidade de Mao Zedong em mobilizar a população era notável; mas seu poder vinha diretamente dos quadros do Partido, interessados em manter o sistema político funcionando. Como dissemos antes, a concepção de participação popular no governo era uma ideia absolutamente nova, e muitos dos elementos da nova burocracia comunista eram provenientes da população mais pobre. Isso pode justificar tanto sua determinação política em atuar decisivamente junto à sociedade quanto, também, sua inexperiência em assuntos administrativos. Isso pode explicar, em linhas gerais, o fracasso que se desenharia no “Grande Salto para Frente”.

Mao estava convencido de que podia promover uma aceleração no desenvolvimento da economia chinesa por meio de um amplo programa de coletivização dos campos e fábricas. Esse projeto seria chamado de “Grande Salto para Frente” (大跃进, Da Yuejin), e teve início no ano seguinte, em 1958. Contando com apoio direto de seus quadros políticos para implantar e fiscalizar essas reformas, Mao conclamou o povo a efetuar uma “comunização” total de seus bens e de sua força de trabalho. Assim, milhares de famílias montaram fornos caseiros para derreter seus objetos de metal; florestas inteiras foram abatidas para gerar carvão; comunidades inteiras tinham que abandonar suas cozinhas e comer em refeitórios públicos; técnicas de plantio e irrigação intensivas foram desastradamente aplicadas aos campos, causando um verdadeiro desastre agrícola e ecológico; em 1959, Mao ainda ordenou que os pássaros (notadamente, os pardais) fossem caçados impiedosamente, pois se alimentavam dos grãos.

O resultado dessas políticas foi um desastre sem precedentes (DIKOTTER, 2011DIKOTTER, F. Mao's Great Famine: The History of China's Most Devastating Catastrophe, 1958-1962. London: Bloomsbury, 2011.). A China foi lançada em um período de três anos de fome e miséria intensas. Milhões de pessoas morreram de desnutrição, sendo os números finais objeto, até hoje, de conjecturas. Para piorar, em 1960 a China rompe, por motivos ideológicos e políticos, sua parceria tecnológica com a União Soviética, cortando praticamente a única fonte de auxílio externo ao país. Em 1961, quando finalmente a produção começou a retornar aos níveis de normalidade - mas sem as medidas excêntricas de antes -, o prestígio de Mao Zedong parecia seriamente abalado.

Por isso, era preciso mobilizar o povo novamente. A oportunidade veio com a guerra entre Índia e China em 1962, vencida pelos chineses. Apesar de se tratar de uma pouco relevante disputa de fronteira, ela foi tratada como uma grande vitória pelo Partido Comunista, que ganhou algum alento. Dois anos depois, a conquista da bomba atômica colocou a China em um seleto grupo mundial de potências, melhorando a autoestima dos chineses.

Mesmo assim, a figura de Mao estava enfraquecida dentro do Partido. Apesar de contar com o apoio dos companheiros da época de guerrilha, Mao tinha que enfrentar agora a oposição dos quadros técnicos do Partido - elementos com uma formação mais sólida em economia e política, que estavam dispostos a empreender reformas no país. Em 1966, Mao parecia estar prestes a ser afastado do poder. Um embate profundo cristalizava-se entre aqueles que propunham o desenvolvimento do país, dentro de uma visão pragmatista, e os seguidores da retórica Maoísta (SPENCE, 2011SPENCE, J. En busca de la China Moderna. Ciudad de México: Tusquets, 2011.; DIKOTTER, 2011DIKOTTER, F. Mao's Great Famine: The History of China's Most Devastating Catastrophe, 1958-1962. London: Bloomsbury, 2011.). Mao estava insatisfeito com a sua perda de protagonismo, e planejou iniciar uma nova e vasta campanha, com o auxílio de seus colaboradores, para reverte por completo a sua posição no jogo do poder. Era o projeto da “Revolução Cultural”, que marcaria profundamente o imaginário chinês.

A “Grande Revolução Cultural Proletária” (无产阶级文化大革命, Wuchan Jieji Wenhua Dageming) começou no mesmo ano de 1966, e conclamou o povo a um conjunto de ações contra o “revisionismo” que se instalara no comunismo chinês. Seu início teria se dado com uma série de eventos aparentemente banais, envolvendo críticas sobre materiais literários e artísticos (SPENCE, 2011SPENCE, J. En busca de la China Moderna. Ciudad de México: Tusquets, 2011., p.757-789). Todavia, o grupo de Mao viu nisso uma oportunidade para propagandear uma tentativa de desvio nos caminhos da Revolução - e operou aquilo que seria uma “revolução dentro da revolução” chinesa.

Para isso, Mao estimulou a publicação de “Dazibaos” (大字报), cartazes feitos à mão por populares e estudantes e afixados em lugares públicos para denunciar crimes e acusar pessoas. Cartas eram enviadas para os jornais e órgãos públicos com o mesmo efeito. De posse de todo esse material, o grupo de Mao pode agir. Para efetivar suas ações, formou-se a Guarda Vermelha, composta por jovens que receberiam uma formação paramilitar e politizada e que seriam responsáveis por perseguir e punir aqueles considerados subversivos. Esses jovens eram recrutados entre milhares de voluntários, que agiam livremente, invadindo cidades, fábricas, escolas, repartições e onde mais julgassem necessário. Estabeleciam tribunais temporários e julgavam as vítimas; em muitos casos, as punições mais simples - espancamentos, humilhações públicas, torturas - eram executadas pelos próprios; em outras, os alvos eram encaminhados aos órgãos competentes. Mao estimulou, também, a destruição de milhares de documentos e monumentos históricos para apagar os vestígios do passado; seu principal assessor e amigo na época, Lin Biao (林彪) promoveu ainda a difusão do Livro vermelho (毛主席语录, Mao Zhuxi Yulu), publicação que apresentava uma coleção dos principais pensamentos de Mao, e que foi distribuído e lido fanaticamente pela população chinesa.

O resultado da Revolução foi um aprofundamento das perseguições ideológicas, que afetaram milhares de cidadãos, principalmente políticos, professores, técnicos e profissionais - tidos como “burgueses” por serem detentores dos saberes acadêmicos, e, consequentemente, acusados de revisionistas. A movimentação popular permitiu que Mao reforçasse seu poder e afastasse da cúpula do partido a ala oposicionista. Mas o impacto psicológico foi ainda mais profundo: o culto à personalidade de Mao atingiu níveis de histeria e fanatismo, causando um clima de insegurança total (DIKOTTER, 2017DIKOTTER, F. The Cultural Revolution: A People's History, 1962-1976. London: Bloomsbury, 2017., p. 94-101). A sociedade transformara-se num ambiente de delação, desconfiança e ódio. Novamente, o número de mortes girou em torno dos milhares, mas sem qualquer estatística confiável (SPENCE, 1999SPENCE, J. Mao. London: Penguin, 1999.). Com grande custo, o movimento arrefeceu em dois anos - mas não cessou diretamente suas atividades até 1976. De fato, enquanto Mao esteve vivo, a ideia de Revolução Cultural permaneceria viva entre os chineses.

A Revolução Cultural trouxe consigo um novo período de dificuldades para os chineses. Não somente o obscurantismo político construiu um ambiente de horror e instabilidade, mas as perseguições influenciaram diretamente a qualidade de vida da população. Os serviços públicos se deterioraram rapidamente, com a prisão de professores, médicos e especialistas. Universidades, escolas, hospitais e repartições foram fechadas. Monumentos e obras de arte tradicionais foram atacados e danificados, causando prejuízos incalculáveis e sem reparação possível. Os poucos sinólogos que puderam ir até a China desse período testemunharam o alto grau de abandono e degradação das cidades, bem como o clima cotidianamente tenso (LEYS, 1977LEYS, S. Sombras Chinesas. Lisboa: Bertrand, 1977.). Uma ideia do nível de descalabro que atingiu a China da época é dada pelo relato de uma curandeira, colhido por Xinran (2009XINRAN, X. Testemunhas da China. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), que afirmava que aquela fora a melhor época de sua vida, pela quase total ausência de médicos.

Em 1972, porém, uma reviravolta marcaria a política chinesa. Em meio a todo esse tumulto - e mostrando uma habilidade ímpar em criar novas demandas ideológicas - Mao decidiu restabelecer relações diplomáticas com os Estados Unidos, recebendo o presidente Richard Nixon. Essa atitude parecia indicar uma mudança no papel da China em relação ao mundo, marcando uma posição própria em relação à esfera soviética e ao mundo capitalista (KISSINGER, 2012KISSINGER, H. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.). Lentamente, o governo chinês também promoveu um retorno gradual dos quadros técnicos do partido, cuja contribuição era indispensável para a manutenção do crescimento econômico.

Isso se refletiu no programa das “Quatro Grandes Modernizações” (四个现代化, Sige Xiandaihua), destinado a promover melhorias na agricultura, indústria, defesa e pesquisa. O projeto já havia sido pensado por Zhou Enlai desde 1963, mas as crises políticas o colocaram em segundo plano. Em 1975 ele é retomado, e torna-se o novo grande projeto do governo.

O ano de 1976, no entanto, reservava surpresas: Zhou Enlai (周恩来) e Zhude (朱德), dois personagens fundamentais no apoio à Mao, falecem. Zhou Enlai era o principal articulador do Partido, seu representante e diplomata; Zhude era o sustentador de Mao junto às forças armadas. A morte repentina de ambos deixara um vácuo perturbador. Outro fator contribuiria para aumentar o clima de insegurança: um terremoto de grande escala ocorre em julho, em Tangshan, e é entendido como um anúncio nefasto. Finalmente, em setembro, Mao Zedong morre, o que provocaria uma mudança radical no país.

Doravante, a China se tornaria uma nação em busca de uma nova identidade. Um sistema que continuaria a afirmar-se comunista, mas cuja expansão econômica guardaria muitas características de um verdadeiro capitalismo estatal; uma sociedade que retomou muitos elementos de sua cultura tradicional; que promoveu o enriquecimento, mas também o aprofundamento das diferenças sociais. É nesse quadro amplo e complexo de transformações que Uma vida chinesa se desdobra. E como tal, constitui-se um precioso relato que iremos analisar.

Uma vida chinesa

Uma vida chinesa é uma história em quadrinhos produzida ao longo de vários anos e que foi lançada primeiramente na França, em 2009. Seus autores, Phillipe Ôtié e Li Kunwu tentaram, de acordo com Ôtié (2017ÔTIÉ, P. Prefácio. In: ÔTIÉ, P.; KUNWU, L. Uma vida chinesa. Parte II: O tempo do partido. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 7-33.) dar à história um caráter ao mesmo tempo intimista, como o gênero autobiografia, e histórico, dada a quantidade de informações passadas pelas páginas. Fica claro, na obra, que há cuidado com um possível desconhecimento e talvez até mesmo um estranhamento ao leitor ocidental. Percebemos isso quando Kunwu se esforça para trazer um certo caráter didático à sua trajetória, explicando passagens que para um chinês pareceriam óbvias. Além disso, o tom confessional surge em diversos momentos, notadamente quando o autor se revela e fala diretamente ao leitor, ora explicando alguma passagem nebulosa, como nos momentos em que explica alguns costumes chineses típicos, ora quando diz ao seu leitor que não se lembra desta ou daquela ocasião, ora quando ele se arrepende de determinados atos que fez no ímpeto juvenil, como nas páginas 146 e 147.

A história em quadrinhos aqui analisada, como já dissemos, foi produzida pelo próprio narrador da história, em conjunto com um colega francês, cujo principal trabalho foi o de edição, ou seja, colocar em ordem as memórias de Li Kunwu. Do ponto de vista formal, o desenho em preto-e-branco do artista faz saltar aos olhos o grafismo e a rudeza de seu traço, ao mesmo tempo delicado e forte, preciso e selvagem. Os desenhos do artista, como podemos ver na Figura 1, em muitos momentos lembram os antigos cartazes do período estudado, ou seja, aqueles produzidos pelas pessoas para saldar o regime de Mao Zedong, como podemos perceber graças à Figura 2.

Figura 1.
Jovens da Guarda Vermelha.

Figura 2.
Cartaz da revolução Cultural.

Em outros momentos, porém, o artista usa grandes liberdades e faz inúmeras metáforas, combinando o real da revolução em curso com a imaginação prodigiosa da criança que ele era naquele momento, como podemos ver na Figura 3, em que Kunwu imagina sua colega de classe como uma águia:

Figura 3.
Águia dos mares.

Do ponto de vista da escrita, como já mencionamos, é uma história em quadrinhos assumidamente autobiográfica, a despeito da participação de Phillipe Ôtié. Assim sendo, é narrada sempre em primeira pessoa e Kunwu deixa claro que aquela era a forma como ele entendia o mundo e a China naquele momento e que, apesar de ser uma postura ingênua, era esse seu pensamento no período. Podemos, claro, inferir que muitas dessas posturas mudaram ao longo do tempo, e que há uma tendência a atenuar determinadas coisas e enaltecer outras tantas. Por isso mesmo, ressaltamos aqui, que a história em quadrinhos analisada deve sempre ser lida com desconfiança e problematizada, inquirida e comparada com outras fontes históricas. De qualquer forma, o relato aqui apresentado suscita muitas questões e esclarecimentos daquele período chinês. Principalmente por se tratar de um relato de uma pessoa comum, tal qual o Menocchio de Ginzburg (2005GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.).

Interessante destacarmos também que esta história foi dividida por seus autores em três volumes. Para este artigo usaremos apenas o primeiro volume, subintitulado O tempo do pai, que se centra nos episódios aqui analisados. Os autores escreveram, também, o volume dois, com subtítulo O tempo do partido, e o terceiro e final volume com o subtítulo O tempo do dinheiro. Assim, o primeiro volume trata desde o nascimento do protagonista, já durante a revolução comunista de Mao Zedong, até a morte do líder comunista. O segundo volume, por sua vez, trata desde o enterro do líder chinês até a morte do pai de Kunwu, passando pelo ódio à esposa de Mao Zedong, o final da Revolução Cultural e a abertura do pensamento. O terceiro volume, aborda a China contemporânea, e sua relação entre o comunismo e o capitalismo.

Utilizando Uma vida chinesa em sala de aula

Como nosso foco é a Revolução Cultural e as formas de explicar essa questão em sala de aula, focaremos no volume um da obra, já que é nele que são explicados tais eventos. Iremos fazer uma seleção de temas e imagens, que poderão ser igualmente empregados na dimensão didática. Assim, podemos dizer que o álbum em quadrinhos se inicia no extremo sul da China, na província de Yunnan, no dia 13 de outubro de 1950, portanto pouco mais de um ano depois da consolidação da República Popular da China. Neste ponto, o professor pode já pontuar o alcance da política de Mao Zedong e, mais do que isso, perceber, nas palavras e atitudes do pai de Xiao Li (o pequeno Li, apelido carinhoso usado por Li Kunwu em sua narrativa) a motivação e a entrega dele para com as ideias do comunismo chinês, do partido e principalmente ao “Grande Timoneiro”, como Mao era chamado. O pai de Xiao Li é chamado de Secretário Li e tem como missão pregar a Revolução. Nessa pregação, o leitor/aluno, já consegue perceber nos transeuntes o analfabetismo e a carência financeira que acometia os chineses das regiões mais afastadas, e com a ajuda do professor traçar alguns dos motivos para a Revolução Comunista chinesa.

Logo em seguida, somos apresentados ao nascimento do autor, em 1955, em uma China já completamente imersa no regime de Mao Zedong. E, também, pode-se perceber pelo relato que o Grande Timoneiro era visto pelos seus cidadãos com aspectos messiânicos (Figura 4), já que o pai de Kunwu fica furioso porque este não consegue falar “que o presidente Mao viva dez mil anos” (ÔTIÉ; KUNWU, 2015ÔTIÉ, P.; KUNWU, L. Uma vida chinesa. Parte I: O tempo do pai. São Paulo: Martins Fontes, 2015., p. 28.) com poucos meses de idade. Essa demanda veio de um jornal, que deu a notícia - provavelmente falsa - de uma menina de seis meses que havia falado essas palavras. Neste ponto o professor pode chamar atenção para ambas as características apontadas pelo autor: o messianismo de Mao Zedong e a força da manipulação da imprensa. Como dissemos antes, Mao compreendia que a revolução deveria ser mantida por requisições constantes da população, envolvendo-a em sua dinâmica de funcionamento. Além disso, ele construíra para si um personagem decisivo na condução dos destinos da China; e veremos, adiante, que ambas as características estão muito presentes no relato de Li Kunwu e Phillipe Ôtié, principalmente a partir da Revolução Cultural.

Figura 4.
A perspectiva messiânica sobre a imagem de Mao Zedong.

O relato, então, corta para alguns anos mais tarde, quando Li Kunwu já está mais velho e percebemos o início da escassez financeira das famílias na entrada da década de 1960. O professor pode argumentar com seus alunos a respeito das consequências do “Grande Salto para Frente”, iniciado, como já dissemos, em 1958, e que atingiu diretamente as famílias e comunidades mais distantes dos centros urbanos, trazendo grande fome e miséria para o país. Além disso, também é no início da década de 1960 que se encerra, abruptamente, a parceira tecnológica e econômica com a URSS. Novamente é interessante problematizar com os alunos essa questão e as consequências de ambas as diretivas.

Na história em quadrinhos, principalmente a partir da página 39, Kunwu dedica-se a explicar o Grande Salto Adiante (Figura 5), e diz claramente que toda forma de vida privada desapareceu. Ainda que essa afirmação seja um tanto contundente e talvez exagerada, cabe ao professor o diálogo com seus alunos para tentar descobrir quais os limites para a vida particular e a vida pública. Tendo por base o estudo de Dikotter (2011DIKOTTER, F. Mao's Great Famine: The History of China's Most Devastating Catastrophe, 1958-1962. London: Bloomsbury, 2011.), podemos compreender que as reformas impostas por Mao não tinham precedentes na história contemporânea. Nesse caso, professores de filosofia e sociologia podem discutir limites impostos e questões morais em casos em que o Estado promove tamanha ingerência, a ponto de fazer com que as pessoas se desfaçam de seus bens materiais para construir um possível futuro comum melhor.

Figura 5.
O Grande Salto Adiante.

Kunwu mostra, em sua narrativa, as pessoas pegando tudo o que possuíam de metal para jogar nos altos-fornos e, quando acabaram suas posses, destruindo objetos públicos e até casas, para adquirir metal para forjar madeira para alimentar os altos-fornos. O autor mostra principalmente sua visão infantil, já que a professora (assim como todas as demais professoras em todas as escolas) incentivava a prática de doar metais e madeira/carvão.

O que mais chama a atenção, porém, é a questão da fome. O próprio Xiao Li teve seu tio morto pela fome. E em diversos momentos fica evidente a carestia em que viviam. As pessoas morrendo de fome, vitimadas diretamente pelo Grande Salto Adiante estampam diversas páginas e diversos relatos na obra. Em um dos momentos mais tocantes do álbum em quadrinhos, vemos o pequeno Kunwu roubando um pedaço de carne da escola para levar para sua avó (Figura 6). Noutro momento, um pedaço de tofu é dividido em diversos pedaços minúsculos para ser distribuído pela família.

Figura 6.
A fome afetava os chineses durante as campanhas maoístas.

Mesmo assim - e é interessante chamar a atenção dos alunos para este fato - Kunwu mostra em diversos momentos como as pessoas estavam esperançosas. A fome e a morte rondavam severamente suas cabeças, mas as pessoas ainda acreditavam que as coisas iriam melhorar porque Mao Zedong assim havia falado.

Um ponto que pode ser muito bem utilizado por professores é a questão do maniqueísmo. Em determinado momento o pai de Xiao Li explica a ele que existem apenas os bons e os maus, sendo os primeiros os chineses e seus irmãos de revolução russos e os segundos a Inglaterra e os Estados Unidos, imperialistas que sugavam o sangue e o suor das pessoas. Entende-se, aqui, que, apesar do relativo aumento do grau de instrução, a educação era absolutamente politizada e doutrinária.

Outra consequência do Grande Salto Adiante foi a convocação dos chineses para acabar com as quatro grandes pragas (Figura 7), como podemos ver na página 75 da obra de Ôtiê e Kunwu. As pragas eram as moscas, os mosquitos, os roedores e os pardais. Como já dissemos, isso causou um grave problema ecológico e um desastre agrícola. Kunwu em sua narrativa mostra como usavam DDT para matar moscas e mosquitos, e, com isso, contaminavam os alimentos expostos, levando as pessoas que os comiam ao envenenamento. Além disso, a professora ordenou que cada criança trouxesse um rabo de rato morto para a sala de aula, para provar que o matou. Quanto aos pardais já explicitados neste texto, eram mortos de exaustão, já que as crianças não os deixavam pousar e eles caíam do céu. Assim, depois de três anos de muita fome e carestia, a ponto de pessoas morrerem por se alimentarem de terra, por disputarem grama com os animais do pasto ou simplesmente de fraqueza, o Grande Salto Adiante termina oficialmente em 1962.

Figura 7.
O combate às quatro pragas.

Todas as causas e consequências dessa política governamental podem ser estudadas pelos alunos do ensino médio e pelas disciplinas universitárias que envolvem história asiática; mas, também, é interessante o olhar do ponto de vista da sociologia e da filosofia, que podem promover grandes debates em sala de aula, mobilizando os alunos e atentando-os para a história chinesa e também para a história contemporânea. Analisar os reflexos dessa política não só na China, mas também em seu principal aliado, a URSS, e no ocidente pode ser uma tarefa muito interessante. Outro método que pode ser adotado pelo professor é o da comparação. Como estavam os Estados Unidos, a Europa ou o Brasil nesse mesmo momento histórico?

Na página 109 do livro chegamos na primavera de 1966, e com ela o relato da Grande Revolução Cultural Proletária (Figura 8). De acordo com Li Kunwu, disseram às pessoas que inimigos internos e externos estavam determinados a destruir a felicidade das pessoas. Isso, claro, somado ao maniqueísmo já apresentado e à guerra contra a Índia em 1962, ajudou o governo de Mao Zedong a permanecer no poder e, mais do que isso, a criar uma força ainda maior. A maior prova disso é a devoção ao Grande livro vermelho, com citações de Mao e distribuído à toda população que, no relato de Xiao Li, transforma-se em objeto de devoção por parte de seus leitores, principalmente os mais jovens como o autor naquele momento. As pessoas, de acordo com o Livro, tinham que combater as três pestes: feudalismo, capitalismo e revisionismo. Algumas páginas adiante, a própria professora dá o exemplo, combatendo o antigo com a troca do seu próprio nome. Em seguida, todas as crianças (em sua maioria de 11 anos) também trocam seus nomes por nomes mais agressivos e alinhados com o Grande livro vermelho (Figura 9). Aqui, o professor pode instigar os alunos a respeito da questão dos nomes e o quanto eles têm a ver com o passado do indivíduo, seja na China, na Europa ou mesmo no Brasil. A troca de nomes é algo muito forte para uma cultura, haja vista as questões de troca de nomes nas religiões judaico-cristãs ou mesmo na relação entre escravos e seus proprietários durante a escravidão no Brasil. Além disso, o professor deve chamar atenção à ruptura que se deu na mente das pessoas e a continuidade do Regime. Ao mesmo tempo que as pessoas estavam mudando seus hábitos para acompanhar a Revolução, o grupo de Mao Zedong estava se valendo dessa para permanecer no poder, depois da grande catástrofe dos anos anteriores.

Figura 8.
Primavera de 1966 e Li percebe a chegada da Revolução Cultural.

Figura 9.
Professora e alunos mudam seus nomes, inspirados na Revolução Cultural.

Uma interessante atividade a ser realizada com os alunos é contrapor essas visões com perspectivas mais recentes da história chinesa. O historiador Gao Mobo (高默波, 2008GAO, Mobo. The Battle of China’s Past: Mao and the Cultural Revolution. London: Pluto Press, 2008.), por exemplo, defende que os movimentos culturais e revolucionários do período maoísta foram importantes para consolidar o comunismo no país, e impedir sua estagnação ideológica e produtiva. Gao vai mais além: ele afirma que valores fundamentais para a transformação da sociedade chinesa, como a solidariedade, a união e a resiliência, ajudaram a compor um quadro de otimismo e esperança, que impulsionava os processos de mudanças econômica e política no país. Uma análise contraposta da obra de Kunwu & Otié com a de Gao Mobo nos proporciona um quadro complexo e rico: afinal, como visões tão distintas podem ser construídas sobre a mesma realidade? A chave para explicar essas contradições pode estar na forma de filiação imaginária a esse período.

De fato, outro fenômeno que ocorreu foi uma espécie de fanatismo político, retratado nas páginas por Kunwu, e que mostrava as crianças procurando e tentando destruir qualquer coisa que se assemelhasse às “três pestes”. Assim, de obras de arte a restaurantes e cabelereiros, as crianças vão denunciando tudo o que veem pela frente, em um comportamento que pode suscitar discussões e reflexões em sala de aula, sob as mais diversas perspectivas. Mesmo porque, as crianças o fazem com a violência típica dos ditadores, sendo mostradas como arrogantes, intolerantes e despreparadas. Neste caso, é interessante ao professor incitar os alunos a perceber quais os tipos de arte que eram consideradas impróprias naquele momento e por qual motivo. Tentar problematizar, junto aos seus alunos, como a questão da arte foi importante para a Revolução Cultural, e também perceber no autor da obra aqui analisada o remorso que este sente por ter destruído - ou ajudado a destruir - tantas obras e patrimônios que contavam a história de seu país (Figuras 10 e 11).

Figura 10.
A destruição dos patrimônios culturais chineses.

Figura 11.
A destruição dos patrimônios culturais chineses.

Também é importante perceber os motivos que levaram o regime a adotar os velhos pensamentos, os hábitos, a cultura e os costumes como inimigos, como Kunwu nos conta a partir da página 139 de seu livro. O combate a tais inimigos era a forma de perpetuação de Mao e seus correligionários, entretanto o povo chinês não tinha essa clareza naquele momento, como o próprio autor da história em quadrinhos nos conta ao finalizar seu relato no terceiro volume da série. Além disso, o professor pode incitar os alunos a perceberem de que forma o governo chinês se valia dessa força juvenil para impor a sua própria força. Como já dissemos, nesse momento as perseguições se intensificaram sobremaneira, e o fanatismo foi intensificado na mesma medida. O melhor exemplo para isso é o personagem Qibao, amigo de Xiao Li e radical no limite de perfurar a própria pele para colocar uma medalha com a efígie de Mao Zedong em seu peito nu (p. 151).

Outra manifestação desse radicalismo é mostrada quando os professores foram julgados e humilhados pelos alunos, que se valiam do Livro vermelho para acusar seus docentes de diversas contravenções e puni-los. Assim, os serviços públicos se deterioraram muito fortemente e um clima de caça às bruxas foi instalado, permitindo atrocidades nunca antes vistas naquele continente, uma vez que não era necessária nenhuma prova. Bastava uma acusação a partir de um Dazibao (Figura 12) pendurado em um poste e uma pessoa poderia ser virtualmente julgada e/ou condenada (p. 166-168). Isso acabou acontecendo com o pai de Xiao Li, acusado pelo seu amigo Qibao de ter como antepassados proprietários de terras.

Figura 12.
O movimento dos Dazibao foi uma das expressões culturais e artísticas mais importantes do período da Revolução.

Talvez uma das cenas mais impactantes da narrativa de Kunwu seja quando ele vai visitar sua amiga, Xiaoqun, também com 11 anos, e descobre que os pais da menina foram presos e sua avó se enforcara na cozinha. Aos professores, é interessante demonstrar como o fanatismo e o obscurantismo podem trazer consequências dramáticas para a sociedade. Também é interessante dizer aos alunos que nesse período, apenas na província de Yunnan, onde vivia o protagonista, ocorreram 1.380.000 “casos delicados”, ou seja, desaparecimentos ou reprimendas severas, além de 67.000 feridos e 17.000 mortes diretas das prisões e condenações sumárias, e fazer com que os discentes reflitam sobre isso, e compreendam o tamanho da Revolução e a compare com o tamanho da China, considerando que Yunnan é uma província relativamente pequena, com cerca de 390.000 Km².

Quanto ao pai de Kunwu, este foi descoberto em um “Centro de Reeducação de Quadros”, ou seja, um lugar para onde os rebeldes ou detratores do governo eram mandados, muito aos moldes dos gulags da União Soviética. Isso, relembrando, porque o colega de Kunwu, Qibao, o havia denunciado por meio de um Dazibao. A família só teve notícias de seu patriarca quatro anos depois dele ter sido levado. Quando finalmente Xiao Li teve permissão de visitar o pai, encontrou uma figura quebrada, tanto física quanto psicologicamente. Como este tipo de procedimento de captura e destruição do ser humano foi muito utilizado em várias ditaduras, professores das mais diversas áreas podem usar a história em quadrinhos aqui contada para estabelecer paralelos com outros sistemas em lugares e tempos distintos. Para o professor específico de história asiática, fazer os alunos perceberem como eram os costumes do partido quando alguém era denunciado também pode ser muito interessante para melhor entender o período vivido.

Em dado momento, Li, nosso protagonista, começa a estudar arte mais seriamente, e acaba encarregado de ser ajudante do melhor artista da cidade. Sua missão era fazer o que o artista principal fazia, ou seja, pintar inúmeros quadros e cartazes de Mao Zedong. Uma passagem importante da história é quando ele encontra rascunhos de artes ditas impróprias junto aos rascunhos de seu mestre. Nesse momento o jovem discípulo de Mao começa a articular melhor as coisas em sua mente, e parece começar a perceber algum cinza no mundo preto e branco que lhe pintaram.

Mesmo assim, três anos depois, com todo o apoio da família e dos amigos, Kunwu consegue se alistar no Exército Vermelho, ocupando uma vaga de artista, para promover a figura de Mao Zedong cada vez mais. Em suas memórias, o antigo Xiao Li diz que esse é o momento de maior culto à personalidade de Mao. Segundo ele, os poemas, as caligrafias, os broches e o rosto do Grande Timoneiro estavam em toda parte da China. As estratégias para estabelecer este culto messiânico em torno de Mao Zedong devem ser estudadas pelo professor de história, fazendo correlações e estabelecendo problematizações não só em relação à figura mítica de Mao, mas também em relação ao período em que esse messianismo se dava, a capacidade de comunicação e articulação da sociedade, e quais as consequências desse amor ao líder. É interessante destacar que mesmo tendo sido preso injustamente e passado o pior período de sua vida, o pai do protagonista nunca deixou de confiar em Mao Zedong e no regime. Seu filho também continuou acreditando no líder do país até a morte deste, descrita ao final deste primeiro volume. Este mesmo comportamento pode ser estudado por professores do ensino médio, não apenas na disciplina de história, mas de sociologia e filosofia também, já que apresenta estratégias políticas e psicológicas que foram usadas inúmeras vezes ao longo da história, e continuam vivas e atuantes na sociedade em que vivemos.

No exército, Xiao Li aprende várias coisas, e passa por diversos momentos interessantes à luz da história e da sociologia. Por exemplo, na página 240 do livro, um colega de exército diz a ele que existem pessoas com olhos azuis e ele não acredita. Ali ficamos sabendo do distanciamento que essas populações tinham em relação ao restante do mundo. É bom destacar que nesse momento da narrativa de Kunwu já é o ano de 1976, e poucas nações eram tão fechadas ao estrangeiro quanto a China. O estranhamento dessa revelação pode ser muito útil para o professor de história oriental destacar a diferença entre os sistemas e os países. Além disso, mostra aos alunos que o tempo histórico pode ser diferente a partir de outras questões que não apenas o tempo cronológico. Essa mesma observação pode ser feita pelos docentes do ensino médio aos seus alunos, promovendo a discussão e problematizando a questão do tempo e do espaço, da globalização e do isolamento.

O primeiro livro da trilogia de Li Kunwu e Phillipe Ôtié termina com a morte, em 9 de setembro de 1976, de Mao Zedong. O final da Revolução Cultural só se dará nas primeiras páginas do livro dois da trilogia, quando prendem o Bando dos Quatro, políticos (entre eles a mulher de Mao), que foram culpabilizados por tudo o que acontecera de ruim durante o período. Naturalmente, o professor de história não pode se furtar de comentar a morte do líder chinês e, nesse caso, pode até mesmo usar as representações existentes em ambos os livros: no primeiro, a reação de desespero das pessoas ao saberem da morte do líder (Figura 13), e no segundo, a cerimônia do funeral de Mao Zedong, mostrado como o grande acontecimento da vida daquelas pessoas.

Figura 13
O assombro pela notícia da morte de Mao Zedong.

Conclusão

Ao fim de nosso artigo, podemos afirmar que o título de Li Kunwu com Phillipe Ôtié talvez seja uma das melhores formas de explicar aos alunos como se deu a Revolução Cultural na China contemporânea e, talvez mais do que isso, trazer à luz um relato que, se bem problematizado, pode elucidar uma série de questões sobre o país asiático em um de seus momentos mais problemáticos na contemporaneidade. Também é interessante destacar que a obra se encontra disponível no catálogo de diversas livrarias físicas e online no Brasil. Assim, professores e alunos não terão dificuldades em adquirir o livro. Por fim, gostaríamos de destacar que os demais volumes da obra aqui citada também são muito interessantes para a compreensão do fenômeno chinês, sobretudo o último volume, que mostra como se deu a entrada da China no mundo capitalista atual. Para a prática em sala de aula, recomendamos o uso de páginas selecionadas desse material, de maneira a viabilizar uma abordagem temática sobre os conteúdos; contudo - e dentro das possibilidades - a leitura e a problematização desta obra completa pode contribuir em muito para o entendimento da vida chinesa na contemporaneidade.

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    » https://www.marxists.org/reference/archive/mao/selected-works/volume-3/mswv3_08.htm

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2021
  • Aceito
    03 Ago 2021
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