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A irremediável busca por justiça

Gostaria de iniciar esta réplica dirigindo um especial agradecimento à equipe de editores da Interface pela sugestão de indicar meu artigo para a seção de debates deste número. Tal agradecimento é também extensivo a cada um dos quatro comentadores que, de modo igualmente acolhedor, enriqueceram a textura do debate, pondo, sob escrutínio crítico, aspectos que complementam – sem nunca esgotar – um olhar coletivo sobre o tema. A seguir, passo, então, em brevíssima revista esses comentários que são seguidos dos meus.

Intitulado de Ne quid nimis (“Nada em demasia”), o texto de Diego Gracia indica, de saída, a cuidadosa observação da tradição filosófica sobre o risco de leituras dicotômicas em matéria de reflexão ética. Parece partir, assim, de uma necessária propedêutica ao tipo de raciocínio que deve prevalecer quando se trata do exame e de decisões envolvendo problemas morais. Estes, segundo o autor, são sempre conflitos entre dois ou mais valores, para os quais sugere a advertência de que “Nuestra primera obligación moral no es salvar el valor que consideramos más importante, sino ver si resulta posible salvar todos los valores en juego”. Em tais circunstancias, propõe o autor, à luz do pensamento de Aristóteles, a opção de pensarmos sempre em medidas intermediárias (cursos intermedios). No entanto, se essa mesma opção fracassa, isto é, não sendo capaz de oferecer uma solução concreta para o equilíbrio de dois valores em jogo, tornar-se-ia moralmente justificável a adoção de medidas extremas, desde que, é claro, seja possível identificarmos, também, qual o “valor prioritário”, como sugere a seguinte passagem do autor sobre o tema específico: “En el caso de la negativa al aislamiento y al tratamiento pautado de una tuberculosis multirresistente, es fácil convenir en que el valor prioritario es la salud y la vida de las otras personas que pueden resultar infectadas”.

Para interagir com o texto de Gracia, trago aqui uma breve menção à filosofia política de John Rawls. Para esse filósofo americano, a estrutura de uma teoria ética é, em grande parte, determinada pelo modo como ela define e interliga as noções de “justo” e de “bem”. Rawls quer chamar atenção, com isso, para uma característica das teorias teleológicas, as quais, diferentemente de uma análise deontológica, como a que ele mesmo faz, assumem a primazia do bem em relação ao justo. Justiça, portanto, seria a ação – individual ou coletiva – que visa à realização de determinado bem. Ocorre que tal perspectiva dependerá sempre de um acordo intuitivo sobre, precisamente, o “bem” em questão. E isso nos leva de novo à precedência do que é ou não justo, em especial, quando temos em mente o problema de definirmos, então, o que é preciso para um legítimo acordo (quais, enfim, os termos justos!). Ainda que Rawls não tenha se detido na análise dos problemas morais em saúde, tal perspectiva é interessante por valorizar, na esteira da tradição contratualista, o princípio da reciprocidade para um julgamento mais equitativo sobre as decisões e os valores em jogo. Ou seja: ainda que se trate de uma ação “extraordinária”, fundada no risco que uma pessoa pode oferecer à vida de outras, permanece o desafio de sabermos em que medida obrigá-la a se tratar não deveria considerar também outro fundamento capaz de determinar melhor em que circunstâncias a recusa do tratamento já representaria a violação de um acordo. A aclamação de um “bem maior” jamais suprime o mal de uma injustiça.

O texto de Jacqueline Souza Gomes é uma inteligente provocação acerca das dificuldades que envolvem os fundamentos e a aplicabilidade da justiça. Após uma série de indagações concernentes à relação desse valor com o problema em questão, assinala a importância de um referencial de justiça para o poder público e seus agentes. Aqui, ganha destaque, então, a obra de Amartya Sen, a qual, inspirada em parte no pensamento indiano, propõe, como uma estratégia de reflexão, o contraste entre os termos Niti e Nyaya, ambos oriundos da literatura sânscrita sobre ética e direito. O primeiro se refere a um sentido de justiça mais austero e severo, exemplificado pelo autor na famosa máxima de Ferdinando I: Fiat justitia, et pereat mundus (“Que se faça justiça, ainda que pereça o mundo”). Como lembra Jacqueline, porém, um mundo condenado ao perecimento não parece compatível com a imagem de algo justo. Nyaya apontaria, assim, para um sentido mais amplo do conceito de justiça, sem o qual não seria possível um julgamento mais apropriado das coisas, inclusive, no que tange ao compromisso com “a reparação em alguma ‘dose’”. Ao final, interpela-me a autora: “Todas as teorias de justiça citadas pelo autor comprometem-se, em maior ou menor proporção, com a reparação de alguma ordem e, de tal maneira, podem ser utilizadas para defender ou rejeitar a internação compulsória. Poderá uma delas, de fato, preponderar sobre as demais e respaldar, normativamente, as sentenças judiciais? O autor deixa-nos sem respostas.”

Começando por essa última interpelação, convém ressaltar que não tive a pretensão, com meu artigo, de oferecer um respaldo normativo para as sentenças judiciais. Pelo contrário: ao me aproximar das teorias da justiça, meu objetivo foi unicamente elaborar uma primeira abordagem problematizadora do tema. Minha hipótese é de que, sem uma análise comparativa sobre a verdadeira magnitude do problema e dos argumentos empregados em defesa do tratamento compulsório, dificilmente poderemos chegar a um quadro de referência normativo com base em uma (justa?) ponderação teórica. Daí também por que não acredito que se trata de avaliar, a priori, qual perspectiva deve preponderar. Por mais atraente que nos pareça a reflexão de Sen sobre o conceito de Nyaya, por exemplo, não estou totalmente convencido de que essa ideia, aplicada ao problema ora aqui em exame, possa dirimir o tipo de questionamento que fiz a partir da filosofia política de Rawls. Ademais, entre o perigo de um mundo em ruína e o imperativo da preservação da vida, restaria pensar, ainda, no significado igualmente catastrófico de uma doença que insiste em penalizar, justamente, os mais pobres. Qual o exato sentido de Nyaya nesse contexto? O que haveria aí, afinal, a merecer maior ou menor reparação?

Seguindo o mesmo padrão de qualidade dos textos anteriores, o comentário de Ricardo Rodrigues Teixeira formula, logo de início, uma instigante hipótese sobre o alcance biopolítico da estratégia DOTS. Diz ele: “o fato do DOTS ser uma recomendação técnica de especialistas não o faria menos ‘compulsório’ do que o tratamento imposto por uma decisão judicial.” Na sequência, após efetuar uma necessária correção a respeito de um dos paradoxos por mim identificados (a tese da internação involuntária), propõe aprofundar o exame do tema valendo-se “de uma inspiração deleuziana a partir da obra de Foucault.” Assim, constata a ambivalência do tratamento diretamente observado (DOTS) como parte de um dispositivo de “controle a céu aberto”, isto é, permeável à possibilidade de “reinvenção das relações” na direção de uma autêntica “ética do vínculo”. Finalmente, destaca o caráter da justiça como força de integração da sociedade, aproximando-se, então, de um “sentido spinozano” para uma jurisprudência mais atenta à responsabilidade primordial dos serviços frente ao problema em questão.

Em que pese o meu esforço de apenas colocar em questão o tratamento compulsório da tuberculose, e sem maiores reticências à correção proposta por Teixeira, penso que o seu comentário acertou em cheio em sintetizar aquilo que creio ser mais substantivo para o debate. O núcleo axial do argumento consiste em conceber o tratamento como relação social que é, ou seja, realçando um enfoque na qualidade mesma dos encontros (numa palavra: o “vínculo”) implícita na ideia de “cuidado”. Sem dúvida, uma ética profissional inspirada na filosofia de Spinoza talvez redimensionasse significativamente quanto de “justeza” (palavra com indubitáveis ecos spinozanos!) estaríamos dispostos a enxergar em uma medida marcada por profunda heteronomia.

Num paralelo próximo ao comentário de Teixeira, o texto de Elma Zoboli discorre sobre uma série de questões entrelaçadas ao ideal de uma vida feliz como princípio ético por excelência. Lembra, por exemplo, que “Quem completou com sucesso o tratamento para tuberculose multirresistente indicou o desejo de viver como decisivo na adesão”. Não obstante, alerta também que “deslocar o fiel da balança para o vínculo, desconsiderando as condições de trabalho e organização dos serviços de saúde pode transferir a culpa para os profissionais”. Por fim, reconhece a importância de um olhar crítico para determinados dispositivos linguísticos empregados pelo serviço, sobretudo, por reiterarem o estigma relativo à tuberculose.

De fato, o alerta da autora sobre o risco de culpabilização dos profissionais de saúde é uma observação central para o debate. Ignorar as condições concretas de trabalho seria incorrer, igualmente, numa grave injustiça. Sob esse aspecto, e como a própria autora reconhece, não deixa de ser curioso notar a presença de termos estigmatizantes conferindo exatamente uma “organização” para o serviço, dificultando, assim, “o reconhecimento mútuo de dignidade”. Usando as palavras mesmas da autora: “Os profissionais, assim, acreditam ter poder sobre o paciente e sua vida, infringindo direitos, desrespeitando a autonomia, justificando ações coercitivas para regular o comportamento”. Bem, é contra essa crença, em particular, que me parece urgente destacar a “dimensão pública” do problema.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2016
  • Aceito
    10 Maio 2016
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