DEBATES
A cultura e o saber: linhas cruzadas, pontos de fuga
Culture and knowledge: crossed lines, points of escape
Eduardo Navarro Stotz
Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, ENSP/FioCruz. <enstotz@unisys.com.br>
Pedro Orósio achava do mesmo modo lindeza comum nos seus campos-gerais, por saudade de lá, onde tinha nascido e sido criado. Mas, outras coisas, que seo Alquiste e o frade, e seo Jujuca do Açude referiam, isso ficava por ele desentendido, fechado sem explicação nenhuma; assim, que tudo ali era uma Lundiana ou Lundlândia, desses nomes. De certo, segredos ganhavam, as pessoas estudadas; não eram para o uso de um lavrador como ele, só com sua saúde para trabalhar e suar, e a proteção de Deus em tudo. Um enxadeiro, sol a sol debruçado para a terra do chão, de orvalho a sereno, e puxando toda a força de seu corpo, como é que há de saber pensar continuado? E, mesmo para entender ao vivo as coisas de perto, ele só tinha poder quando na mão da precisão, ou esquentado por ódio ou por amor. Mais não conseguia.
João Guimarães Rosa.
Metáfora de uma problemática, o trecho usado em epígrafe fala de uma viagem na qual Pedro Orósio, também acudindo por Pedrão Chãbergo ou Pê-Boi, de alcunha, guia um cientista, um pároco e um fazendeiro pelo sertão das Geraes. Na beleza da paisagem que descortinam e na profecia que vem dos seus êrmos, desvela-se um caso.
Mas de que problemática falamos? Da mesma forma que n' O recado do Morro, no qual se conta a estória de um caso de vida e de morte de Pedro Orósio, encontramos admiravelmente formulada, nos mesmos termos de Eymard Vasconcelos em seu artigo, a diferença entre o saber erudito e o popular. Refiro-me em especial à passagem na qual esta diferença manifesta-se como um fosso cultural a separar serviços, organizações não governamentais, saber médico e entidades do movimento popular de um lado, e a dinâmica de adoecimento e cura do mundo popular.
Qual personagens desse conto de Guimarães Rosa, observadores da paisagem deslumbrante do sertão, impressionamo-nos todos com a beleza do espetáculo da vida, em suas lutas, sofrimentos e alegrias, vitórias, derrotas e esperanças. Falamos dela, contudo, de modo bastante diverso uma vez que as nossas experiências de vida inserem-se em referências culturais diferentes.
Aqui, neste brevíssimo intertexto em torno da cultura e do saber, desdobro o problema proposto por Eymard sob a forma de questões. Interrogar e depois inventar respostas não é este o significado da nossa aventura, o sentido de nossa viagem?
Os percursos da população em busca da cura e a relação entre os diversos saberes médicos, descobertos nestes percursos por essa mesma população, são mais significativos, sabemos, quando se trata de doença crônica. É certo que traduzir é conviver, como também escreveu Guimarães Rosa. Mas a experiência da doença é de difícil tradução. Por outro lado, estamos assistindo a uma mudança na concepção de saúde-doença, uma vez que hoje há níveis de adoecimento, incapacidade e incômodo aceitáveis e compatíveis, do ponto de vista social, com a busca de uma vida saudável.
De que modo devemos encarar essas questões?
Em certo sentido, não precisamos ser, face à complexidade dos processos sociais e biológicos que caracterizam a dinâmica do adoecimento e da cura, um pouco como seo Alquiste, o cientista que se maravilha e anota tudo o que vê e sente mas pensa continuado, em oposição ao modo fragmentado e espontâneo de Pedro Orósio? O modo de pensar, vinculado ou não imediatamente com a vida diária de cada um, não é o que distingue necessariamente um saber fragmentado e centrado na afetividade, de outro, sistemático e distanciado? Esse saber pensar continuado não diferencia também a doença, construída e objetivada mediante um saber médico, da experiência subjetiva da enfermidade?
Na sociedade em que vivemos, os sistemas médicos guardam entre si uma semelhança: a atenção às necessidades de saúde dos indivíduos somente pode se dar do ponto de vista social, requerendo um certo nível de objetivação mediante um saber médico. Pode-se dizer que o fosso cultural assinalado reside no fato de que a doença precede o doente.
A busca da superação desses limites, parece-me, é parte de um processo mais amplo que (deveria) envolver-nos como atores (autores) políticos na dinâmica histórica da sociedade. Quero dizer com isso que os sistemas médicos precisam aprender a pensar os indivíduos doentes em suas relações, contextos, representações e modo de andar a vida. Acredito que este novo saber ainda será um saber continuado, mas aberto às desorganizações da vida impostas pelas doenças. Com toda a certeza, trata-se de um modo radicalmente diverso de conceber a saúde e a doença, bem como de organizar os serviços de atenção à saúde. Mais ainda, implica envolver-se com a vida das pessoas e, neste sentido, com a mudança das condições propiciadoras da doença. Temos de empenhar-nos neste compromisso. Seu nome é utopia: o movimento real pelo qual enfrentamos e conseguimos (com maior ou menor sucesso), ou não, resolver determinados problemas sociais, ou aspectos destes, deslocando a fronteira entre realidade e possibilidade.
Daí a questão final: não será a Educação em Saúde apenas um importante momento de uma prática sempre parcial e isolada, a requerer a luta política pela saúde?
Recebido para publicação em: 29/11/00. Aprovado para publicação em: 22/12/00.
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Jun 2009 -
Data do Fascículo
Fev 2001