Open-access Duzentos anos de formação médica no Brasil: onde e quando devem ser comemorados?

Doscientos años de formación médica en Brasil: donde y cuando debe conmemorarse?

Two hundred years of medical schools in Brazil: when does it can be celebrated?

NOTAS BREVES

Duzentos anos de formação médica no Brasil: onde e quando devem ser comemorados?

Two hundred years of medical schools in Brazil: when does it can be celebrated?

Doscientos años de formación médica en Brasil: donde y cuando debe conmemorarse?

Pedro Reginaldo Prata

Departamento de Saúde Coletiva I, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/nº. Canela, Salvador, Bahia, Brasil. 40.110-040. pedrorp@ufba.br

Muito se tem dito sobre os duzentos anos do ensino médico no Brasil, houve até comemorações no ano de 2008, mito ou realidade? O que nos diz a história sobre onde e quando esta data deve ser de fato celebrada?

Naqueles tempos idos havia, além dos curandeiros, feiticeiros e outros atores informais que cuidavam das enfermidades, três profissionais reconhecidos, cada um com sua formação, atribuição e hierarquia específica, para o exercício profissional: os chamados apotecários1, os cirurgiões e os médicos2. Os primeiros preparavam "medicamentos", os cirurgiões aplicavam ventosas, cuidavam das fraturas, contusões, feridas e realizavam cirurgias, enquanto os médicos praticavam a clinica, para prevenir e tratar as enfermidades3 (tal como hoje).

Esta divisão do trabalho vem dos tempos da medicina Hipocrática, baseada na razão, na qual a experiência da observação ao "pé do leito" do enfermo se torna central para o exercício racional da clínica, em contraste com a concepção abstrata do sobrenatural, prevalente na era pré-hipocrática. Para isso, o ganho de confiança na relação médico-paciente se tornou essencial para o sucesso da cura. Para que esta relação de confiança não se quebrasse, procedimentos (na época) de alto sofrimento4 e risco5, como as cirurgias6, deveriam ser deixados para um outro profissional, experiente na manipulação de ferimentos de guerra: o cirurgião7. Além disso, a cirurgia era considerada uma atividade hierarquicamente inferior, por ser um trabalho que usava as mãos (manual), e não a cabeça, o raciocínio clínico8 (Scliar, 2003; Porter, 1997). Assim, havia uma hierarquia processual na formação destes profissionais, sendo os médicos formados na Academia (Faculdades e Universidades) e os cirurgiões nas Escolas9, onde obtinham um treinamento essencialmente prático (Sinclair, 1997).

No final da última década do século XVIII, em Paris e em Edimburgo, a cirurgia começou, de forma incipiente, a ter status acadêmico, havendo turmas mistas de estudantes de medicina e de cirurgia, nas poucas disciplinas básicas comuns, mas com a formação de profissionais distintos. Como consequência, a partir do início do século XIX, na Europa, iniciou-se a convergência da formação médico e cirúrgica, de forma gradual e progressiva.

Estes profissionais eram formados nas Escolas e Faculdades Européias, até que D. João VI veio para o Brasil e estabeleceu, no Rio de Janeiro, a sede do Império Português (portanto, na prática, "deixamos" de ser colônia). Desta forma, foi possível e necessário o desenvolvimento das ciências e, em especial, a formação local de profissionais de saúde, pois havia escassez de profissionais formalmente qualificados por aqui (Capozzoli , 2009; Lima, 2008). Mas como este processo se deu?

Logo quando de sua passagem por Salvador, D. João VI fundou a Escola de Cirurgia da Bahia, em 18 de fevereiro de 1808. Note: escola10 de cirurgia, tendo o curso duração de três anos, compreendendo as seguintes disciplinas: anatomia, cirurgia teórico-prática e operações cirúrgicas. Neste curso inicial não constavam as disciplinas fármaco-clínicas, indispensáveis para a formação de médicos. Esta escola, portanto, formava "cirurgiões", e não "médicos", e funcionava no Hospital Real Militar (nada mais adequado como campo de prática para cuidar de fraturas, contusões e feridas). Similarmente, logo em seguida, no Rio de Janeiro, D. João VI criou, em 2 de abril de 1808, a Escola Anatômica e Cirúrgica do Rio de Janeiro11. Esta escola também funcionava em um Hospital Militar (o da Corte).

Em 1813, por proposição do Diretor de Estudos Médico-Cirúrgicos da Corte e Estado do Brazil12, a Escola Anatômica e Cirúrgica do Rio de Janeiro foi transformada em Academia Médico-Cirúrgica, passando o curso a ter a duração de cinco anos. Note: academia13 médico e cirúrgica, onde além das disciplinas de cirurgia e anatomia (como na Bahia) passaram a constar do currículo as disciplinas: medicina clínica (teórica e prática) química, farmacologia, botânica14, higiene e etiologia das doenças. O diferencial estava justamente nestas disciplinas adicionais habilitando o formando para o exercício da clinica médica e para o tratamento das enfermidades. Portanto, a escola do Rio de Janeiro tornou-se academia e passou a formar médicos a partir de 1813. O mesmo veio a acontecer com a Escola Cirúrgica da Bahia que também foi transformada em Academia Médico-Cirúrgica, nos mesmos moldes da do Rio de Janeiro, mas somente em 1815.

Estes novos cursos, com cinco anos de duração, passaram a ser ministrados no Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e de Salvador (nada mais adequado como campo de prática para o aprendizado da clínica). Deste então, seguindo a tendência Européia, a formação do cirurgião separada do médico desapareceu, passando a cirurgia a ser uma especialidade médica.

A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro15 elaborou, em 1830, um projeto de reforma do ensino médico que resultou na transformação das Academias do Rio de Janeiro e da Bahia em Faculdades de Medicina, em 3 de outubro de 1832. Com esta reforma, ambos os cursos passaram a ter a duração de 6 anos (formato que permanece até hoje), com as disciplinas: física, botânica, zoologia, mineralogia, anatomia geral e descritiva, química médica, farmácia, fisiologia, patologia externa e interna, cirurgia16, medicina interna17, clínica cirúrgica, obstetrícia e ginecologia18, pediatria e puericultura19, medicina legal, matéria médica brasileira, história da medicina e higiene.

Desta forma, embora se possa considerar que as Escolas de Cirurgia, fundadas em 1808, tenham sido os "embriões" do ensino "médico" no Brasil, o nascimento somente ocorreu, de fato, em 1813, no Rio de Janeiro, e, em 1815, na Bahia (onde, respectivamente, se deve comemorar o bicentenário do ensino médico, em 2013 e 2015). A partir de então, o ensino da medicina amadureceu, atingindo sua "maioridade" com a criação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro20 e da Bahia21, ambas em 1832 (ano que deve e pode constar em seus respectivos brasões), portanto, a comemoração do bicentenário destas Faculdades deve ocorrer em 2032.

É isto que nos diz a história sobre onde e quando os duzentos anos do ensino médico no Brasil devem ser celebrados, fora isso trata-se apenas do "manto diáfano da fantasia" a encobrir "a nudez crua da verdade"22. "Descobrir" a realidade é essencial para a formação de estudantes e profissionais interessados nas ciências da saúde em geral, e na história da educação médica no Brasil, em particular.

Referências

CAPOZZOLI, U. (Ed.). História da Ciência no Brasil, 1500-1920: abertura para o conhecimento. Sci. Am. Bras., v.1, n.1, p.55-97, 2009.

LIMA, S.C.S. Nascimento da medicina brasileira. Cienc. Hoje, v.41, n.248, p.76-7, 2008.

PORTER, R. The greatest benefit to mankind: a medical history of humanity from antiquity to the present. London: Harper Collins Publishers, 1997.

SCLIAR, M. Saturno nos Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SINCLAIR, S. Dispositions and the profession historically. In: ______. (Org.). Making doctors: an institutional apprenticeship. Oxford: Berg, 1997. p.39-71.

Recebido em 18/01/10. Aprovado em 01/03/10.

Referências bibliográficas

  • CAPOZZOLI, U. (Ed.). História da Ciência no Brasil, 1500-1920: abertura para o conhecimento. Sci. Am. Bras., v.1, n.1, p.55-97, 2009.
  • LIMA, S.C.S. Nascimento da medicina brasileira. Cienc. Hoje, v.41, n.248, p.76-7, 2008.
  • PORTER, R. The greatest benefit to mankind: a medical history of humanity from antiquity to the present. London: Harper Collins Publishers, 1997.
  • SCLIAR, M. Saturno nos Trópicos São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • 1
    Hoje denominados farmacêuticos.
  • 2
    Na Inglaterra e na Alemanha havia também o barbeiro na base da escala profissional.
  • 3
    Também emitir um prognóstico, tarefa que demonstrava saber e experiência, essencial para inspirar confiança.
  • 4
    Não havia anestesia, portanto a dor provocada pelas intervenções era excruciante.
  • 5
    Não havia antibiótico, portanto era alta a letalidade pós-operatória por infecções.
  • 6
    Do grego:
    cheiros (mãos)
    ergon (trabalho).
  • 7
    Esta interdição estava na versão original do juramento de Hipócrates: "Eu não irei cortar, até mesmo para retirar cálculos, eu vou deixar estes procedimentos para os cirurgiões".
  • 8
    Baseado na razão, como anteriormente mencionado.
  • 9
    Exceto na Itália onde não havia esta distinção.
  • 10
    Como vimos, as Escolas formavam cirurgiões e a Academia, médicos.
  • 11
    Também conhecida como Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Porém, tanto pela denominação Escola, quanto pela duração do curso e pelo local de prática, também pode-se concluir que esta Escola inicialmente formava cirurgiões, como ocorria na Escola de Cirurgia da Bahia.
  • 12
    Dr. Manuel Luís Álvares de Carvalho (formado em Coimbra, como não poderia deixar de ser, já que, em 1813, ainda não se diplomavam médicos no Brasil).
  • 13
    Como vimos, médicos se formavam nas Academias.
  • 14
    Esta disciplina foi introduzida 1 ano depois, em 1814.
  • 15
    Mais tarde denominada Academia Imperial de Medicina.
  • 16
    Chamada, na época, de medicina operatória e de aparelhos.
  • 17
    Chamada, na época, de clínica interna.
  • 18
    Chamadas, na época, de doenças em mulheres e partos.
  • 19
    Chamadas, na época, de doenças em recém-nascidos.
  • 20
    Hoje, integrante da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • 21
    Hoje, integrante da Universidade Federal da Bahia.
  • 22
    Do original de Eça de Queiroz: "sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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