DEBATES
Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no ensino
Multidisciplinary, interdisciplinary and transdisciplinary teaching
Marília Freitas de Campos Pires
Professora do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da UNESP - Botucatu e doutoranda em Educação na UNICAMP.
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar
Gilberto Gil - Quanta
Já não são novas as discussões acerca da multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, e, mais recentemente, transdisciplinaridade, no meio acadêmico, porém muito ainda precisa ser colocado para clarear estas discussões. O IV Circuito PROGRAD da UNESP ao colocar para discussão a integração entre as disciplinas provocou, mais uma vez, as reflexões acerca da interdisciplinaridade. Naquele momento, vários textos foram publicados, e em um deles pude apresentar algumas das minhas contribuições sobre o tema1 e agora, com algumas modificações, volto a apresentá-lo. Portanto, é sobre as implicações destes temas na educação e no ensino que tento estas reflexões.
Apesar da necessidade que vem sendo sentida de integração entre as disciplinas, a realidade do ensino no Brasil, em todos os níveis, é a convivência cotidiana com uma organização de ensino fragmentada e desarticulada, em que os currículos escolares são constituídos por compartimentos estanques e incomunicáveis, que produzem uma formação humana e profissional de alunos e professores insuficiente para o enfrentamento das práticas sociais que exigem formação mais crítica e competente. Este caráter fragmentado e desarticulado tem origem na exigência material de formação dos indivíduos que a sociedade moderna, com suas formas de organização social, impôs às instituições educacionais, inclusive à escola em todos os níveis.
As relações de produção capitalista dão origem a diferentes processos de ruptura e alienação do gênero humano enquanto tal. As instituições educativas (a família, a escola e outras) sempre estiveram vinculadas às relações de produção. Com a Revolução Industrial, a escola vai-se consolidando como principal instituição de formação para o trabalho, não só em sua dimensão técnica - o capital beneficiou-se da desqualificação do trabalhador - mas principalmente em sua dimensão política: a formação cultural ideológica dos indivíduos para o trabalho industrial. Esta dimensão diz respeito à formação dos indivíduos para as novas relações de trabalho, na indústria, fundamentadas no controle do tempo, na eficiência, na ordem e disciplina, na subserviência, etc. (Enguita, 1989).
O ensino convive com a contradição que historicamente existe em seu interior. De um lado, coloca-o a serviço da formação das elites dirigentes e, de outro lado, produz conhecimentos críticos para a interpretação das relações sociais contraditórias que conduzem a seu enfrentamento e transformação. Neste espaço, a organização curricular fragmentada e desarticulada, disciplinar, reflete a cisão histórica das atividades humanas imposta pelo modelo industrial à maioria das populações (Frigotto 1995a). A rígida barreira existente entre as disciplinas, impostas pela ciência moderna às atividades de pesquisa e ensino, (Almeida Filho, 1997) reflete o trabalho industrial no qual o homem moderno, concretamente, vive sua atividade básica. Correndo o risco da simplificação desta idéia, pode-se dizer que o conhecimento veiculado nas escolas vem sendo organizado de forma tão estanque e fragmentado como a organização do trabalho industrial que coloca o indivíduo como objeto de ação parcial e obriga-o a constituir-se em um homem dividido, alienado, desumanizado. A realidade social e científica da modernidade é marcada por esta fragmentação (Manacorda, 1991, Almeida Filho, 1997).
Os setores mais críticos da sociedade vêm denunciando esta situação e empreendendo esforços para superá-la. A atual reorganização do capitalismo internacional (com características de pós-modernidade, pós-industrialismo, nova revolução industrial, revolução internacional - todos este são conceitos polêmicos que não cabe aqui discutir) traz modificações no mundo do trabalho (Antunes, 1995) e como não poderia ser diferente, na organização do ensino. As novas tecnologias presentes no trabalho industrial reorganizam as relações de trabalho e de produção. O taylorismo e o fordismo como modelo até então estabelecido começa a dar lugar a novos modelos como o toyotismo, por exemplo. Isto significa dizer que o controle do tempo, a produção em série e a massificação do trabalhador coletivo, que predominaram nas relações sociais de produção durante todo este século e que são a expressão do caráter fragmentado, alienador e desumanizador da organização do trabalho industrial, vêm sendo substituídos, ou pelo menos vêm convivendo com uma tendência de flexibilização nas formas organizativas, pelo estabelecimento de novos padrões de controle (gestão participativa, por exemplo) e pela busca da qualidade total, entre outras inovações. É importante considerar, também, o estrondoso crescimento do setor de serviços nas sociedades capitalistas, que é grande indicador das modificações no mundo do trabalho (Antunes, 1995).
Há uma tendência no setor produtivo, não mais apenas no discurso, de valorizar (o que significa de certo modo investir), na formação geral do conjunto das populações (Frigotto, 1995b). Com as modificações no mundo do trabalho, o nível de qualificação exigido dos novos trabalhadores se altera. Os meios de produção querem agora trabalhadores mais qualificados, flexíveis, com nova base técnica e científica (constituída fundamentalmente pela informática), trabalhadores multifuncionais (Dowbor, 1994).
A nova base técnica e científica que vem produzindo modificações profundas na organização da produção capitalista (Lojkine, 1995), de uma forma bastante geral, representa um certo avanço no que diz respeito ao caráter mecânico e fragmentado das formas organizativas do trabalho moderno. Assim como as formas vigentes até então, de trabalho parcializado e mecânico, influenciaram a organização de toda vida social, inclusive da escola e dos currículos escolares, esta nova situação traz uma tendência de maior flexibilidade na formação dos indivíduos. No entanto, estas modificações nas condições materiais de produção ainda estão muito longe de superar a alienação e a desumanização no campo do trabalho. O desenvolvimento completo, pleno, consciente e universal do ser humano exige muito mais do que modificações nas formas de exploração do trabalho; exige, de forma radical, a superação da própria exploração. De forma semelhante, a multidisciplinaridade, reflexo da multifuncionalidade, também é insuficiente para superar os problemas de fragmentação e desarticulação dos currículos nas escolas.
Considerando que a divisão do trabalho industrial nos últimos tempos influenciou a organização curricular, podemos entender que a reorganização do trabalho atual, com sua flexibilidade e exigência de multifuncionalidade, está influenciando a reorganização dos currículos. Muito se ouve falar em multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, no entanto, se buscarmos uma compreensão mais aprofundada deste novo discurso perceber-se-á que a idéia mais discutida e praticada, em geral, é a multidisciplinaridade (Petraglia, 1993).
Uma das questões que se coloca para discussão é a das diferenças de fundo entre os conceitos de disciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdiciplinaridade. É preciso identificar, conceitualmente, as diferenças entre eles. A idéia de integração e de totalidade que aparentemente perpassa estes conceitos tem referenciais teórico-filosóficos diferentes e inconciliáveis. Uma organização do ensino interdisciplinar é diferente da organização multidicisciplinar ou transdiciplinar e muito diferente da organização de ensino disciplinar. As diferenças aqui, a meu ver, não são de grau ou nível de integração como em geral aparece nos discursos dos educadores.
A multidisciplinaridade parece esgotar-se nas tentativas de trabalho conjunto, pelos professores, entre disciplinas em que cada uma trata de temas comuns sob sua própria ótica, articulando, algumas vezes bibliografia, técnicas de ensino e procedimentos de avaliação. Poder-se-ia dizer que na multidisciplinaridade as pessoas, no caso as disciplinas do currículo escolar, estudam perto mas não juntas. A idéia aqui é de justaposição de disciplinas (Almeida Filho, 1997).
A transdisciplinaridade tem sido discutida, de forma ainda vaga, parece trazer em seu interior a possibilidade de um vale tudo um pouco perigoso. Tentando algumas reflexões para clarear os pressupostos epistemológicos da transdisciplinaridade que, embora iniciais, ajudam-nos a entender as diferenças conceituais que aqui se fazem necessárias. A transdisciplinaridade insere-se na busca atual de um novo paradigma para as ciências da educação bem como para outras áreas, como na saúde coletiva, por exemplo (Almeida Filho, 1997). Busca, como referência teórica, o holismo e a teoria da complexidade, que, embora venham se constituindo em um referencial interessante, ainda estão pouco compreendidos (Grün, 1995). A totalidade, anunciada para o holismo tem sido tomada de forma factual; total é tudo e, assim, pode apresentar um caráter de a-historicidade. A totalidade não se esgota na soma das partes, mas constitui-se, num outro patamar, na síntese histórica da realidade. A idéia de rede, ou de comunicação entre os campos disciplinares parece reforçar esta tendência a-histórica. Sobre a idéia de rede discute Almeida Filho (1997) que, ao contribuir para uma redefinição do modelo de transdisciplinaridade, coloca o indivíduo, o sujeito da prática cotidiana, no caso, da prática pedagógica, como eixo das interações e, assim, pode-se identificar aqui a necessidade de historicizar as interações. Sujeitos - ou indivíduos - históricos, sociais, agentes sociais. Neste sentido, o caminho epistemológico da transdisciplinaridade parece comprometido pela desvalorização da materialidade histórica da organização da sociedade e da construção do indivíduo pela educação e pelo ensino. Assim, superação do caráter fragmentado da organização do ensino exige que se considere as relações sociais fragmentadas da organização capitalistas. Um vale tudo neste sentido é preocupante por correr o risco de não ir às últimas conseqüências na necessidade de transformação social para e pela construção de um projeto de ensino que tenha o processo de humanização do indivíduo como meta, humanização só possível na perspectiva de transformação da sociedade atual.
Quanto à interdisciplinaridade, essas discussões tomaram corpo nos anos setenta. Já no final dos anos sessenta o movimento marcadamente revolucionário dos estudantes universitários na Europa e na América Latina tinha como eixo a crítica à organização do ensino universitário e o papel do conhecimento na sociedade capitalista discutindo-se, entre outras coisas, a ruptura teoria e prática e a função social dos conteúdos escolares (Follari, 1995b). As instituições responderam a algumas exigências do movimento estudantil iniciando a busca de novos pressupostos que levaram a modificações estruturais e curriculares. A interdisciplinaridade apareceu, então, para promover a superação da super especialização e da desarticulação teoria e prática, como alternativa à disciplinaridade. Já aqui percebe-se que as discussões acerca da interdisciplinaridade têm inspiração na crítica à organização social capitalista, à divisão social do trabalho e a busca da formação integral do gênero humano.
A integração teoria e prática de que trata a interdisciplinaridade refere-se à formação integral na perspectiva da totalidade. O pensamento crítico que inspira esta discussão leva ao aprofundamento da compreensão sobre esta relação, colocando como de fundamental importância a definição da prática que se pretende relacionar à teoria (Follari, 1995b). Está claro que a relação integradora teoria e prática implica na construção de ações críticas transformadoras no interior da sociedade capitalista. Desta forma, a prática exige a reflexão teórica, é a superação da ação não pensada pela prática concreta, refletida, a ação concreta pensada (Saviani, 1991).
Isto significa dizer que a interdisciplinaridade é muito mais do que a compatibilização de métodos e técnicas de ensino, é, como defende Frigotto (1995a), uma necessidade e um problema relacionado à realidade concreta, histórica e cultural, constituindo-se assim como um problema ético-político, econômico, cultural e epistemológico. Assim:
"a interdisciplinaridade se apresenta como problema pelos limites do sujeito que busca construir o conhecimento de uma determinada realidade e, de outro lado, pela complexidade desta realidade e seu caráter histórico. Todavia esta dificuldade é potencializada pela forma específica que os homens produzem a vida de forma cindida, alienada, no interior da sociedade de classes." (Frigotto, 1995ª, p.31)
Trazendo essas reflexões para a compreensão de nosso tema - o ensino - a interdisciplinaridade pode ser tomada como uma possibilidade de quebrar a rigidez dos compartimentos em que se encontram isoladas as disciplinas dos currículos escolares. No entanto, ela não deve ser vista como uma superação das disciplinas, mas, como propõe Follari (1995b), uma etapa superior das disciplinas, disciplinas essas que se constituem como um recorte mais amplo do conhecimento em uma determinada área. Este recorte tem o objetivo de possibilitar o aprofundamento de seu estudo, é uma necessidade metodológica legítima e necessária, porém insuficiente para garantir a formação integral dos indivíduos.
A etapa superior referida diz respeito à busca da integração para muito além da troca de informação sobre objetivos, conteúdos, procedimentos e compatibilização de bibliografia entre os professores, pois é uma tentativa de maior integração dos caminhos epistemológicos, da metodologia e da organização do ensino nas escolas.
Follari (1995a) toma o conceito de organicidade para afirmar que a interdisciplinaridade é uma conceituação comum, orgânica, entre as várias disciplinas. No que diz respeito ao ensino, em todos os níveis, é possível adaptar os currículos a uma organização interdisciplinar. É neste sentido que vem sendo discutida a proposta de núcleos temáticos, nos currículos de graduação em algumas instituições de ensino superior e a proposta de eixos transversais interdisciplinares, no ensino fundamental e médio. Apesar das dificuldades para a construção do trabalho interdisciplinar numa estrutura de ensino como a nossa, estas propostas merecem ser analisadas, na perspectiva da especificidade de cada nível e cada curso, como uma possibilidade de viabilizar a construção do ensino interdisciplinar em nossas escolas.
Do ponto de vista teórico, acredito que o mais importante é garantir a categoria da historicidade nestas reflexões, historicidade material. O conceito de interdisciplinaridade parece o mais indicado na garantia desta necessidade, constituindo-se em um importante eixo organizativo da educação e do ensino.
Referências bibliográficas
- ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva II (1-2), 1997.
- ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. São Paulo: Cortez. 1995.
- DOWBOR, L. Os novos espaços do conhecimento. 1994. (mimeogr.
- ENGUITA, M. F. A face oculta da escola. Porto Alegre: Artes Médicas. 1989.
- FOLLARI, R. A. Algumas considerações práticas sobre interdisciplinaridade. In: BIANCHETTI, L., JANTSCH, A. Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes. 1995.
- ______ Interdisciplina y Dialectica: acerca de um malentendido. In: BIACHETTI, L., JANTSCH, A. Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes. 1995.
- FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais. In: BIANCHETTI. L., JANTSCH. A. Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes. 1995Ş.
- ______ Educação e formação humana: ajuste conservador e alternativa democrática. In: GENTIL, P.A.A., SILVA, T.T. (org.) Neoliberalismo, qualidade total e educação Petrópolis: Vozes. 1995b.
- GRÜN, M. Questionando os pressupostos epistemológicos da educação ambiental: a caminho de uma ética. Porto Alegre. 1995. Dissertação (Mestrado). UFRGS.
- LOJIKINE, J. A revolução informacional São Paulo: Cortez. 1995.
- MANACORDA, M. A. Marx e a pedagogia moderna São Paulo: Cortez. 1991.
- PETRAGLIA, I. C. Interdisciplinaridade São Paulo. Pioneira. 1993.
- SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 10. ed. São Paulo: Cortez. 1991.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Fev 1998