Resumos
O estudo analisou o processo de trabalho do apoiador institucional ao atendimento ofertado em Unidade Básica de Saúde Fluvial. Neste estudo qualitativo, foi entrevistada 100% da equipe de gestão das unidades móveis fluviais que atendem à população rural residente entre Manaus e Novo Airão. Resultados evidenciaram baixa institucionalidade do trabalho de apoiador, em paralelo à importância da imersão nas atividades itinerantes desenvolvidas no meio rural e à centralidade do trabalho vivo cotidianamente realizado. A carência de suporte administrativo às atividades da unidade fluvial obriga o apoiador a desenvolver amplo leque de ações logísticas, requeridas pelo regime de trabalho itinerante rural. Práticas verticalizadas de tomada de decisão e restrições de investimento em infraestrutura e logística fragilizam a interveniência do apoiador e das equipes multiprofissionais, em que pese a contribuição delas à extensão de cobertura provida pelas unidades móveis fluviais rurais.
Palavras-chave
Apoio institucional; Gestão em saúde; Saúde rural; Atenção Primária à Saúde
This study analysed work processes of the institutional supporter to the care services delivered by a mobile river clinic. We conducted a qualitive study using interviews with all members of the mobile river unit management team, which provides care services to the rural population between Manaus and Novo Airão. The findings show a low level of institutionalization of the work of supporters, the importance of immersion in the mobile activities developed in rural areas, and the centrality of daily living work. The lack of administrative support for the activities of the river unit means that the supporter has to develop a wide range of logistical actions required under the mobile rural work routine. Vertical decision-making and underfunding of infra-structure and logistics weaken the interventions of the supporter and multiprofessional teams, despite their contribution to the extent of coverage provided by mobile river units.
Keywords
Institutional support; Health management; Rural health; Primary health care
El estudio analizó el proceso de trabajo del apoyador institucional a la atención ofrecida en unidad básica fluvial de salud de la familia. Estudio cualitativo, se entrevistó al 100% del equipo de gestión de las unidades móviles fluviales que atienden a la población residente entre Manaus y Novo Airão. Los resultados mostraron una baja institucionalidad del trabajo de apoyador, en paralelo con la importancia de la inmersión en las actividades itinerantes desarrolladas en el medio rural y la centralidad del trabajo vivo cotidianamente realizado. La falta de apoyo administrativo a las actividades de la unidad fluvial obliga al apoyador a desarrollar una amplia gama de acciones logísticas, requeridas por el régimen de trabajo itinerante rural. Las prácticas verticalizadas de toma de decisiones y restricciones de inversión en infraestructura y logística fragilizan la intervención del apoyador y de los equipos multiprofesionales, a pesar de la contribución que realizan para la ampliación de la cobertura proporcionada por las unidades móviles fluviales rurales.
Palabras clave
Apoyo institucional; Gestión en salud; Salud rural; Atención primaria de la salud
Introdução
A Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) promoveu a implantação de Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF) visando ampliar a cobertura de Atenção Primária à Saúde (APS) para populações da Amazônia legal, provendo atendimento móvel para populações residentes em locais remotos11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.
2 Figueira MCS, Silva WP, Marques D, Bazilio J, Pereira JA, Vilela MFG, et al. Atributos da atenção primária na saúde fluvial pela ótica de usuários ribeirinhos. Saude Debate. 2020; 44(125):491-503.-33 Kadri MRE, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180613.
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A PNAB destaca o papel do apoio institucional para qualificar os processos de trabalho na Atenção Básica (AB)11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017. e aprimorar os modos de gerir a atenção à saúde44 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos - a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 5a ed. São Paulo: Hucitec; 2015.. Instituído por meio da Política Nacional de Humanização55 Brasil. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004., o apoio institucional é pautado na interdisciplinaridade, participação e cooperação entre trabalhadores e usuários na promoção da saúde. Dentre as atividades do apoiador, destacam-se mediação de conflitos entre trabalhadores, gestores e usuários; suporte para implantação do acolhimento à demanda espontânea; apoio para a realização do diagnóstico situacional do território; e elaboração do perfil epidemiológico da população local66 Brasil. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade de Atenção Básica (PMAQ). Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Tal perfil favorece o planejamento e a reorganização de processos de trabalho das equipes77 Souza KR, Baumgarten A, Frichembruder K, Bulgarelli PT, Santos CM, Bulgarelli AF. O apoio institucional e as ações das equipes de saúde bucal na atenção primária à saúde no Brasil. Rev APS. 2020; 23(1):26-39. doi: https://doi.org/10.34019/1809-8363.2020.v23.16480.
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, superando modelos administrativos verticalizados e pouco permeáveis ao contexto social e sanitário na AB44 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos - a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 5a ed. São Paulo: Hucitec; 2015.,88 Brito CS, Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Prado NMBL. Apoio institucional na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2021; 27(4):1377-88. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.00212021.
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A literatura disponível sobre o tema recomenda que o apoiador leve em conta as características da população e do ambiente no qual atua para subsidiar o planejamento e a formulação de estratégias de atenção à saúde44 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos - a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 5a ed. São Paulo: Hucitec; 2015.,99 Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira N Jr, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1:983-95. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0324.
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São recomendações ainda mais relevantes quando o trabalho do apoiador é transposto para os cenários rurais amazônicos, cujas características socioambientais são largamente desconhecidas. A tal contexto soma-se o desafio da atuação itinerante, inerente ao trabalho nas UBSFs, em contraponto às rotinas cotidianas das unidades básicas urbanas. Cabe, portanto, investigar os modos de atuação de apoiadores institucionais imersos nas amplas distâncias geográficas amazônicas, que demandam complexa atuação administrativa e logística necessárias à provisão de insumos e do cuidado nessas áreas remotas22 Figueira MCS, Silva WP, Marques D, Bazilio J, Pereira JA, Vilela MFG, et al. Atributos da atenção primária na saúde fluvial pela ótica de usuários ribeirinhos. Saude Debate. 2020; 44(125):491-503.,33 Kadri MRE, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180613.
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O artigo analisa a produção discursiva de apoiadores institucionais relativa ao processo de trabalho de gestão e provisão de serviços ofertados em UBSF que provê atenção à saúde da população rural-ribeirinha do município de Manaus.
Metodologia
Estudo qualitativo e exploratório interessado na dinâmica de atuação, nas produções discursivas de apoiadores institucionais e no pressuposto de que estas expressam os sentidos que estes atribuem às suas atividades e orientam as mediações estabelecidas entre apoiadores, equipes de saúde da família e gestores. Reconhece-se que os significados e a intencionalidade dos atos dos sujeitos são elementos capazes de expressar o trabalho vivo e as relações estruturais das instituições e da sociedade1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11a ed. São Paulo: Hucitec; 2008..
A pesquisa foi desenvolvida em Manaus, dirigida a profissionais do Distrito de Saúde Rural da Secretaria Municipal de Saúde que atende populações rurais desse município, incluídas aquelas atendidas pelas UBSFs. Os dados foram coletados entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, totalizando 14 horas de gravação. Sondagem prévia evidenciou que o trabalho de apoiador era desenvolvido não apenas pelo profissional oficialmente designado para a tarefa, mas também por outros membros da equipe de gestão do Distrito de Saúde Rural (Disar). Em consequência, estendeu-se a coleta de dados para 100% (11) dos integrantes das últimas duas equipes de gestão do Distrito Rural que se sucederam nos cargos após iniciada atuação dos apoiadores na UBSF. Foram entrevistados cinco integrantes da equipe de gestão que atuou no período de 2014 a 2019 e seis integrantes do grupo de gestão que atuava na época da coleta de dados, ocupando os cargos de gerente do Disar; chefia da Divisão de Atenção à Saúde; chefia da Vigilância em Saúde; apoiador institucional; chefia de imunização; chefe do Núcleo de Monitoramento e Avaliação (Numoa); e chefias de transporte terrestre e fluvial.
As entrevistas foram guiadas por roteiro semiestruturado com duas partes: 1ª) identificação sociolaborativa do entrevistado, contendo cinco questões relativas a idade, sexo, formação, qualificação e manejo de normas técnicas para o trabalho; 2ª) caracterização das rotinas do trabalho e estratégias de planejamento de apoio institucional em cenário rural, contendo 14 questões abertas, cujo teor tomou como referência inicial as normas técnicas que orientam a atuação do apoiador e propiciou a coleta de informações sobre o trabalho efetivamente realizado pelo entrevistado.
As entrevistas foram audiogravadas e transcritas para posterior análise. Os dados relacionados a atividades sociolaborativas foram analisados descritivamente, por meio de números absolutos e percentuais. Os dados passaram pelas fases de leitura flutuante, identificação de unidades de contexto e de trechos significativos, leitura exaustiva e organização de um acervo temático1111 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.. O procedimento gerou um conjunto de temas de interesse que se enquadravam nas categorias analíticas prévias definidas no projeto (atribuições do apoiador) e outros que foram recategorizados em função do material que emergiu do campo. A análise foi apoiada pela teoria da Análise de Conteúdo Categorial1111 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977. e pelo software MAXQDA analytics pro 2020.
Da leitura dos dados de campo emergiram duas grandes categorias de análise, cada uma com duas subcategorias: a) ações de apoio institucional em contexto rural, com a.1: processo de trabalho e a.2: limites do apoio institucional; e b) conhecimento do território rural-ribeirinho: b.1: temporalidades diversas e b.2: invisibilidade do rural. Na primeira categoria, descreveu-se o processo de trabalho e os limites de atuação do apoiador institucional em cenário rural. A segunda categoria explorou o conhecimento do apoiador sobre as características do cenário rural e os entraves vivenciados com a gestão central.
O conceito de trabalho vivo1212 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 71-112. é entendido como o trabalho no exato momento em que é executado. Segundo os autores, ao trabalhar, o indivíduo transforma a natureza e a si mesmo, alterando seu pensamento e a operacionalização de suas ações1212 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 71-112.. Tais características favorecem o entendimento das apropriações e recriações singulares dos sujeitos que operacionalizam as políticas públicas.
Para manter o sigilo e privacidade dos entrevistados, adotou-se a denominação gestão local (GL), seguida do número atribuído a cada entrevistado (1°GL-11°GL).
O estudo é vinculado à pesquisa “Estudo exploratório das condições de vida, saúde e acesso aos serviços de saúde de populações rurais ribeirinhas de Manaus e Novo Airão, Amazonas” (Comitê de Ética/CAAE: 57706316.9.0000.0005).
Resultados e discussão
A UBSF de interesse da pesquisa presta assistência itinerante a 41 comunidades ribeirinhas localizadas na calha do Rio Negro, com 2.342 residentes. As comunidades dispõem-se em área de reserva ambiental, com acesso exclusivo por via fluvial. Apenas 40% das comunidades são beneficiárias do programa “Luz para todos”. Os demais domicílios dispõem apenas de eletricidade intermitente, originada de um gerador doméstico de energia. O acesso à rede telefônica e de internet é precário. A localidade mais remota dista 12 horas embarcadas. O perfil mórbido caracteriza-se pela superposição de doenças causadas por vetores e doenças crônicas não transmissíveis.
A equipe que atende na UBSF é formada por médico, enfermeiro, dois técnicos de enfermagem, um dentista, um técnico de higiene dental, um farmacêutico e agentes comunitários de saúde fixados no território rural. As viagens de atendimento compreendem dois deslocamentos mensais com duração de dez dias cada, provendo atenção básica às comunidades.
Na tabela 1, apresenta-se a caracterização sociodemográfica dos entrevistados e relacionada ao apoio institucional:
Caracterização sociodemográfica de apoiadores institucionais e profissionais de gestão do Distrito de Saúde Rural, 2022.
A enfermagem foi a categoria profissional mais frequente (45,5%) entre os entrevistados. A predominância de enfermeiros em cargos de gestão está ligada ao perfil de atribuições desse profissional nos marcos legais e programáticos da APS1313 Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRFG. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2018; 71 Supl 1:704-9., reafirmando a importância de suas atividades no âmbito da PNAB11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.. Somente um (9,1%) entrevistado exercia cargo comissionado. Somente um apoiador era reconhecido e designado institucionalmente como tal; porém, verificaram-se tarefas de apoiador exercidas pelos demais membros da equipe de gestão do Disar. O perfil dos vínculos empregatícios difere do predomínio de vínculos precários em equipes que atuam em municípios do interior do Amazonas. O predomínio de profissionais concursados favorece o comprometimento e a continuidade das ações de saúde e a manutenção da longitudinalidade do cuidado, verificados nas entrevistas1414 Garnelo L, Vieira JMR, Souza M, Rocha ESC, Gonçalves MJF. Avaliação externa do PMAQ no Amazonas: experiências e narrativas sobre a implementação da Política Nacional de Atenção Básica. In: Fausto MCR, Fonseca HMS, organizadores. Rotas na atenção básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes Editora; 2014. p. 58-87..
No item “qualificação profissional”, 54,5% dos entrevistados participaram de capacitações para tarefas de apoio institucional; 81,8% referiram contato prévio com materiais de apoio, oriundos da própria Secretaria e do Ministério de Saúde. A média de horas dos cursos de capacitação realizados foi de 144 horas, variando entre quarenta e 360 horas. Nenhum entrevistado referiu qualificação voltada para saúde de populações rurais.
Ações de apoio institucional em contexto rural
Processo de trabalho do apoiador institucional
Na organização do trabalho, os participantes apontaram dificuldade em atender às expectativas da equipe da UBSF para equacionar carências de insumos e de infraestrutura, não solucionados pelos gestores da sede.
As demandas relacionadas à infraestrutura das Unidades de Saúde em territórios rurais ribeirinhos consomem muito do trabalho do apoiador. Meios precários de comunicação e ausência de saneamento básico e de energia elétrica comprometem a execução dos serviços ofertados na UBSF.
[...] A unidade rural nunca pode ser comparada a uma urbana. Ela tem que ser uma unidade reforçada de tudo: de insumos, de energia elétrica e outras necessidades [...]. Faltam geradores de energia e caixas d’água potentes para as Unidades de Saúde e tudo piora devido à falta de energia. Falta água porque a bomba não bombeia; aí você tem a luz do dia, mas não tem a água, devido à falta de energia para bombear.
(6°GL)
Após a implantação do apoio institucional, as equipes identificaram a necessidade de imersão do apoiador nas viagens mensais da UBSF, iniciando-se uma convivência cotidiana entre apoiador e equipe. Para os entrevistados, essa forma de atuar gerou uma familiarização entre apoiador e equipe, pois a atuação em regime embarcado gera intimidade, alianças e solidariedade pouco habituais no trabalho urbano em APS, mais formal e emocionalmente distanciado.
Na fluvial, como apoiador técnico presente, tive que acompanhar, mas não só acompanhar: tive que fazer parte do processo em si. Na zona terrestre você não tem isso de conviver com a equipe 24 horas. Não existe isso!
(9°GL)
O conhecimento do território e das populações é um dos fundamentos do trabalho do apoiador no contexto em que atuará1515 Fernandes JA, Figueiredo MD. Apoio institucional e cogestão: uma reflexão sobre o trabalho dos apoiadores do SUS Campinas. Physis. 2015; 25(1):287-306.. No espaço rural, o desconhecimento das necessidades locais se expressa também na necessidade do apoiador de participar in loco das viagens realizadas na UBSF.
As vivências e reflexões dos apoiadores no campo produziram modificações no processo de trabalho. Entre as reformulações feitas, os entrevistados apontaram a implantação de reuniões periódicas de alinhamento.
Nós criamos essas reuniões. Foi tirado um dia da viagem para que eles pudessem reunir com a equipe do distrito e os técnicos do controle das ações. Aí eles passaram a conversar com suas áreas técnicas [...] e se sentiram mais seguros porque cada área técnica trabalha com seu responsável técnico, tira dúvidas e consegue trabalhar.
(4°GL)
Na área rural, a atuação do apoiador foi muito além de promover o vínculo da equipe com a gestão por meio de reuniões de alinhamento. Na UBSF, o apoiador também assumiu responsabilidades inexistentes em Unidades Básicas de Saúde urbanas, tal como responder às demandas de logística e de provisão de insumos; responsabilizar-se pela manutenção de equipamentos e da embarcação; lidar com fornecedores; e tomar outras providências necessárias para garantir a descentralização de materiais para os membros da equipe que não viajam na UBSF por atuarem permanentemente nas localidades remotas.
[...] Mas o barco não é só a equipe. Ele tem outros processos, como a gerência do trabalho da tripulação, dos serviços gerais, insumos e a alimentação (para as viagens). Tem todo um outro trabalho que aí já é de direção. Eu fazia também esse processo.
(3°GL)
No relato dos entrevistados sobre as funções desempenhadas, destacou-se a resolução de conflitos, seja entre a comunidade e a equipe de saúde, seja entre os profissionais da equipe.
Inúmeras vezes tinha a mediação de conflitos. Como eu falei, a minha figura não era só de um apoio institucional, era praticamente a figura de um mediador de conflitos. Além do conflito da equipe, existia o conflito com a tripulação, conflito da comunidade com a equipe [...].
(4°GL)
Os entrevistados ressaltaram também a necessidade de apoio de líderes comunitários para a realização de atividades intersetoriais e de vacinação:
Nas ações no território, você tem que pedir o apoio do líder comunitário para fazer o suporte à vacinação volante. Então sim, esta era uma prática.
(5°GL)
O desenvolvimento da Educação Permanente foi a terceira prática mais referida pelos entrevistados. Ao menos uma vez no ano, tais atividades eram desenvolvidas a partir de temáticas demandadas pela equipe de saúde fluvial.
Todas as vezes no final do ano captava-se a necessidade de Educação Permanente [com] eles mesmos, no processo de trabalho. Era algo até exigido na avaliação de desempenho: que o servidor desse sugestões sobre a necessidade de cursos e treinamento. Esse levantamento não era feito só por mim, mas por todos.
(7°GL)
Eu lembro bem que houve essa capacitação da vacina BCG. Foi uma solicitação deles, mesmo que na época não fizéssemos BCG na unidade fluvial.
(5°GL)
Entre o rol de atribuições do apoiador, uma das ações menos referidas foi o uso de mecanismos disparadores de reflexão para reorganização do trabalho da equipe envolvendo todos os profissionais. Segundo os entrevistados, as práticas imediatistas para a resolução de problemas, então vigentes na secretaria, não favoreciam esse tipo de atividade.
Não tivemos a oportunidade. Tínhamos muito aquela responsabilidade de resolver de forma imediatista os problemas. Não conseguíamos sentar e avaliar se precisava implementar alguma coisa a médio/longo prazo. Era mais a curto prazo mesmo.
(2°GL)
Limites do apoio institucional
Entre os obstáculos que limitam o apoio institucional em meio rural, os entrevistados apontaram as grandes distâncias; o regime assistencial intermitente, inerente à atuação da equipe da UBSF; e relativo desconhecimento, pelos profissionais da UBSF e gerentes, do papel do apoiador institucional, situação agravada pelo insuficiente planejamento das atividades.
A maioria dos entrevistados alegou participar de reuniões para a discussão das demandas das equipes. Porém, o conteúdo delas – não raro resultando em conflitos – girava frequentemente em torno das horas excedentes trabalhadas nas viagens de campo.
Na UBS fluvial, um grande problema é a peculiaridade da carga horária deles. Por parte de alguns servidores há uma queixa: eles querem que a Semsa contabilize a carga horária deles embarcados como 24 horas [de trabalho]. E aí tem toda uma discussão em cima disso [...].
(10°GL)
A raiz do conflito se deve à defasagem entre as horas contratadas (quarenta horas semanais = 160 horas mensais para a equipe da Estratégia Saúde da Família) e as horas efetivamente trabalhadas na viagem de dez dias de duração (240 horas, se computadas 24 horas para cada dia embarcado). Embora garantido por lei, o cômputo da totalidade de horas do trabalho embarcado não era f eito pela secretaria, que registrava somente oito horas diárias a carga horária cumprida pelas equipes nos dez dias das viagens mensais. Mesmo reconhecido como um assunto presente em todas as pautas de discussões entre equipes da UBSF e o grupo de gestão do Disar, não houve solução à vista.
Tudo vai depender da criação e aprovação de leis e aprovação lá na Câmara. Então é um processo muito demorado que esbarra em muita luta. Você sabe que quando se trata de financeiro, o orçamento é sempre limite. O governo quer criar mais artifícios para não gastar.
(4°GL)
Além da ausência regulamentação da carga horária de trabalho, os entrevistados reiteraram a singularidade do regime de trabalho dos profissionais em unidades fluviais, que não se enquadra no modelo vigente de AB.
A Semsa não pode pagar plantão. Na Atenção Básica não existe isso. O que pode pagar é horário estendido e mesmo no horário estendido você não paga plantão e nem adicional noturno, porque a pessoa não está trabalhando a noite toda [...]. Mas para pagar [o regime embarcado] a SEMSA teria que se embasar legalmente. Não adianta pagar e depois o Ministério Público chegar e dizer: “Por que você pagou? Você não podia pagar isso”. Então é muito complicado.
(6°GL)
Os depoimentos do entrevistado, longe de expressarem a posição de mediação esperada para um apoiador44 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos - a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 5a ed. São Paulo: Hucitec; 2015.,88 Brito CS, Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Prado NMBL. Apoio institucional na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2021; 27(4):1377-88. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.00212021.
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, inclinam-se mais a justificar o descumprimento de obrigações trabalhistas. Nesse sentido, os entrevistados corroboram decisões de gestão vigentes na secretaria: abafar o fato de que os profissionais da UBSF não têm a possibilidade de retornar para suas casas quando finda o turno de trabalho e ignorar direitos garantidos na legislação que regula o trabalho em regime embarcado. Lidou-se com o tema como se o trabalho praticado na UBSF fosse equivalente ao trabalho em UBS urbana.
Questões de cunho trabalhista sempre estiveram presentes nas demandas repassadas pelas equipes ao apoiador. A ausência de parâmetros legais instituídos pela secretaria e voltados para o amparo dos profissionais de saúde que atuam em regime de trabalho embarcado mostrou-se causa de constante tensão e inquietação entre as equipes de saúde. Como medida preliminar, a secretaria homologou em janeiro de 2020 a portaria n. 28, que dispõe sobre a jornada de trabalho dos profissionais que atuam nas UBSFs. Não foi possível avaliar no âmbito deste estudo se a portaria atende às inquietações dos profissionais em relação ao regime de trabalho.
As características do trabalho do apoiador na UBSF guardam afinidade com os achados na literatura77 Souza KR, Baumgarten A, Frichembruder K, Bulgarelli PT, Santos CM, Bulgarelli AF. O apoio institucional e as ações das equipes de saúde bucal na atenção primária à saúde no Brasil. Rev APS. 2020; 23(1):26-39. doi: https://doi.org/10.34019/1809-8363.2020.v23.16480.
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,1616 Ruiz ENF, Gerhardt TE. Políticas públicas no meio rural: visibilidade e participação social como perspectivas de cidadania solidária e saúde. Physis. 2012; 22(3):1191-209. que apontam o apoiador como profissional munido de ferramentas valiosas para a superação de modelos hegemônicos ainda vigentes nas práticas de saúde. A superposição de modelos verticalizados de gestão e o conhecimento insatisfatório sobre a população assistida contribui para perpetuar barreiras de acesso aos serviços e desigualdades no atendimento às populações rurais1515 Fernandes JA, Figueiredo MD. Apoio institucional e cogestão: uma reflexão sobre o trabalho dos apoiadores do SUS Campinas. Physis. 2015; 25(1):287-306.,1616 Ruiz ENF, Gerhardt TE. Políticas públicas no meio rural: visibilidade e participação social como perspectivas de cidadania solidária e saúde. Physis. 2012; 22(3):1191-209..
Aspectos logísticos das viagens de atendimento monopolizavam o trabalho do apoiador. Ofertar ações de saúde em locais remotos exige ações de suporte, inabituais nas unidades urbanas de saúde. Os dados sugerem que as chefias imediatas não conseguiam apresentar respostas, porque uma solução satisfatória demandaria soluções administrativas de níveis gerenciais superiores ao Disar na estrutura da secretaria.
Eu fiquei com uma situação que era fazer o equipamento de Odontologia funcionar direto por dez dias, e é impossível. Quando chegava na metade da viagem ele quebrava ou ficava com problema [de funcionamento] e no resto da viagem não tinha atendimento. Então eu trouxe essa demanda para o distrito: “Olha, se vocês não me apoiarem, como que eu vou apoiar a equipe? É uma necessidade que vai além de mim e da equipe; a solução é daqui”. Foi quando entramos em uma grande briga e conseguimos um técnico [de manutenção do equipamento] para viajar. Mas a Semsa tinha que pagar a diária desses técnicos; então nós conseguimos por um ano ou dois. Depois não teve mais recurso para isso.
(4°GL)
Rotinas de logística e manutenção que podem ser feitas com regularidade nas unidades urbanas se tornam um grande obstáculo ao atendimento itinerante interiorizado. Em consequência, o apoiador passou a absorver tarefas administrativas e de manutenção, empregando muito tempo e esforço na busca de solucioná-las, em detrimento das atribuições mais afeitas para seu perfil de atuação.
O desenvolvimento de atividades não prescritas, mas efetivamente realizadas pelo apoiador, como dirigir veículos, garantir provisões às equipes e confeccionar relatórios em condições de carência de infraestrutura elucidam as características do trabalho vivo desempenhado, excedendo os limites de suas atribuições1212 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 71-112.. Os entrevistados esforçavam-se para garantir condições para atuação das equipes, mesmo não contando com as condições necessárias, que deveriam ser providas rotineiramente pela secretaria de saúde.
A ausência de um sistema regular de manutenção também limita a garantia do funcionamento dos meios de transporte, imprescindíveis para o acesso às comunidades rurais.
Estou enfrentando o déficit de material e de lanchas de transporte para o trabalho nas comunidades. Se houver alguma demanda de atendimento ou de remoção de pacientes que ocorra após a saída da UBSF de uma comunidade, não terei como atender. Então essa é uma grande dificuldade: a logística em si fica quebrada devido à falta de material, de mais uma lancha, de mais duas lanchas, para que a chegada de materiais seja viável.
(8°GL)
Problemas estruturais implicam em inadequada oferta de serviços, agravados pelo insuficiente conhecimento das características do território e das necessidades da população e pela falta de escuta da experiência acumulada pela equipe. Em consequência, os esforços do apoiador são direcionados para a criação de estratégias substitutivas ao inexistente suporte logístico, que a secretaria não se mostra capaz de prover.
Eu sei que muitas coisas foram pensadas a nível de gestão, mas que não cabem para o contexto rural. Um exemplo: “Vamos comprar cadeira de rodas”. Aí eu tenho cadeira de rodas em uma unidade rural, mas não tenho nem corredor para transitar com ela e nem o cadeirante tem um caminho plano para chegar na unidade.
(10°GL)
Em que pese o cenário adverso, os apoiadores se esforçaram em moldar seu fazer diário às vivências compartilhadas e construídas com equipes da UBSF, dedicando-se a garantir suporte aos profissionais, buscando vias de comunicação com outros níveis de gestão e obtendo nesse processo resultados similares aos achados de outras regiões do país77 Souza KR, Baumgarten A, Frichembruder K, Bulgarelli PT, Santos CM, Bulgarelli AF. O apoio institucional e as ações das equipes de saúde bucal na atenção primária à saúde no Brasil. Rev APS. 2020; 23(1):26-39. doi: https://doi.org/10.34019/1809-8363.2020.v23.16480.
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,1717 Garnelo L, Lima JG, Rocha ESC, Herkrath FJ. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saude Debate. 2018; 42 Spec 1:81-99.. Ressalta-se, porém, que tal extrapolação também afasta o apoiador de atividades que deveriam ser prioritárias no seu dia a dia, como a gestão democrática das relações interprofissionais44 Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos - a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 5a ed. São Paulo: Hucitec; 2015..
Além de questões estruturais, outras atividades de cunho administrativo e operacional geraram o acúmulo de tarefas múltiplas entre os que atuam no apoio institucional.
[...] Tínhamos problemas hidráulicos, elétricos, falta de insumos, equipamentos, essas coisas [...]. Falta de alimentação e por vezes de água para a equipe beber na viagem. Tudo isso eu precisava mediar.
(4°GL)
Apesar de termos setor de logística e transporte, eventualmente eu preciso ir lá e dirigir um carro para resolver problemas. Dirigir o carro para a secretaria não é minha atividade, mas dependo desse transporte para desenvolver a minha; então eu pego o carro e vou lá.
(6°GL)
As tarefas de apoio institucional foram desenvolvidas de forma direta e indireta por diversos integrantes da equipe de gestão do Disar. Por um lado, esse engajamento é positivo, pois promove o comprometimento dos outros membros da equipe e reduz a sobrecarga do apoiador. Por outro lado, a amplitude das tarefas assumidas pelo apoiador não apenas expressa a boa vontade e o comprometimento da equipe de gestão, mas também evidencia insuficiente investimento para prover meios e profissionais necessários ao atendimento em locais remotos.
Conhecimento do território rural-ribeirinho
Temporalidades diversificadas
Os entrevistados reconhecem que a temporalidade se expressa de modo diferente para moradores da cidade e da área rural. A rapidez de resposta habitualmente requerida às equipes de saúde representa uma barreira importante para o desenvolvimento adequado do processo de trabalho.
O tempo sempre foi um grande dificultador de tudo: do processo de trabalho, realização de ações, organização da agenda.
(9°GL)
Entrevistados apontaram que o tempo requerido para a execução das atividades no meio rural é maior do que o necessário ao trabalho urbano, considerando impossível atender às demandas do nível central com a rapidez desejada pelos gestores. Entendem que o tempo para execução das ações em comunidades rurais teria que ser ampliado, dada a impossibilidade de realizar tarefas com a mesma velocidade com que são feitas nas UBS urbanas.
Distância geográfica, singularidades logísticas e modos de vida das famílias nas comunidades instituem ritmos distintos no trabalho em saúde, o que deveria ser levado em conta, entretanto, isso não ocorre na medida necessária1717 Garnelo L, Lima JG, Rocha ESC, Herkrath FJ. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saude Debate. 2018; 42 Spec 1:81-99.,1818 Magalhães DL, Matos RS, Souza AO, Neves RF, Costa MMB, Rodrigues AA, et al. Acesso à saúde e qualidade de vida na zona rural. Res Soc Dev. 2022; 11(3):e50411326906.:
A questão logística, a acessibilidade às comunidades e até as características das próprias unidades podem demandar um esforço e um custo maior para chegar na casa de um comunitário. A falta de comunicação e de acessibilidade demandam um tempo maior para realizar algumas atividades e muitas vezes não nos dão o tempo necessário. Tem atividades que precisamos executar, mas que infelizmente acabamos não fazendo porque o tempo é insuficiente.
(6°GL)
Embora a integralidade das ações ofertadas na UBSF tenha sido reconhecida como incipiente, as condições de atendimento na UBSF não diferem significativamente da capacidade instalada nas unidades básicas da região Norte1919 Cadorin E, Vieira D, Silva EF, Ferreira E, Carvalho R. O Apoio Institucional vivenciado na Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco - Acre. In: Pinheiro R, Lopes TC, Silva FH, Silva AG Jr, organizadores. Práticas de Apoio e a integralidade no SUS: por uma estratégia de rede multicêntrica de pesquisa. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS-UERJ, ABRASCO; 2014. p. 17-36.,2020 Paschoalotto MAC, Passador JL, Passador CS, Endo GY. Regionalização da saúde no Brasil: desigualdades socioeconômicas e na performance em saúde. Gest Reg. 2022; 38(113):313-27. doi: https://doi.org/10.13037/gr.vol38n113.7017.
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, reconhecidas na literatura como carentes de boas instalações e marcadas pela fragilidade das ações intersetoriais e de promoção da saúde1414 Garnelo L, Vieira JMR, Souza M, Rocha ESC, Gonçalves MJF. Avaliação externa do PMAQ no Amazonas: experiências e narrativas sobre a implementação da Política Nacional de Atenção Básica. In: Fausto MCR, Fonseca HMS, organizadores. Rotas na atenção básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes Editora; 2014. p. 58-87.,1717 Garnelo L, Lima JG, Rocha ESC, Herkrath FJ. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saude Debate. 2018; 42 Spec 1:81-99.,2121 Bousquat A, Giovanella L, Fausto MCR, Fusaro ER, Mendonça MHM, Gagno J, et al. Tipologia da estrutura das unidades básicas de saúde brasileiras: os 5 R. Cad Saude Publica. 2017; 33(8):e00037316..
O tempo de permanência das equipes da UBSF em cada comunidade também é objeto de reflexão, pois é insuficiente para atender aos requisitos da oferta de cuidados primários de saúde.
É pouco tempo para muita coisa e você acaba fazendo, querendo ou não, um processo campanhista, que queremos reduzir cada vez mais.
(6°GL)
Não tem como você fazer Estratégia [Saúde da Família]; você faz ação de saúde: você chega no barco, atende todo mundo, sobe no barco e vai para outra comunidade. Que tipo de estratégia você fez ali? Nenhuma! Você fez uma ação em saúde, consultou, medicou e foi embora, deu a medicação e tudo mais.
(4°GL)
O tempo referido no discurso dos entrevistados também remete a um atributo essencial da APS: a longitudinalidade. Em que pese o regime itinerante do serviço, a mesma equipe desenvolve o trabalho há bastante tempo, conhecendo o território e tendo formado vínculos na comunidade22 Figueira MCS, Silva WP, Marques D, Bazilio J, Pereira JA, Vilela MFG, et al. Atributos da atenção primária na saúde fluvial pela ótica de usuários ribeirinhos. Saude Debate. 2020; 44(125):491-503..
O bom do rural fluvial é que você não trabalha com aquela quantidade enorme de pessoas; e os que vão, vão todos os meses que eles se sentem como se fossem parte da equipe, como se fosse uma família.
(4°GL)
Conhecimento do território e a invisibilidade do rural
Os discursos dos entrevistados evidenciam que grande parte das ações desenvolvidas na cena rural são adaptações improvisadas de um modelo de atenção moldado para contextos urbanos.
Mas isso é um regime de trabalho feito para a cidade. Nada se criou para o rural. E como vamos fazer no ambiente rural? Que maneira vamos fazer? Isso é um grande impasse, ainda sem resposta.
(2°GL)
É diferente por todos os fatores: questão logística, vulnerabilidade social, baixa densidade populacional, falta de energia elétrica, falta de transporte público, falta de conectividade. Logística pesada!
(9°GL)
A falta de eletricidade, de equipamentos de informática e de acesso à internet repercutem negativamente no atendimento, pois obstaculizam o acesso ao sistema de regulação (Sisreg), o registro da produção, as notificações de agravos e outros dados requeridos pelos sistemas de informação em saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Tais limitações comprometem o conhecimento do perfil de necessidades e o planejamento aos seus atendimentos:
Essa construção do perfil epidemiológico deveria ser feita pelo distrito de saúde rural, mas nossa base de informação estava há quatro meses parada, porque todo registro está centralizado aqui [na cidade]. Tem produção do ano passado que não foi digitada ainda, [...] por causa desses entraves que eu apontei: a falta de conectividade, falta de energia, logística pesada, essa vulnerabilidade social e econômica. Essa distância inviabiliza horrores para nós. Não tenho como construir o perfil epidemiológico do distrito rural.
(9°GL)
Esforços extraordinários são feitos para viabilizar o registro de informações, que deveria ocorrer de forma rotineira:
No fluvial, existe o transporte realizado pelo controle das endemias. Uma vez por semana eles fazem a busca da produção dos agentes de endemias que atuam na área fluvial. Nós chegamos a fazer o monitoramento junto com o pessoal das endemias que vai buscar a produção. Saíamos daqui às cinco horas da manhã e retornávamos às vinte horas. Foi a única maneira que nós achamos para recuperar a produção, mas é muito desgastante.
(4°GL)
Restrições de infraestrutura agravam a escassez de informações sobre o perfil de agravos no território e decorrem, no entendimento dos entrevistados, da falta de prioridade dada à população rural-ribeirinha. As falas apontaram para um problema de fundo que chamam de “invisibilidade do rural”, ou seja, as autoridades não enxergam e não valorizam os problemas da população rural-ribeirinha e pouco agem para solucioná-los1818 Magalhães DL, Matos RS, Souza AO, Neves RF, Costa MMB, Rodrigues AA, et al. Acesso à saúde e qualidade de vida na zona rural. Res Soc Dev. 2022; 11(3):e50411326906..
O apoio institucional tem potencialidade para promover a horizontalização das relações e aproximar as instâncias de nível central das equipes de ponta e da comunidade, com resultados positivos no aprimoramento da gestão e execução da polícia de AB2222 Casanova AO, Teixeira MB, Montenegro E. O apoio institucional como pilar na cogestão da atenção primária à saúde: a experiência do Programa TEIAS - Escola Manguinhos no Rio de Janeiro, Brasil. Cienc Saude Colet. 2014; 19(11):4417-26.,2323 Falleiro LM. Experiências de Apoio Institucional no SUS: da teoria à prática. Porto Alegre: Rede Unida; 2014.. Porém, a atuação do apoiador da UBSF enfrenta uma ordem muito ampla de demandas que extrapolam largamente as atribuições desse perfil profissional, traduzindo carências conhecidas da rede de APS da região norte1919 Cadorin E, Vieira D, Silva EF, Ferreira E, Carvalho R. O Apoio Institucional vivenciado na Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco - Acre. In: Pinheiro R, Lopes TC, Silva FH, Silva AG Jr, organizadores. Práticas de Apoio e a integralidade no SUS: por uma estratégia de rede multicêntrica de pesquisa. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS-UERJ, ABRASCO; 2014. p. 17-36., marcada por um modelo de gestão fragmentário e centralizador1212 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 71-112.,1515 Fernandes JA, Figueiredo MD. Apoio institucional e cogestão: uma reflexão sobre o trabalho dos apoiadores do SUS Campinas. Physis. 2015; 25(1):287-306..
Considerações finais
Os achados da pesquisa demonstram que, na Secretaria Municipal de Saúde – e, em particular, no Disar –, a institucionalização do trabalho do apoiador foi incipiente quando comparada ao cenário urbano88 Brito CS, Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Prado NMBL. Apoio institucional na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2021; 27(4):1377-88. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.00212021.
https://doi.org/10.1590/1413-81232022274...
, carecendo de delineamento e operacionalização consistente de suas atribuições. As tarefas de apoio institucional se espraiaram entre diversos membros da equipe de gerência do Disar, demonstrando também comprometimento da equipe na facilitação de intervenções intersetoriais; reconhecimento do território; formação de vínculos com famílias e membros da equipe; mediação de conflitos; e apoio à gestão para gerenciar os processos de trabalho na UBSF.
O conhecimento do território, permeado por iniquidades e barreiras de acesso aos serviços de saúde, mostrou-se elemento-chave para o fazer saúde em cenário rural, configurando um perfil de atuação que extrapola e se distingue do trabalho habitual do apoiador institucional na cidade. A imersão do apoiador nas atividades itinerantes da equipe mostrou-se essencial, não sendo, entretanto, a única medida necessária para o adequado desenvolvimento de suas atividades.
O apoio institucional mostrou-se imprescindível para fazer frente às singularidades do atendimento em locais remotos. Estes impõem a necessidade de se manter a continuidade de interações institucionais entre um nível central fixado no espaço urbano e um conjunto de profissionais que atuam em localidades pouco acessíveis, desprovidos de meios de comunicação na oferta de atendimento intermitente que amplia a cobertura, mas enfrenta limitações na continuidade do cuidado. Além disso, ao término da viagem, uma vez concluída sua carga de trabalho mensal, as equipes se dispersam, cabendo ao apoiador manter a continuidade mínima do trabalho na ausência da UBSF no território, sustentando interações com os agentes comunitários, verificando demandas prioritárias e subsidiando o planejamento das viagens subsequentes da UBSF.
Entretanto, o trabalho do apoiador também se dispersou em uma miríade de atividades de ordem logística e administrativa exigidas pelo regime de funcionamento da UBSF, como o transporte das equipes, provisão de insumos e manutenção de veículos e equipamentos nas unidades fluviais e até nas comunidades, comprometendo o desenvolvimento de ações específicas do apoiador nas equipes da UBSF. Tal deslocamento de atribuições do apoiador está associado à ausência de soluções satisfatórias de gestão do atendimento em áreas rurais, forçando este profissional a assumir tarefas que fogem de seu escopo de atuação.
Também se descortinou uma rotina de práticas verticalizadas e centralizadas de gestão, exercidas por um grupo restrito de tomadores de decisão. Tal cultura institucional fragilizou a interveniência do apoiador em pontos centrais da política de apoio institucional, como a cogestão de coletivos e a transformação dos modelos de gestão. A ausência de parâmetros que orientassem e amparassem o regime de trabalho embarcado no âmbito da UBSF também gerou persistente tensão nas relações travadas entre as equipes de gestão e os trabalhadores, em decorrência do desacordo relativo aos direitos trabalhistas dos profissionais da UBSF.
Reitera-se que as mudanças almejadas no serviço prestado dependem do desempenho do apoiador, mas estão indissociavelmente ligadas a um processo de mudança no modelo de gestão e execução das políticas públicas2424 Pinheiro R, Barros MEB, Mattos RA. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2007. e à necessária prioridade a ser dada às populações rurais. A melhoria das condições de vida e saúde no meio rural exige investimentos mais amplos do que a simples implantação das UBSF, em que pese a inegável contribuição delas à extensão de cobertura da AB.
Os resultados reafirmam a importância e a centralidade do trabalho vivo desenvolvido cotidianamente no SUS. Porém, criatividade, dedicação e capacidade de inovar demonstrada pelos profissionais devem caminhar pari passu ao investimento público em infraestrutura e à melhoria dos processos de gestão e das condições de trabalho, de modo a potencializar o esforço dos profissionais e ampliar a efetividade das políticas de extensão de cobertura no meio rural.
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Ferreira FA, Herkrath FJ, Horta BL, Garnelo L. Apoio institucional à gestão e prestação de serviços de saúde em unidade básica fluvial na Amazônia. Interface (Botucatu). 2023; 27: e220194 https://doi.org/10.1590/interface.220194
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Financiamento
Estudo financiado pelo PPSUS/FAPEAM Chamada n. 001/2017, PROEP-Labs/ILMD Fiocruz Amazônia Chamada n. 001/2020, e POSGRAD/FAPEAM. Projeto executado durante a vigência do Programa de Desenvolvimento da Pós-Graduação (PDPG) na Amazônia Legal, Edital n. 13/2020.
Referências
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1Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.
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2Figueira MCS, Silva WP, Marques D, Bazilio J, Pereira JA, Vilela MFG, et al. Atributos da atenção primária na saúde fluvial pela ótica de usuários ribeirinhos. Saude Debate. 2020; 44(125):491-503.
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3Kadri MRE, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180613.
» https://doi.org/10.1590/Interface.180613 -
4Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos - a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 5a ed. São Paulo: Hucitec; 2015.
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5Brasil. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
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6Brasil. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade de Atenção Básica (PMAQ). Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
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7Souza KR, Baumgarten A, Frichembruder K, Bulgarelli PT, Santos CM, Bulgarelli AF. O apoio institucional e as ações das equipes de saúde bucal na atenção primária à saúde no Brasil. Rev APS. 2020; 23(1):26-39. doi: https://doi.org/10.34019/1809-8363.2020.v23.16480.
» https://doi.org/10.34019/1809-8363.2020.v23.16480 -
8Brito CS, Santos HLPC, Maciel FBM, Martins PC, Prado NMBL. Apoio institucional na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2021; 27(4):1377-88. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.00212021.
» https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.00212021 -
9Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira N Jr, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1:983-95. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0324.
» https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0324 -
10Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11a ed. São Paulo: Hucitec; 2008.
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11Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.
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12Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 71-112.
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13Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRFG. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2018; 71 Supl 1:704-9.
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14Garnelo L, Vieira JMR, Souza M, Rocha ESC, Gonçalves MJF. Avaliação externa do PMAQ no Amazonas: experiências e narrativas sobre a implementação da Política Nacional de Atenção Básica. In: Fausto MCR, Fonseca HMS, organizadores. Rotas na atenção básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes Editora; 2014. p. 58-87.
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15Fernandes JA, Figueiredo MD. Apoio institucional e cogestão: uma reflexão sobre o trabalho dos apoiadores do SUS Campinas. Physis. 2015; 25(1):287-306.
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16Ruiz ENF, Gerhardt TE. Políticas públicas no meio rural: visibilidade e participação social como perspectivas de cidadania solidária e saúde. Physis. 2012; 22(3):1191-209.
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17Garnelo L, Lima JG, Rocha ESC, Herkrath FJ. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saude Debate. 2018; 42 Spec 1:81-99.
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18Magalhães DL, Matos RS, Souza AO, Neves RF, Costa MMB, Rodrigues AA, et al. Acesso à saúde e qualidade de vida na zona rural. Res Soc Dev. 2022; 11(3):e50411326906.
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19Cadorin E, Vieira D, Silva EF, Ferreira E, Carvalho R. O Apoio Institucional vivenciado na Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco - Acre. In: Pinheiro R, Lopes TC, Silva FH, Silva AG Jr, organizadores. Práticas de Apoio e a integralidade no SUS: por uma estratégia de rede multicêntrica de pesquisa. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS-UERJ, ABRASCO; 2014. p. 17-36.
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20Paschoalotto MAC, Passador JL, Passador CS, Endo GY. Regionalização da saúde no Brasil: desigualdades socioeconômicas e na performance em saúde. Gest Reg. 2022; 38(113):313-27. doi: https://doi.org/10.13037/gr.vol38n113.7017.
» https://doi.org/10.13037/gr.vol38n113.7017 -
21Bousquat A, Giovanella L, Fausto MCR, Fusaro ER, Mendonça MHM, Gagno J, et al. Tipologia da estrutura das unidades básicas de saúde brasileiras: os 5 R. Cad Saude Publica. 2017; 33(8):e00037316.
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22Casanova AO, Teixeira MB, Montenegro E. O apoio institucional como pilar na cogestão da atenção primária à saúde: a experiência do Programa TEIAS - Escola Manguinhos no Rio de Janeiro, Brasil. Cienc Saude Colet. 2014; 19(11):4417-26.
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23Falleiro LM. Experiências de Apoio Institucional no SUS: da teoria à prática. Porto Alegre: Rede Unida; 2014.
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24Pinheiro R, Barros MEB, Mattos RA. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2007.
Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
11 Maio 2022 -
Aceito
05 Set 2022