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O circuito dos afetos na drogadição: uma explicação alternativa para a servidão às drogas

El circuito de los afectos en la drogadicción: una explicación alternativa para la servidumbre a las drogas

Resumos

Apresentamos uma explicação alternativa para a noção de drogadição, refletindo sobre os motivos que levam uma pessoa a perseverar no consumo de drogas, mesmo sabendo dos malefícios decorrentes. Referenciado pelas obras de Humberto Maturana e pela teoria dos afetos na Ética de Spinoza, assumimos o pressuposto de que os seres humanos são movidos por paixões e formulamos o circuito dos afetos da drogadição. Identificamos nesse circuito três complexos afetivos: complexo singular pessoal, complexo de alívio/oblívio e complexo psicossocial, que formam uma dinâmica espiral de afetos tristes. Tais afetos compelem o indivíduo a continuar nessa dinâmica, e o papel das drogas passa a ser acessório. Cada complexo afetivo é caracterizado por afetos de origens distintas e a compreensão da particularidade e da especificidade de cada um organiza a ação de cuidado correspondente, a fim de interromper a dinâmica espiral do circuito.

Palavras-chave
Drogadição; Saúde Mental; Centros de atenção psicossocial; Redução de danos; Inovação em saúde


Presentamos una explicación alternativa para la noción de drogadicción, reflexionando sobre los motivos que llevan a una persona a perseverar en el consumo de drogas, incluso sabiendo de los perjuicios que causan. Referenciado por las obras de Humberto Maturana y por la teoría de los afectos en la Ética de Spinoza, asumimos la presuposición de que los seres humanos son movidos por pasiones y formulamos el circuito de los afectos de la drogadicción. En ese circuito identificamos tres complejos afectivos: complejo singular personal, complejo de alivio/olvido y complejo psicosocial que forman una dinámica espiral de afectos tristes. Tales afectos compelen al individuo a continuar en esa dinámica y el papel de las drogas pasa a ser accesorio. Cada complejo afectivo se caracteriza por afectos de orígenes distintos y la comprensión de la particularidad y de la especificidad de cada uno organiza la acción de cuidado correspondiente, de forma que interrumpa la dinámica espiral del circuito.

Palabras clave
Drogadicción; Salud mental; Centros de atención psicosocial; Reducción de daños; Innovación en salud


We present an alternative explanation for drug addiction, reflecting on the reasons that lead a person to persevere in drug consumption despite knowing the harm that this consumption brings. Based on the works by Humberto Maturana and on the theory of affects in Spinoza’s Ethics, we assume that human beings are moved by passions and formulate the circuit of affects of drug addiction. In this circuit, we have identified three affective complexes: the singular personal complex, the relief/oblivion complex, and the psychosocial complex, which form a spiral dynamics of sad affects. Such affects impel the individual to continue in this dynamics, and drugs play only an accessory role. Affects from different origins characterize each affective complex and understanding their particular and specific features guides the corresponding care action, in order to interrupt the spiral dynamics of the circuit.

Keywords
Drug addiction; Mental health; Psychosocial care centers; Harm reduction; Innovation in healthcare


Introdução

Se eu pudesse, seria mais sensata; mas uma força nova/ arrasta-me contra a minha vontade, e o desejo/ atrai-me a uma direção, e a razão, a outra. Vejo e aprovo o melhor, mas sigo o pior...(b (b) Extraído do site: https://www.pensador.com/autor/ovidio )

(Ovídio)

Os seres humanos frequentemente se percebem presos a essa condição: embora tenham consciência do que é melhor, continuam a fazer o pior. A nosso ver, essa é a questão central dos que se encontram presos ao consumo de drogas (incluídas aqui as bebidas alcoólicas). É de admirar que pessoas aparentemente capazes e mentalmente sadias, apesar de reconhecerem os prejuízos decorrentes do consumo de drogas, persistem nesse consumo, chegando muitas vezes ao limite extremo do corpo.

A resposta corrente para essa questão é a noção de adicção sob o modelo de doença11 McCrady BS, Epstein EE. Addictions: a comprehensive guidebook. New York: Oxford University Press; 1999., que propõe como “princípio fundamental que a dependência a drogas é uma doença física”22 Leshner AI. Addiction is a brain disease and it matters. Science. 1997; 278(5335):45-7. Doi: https://doi.org/10.1126/science.278.5335.45.
https://doi.org/10.1126/science.278.5335...
. Supera-se, assim, o senso comum que recorre a ideias como “força de vontade” ou “maus hábitos adquiridos” para explicar o fenômeno. Por princípio, esse conceito afasta a possibilidade de a adicção ser um fenômeno derivado de um estado resultante de outro processo ou sintoma de outra doença, assumindo que se trata de uma doença progressiva e crônica, cuja trama biológica envolve e impacta todas as dimensões da vida da pessoa acometida. Seria, portanto, um conceito explicativo abrangente, que conjuga as dimensões do social, psicológico, espiritual e biológico. Ao comentar um artigo de Leshner22 Leshner AI. Addiction is a brain disease and it matters. Science. 1997; 278(5335):45-7. Doi: https://doi.org/10.1126/science.278.5335.45.
https://doi.org/10.1126/science.278.5335...
que, ao afirmar categoricamente que a adicção é uma doença cerebral, evidenciou a importância de se afastar o estigma e as implicações moralistas do conceito de adicção. Sheehan e Owen33 Sheehan T, Owen P. The disease model. In: McCrady BS, Epstein EE. Addictions: a comprehensive guidebook. New York: Oxford University Press; 1999. p. 645. observam que:

[...] ele propôs que em algum ponto durante o exame da dinâmica do uso de drogas, por causa da adaptação celular induzida por drogas, um ‘interruptor’ molecular metafórico sinaliza uma mudança do uso ou abuso para a adicção. Nesse ponto, o cérebro torna-se fundamentalmente alterado, produzindo efeitos da droga e comportamentos bastante diferentes do estado “pré-doença”.

(p. 271, grifos nossos)

A metáfora de um “interruptor” molecular que, “em algum ponto”, sinaliza a mudança de regime de uso para abuso ou adicção conecta o nível da adaptação celular ao nível da mudança de comportamento.

Essa noção de adicção é:

[...] um princípio explicativo – como “gravidade” ou “instinto” – [que] realmente não explica nada. É uma espécie de acordo convencional entre cientistas para parar de tentar explicar as coisas em determinado ponto44 Bateson G. Metalogue: what is an instinct? In: Bateson G. Steps to an ecology of mind. New York: Chandler; 1972.. (p. 314)

A noção de adicção como metáfora do “interruptor” é apresentada no lugar do fenômeno que precisa ser explicado.

Propomos neste artigo uma explicação alternativa para a contradição descrita por Ovídio no que diz respeito ao consumo de drogas. Por que uma pessoa, apesar de ter consciência dos malefícios decorrentes do consumo de drogas, continua a consumi-las? A questão a ser explicada está na contradição entre razão/conhecimento e o desejo/paixão em relação à conduta humana, para a qual a abordagem focada no consumo de drogas nos oferece respostas que consideramos elusivas.

Adotamos como referencial a obra de Humberto Maturana (teoria da autopoiese, biologia do conhecer, biologia da linguagem)55 Maturana HR, Varela F. De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.

6 Maturana HR, Varela F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy; 1995.

7 Maturana HR. Ontologia do conversar. In: Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997.

8 Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997.
-99 Maturana HR. O que é ver? In: Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997. e a teoria dos afetos na Ética de Spinoza1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007..

Determinismo estrutural e o sistema nervoso

Os termos percepção, cognição e conhecimento costumam ser empregados em um sentido geral de captação da realidade, que seria independente do sujeito. Os órgãos incumbidos dessa função seriam o sistema nervoso e o cérebro. No cérebro, sede das chamadas capacidades cognitivas, toda a experiência vivida seria codificada em um sistema de representações que reconstituem o mundo em nosso corpo.

Diante da impossibilidade de correlacionar a atividade do sistema nervoso com as fontes de estímulos externos (com base em estudos sobre a visão de cores), Maturana88 Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997. abandona a ideia do cérebro captador de informações e processador de símbolos e de representações, demonstrando que é possível estabelecer correlações estáveis entre a atividade da retina (sistema nervoso) e o nome dado à cor (que é outra atividade do sistema nervoso). O autor também faz uma releitura de um experimento de Sperry em que, cirurgicamente, se promoveu a rotação de 180o no olho de uma salamandra, demonstrando que a correlação operante é do quadrante da retina estimulada com a movimentação da língua, e não com o objeto estímulo (uma mosca). Após a rotação de 180o no olho, a imagem da mosca passa a se formar no quadrante oposto da retina da salamandra, e é para onde sua língua se move, na direção contrária do local em que se encontra a mosca. Os neurônios da retina são perturbados pela imagem da mosca e se correlacionam com os neurônios motores da língua, estabelecendo certas relações de atividade entre partes do sistema nervoso (retinomotora). No entanto, embora seja afetado pela imagem da mosca (perturbação da retina), o sistema nervoso não capta a natureza da mosca55 Maturana HR, Varela F. De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.,66 Maturana HR, Varela F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy; 1995..

O sistema nervoso não opera em bases representacionistas do mundo, não capta a realidade. A essa acepção de sistema nervoso, Maturana juntou a ideia de que os organismos vivos funcionam como sistemas operacionalmente fechados, sob a lógica da conservação de sua organização e a realização de sua autopoiese. Como parte integrante do corpo, o sistema nervoso participa nessa dinâmica de transformações estruturais adaptativas. Ao ser perturbado por estímulos ou afecções, o sistema sensório conecta-se com o sistema motor, que modifica as correlações internas do organismo e movimenta o corpo para manter sua organização e sua existência. Nós vivenciamos essa dinâmica sensório-motora do sistema nervoso na relação do corpo com o meio ambiente como atos que realizam distinções nesse meio, distinções que fazem o mundo surgir. Nesse sentido, Maturana afirma que conhecer é agir, e agir é conhecer. Note-se que agir, aqui, não é decorrente de uma deliberação, mas constitui uma dinâmica intrinsecamente determinada e necessária55 Maturana HR, Varela F. De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.,66 Maturana HR, Varela F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy; 1995..

Corpo e memória

Segundo Maturana55 Maturana HR, Varela F. De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997., o organismo vivo caracteriza-se por operar em uma dinâmica circular recursiva. Não se trata, porém, de uma circularidade repetitiva, uma vez que, a cada ciclo da dinâmica, ela se reinicia desde o ponto em que o ciclo anterior se encerrou, de modo que é sempre uma nova situação que começa de um novo ponto de partida. As sequências de transformações estruturais que preservam a autopoiese nunca se repetem, mas trazem no corpo, na sua estrutura, marcas dos ciclos anteriores.

Essa noção de que o organismo vivo tem uma dinâmica circular recursiva implica que os corpos são necessariamente históricos e têm memória. Não seguem, portanto, um programa fechado, mas se abrem para novas possibilidades a cada ciclo, em função da história anterior e das interações presentes.

A deriva estrutural é uma sequência de domínios de interações adaptativas (transformações estruturais) e seus modos de disposição interna (fisiologia), que deixam vestígios e marcas no corpo. Nesse processo, estabelecem-se padrões de configuração da disposição interna e seus domínios de transformação e ação.

Percebemos essas disposições internas como estados emocionais (para Spinoza, trata-se de afetos de alegria, tristeza e desejo) e, por isso, podemos dizer que para cada estado afetivo/emocional se constitui um campo de transformações e ações determinado por sua estrutura.

Nesse sentido, dizemos que uma pessoa só pode agir segundo o seu estado afetivo/emocional. Quem está no estado de raiva (uma variação da tristeza) só realiza ações raivosas, ao passo que os que se encontram em um estado apaixonado (uma variação da alegria) só fazem coisas apaixonadas. Para fazer outras coisas, a pessoa precisa se deslocar para outro estado afetivo/emocional, para outra configuração da sua estrutura, ou seja, precisa modificar o estado (estrutura) de seu corpo e da mente. Um corpo determinado estruturalmente só age pelas possibilidades definidas na sua estrutura presente. Não age pela vontade ou por uma determinação da razão, além de não sofrer interações instrutivas nem obedecer a comandos externos. Biologicamente, as disposições emocionais são disposições para a ação. Emoção e ação são intrinsecamente interligadas no corpo.

No que diz respeito ao uso de drogas, a noção de recaída, entendida como repetição de eventos passados, obscurece a compreensão do fenômeno. Biologicamente, um corpo em sua deriva estrutural não pode repetir nada. Assim, devido a sua dinâmica circular recursiva, não pode haver recaída, uma vez que se trata de um novo evento, de uma nova história, que deve ser conhecida em seus encadeamentos particulares de interações para servir como fonte de aprendizado. Se assumimos o uso de drogas como repetição de um evento conhecido, descartamos a força dos elementos presentes na situação, passando a tomar como referência ideias imaginativas ativadas da memória. Em outros termos, perdemos oportunidades de aprendizagem sobre a dinâmica dos afetos atuais.

O emocionar que humaniza

Nós, humanos, emergimos como produtos de uma longa história (filogenia) de interações dos corpos entre si e com o meio. De acordo com Maturana66 Maturana HR, Varela F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy; 1995.,77 Maturana HR. Ontologia do conversar. In: Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997., surgimos na interação sob uma disposição fisiológica/emocional específica que possibilita “interagir com o outro como um legítimo outro”, o que gerou um modo de viver em pequenos grupos de indivíduos que se coordenam e compartilham afazeres. Essa disposição interna particular dos corpos é um estado afetivo, uma emoção que possibilita a interação recursiva de dois corpos sem perda da unidade e da identidade próprias de cada um. A dinâmica recursiva e a memória permitem estabelecer em cada corpo padrões de transformações estruturais congruentes entre si, produzindo mútuas coordenações de ações e de emoções.

Atuando conjuntamente de modo coordenado, dois ou mais corpos ampliam seus domínios de interação e podem ser vistos como uma unidade cooperativa que amplifica a força de existir de cada um deles. Há um aumento da potência de agir de cada um, percebida como um estado de alegria. A existência do outro é percebida como uma interação que amplia ou facilita a potência de agir, e não como ameaça que reduz ou impede tal potência. Por isso, o desejo e a alegria conduzem a uma interação recursiva, efetivando um modo de vida baseado em consensos operacionais, coordenações de ação e de emoção. Note-se que esses encadeamentos de estados afetivos (afetos) são instáveis, pois os corpos estão submetidos a inúmeros outros corpos e interações que têm por efeitos outros estados afetivos (afetos). Maturana enfatiza que esses tantos estados possíveis são configurados aleatoriamente e, uma vez configurados, têm efeitos que não são aleatórios, mas abrem um curso de transformações evolutivas.

“Linguagear” e linguagem

Com o neologismo “linguagear” Maturana88 Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997. designa o modo de viver da formação grupal baseado na coordenação consensual de ações e de emoções. Esse modo de viver não se restringe à espécie humana, estando presente também em diversas outras espécies. Ação coordenada consensual, memórias e recursão permitem incluir coisas que servem de referência para a articulação de uma ação coordenada em uma sequência de ações coordenadas. Essas coisas podem ser vistas como signos e ferramentas que coordenam coordenações anteriores.

Maturana descreve um processo em que da coordenação consensual de ação e emoção, do próprio corpo em conjunto com outros corpos, surge um modo de agir, o observar. Pelo processo recursivo, quando o observar se dobra e se reflete em observar o observar, surge um observador consciente de si que observa e sabe que observa.

Da interação entre o observador e outros observadores surge uma forma de vida em que ocorre uma coordenação de coordenações de ação e emoção [C-C], que se condensa em S (signo, ferramenta). Em seguida, mediados por S, os observadores podem coordenar-se, caracterizando uma coordenação referida a S, depois a S2, e depois a S [S-S]. Maturana dá a esse modo de coordenações a designação de vida na linguagem.

As palavras são signos (condensações sincréticas) de coordenações consensuais de ação e emoção. Um conjunto de palavras corresponde a uma rede de pontos de referência de coordenações consensuais pelas quais agimos de modo coordenado e cooperativo.

Nessa perspectiva, a linguagem não é um sistema simbólico e comunicar não é mera transmissão de informação. Sendo uma forma de coordenação dinâmica de corpos, na recursão e na práxis da vida consensual, um corpo pode se dirigir a si mesmo e se autocoordenar. Percebemos essa autocoordenação na linguagem como nossa mente consciente66 Maturana HR, Varela F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy; 1995.,1111 Varela F, Lachaux JP, Rodriguez E, Martinerie J. The brainweb: phase synchronization and large-scale integration. Nat Rev Neurosci. 2001; 2(4):229-39. Doi: https://doi.org/10.1038/35067550.
https://doi.org/10.1038/35067550...
. De certo modo, somos conscientes enquanto dirigimos a nós mesmos “linguageando” em coordenação de ação e emoção. Pelo viver na linguagem podemos afetar a nós mesmos, sendo parte das causas de afetos que percebemos. Daí o aforismo de Maturana: “Tudo o que é dito, é dito por um observador para outro observador, que pode ser ele mesmo”88 Magro C, Graciano M, Vaz N. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1997..

Na linguagem, o corpo humano continua a sofrer a interação de inúmeros outros corpos, interações linguísticas e não linguísticas que afetam e demandam o fluxo de transformações estruturais para seguir vivendo. Essas transformações estruturais são determinadas na estrutura e, apesar de parecer que a autoconsciência “dirige” e “comanda” as mudanças e os movimentos do corpo, como expressão da vontade, o corpo deve necessariamente obedecer ao determinismo estrutural. Em outros termos, temos a ilusão de escolher e determinar o curso de nossas ações, mas, quando atuamos pela vontade, somos apenas parte das múltiplas fontes de afetações e afetos. Em suma, somos determinados a agir pelo jogo das forças ou dos inúmeros afetos que atuam em nosso corpo. Ao dizer que queremos ou desejamos algo, limitamo-nos a fazer um comentário sobre a consciência de nosso movimento. Nossas palavras não são a causa desse movimento, causa que, de fato, desconhecemos. Como o corpo e a mente sofrem essas forças e a elas estão submetidos, Spinoza denomina esses afetos de paixões.

Conhecer a dinâmica dos afetos é conhecer suas causas

O corpo humano está sujeito a inúmeras forças que atuam sobre ele, afetando-o e modificando-o. Percebemos essas forças como múltiplos afetos, múltiplas modificações e suas correspondentes ideias. Spinoza1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. assume que um afeto pode ter quatro desfechos em que o corpo: 1) pode ser modificado a fim de aumentar ou favorecer sua força ou sua potência de agir; 2) pode ir no sentido oposto, de maneira que a transformação reduz ou impede sua potência de agir; 3) pode ter um desfecho neutro, permanecendo na mesma condição anterior; e 4) pode ser desintegrado pela força exterior (p. 163).

Em termos biológicos, após uma interação, um organismo sofre uma modificação estrutural que pode resultar em: a) ampliação do seu domínio de interações adaptativas; b) redução do seu domínio de interações adaptativas; c) manutenção do status quo; ou d) perda de sua organização e desintegração ou transformação em outra coisa.

Como a mente percebe tudo o que acontece no corpo1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 107), sua força de pensar também acompanha simultaneamente a dinâmica de transformações do corpo.

Spinoza denomina de alegria essa passagem para maior expressão do seu ser, maior força atual (efetiva) de existir ou maior potência de agir. Potência não tem aqui o sentido usual de potencialidade, de algo virtual que “pode ser” atualizado. A alegria é um movimento atual, realidade efetiva. Inversamente, ele chama de tristeza o processo de redução da expressão, da força de existir, da potência de agir1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 177).

Com Maturana, podemos dizer que uma estrutura expressa seu ser pela maneira como está organizada. Analogamente aos conceitos de alegria e tristeza desenvolvidos por Spinoza, as modificações estruturais podem aumentar ou diminuir o domínio de interações adaptativas, o que implica estados do corpo com maior ou menor condição de interagir com outros corpos, sem se desintegrar. Nesse sentido, podemos dizer que equivalem a ser mais potentes (alegres) ou menos potentes (tristes) diante das forças exercidas pelo meio (outros corpos).

Na unidade autopoiética, a preservação da organização é uma necessidade intrínseca decorrente do modo como as partes estão sob determinadas correlações que resultam na continuidade da dinâmica circular de autoprodução. Essa ideia corresponde à ideia de conatus como modo afetivo que faz o corpo perseverar na existência. Ambas as noções seguem uma lógica de necessidade imanente e destituída de finalidade ou causalidade final. A consciência do conatus é chamada de desejo.

Alegria, tristeza e desejo podem ser pensados em dois eixos ortogonais: um eixo da dinâmica de aumento ou diminuição da potência de agir (alegria e tristeza) e outro eixo da variação da intensidade do desejo.

Spinoza deduz e deriva desse quadro básico todos os outros afetos, que, conjugados às ideias de tais afetos, determinarão o curso de movimentação do corpo e da mente.

Mente humana

Para Spinoza, a mente humana é constituída pela ideia que tem como objeto o corpo humano e pode perceber tudo o que nele acontece. Desse modo, ao interagir com outros corpos, o corpo humano sofre as forças deles e é modificado (afecção ou transformação estrutural). A mente percebe essas modificações estruturais e forma ideias das afecções experimentadas pelo corpo sob a ação de corpos exteriores. Essas ideias envolvem a natureza do corpo humano e, simultânea, mas indiretamente, envolvem também a natureza do corpo com o qual interagimos. Por isso Spinoza afirma que “as ideias que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado do nosso próprio corpo do que a natureza dos corpos exteriores”1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 107).

A mente não percebe os outros corpos diretamente, mas percebe apenas as modificações do próprio corpo (afecções, afetações) decorrentes das interações com outros corpos e forma ideias de tais modificações1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 119).

Não conhecemos nenhum corpo exterior de fato, mas apenas as ideias das afecções, ou seja, as afetações e modificações que nosso próprio corpo sofre ao interagir com outros corpos. Não acessamos o mundo, mas apenas percebemos o modo como ele nos afeta e, reflexamente, percebemos como as modificações no mundo, causadas pela interação com nosso corpo, nos afetam.

Segundo Spinoza, a mente percebe a afecção no corpo e a ideia dessa afecção como um afeto1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 115). Percebemos os afetos e temos ideias sobre eles (ideias da ideia de afetos). O movimento da formação de ideias na mente também segue uma direção circular espiral, de modo que uma ideia surge com base em uma ideia anterior, isto é, não surge do nada.

É por meio do corpo que nossa mente (cujo objeto único é o corpo e suas afecções) percebe o mundo, age e interage com ele. Spinoza diz que as marcas deixadas no corpo, ao serem reativadas, rememoram o estado afetivo e as estruturas corporais daquela interação. As memórias são ideias, registros de afecções que se associam por mecanismos diversos (analogia, sincronia, ao acaso, proximidade etc.) e formam uma rede de registros. A ativação de um ponto faz a mente reviver os afetos a ele conexos.

Em suma, somos conduzidos pela força das emoções ou dos afetos e não pela razão. Nessa perspectiva, não existe espaço lógico para a ideia de livre-arbítrio, apenas a lógica das forças dos corpos. A razão está em um plano de inteligibilidade ou da compreensão da dinâmica das forças dos corpos da natureza e dos afetos. Contudo, sendo uma ideia em si mesma, não se traduz como força efetiva ou capaz de afetar o corpo. Os afetos ou emoções não são modificados pela razão, e sim pela força de outro afeto ou emoção. Por isso, o saber, o entendimento racional das consequências prejudiciais do consumo de uma droga, não incide na dinâmica dos afetos. A razão só pode atuar se se estabelecer como uma afecção do corpo, como uma paixão.

Desfaz-se o espanto da indagação de Ovídio, pois saber o que é melhor não incide no caminho a seguir.

Adicção – Labirinto de afetos tristes

Para compreender o consumo reiterado de drogas, segundo a lógica da dinâmica dos afetos, vamos retomar alguns passos.

O movimento dos corpos se dá pela dinâmica dos afetos (as afecções e as ideias das afecções). Sempre há pelo menos dois afetos a serem identificados: o desejo conjugado com uma alegria ou com uma tristeza. Assim, o ato de consumir uma droga pode ser movido por qualquer uma dessas duas composições desejo/alegria ou desejo/tristeza (não pela droga). Ambos os movimentos têm o caráter de afirmação de si, de esforço para permanecer na existência em função do desejo. O corpo não se move em busca de nada externo, uma vez que o desejo não é pelo que está fora, mas visa perseverar na existência, não sendo determinado, portanto, pela droga.

Por outro lado, sabemos que, em função do determinismo estrutural, a interação com as drogas não resulta em “instrução” ao corpo que parte das drogas. Elas funcionam, antes, como desencadeadoras de modificações no corpo e da disposição interna (memória corporal), fazendo ressonância com o par de afetos (alegria e tristeza).

A pessoa se move tendo como motor o desejo (força interna) e, pelo encontro e pela relação com outros corpos (não apenas o corpo humano, mas qualquer corpo), que são forças externas a seu próprio corpo, experimenta afecções corpóreas. Não são as drogas que movem a pessoa a consumi-las e não há causalidade final, apenas causalidade eficiente. No entanto, ao interagir com corpos externos presentes, as drogas causam afecções corpóreas e deixam registros mnemônicos de tais afecções. Essas afecções aumentam ou diminuem a atividade de partes do corpo (sistema nervoso) e deslocam sua dinâmica interna, sendo percebidas pela mente como alterações da consciência e das percepções. A mente não entende as causas do seu estado, mas percebe o aumento da atividade de partes do corpo, inferindo que a droga aumenta a potência de agir. Desse modo, toma a parte pelo todo, formando ideias confusas.

O encontro com a droga se dá em um contexto, em uma trama de relações com outros tantos corpos externos e com um histórico de vivências e memórias afetivas, que resulta em estar submetido a uma paixão (alegre ou triste). Como se trata de um afeto que move apenas parte do corpo, contudo, não é possível falar em efetivo aumento da potência de agir.

Se uma droga se compõe com um corpo que já está em um vetor de afetos alegres, reforça o desejo e a alegria no aumento da potência de agir, expandindo a expressão do ser. As drogas aumentam a atividade de partes do corpo que fazem ressonância com as forças no sentido da alegria. Como as forças já estão direcionadas para a alegria, a participação das drogas é somatória, mas acessória. Cessados os efeitos da interação com as drogas, em tese, restariam memórias alegres, afirmativas da potência de agir. E a vida seguiria adiante.

No caso de composição do desejo com um vetor de afetos tristes, podemos entender que o desejo tem um sentido contrário ao afeto triste, pois o esforço para a perseveração na existência se dirige para a preservação ou o aumento da potência de agir. Como a tristeza é um afeto direcionado para a diminuição da potência de agir e existir, o desejo nesse caso é reforçado pela imaginação de que as drogas aumentam a potência de agir e, portanto, quanto mais fortes forem as forças da tristeza, mais as drogas serão requisitadas. Contudo, por se tratar apenas de uma ativação parcial do corpo e não de efetivo aumento de potência de agir, verifica-se uma flutuação temporária dos afetos que os usuários percebem como alívio (da tristeza).

Nessa situação, após esse relativo aumento de potência de agir, ao cessar a interação com as drogas, há um retorno dos afetos tristes iniciais.

Por outro lado, como o uso de drogas está semiotizado na sociedade como socialmente condenado e condenável, essas ideias são acompanhadas por outros tantos afetos tristes e intensos, principalmente de culpa, vergonha e medo. Esses afetos não são causados pela interação com as drogas, mas têm origem na trama de valores socioculturalmente construídos e reproduzidos nas interações interpessoais. Desse modo, após a cessação da interação com as drogas, verifica-se um retorno do afeto triste inicial, seguido por um acréscimo de afetos tristes (culpa, vergonha e medo). Os usuários dão a esse segundo conjunto de afetos tristes o nome de ressaca moral, que elevaria a força da tristeza inicial.

Diante do aumento da força da tristeza, o desejo volta a reativar a ideia inadequada (imaginação de que as drogas aumentam a potência de agir) na mesma proporção da força da tristeza e põe em movimento um novo consumo, um novo alívio. Cessados os efeitos da presença da droga, os afetos tristes de culpa, medo e vergonha ressurgem e são reforçados, desencadeando uma nova ressaca moral que se soma aos afetos tristes do ciclo anterior. Esses ciclos fecham um circuito de dinâmica circular:

Figura 1
Circuito de dinâmica circular.

Nesse circuito, a percepção da pessoa é dominada por paixões tristes.

Essa dinâmica circular não é constituída por repetições do mesmo. Trata-se, ao contrário, de relações recursivas, em espiral, em que a tristeza e a necessidade de alívio e a ressaca moral tendem a crescer proporcionalmente. O paradoxo é que, embora movido pelo desejo, no sentido de aumento da potência de agir, o efeito é uma crescente redução de tal potência, em virtude de ideias inadequadas, de preconceitos sobre causalidades, sobre as paixões, o corpo, o cérebro, a natureza.

Circuito da adicção

Esse circuito espiral é um esquema explicativo do fenômeno da adicção. Identificamos nele três núcleos ou complexos afetivos que têm características distintas e possibilitariam intervenções apropriadas.

  1. O primeiro complexo de afetos tristes é o complexo pessoal, originário da história pessoal de interações durante a vida. Envolve as experiências vividas nas diversas esferas da vida (social, cultural, econômica, educacional).

  2. O segundo núcleo de afetos é o complexo de afetos flutuantes, percebidos como alívio-oblívio, como cessação de um mal-estar. Aqui a dinâmica recursiva induz à adaptação do corpo à ação da droga, tendendo a diminuir os efeitos percebidos e a demandar maior quantidade a consumir. Esse aspecto tem consequências que não se limitam à biologia, pois implicam maior dispêndio de recursos, custos financeiros crescentes e suas consequências sociais, o que pode também reforçar os afetos tristes do terceiro complexo afetivo.

  3. O terceiro núcleo também é constituído de afetos tristes, mas distintos do primeiro e do segundo. Trata-se do complexo sociocultural, ou ressaca moral, gerado nas relações históricas em que as interações entre os indivíduos têm como referência os pares de afetos de culpa/perdão, honra/vergonha e medo/poder.

Decomposição do circuito da adicção

Cada complexo afetivo requer ações de acordo com os afetos concretamente em jogo. É necessário atuar em cada complexo a fim de aumentar a força da alegria e do desejo.

Como estratégia geral, é preciso operar uma introdução ao conhecimento de segunda ordem, o conhecimento das causas e das proporções das forças da natureza. Isso implica uma mudança na compreensão do funcionamento do corpo e da mente, uma compreensão da força dos afetos e do papel da racionalidade.

No entanto, todas essas mudanças só podem ocorrer processualmente. Assim, ainda que preliminarmente, é possível iniciar ações em cada um dos complexos afetivos, que podem ser ações simultâneas.

Um ponto de partida geral que observamos é a necessidade de auto-observação dos próprios afetos, de reflexão sobre si mesmo e sobre os outros, que não é uma prática natural e precisa ser desenvolvida.

I. Complexo sociocultural: a ressaca moral

Agir para modificar esse núcleo de afetos é estratégico no processo do cuidado, pois envolve diretamente a equipe de profissionais que vão atuar na situação. Embora o próprio indivíduo que cresce imerso na formação sociocultural seja o primeiro a se autodemandar e a desencadear culpa, vergonha e medo, devemos lembrar que os profissionais e os familiares também são parte da mesma formação sociocultural que o usuário e, por isso, tendem a reproduzir os mesmos jogos afetivos que culpabilizam, envergonham e ameaçam o indivíduo.

A força desses afetos é, portanto, extremamente grande e precisa ser reduzida quanto antes. Vejamos mais detidamente cada um deles.

Culpa

A culpa baseia-se no pressuposto de que as pessoas podem realizar escolhas livres e dirigir seus atos livremente. Essa suposição dificulta o entendimento da dinâmica dos afetos, pois ignora o determinismo estrutural do corpo às causas efetivas. Esse preconceito associa uma tristeza à ideia de um erro na escolha ou de uma falha do julgamento1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 195).

Ao considerar o ato de consumir uma droga como a causa dos danos e perdas percebidos, a pessoa se autorrecrimina e pensa que poderia e “deveria” ter escolhido outra ação, mas “preferiu” o que seria mais danoso, embora tenha consciência das consequências e sofra de arrependimento, julgando-se culpada. Esse afeto de culpa e arrependimento tem profundas raízes na cultura judaico-cristã no mundo ocidental e requer uma desconstrução continuada. Para tanto, é necessário um conhecimento de segundo gênero1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 191), pelas causas, bem como o desenvolvimento de uma ética da responsabilidade adquirida pelo aprendizado prático da dinâmica dos afetos e dos modos para poder modificar o curso desses afetos tristes. A responsabilidade decorrente do conhecimento permite intervir na dinâmica dos afetos e sair do circuito de dinâmica circular, mas a culpa tende a reproduzi-lo.

Vergonha

A vergonha é uma tristeza decorrente da imaginação de ser observado pelos outros, que julgam negativamente seus atos1010 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007. (p. 199). Esse afeto está ligado à necessidade da aprovação dos outros e a uma incapacidade de reconhecer a própria força de existir. Deve-se admitir que, no âmbito social, as reprovações de fato ocorrem e intensificam a tristeza.

Medo

O medo é uma tristeza decorrente da incerteza do que vai acontecer, do temor das consequências dos próprios atos. Há um medo produto da desproporção das forças existentes entre um corpo e todo o mundo, que lhe é infinitamente mais forte e pode destruir o corpo. O medo associado a ideias inadequadas conduz ao afastamento dos outros indivíduos, que seriam a fonte de maior potência de agir.

A tristeza é também reforçada por um conjunto de ideias como autodepreciação, ideias de imperfeição, de defeitos e erros da natureza, entre outras. O aumento da força das paixões tristes conduz ao reinício do ciclo da adicção.

Desarticular o labirinto dos afetos tristes é etapa fundamental para se sair desse estado de servidão. Ao se despotencializar a culpa, o medo e a vergonha, o complexo sociocultural perde força, facilitando assim o trabalho no complexo pessoal.

II. Complexo do alívio-oblívio

Este complexo, por sua vez, envolve uma flutuação dos afetos tristes e alegres e a confusão das ideias. No entanto, ao compreender o circuito da adicção, o usuário pode entender o uso de substâncias como efeito dos jogos de afetos e não como escolha pessoal, percebendo-o como uma afirmação da força de existir e que, portanto, desse ponto de vista não há nada a ser condenado. De certo modo, o usuário pode conceber que o uso de uma substância psicoativa como medicação para a tristeza é um ato legítimo de afirmação da vida. Por outro lado, permite conceber que há outros meios práticos para lidar com afetos tristes. Em particular, o conhecimento da dinâmica do corpo aponta para a ideia de que modificar o estado do corpo necessariamente leva a uma mudança do estado afetivo. E isso, na prática, oferece outras maneiras de lidar com os afetos tristes, alternativas ao uso de drogas. Por exemplo, atividades físicas intensas liberam endorfinas que mudam o estado afetivo do corpo. Tocar um instrumento, dançar, pintar ou cantar também podem, com mais ou menos força, incidir sobre os afetos tristes. Condutas de alívio são legítimas e válidas (incluído o uso de drogas). Por outro lado, é preciso considerar também um “curto-circuito do desespero” que denominamos como oblívio. Muitos usuários relatam a consciência desse “uso medicamentoso” na busca de alívio, mas alguns observam que, uma vez aliviados, a lembrança da ressaca moral é inevitável e tão ruim e sofrida que os leva a recorrer intensivamente ao uso, gerando um curto-circuito, embasado na ideia de catástrofe compensatória do tipo “já que o castigo é certo, então que o crime seja o maior possível” ou “se o jogo está perdido por um, que seja perdido por dez, mas que valha a pena” ou ainda na ideia de que é melhor “deixar tudo ir pelos ares”.

Essas ideações e afetos configuram um segundo momento, um curto-circuito desse complexo de alívio, que é congruente com as situações em que o usuário entra em um uso continuado por longos períodos de oblívio, muito além dos momentos de alívio. A compreensão dessas distinções entre os subgrupos de afetos também permite atuar de modo diferencial.

III. Complexo pessoal de afetos

Esses afetos tristes decorrem da história singular de cada pessoa e estão conectados ao circuito da adicção de modo contingente. Em outros termos, a conjugação com os outros dois complexos não é necessária, não é um destino. Cabe então dar atenção ao curso das interações que desembocaram nesses afetos tristes. Uma maneira de explorar esse complexo de afetos e de lidar com ele é construir um mapeamento das várias dimensões da vida do usuário1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013., procurando identificar os modos como eles se constituíram e compor interações que aumentem a força da alegria e do desejo.

Ao atentar para a dinâmica dos afetos, sob a lógica da determinação pelas forças da natureza, observando-a e estudando-a para identificar seus padrões e modos de funcionamento, podem-se elaborar mecanismos capazes de modificar o curso daquelas interações que levaram aos afetos tristes. Embora não seja possível comandar racionalmente os afetos, a razão permite gerar engenhos linguísticos que a transformam em autointeração e, portanto, em um afeto capaz de interferir no curso dos afetos, com base na própria dinâmica dos afetos. Desse modo, torna-se possível refrear, diminuir ou anular em parte a carga de afetos tristes que estão na origem do consumo reiterado de drogas que compõem o circuito da adicção.

Agradecimentos

A toda a equipe do Centro de Atenção Psicossocial AD – CapsAD da Secretaria Municipal de Saúde de Santos pelo grupo de estudos que discute e debate sobre os afetos no cotidiano do trabalho ao longo dos últimos três anos.

Referências

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  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.

Editado por

Editora
Rosana Teresa Onocko Campos
Editora associada
Erotildes Maria Leal

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2020
  • Aceito
    26 Fev 2021
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