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O cuidado em cena: processos de criação audiovisual na interface entre Comunicação, Saúde Coletiva e Atenção Básica

Care in scene: audiovisual creative processes in relation to communication, Public Health and Primary Care

Cuidado en la escena: procesos de creación audiovisual en la interfaz entre comunicación, Salud Pública y Atención Primaria

A serialização televisiva aparece hoje em uma miríade de canais, plataformas, formatos e produtos audiovisuais, constituindo-se como um campo importante na construção de saberes, imaginários e narrativas. A confluência entre formas narrativas inovadoras; um contexto tecnossocial convergente e transmidiático; e novas formas de consumo e participação das audiências, definida por Silva11 Silva MVB. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na contemporaneidade. Galaxia (São Paulo). 2014; 27(1):241-52. como “cultura das séries”, caracteriza um período na história das mídias em que as séries televisivas ocupam lugar de destaque na produção, na circulação e na recepção das obras audiovisuais contemporâneas.

Dentro desse contexto, a produção de séries médicas se destaca, inclusive em uma perspectiva transnacional. Embora a referência inicial sejam as séries médicas estadunidenses, o gênero também aparece na Índia (Zindagi Wins, 2015, Bindass), no Japão (Kōdo Burū, 2008-2017, Fuji TV), na Coreia do Sul (Hyungbuoegwa, 2017-2018, SBS TV), na Polônia (Lekarze, 2012-2014, TVN) e na Austrália (Reef Doctors, 2013, Network Ten), só para citar alguns exemplos. O formato dominante, nesses casos, segue uma equipe médica, capitaneada por um médico-herói, em um modelo de procedimento fortemente centrado na presença de tecnologias biomédicas, mas que também explora arcos narrativos interpessoais e dramas dos pacientes.

Tentativas de fugir desse formato dominante, no entanto, não são estranhas. Séries como Nurse Jackie (2009-2015, Showtime) e Syke (2014-atual, Yle TV2) têm enfermeiras como protagonistas, embora também se passem em ambiente hospitalar com o foco na solução de doenças. Em termos de tom e gênero, séries como Becker (1998-2004, CBS), Scrubs (2001-2009, NBC/ABC), Children’s Hospital (2010-2016, Adult Swim) e Medical Police (2020, Netflix) são comédias médicas, em que as doenças interessam menos por seu potencial dramático e mais pelo estabelecimento de situações cômicas. Ou seja, a constituição das séries médicas como gênero televisivo22 Albuquerque A, Meimaridis M. Dissecando fórmulas narrativas: drama profissional e melodrama nas séries médicas. Rev Front. 2016; 18(2):158-69., embora pressuponha um formato narrativo altamente esquematizado, abre também possibilidades para a exploração de outros tons, temas e pontos de vista, de modo a construir um painel mais matizado da representação social das práticas e instituições médicas.

É dentro dessa proposta derradeira que se situa a série brasileira “Unidade Básica” (2016-2020, Universal TV), objeto de investigação do artigo que ora comentamos. Focada no dia a dia de uma Unidade Básica de Saúde, por meio do conflito (ora profissional, ora interpessoal) entre o dr. Fábio (Caco Ciocler), com um perfil integrado com a comunidade e preocupado com os aspectos familiares, e a dra. Laura (Ana Petta), com uma perspectiva mais intervencionista e preocupada com o diagnóstico, a série incorpora para a sua dramaturgia um confronto de visões que representa bem a complexidade da Atenção Básica e das estratégias da saúde coletiva.

No artigo, uma das autoras atuou diretamente no processo de criação da obra, de modo que teve “lugar privilegiado na apreensão dos fatos e dos processos relacionados a essa construção”33 Petta HL, Ayres JRM, Teixeira RR. Grande mídia e comunicação sobre saúde coletiva e atenção primária: o desafio da produção da série televisiva "Unidade Básica". Interface (Botucatu). 2021; 25:e200607. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200607.
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(p. 2). Isso significa que, no desenho da pesquisa, lida-se mais com a chamada análise de processo criativo do que com a análise do produto. Temos aqui, portanto, uma interessante possibilidade de, por meio da observação participante, oferecer uma visão sistematizada do processo e, como se ambiciona no artigo, dos “limites e potencialidades no diálogo entre a Saúde Coletiva e a comunicação na grande mídia”33 Petta HL, Ayres JRM, Teixeira RR. Grande mídia e comunicação sobre saúde coletiva e atenção primária: o desafio da produção da série televisiva "Unidade Básica". Interface (Botucatu). 2021; 25:e200607. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200607.
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(p. 1).

A nosso ver, o artigo cumpre apenas parcialmente a sua proposta, mesmo considerando o que se afirma no corpo do texto: que outra publicação – no caso, a tese de doutorado da autora principal – possui dados mais completos da análise descrita. Ainda assim, cremos que dois pontos carecem de aprofundamento para a devida interpretação do fenômeno: o primeiro, de ordem metodológica e o segundo, de ordem analítica. Acreditamos que esses pontos podem ser desenvolvidos em publicações futuras, mas os apresentamos aqui para debater sobre como os estudos de processos criativos podem servir como uma importante chave de leitura da relação entre Saúde e Comunicação.

Sobre a metodologia, embora o conjunto de materiais empíricos acumule elementos para a compreensão do processo de criação da série, os autores recorrem à perspectiva de Gadamer, vista como “região paradigmática para o entendimento do acontecimento hermenêutico”33 Petta HL, Ayres JRM, Teixeira RR. Grande mídia e comunicação sobre saúde coletiva e atenção primária: o desafio da produção da série televisiva "Unidade Básica". Interface (Botucatu). 2021; 25:e200607. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200607.
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(p. 4). Essa escolha, entretanto, poderia ser mais bem localizada, delineando-a em relação a outras maneiras de explorar a arte como dimensão ativa e constitutiva do pensamento contemporâneo, em diferentes tradições.

No caso, mais do que afiliações a escolas filosóficas, apontamos que o uso da hermenêutica estética de matriz gadameriana, com seu foco na apreciação sensível das obras e no seu efeito espectatorial, poderia ser menos adequado para os objetivos deste artigo do que outras concepções mais dispostas a pensar sobre a própria criação. Desse modo, para investigar um processo criativo, cremos ser mais apropriado o uso de uma metodologia de crítica de processo de base semiótica44 Salles CA. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Horizonte; 2006. ou da etnografia da criação artística, de matriz pós-moderna55 Marcus GE. O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia. Rev Antropol. 2004; 47(1):133-58.,66 Fortin S, Gosselin P. Considerações metodológicas para a pesquisa em arte no meio acadêmico. Rev Pesqui Artes. 2014; 1(1):1-17..

Acreditamos ainda que contribuiria também uma descrição mais precisa das funções da autora principal na produção da série. Com isso, ficaria mais claro para o leitor a atuação dela nas instâncias decisórias da produção, evidenciando assim os momentos em que opções estratégicas durante o processo limitaram a representação das dinâmicas da Atenção Básica e da Saúde Coletiva na feitura do programa, conforme se indica na análise.

Além disso, sinalizamos que a estrutura da série e sua relação com os temas da Saúde Coletiva poderiam ser mais bem exploradas, com a descrição, por exemplo, da quantidade e duração dos episódios, dos horários de divulgação, etc. Para além de situar eventuais leitores neófitos, o texto poderia visibilizar melhor aspectos apontados nas perguntas que provocaram a elaboração do manuscrito. Por exemplo, a homenagem a Cecília Donnangelo, pensadora referência para a consolidação da Saúde Coletiva como campo de conhecimentos e práticas no Brasil, revela a Unidade Básica como ponto de encontro para o aprofundamento de temas importantes para a Saúde Coletiva, partindo de uma Unidade de Saúde da Família e se desdobrando nas relações familiares, nas comunidades e nos personagens da série.

Pareceu-nos interessante, também, pensar com os autores que o contexto que permitiu a criação da série incluía tanto uma política que incentivava a produção audiovisual de conteúdo nacional – por meio da Lei n. 12.485/2011, chamada de Lei da TV paga – quanto o maior investimento na Estratégia de Saúde da Família. Entretanto, é importante destacar que a série passou a ser transmitida em um período de retrocesso nas políticas de saúde e cultura em decorrência das políticas liberal-privatistas dos governos pós-golpe de 2016. Na Atenção Básica, que é pano de fundo da série, vivenciamos uma mudança da política de financiamento, uma flexibilização da equipe mínima, descontinuidade do convênio com o governo cubano no âmbito do Programa Mais Médicos, deixando milhares de Unidades Básicas sem médicos, entre outros problemas77 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cienc Saude Colet. 2020; 25(4):1475-82.. No audiovisual, convivemos com uma paralisia institucional da ANCINE, por meio do estrangulamento burocrático na liberação de verbas e no congelamento de editais e outras ações de fomento88 Calabre L, Tavares TS. O fundo setorial do audiovisual e as políticas audiovisuais: interfaces com os estudos de cultura visual. Estud Hist. 2021; 34(72):197-220.. Tais modificações do contexto não foram exploradas na análise, embora o contexto da produção tenha indicado relevância desses aspectos gerais.

Também seria importante ponderar o quanto o fato de a veiculação da série ter se dado em um canal pago (ou seja, fechado) potencialmente limitaria sua circulação a públicos específicos definidos por recorte de classe. Além disso, explorando a audiência média do canal de veiculação, valeria estimar o potencial de disseminação da mídia em questão no debate público.

Todavia, para além desse alcance midiático, compartilhamos com os autores algumas das perguntas postas no fim do artigo. Em parte, a relação entre o audiovisual e a Saúde Coletiva parece vir criando caminhos que potencializam a ressignificação de ambas as áreas. As disputas entre as diferentes visões dos protagonistas Paulo e Laura sobre a humanização e o modelo biomédico parecem repercutir no processo de construção da série, impactando tanto na dramaturgia quanto na comunicação de temas fundamentais para a Saúde Coletiva, como o cuidado compartilhado, a determinação social do processo saúde-doença e o trabalho em equipe, fazendo-nos pensar em como representar, em uma mídia ainda tão elitizada, as dimensões intersubjetivas constitutivas do cotidiano da Unidade Básica.

  • Silva MVB, Gomes LB, Soares RS. O cuidado em cena: processos de criação audiovisual na interface entre comunicação, Saúde Coletiva e Atenção Básica. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210273 https://doi.org/10.1590/interface.210273

Referências

  • 1
    Silva MVB. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na contemporaneidade. Galaxia (São Paulo). 2014; 27(1):241-52.
  • 2
    Albuquerque A, Meimaridis M. Dissecando fórmulas narrativas: drama profissional e melodrama nas séries médicas. Rev Front. 2016; 18(2):158-69.
  • 3
    Petta HL, Ayres JRM, Teixeira RR. Grande mídia e comunicação sobre saúde coletiva e atenção primária: o desafio da produção da série televisiva "Unidade Básica". Interface (Botucatu). 2021; 25:e200607. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200607.
    » https://doi.org/10.1590/interface.200607
  • 4
    Salles CA. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Horizonte; 2006.
  • 5
    Marcus GE. O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia. Rev Antropol. 2004; 47(1):133-58.
  • 6
    Fortin S, Gosselin P. Considerações metodológicas para a pesquisa em arte no meio acadêmico. Rev Pesqui Artes. 2014; 1(1):1-17.
  • 7
    Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cienc Saude Colet. 2020; 25(4):1475-82.
  • 8
    Calabre L, Tavares TS. O fundo setorial do audiovisual e as políticas audiovisuais: interfaces com os estudos de cultura visual. Estud Hist. 2021; 34(72):197-220.

Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editor associado
Sérgio Resende Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2021
  • Aceito
    18 Maio 2021
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