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Terry Eagleton: cultura e política em transformação

Terry Eagleton: culture and politics in transformation

Resumo:

Este artigo tem por objetivo comentar algumas obras do crítico e ensaísta britânico Terry Eagleton. Foram selecionados os livros Against the grain: selected essays (1986), William Shakespeare (1986), The Ideology of the Aesthetic (1990), Ideology: an introduction (1991) e The Illusions of Postmodernism (1996). Nossa hipótese é a de que este período representa uma fase de transição tanto na forma quanto no conteúdo da obra de Eagleton. Alguns pressupostos teóricos anteriores são abandonados e outros são reafirmados ou modificados. Tentamos discutir os resultados desse processo em termos culturais, históricos e políticos.

Palavras-chave:
Cultura; História; Política; Crítica Literária

Abstract:

This article aims at commenting on some works by the British critic and essayist Terry Eagleton. The following books have been selected: Against the grain: selected essays (1986), William Shakespeare (1986), The Ideology of the Aesthetic (1990), Ideology: an introduction (1991) and The Illusions of Postmodernism (1996). Our hypothesis is that this period represents a transition phase in both the form and content of Eagleton's work. Some previous theoretical assumptions are abandoned and others are reaffirmed or modified. I try to discuss the results of this process in cultural, historical and political terms.

Keywords:
Culture; History; Politics; Literary Criticism

Os livros Against the grain (1986EAGLETON, Terry. Against the Grain: Selected Essays. London: Verso Books, 1986.), William Shakespeare (1986EAGLETON, Terry. William Shakespeare. New York: Blackwell Publishers, 1986.), The Ideology of the Aesthetic (1990EAGLETON, Terry. The Ideology of the Aesthetic. Oxford: Basil Blackwell, 1990.), Ideology: an introduction (1991EAGLETON, Terry. Ideology: An Introduction. London: Verso Books, 1991.) e The Illusions of Postmodernism (1996EAGLETON, Terry. The Illusions of Postmodernism. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.), do crítico britânico Terry Eagleton, constituem um eixo norteador a partir do qual podemos elencar questões sobre a crítica cultural, principalmente aquela comprometida com o exame da realidade social e histórica em que vivemos. Nossa intenção é selecionar alguns pontos específicos, sem a ambição de esgotar a totalidade dos assuntos tratados. Acreditamos que esses títulos assinalam alguns temas e tendências que seriam retomados de obras anteriores e retrabalhados nas obras futuras. Demarcariam, assim, uma espécie de transição quando consideramos a obra de Eagleton como um todo. Nesse sentido, faremos uma breve discussão desses livros em seu conjunto, destacando alguns de seus aspectos mais relevantes.

Em seu livro Against the grain (1986), temos Eagleton como um autor preocupado em investigar os desafios da crítica num período de crescente conservadorismo político. Composto por uma reunião de ensaios, muitos dos quais anteriormente publicados na prestigiosa New Left Review, o livro delineia uma transição na escrita de Eagleton. A partir desse momento sua prioridade será produzir uma reflexão teórica que também delimite análises da conjuntura tanto cultural quanto social, tanto histórica quanto política. Em momentos anteriores de sua obra, por exemplo, nos livros da década de setenta ou ainda naquele que é seu trabalho mais conhecido, Literary Theory: an introduction (1983EAGLETON, Terry. Literary Theory: An Introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 1983.), as interações entre cultura e política já estavam presentes. Mas essa tônica foi elevada a um novo patamar nos escritos reunidos em Against the grain. Nesse sentido, o ensaio “Capitalism, Modernism and Postmodernism” aparece como particularmente importante. Nesse texto o pós-modernismo é visto como tendo um duplo caráter: em parte seria uma resposta às derrotas das correntes progressistas nas décadas de sessenta e setenta, daí derivando seu tom pessimista em relação a mudanças sociais mais efetivas; em parte conteria dimensões libertárias advindas das possibilidades oferecidas pelo capitalismo contemporâneo. Cumpre observar que dez anos mais tarde, em seu livro The Illusions of Postmodernism (1996), Eagleton enfatizaria muito mais o primeiro aspecto em detrimento do segundo.

Um ponto adicional que já surge no ensaio de 1986 e que será retomado no livro publicado em 1996 tem, em nossa opinião, implicações relevantes para hipóteses desenvolvidas em obras posteriores. Trata-se de uma dívida, nem sempre claramente assumida, que o pós-modernismo teria para com os desdobramentos contemporâneos do capitalismo. Isso ficaria especificamente patente no embate dirigido a certo tipo de subjetividade formada a partir da modernidade. Assim, segundo algumas vertentes do pós-modernismo, a radicalidade e a ousadia de suas propostas estariam embasadas na crítica daquilo que chamavam “sujeito burguês unificado”, visto como autônomo e racional pelas utopias liberais. Para Eagleton, no entanto, essa crítica carece de força exatamente porque se concentra nos efeitos, não conseguindo perceber que a subjetividade pretensamente constituída e unificada havia sido historicamente superada pelas próprias forças do capitalismo. Eagleton sugere ainda que esse suposto “sujeito unificado” seria apenas uma criação abstrata da fase heroica do liberalismo. E mesmo tal criação abstrata já estaria obsoleta, tendo sido fragmentada pelas próprias relações sociais num sistema voltado para a produção de mercadorias e geração de lucro. Na perspectiva de Eagleton, o pós-modernismo assinala corretamente o esfacelamento do sujeito, mas poderia avançar um pouco mais: poderia salientar que o próprio mercado de trabalho, o regime de competição constante, as tecnologias e o consumismo já haviam esquartejado os corpos e as vidas. Noutras palavras, a fragmentação do sujeito contemporâneo precisaria ser compreendida ao longo das contradições presentes nos processos sociais, uma vez que está calcada em bases materiais e históricas bastante concretas. Essa é uma senda apontada por Eagleton e que, em nossa opinião, poderia ter sido trilhada mais constantemente pelo próprio autor nos desdobramentos de sua obra.

Outro ensaio presente em Against the grain que merece ser destacado é “Form, Ideology and The Secret Agent”. O romance de Joseph Conrad é interpretado seguindo um método inspirado em Althusser e que Eagleton esboçara em textos anteriores, especialmente em Criticism and Ideology (1976). Sua leitura procura identificar vários níveis contraditórios de significação no romance, demonstrando o funcionamento do repertório de ideias presentes em Conrad. Para muitos comentadores,1 1 Ver HENDERSON, Greig. Eagleton on Ideology: six types of ambiguity. University of Toronto Quarterly, s.l., v. 61, n. 2, p.280-288, jan. 1992. University of Toronto Press Inc. (UTPress). http://dx.doi.org/10.3138/utq.61.2.280; KAVANAGH, James H. et al. Marxism's Althusser: Toward a Politics of Literary Theory. Diacritics, s.l., v. 12, n. 1, p.25-45, 1982. JSTOR. http://dx.doi.org/10.2307/464789; HARVEY, J. R.. Criticism, Ideology, Raymond Williams and Terry Eagleton. The Cambridge Quarterly, s.l., v. , n. 1, p.56-65, 1978. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/camqtly/viii.1.56. esse ensaio faz a ligação entre a elaboração teórica e a aplicação prática, preenchendo uma lacuna que fora estabelecida a partir das formulações de Criticism and Ideology. Também a moldura rígida proposta por Althusser, cujo peso deixara marcas indeléveis no livro de 1976, agora aparece bem mais matizada em seu novo ensaio. Eagleton teve o mérito de rever alguns de seus procedimentos críticos, estabelecendo nexos mais profícuos entre a arte da narrativa de Conrad e as contradições históricas.

Against the grain representa também uma fase de transição nas opiniões e nas avaliações que Eagleton tece com referência à obra de Michel Foucault. As ideias do filósofo francês a respeito da função do poder e do discurso nas sociedades receberam um lugar peculiar na matriz teórica de Eagleton. Em Literary Theory (1983), mencionara brevemente Foucault, citando-o como um pós-estruturalista que oferecia encaminhamentos por vezes controversos, mas ainda assim positivos. As qualidades presentes na obra do filósofo francês serviam como parâmetro para avaliar outras correntes teóricas. E muito do pensamento de Foucault sobre as práticas discursivas perpassa o capítulo conclusivo de Eagleton em Literary Theory. Mas poucos anos depois, em Against the grain, Foucault recebe um tratamento menos reverente. Isso acontece em virtude de alguns comentários sobre a pertinência das alianças militares ocidentais e a nova hegemonia estadunidense, o que para Eagleton não fazia jus à envergadura das análises de Foucault. Entretanto, o crítico britânico reconhecia a importância de uma obra que encontrava cada vez mais simpatizantes dentre as novas gerações de acadêmicos e ativistas, muitos dos quais bastante desapontados com o marxismo e em busca de novos rumos teóricos para a crítica social. É nesse sentido que em Against the grain ocorrem avaliações que ainda conservam certa aproximação do conceitual foucaultiano, mas que, por outro lado, já demarcam um futuro distanciamento.

Um segundo livro que gostaríamos de trazer para nossa discussão é William Shakespeare (1986). Acreditamos que esse também seja um livro de transição na obra de Eagleton. Um dos eixos centrais que surgem é a discussão das contradições e ambivalências shakespearianas, vistas menos como um produto da arbitrariedade da linguagem e muito mais como o resultado formal de um período em que os valores hierárquicos e estáticos do feudalismo estavam sendo progressivamente deslocados pelos valores do individualismo burguês. Com marcado acento irônico, Eagleton analisa personagens e peças do cânone shakespeariano a partir de indicadores e moldes da modernidade capitalista. Lady Macbeth é vista como uma feminista aburguesada. Coriolano é esquadrinhado como um protótipo de empreendedor ambicioso. Hamlet é investigado como portador de insaciáveis dúvidas que ainda parecem vigentes. De modo geral, os personagens são vistos como sedimentações formais de tendências sociais e políticas conflitantes: presos entre duas ordens sociais, no começo de uma época histórica que, em certo sentido, lançou as fundações para nosso próprio tempo. Desse modo, vemos que na interpretação de Eagleton surge uma ênfase na história entendida como processo, em que coexistem elementos hegemônicos e emergentes.

O Shakespeare de Eagleton não é apenas o sábio das grandes ponderações metafísicas, nem tão somente o poeta do uso prodigioso das palavras. Ele surge acima de tudo como um autor cujo conjunto de textos é altamente relevante para a cultura contemporânea, em virtude das conexões históricas que podem e merecem ser estabelecidas e reinterpretadas. Para Eagleton, a obra de Shakespeare é um veículo de conhecimento, um retrato das sementes de nosso tempo. As próprias indagações acerca da influência da cultura na formação dos indivíduos, bem como das normas que organizam a sociedade, poderiam servir para o entendimento de impasses de nosso presente. Além disso, na visão de Eagleton a escrita de Shakespeare estaria entretecida por recursos também muito atuais, de alguém que na própria forma da obra acabava incorporando reflexões sobre a linguagem e a constituição da sociedade, seu significado e sua relação com questões históricas e políticas. Tais reflexões teriam especial relevância para um dramaturgo que vivia de seu trabalho, preocupado com a circulação e viabilidade de suas peças. Não por acaso a admiração e o elogio que sua obra mereceu de pensadores como Marx e Freud. Teríamos, assim, uma formulação estética que examina os impulsos da vida cotidiana voltada ao trabalho, tanto como sobrevivência quanto expressão elaborada da subjetividade.

Com um escopo diverso em relação ao estudo sobre Shakespeare, e em certa medida aprofundando alguns dos aspectos tratados em trabalhos anteriores, o livro The Ideology of the Aesthetic (1990) tem dimensão central na obra de Eagleton. Nesse ambicioso texto, tanto pelo alcance da reflexão quanto pelo arco histórico abarcado, Eagleton esboça a tese de que a estética, vista como investigação da produção cultural e artística, possui dimensões ao mesmo tempo ideológicas e utópicas. Teria potencialmente um papel de controle e emancipação. Serviria ao encarceramento doutrinário e ao esclarecimento libertador. De todo modo, Eagleton procura insistir no argumento de que a arte representaria um ideal para a produção material, um ideal com a seguinte qualidade indispensável: ser algo com fim em si mesmo. Esse paradigma é uma retomada da proposição de Marx, em que a arte seria um modelo possível para a atividade humana com sentido. Porém Eagleton sublinha que a estética também cumpre o papel de crítica utópica, excessivamente idealista ou mesmo ineficaz, do individualismo burguês. Um mundo em que a vida comunitária está destroçada seria resgatado por um certo ideal de comunidade: uma comunhão de pessoas irmanadas no ato da apreciação estética. Mas algo que não promove a efetiva transformação da realidade, e existe apenas numa comunidade idealizada, pode representar uma barreira e um retrocesso. Se a experiência da solidariedade puder ser vivenciada apenas no plano estético, talvez estejamos diante de um sintoma: um indício de que as sociedades estão combalidas, desestruturadas e desumanizadas. Para Eagleton, portanto, o elemento utópico presente no campo estético teria de catalisar realizações práticas. Poderia, por exemplo, alimentar a construção de novas formas de sociabilidade, cooperação e desenvolvimento que contribuíssem para a emancipação humana. Seria uma reconsideração da estética que norteasse novos compromissos éticos, novas configurações políticas.

Outro fio condutor que surge ao longo de The Ideology of the Aesthetic é o papel central dado ao corpo humano. Isso possibilitaria um caminho para a compreensão materialista da história, mas é evidente que tal caminho poderia parecer estranho num tratado sobre estética. O intuito de Eagleton, no entanto, foi contrabalançar aspectos demasiadamente idealistas presentes nos tratados sobre arte e estética. Também recuperar a materialidade do corpo humano foi um de seus objetivos declarados. Sua discussão sobre arte, cultura, história e política busca uma base a partir da qual uma estética materialista possa ser constituída. Nesse sentido, Eagleton defende o retorno ao próprio sustentáculo fundamental e comum que possuímos: o corpo humano. Esse seria, segundo ele, um modo de sairmos da abstração excessiva e retornarmos a uma dimensão por vezes esquecida da nossa existência. O corpo humano e suas necessidades fundamentais seriam os antídotos para evitarmos os equívocos das teorias idealistas, que tendem a não considerar os aspectos básicos para a sobrevivência humana. Esse chamado de atenção para as condições materiais de existência aparecerá de modo enfático em obras posteriores de Eagleton.

Nossa condição de criaturas materiais e biológicas seria um eixo possível para que certas políticas fossem alcançadas. Isso estabeleceria um grande desafio ético, pois seres humanos reais têm de estabelecer efetivas normas de convívio em sociedade, algo que muitas vezes não é levado em consideração nos modelos abstratos de inúmeras formulações estéticas e filosóficas. Como podemos perceber, a perspectiva de Eagleton procura quebrar barreiras entre disciplinas: sua estética é também política; sua política tem preocupações éticas; e, por fim, sua ética estabelece relações com a dinâmica tanto natural, biológica, quanto histórica dos seres humanos. Olhar para o corpo humano seria restabelecer a ligação com a natureza, com a necessidade de manter uma interação constante com nosso meio. Esse corpo - que tem fome, sede e frio, e também sonhos e desejos - tem de modificar o meio físico e social ao seu redor para produzir aquilo que é necessário para sua sobrevivência. Mas ao modificarmos esse mundo também modificamos a nós mesmos. Isso talvez constitua uma parte central de nossa natureza, de animais históricos que têm o anseio de criar sua própria trajetória. Disso decorrem também dimensões éticas e, portanto, políticas: afinal como organizar a vida social de modo a garantir a produção e a distribuição justa dos bens e serviços necessários para a vida humana? Como estabelecer critérios de justiça, igualdade e liberdade? Tais desafios ainda estão em aberto e possivelmente sempre estarão, mas são perguntas que talvez mereçam estar continuamente no horizonte da crítica cultural e social.

Mais acima, no comentário sobre Against the grain, mencionamos o relativo afastamento de Eagleton em relação a algumas proposições de Foucault. Com a publicação de The Ideology of the Aesthetic esse distanciamento fica bastante demarcado: Foucault é classificado como um teórico cuja inovação para a compreensão do funcionamento do poder sobre o corpo não viria acompanhada de uma ética e de princípios norteadores. Na visão de Eagleton, isso seria primordial para a construção de uma base, de um alicerce a partir do qual pudesse ser articulada uma crítica social. Eagleton localiza a contradição política no próprio estilo de Foucault. Reconhece que há, sem dúvida, uma oposição a muitas formas de opressão, todas elas descritas em detalhe ao longo da obra foucaultiana. Mas a negação de posições universais no âmbito ético-político impediria a formulação mais efetiva de táticas e estratégias de resistência. Existiria o risco de encarar qualquer sistema de poder como já fadado a construir novas formas opressoras, o que consequentemente pode levar à apatia ou à inação: por quais razões a ordem vigente deveria ser desmantelada, uma vez que uma nova ordem de dominação seria colocada em seu lugar?

Ainda segundo Eagleton, essa descrição do poder tem muito em comum com o artefato estético clássico. Vale lembrar que The Ideology of the Aesthetic é um estudo amplo, abarcando vários pensadores e inúmeras escolas de pensamento. Em virtude disso, a divergência em relação à abordagem de Foucault acontece com terminologias e conceitos emprestados da Estética. Pode ser que estejamos errados, mas em nossa perspectiva os argumentos de Eagleton poderiam ter sido formulados de maneira mais clara e cuidadosa. A questão de fundo parece ser um desacordo não apenas com alguns pressupostos da filosofia de Foucault, mas, sobretudo, com as implicações políticas de tal filosofia. Se for assim, talvez o melhor procedimento teria sido trazer o debate para os termos e conceitos propriamente políticos. Isso precisaria ser feito por meio de um elenco de fatos históricos, dados e discussões mais concretas. Com isso poderiam ser esclarecidos os pontos de distanciamento, sem que necessariamente fossem cometidas eventuais injustiças em relação ao pensamento de Foucault. Noutras palavras, Eagleton argumenta que a perspectiva foucaultiana seria excessivamente abstrata, por vezes deslocada dos reais embates históricos. Mas acreditamos que os leitores de Eagleton, principalmente aqueles inclinados a aceitarem os pressupostos do autor francês, talvez possam também utilizar o mesmo argumento em relação às próprias formulações do teórico britânico. Acreditamos que isso talvez pudesse ser balanceado com a utilização de exemplos e fatos objetivos, deixando aos leitores a possibilidade de escolha e decisão.

Intervir cada vez mais nos debates contemporâneos parece ser uma marca adotada nessa fase de transição de Eagleton. Essas mesmas preocupações estão presentes nos livros Ideology: an introduction (1991) e The Illusions of Postmodernism (1996), ambos estabelecendo uma certa continuidade no trabalho iniciado em The Ideology of the Aesthetic. O primeiro deles, Ideology: an introduction, foi derivado de um curso dado por Eagleton. Tem o esforço de servir a um público amplo, adotando a seguinte estratégia: a complexidade dos conteúdos é transmitida de maneira extremamente didática. Isso constitui uma opção política no sentido de produzir ensaios de intervenção, que sirvam para fomentar e incentivar as discussões em setores mais amplos da sociedade. Nesse sentido, a intenção geral presente no livro foi explicar o conceito de ideologia e examinar as razões pelas quais o conceito estava sendo combatido por inúmeras correntes teóricas. Alguns diziam que tal formulação era supérflua ou redundante. Outros afirmavam que seria indeterminada demais. Eagleton procurou desenvolver um arcabouço tanto teórico quanto político: reconheceu as dificuldades de trabalhar com o conceito de ideologia, mas ao mesmo tempo demonstrou a importância de fazer uma retomada de sua história. Visitando autores e correntes de pensamento, procurou sistematizar um longo percurso dos problemas que foram tratados por aqueles que investigaram o assunto. Um aspecto particular chamou nossa atenção. Eagleton discorda, e acreditamos que acertadamente, das visões que negam a importância dos véus ideológicos. Segundo tais linhas de pensamento, no atual estágio histórico as pessoas estariam menos sujeitas a esses artifícios. Uma outra parte do argumento alega que, na corrente fase do capitalismo, sua reprodução enquanto regime econômico aconteceria de maneira quase automática. Seria uma lógica sistêmica, tanto social quanto política, que prescindiria de quaisquer discursos legitimadores. Na contracorrente dessas concepções, Eagleton pontua que ainda estamos sujeitos a inúmeros véus que fortalecem os sistemas de poder. A própria ideia de que o sistema econômico teria um modo de reprodução automática já é, ela mesma, o resultado do concentrado esforço de desinformação ao qual a população e supostos especialistas estão submetidos. Os donos do poder político e econômico não gastariam fortunas no controle dos meios de comunicação de massa e na indústria de publicidade e de propaganda se não tivessem razões para isso. Eagleton lembra que uma das formas mais eficientes de manutenção dos sistemas de opressão é fazer acreditar que a própria opressão não existe. Temos ainda, portanto, poderosos instrumentos tanto materiais quanto simbólicos para a produção e a reprodução das ilusões socialmente necessárias. Tais instrumentos ajudam a concentração de poder econômico, o que por sua vez auxilia a concentração de poder político. Isso destrói os funcionamentos da democracia e retira um contingente cada vez maior da população das decisões mais importantes que afetam suas vidas.

Um último livro que gostaríamos de comentar brevemente é The Illusions of Postmodernism (1996). Vale destacar que já se tornou uma obra consagrada dentro da bibliografia que se preocupa com as questões do pós-modernismo.2 2 Ao lado de outras obras fundamentais, como as de David Harvey, Alex Callinicos, Perry Anderson e Fredric Jameson. A esse respeito, consultar: ANDERSON, Perry. The Origins of Postmodernity. 7. ed. London: Verso Books, 1998; FOSTER, Hal (Org.). The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Washington: Bay Press, 1983; HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Basil Blackwell, 1989; JAMESON, Fredric. Postmodernism or, The Cultural Logic of Late Capitalism. London: Verso Books, 1991; CALLINICOS, Alex. Against postmodernism: a marxist critique. Cambridge: Polity Press, 1989; EAGLETON, Terry. The Illusions of Postmodernism. Oxford: Blackwell Publishers, 1996. Esse estudo estabelece uma contiguidade com os anteriores The Ideology of the Aesthetic ou Ideology: an introduction. Todos marcam uma gradativa transformação na obra de Eagleton e seu interesse em atuar nos debates culturais e políticos contemporâneos. Pudemos verificar também o quanto é eficaz quando aplicado em sala de aula e também em mesas-redondas acadêmicas. Embora muitos vejam The Illusions of Postmodernism como sendo filosófica e historicamente menos completo que as outras obras de Eagleton, seu caráter e o estilo de intervenção política acabam por interferir mais diretamente nas discussões. Algo em seu argumento que nos parece especialmente produtivo é o levantamento das modificações em nossa atmosfera cultural e política, suas causas e suas consequências. Eagleton pontua que a derrota política sofrida pelas forças progressistas a partir dos anos setenta significou a abertura para um campo de reações. Muitas vezes, tais reações traziam como seu canto de sereia a adoção do receituário de ideias neoliberais. Vale lembrar que o liberalismo clássico no século XVIII era uma luta contra o Estado absolutista. A liberdade dos indivíduos era defendida frente a um Estado que tolhia iniciativas, ações e opiniões, mas nem mesmo Adam Smith, considerado um dos pais do liberalismo clássico, imaginava quais seriam os caminhos do capitalismo durante o século XIX. A concentração de poder dos grandes grupos econômicos deixaria horrorizados os fundadores do liberalismo clássico. O que tivemos a partir dos anos setenta do século XX não foi uma retomada do liberalismo clássico, mas sim uma luta contra o Estado de bem-estar social. O chamado neoliberalismo que passou a varrer o planeta nos últimos cinquenta ou quarenta anos foi, portanto, uma luta organizada contra avanços duramente conseguidos após a Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, o conjunto de ideias propagadas sob o guarda-chuva do neoliberalismo impactou o arsenal de ideias da crítica cultural e da interpretação histórica.

A derrota das forças progressistas mencionada por Eagleton significou, no plano da batalha das ideias, o abandono de categorias de análise fundamentais. Assim, na concepção de nosso autor, para recuperar a capacidade de interferência na luta contra os aspectos perniciosos do pensamento hegemônico, seria necessária a reativação de conceitos vitais. Em virtude disso, ao longo de seu livro são discutidas concepções tais como totalidade, verdade, história, razão, contradição e síntese. A recuperação dessas formulações poderia auxiliar o entendimento dos fenômenos culturais e históricos em nova perspectiva. Evitaria a reprodução de análises parciais, que muitas vezes criticam apenas a parte e não o todo. Poderia colaborar para entender os fatos históricos, sua evolução e o jogo de forças presente em seu desenvolvimento. Tudo isso seria necessário para recuperar um modo de crítica sensível às contradições passadas e presentes na complexa dinâmica da história da humanidade. Na visão de Eagleton, a recuperação desse procedimento seria essencial para evitar a impotência, a paralisia e o ceticismo frente a uma ordem social iníqua e violenta, que vai adquirindo ares de normalidade. Em seu horizonte de preocupações está a apatia frente a um estado de coisas que parece imutável, como se caminhássemos para o abismo e não soubéssemos modificar nossa rota.

Como últimas observações, gostaríamos de salientar mais uma vez que The Illusions of Postmodernism serve ao propósito de incentivar o debate acerca de algumas das características sobre o espírito de nossa época. Contudo, acreditamos ser útil uma consideração - que possivelmente também ajude a entender um pouco nossa perspectiva em relação aos demais livros de Eagleton que comentamos neste texto. Ao observar esses cinco livros, tomados em conjunto, podemos notar que há um princípio norteador: constituir um estilo de ensaio que faça da intervenção no debate cultural também uma intervenção nos debates sociais e políticos. A transição parece acentuar a ligação cada vez mais orgânica entre elementos da cultura com o de outras disciplinas e áreas do conhecimento. No entanto, acreditamos que uma correlação mais direta com exemplos, dados e fatos históricos ajudaria a dar força e contundência aos argumentos. Para a reflexão e a investigação também motivadas pelo impulso didático, esse talvez fosse um passo fundamental. E dizemos isso também levando em conta a prodigiosa obra que Eagleton vem desenvolvendo após esse período de transição. Acrescentar elementos de pesquisa histórica mais ampla e detalhada poderia aprimorar o potencial de intervenção dessa obra - uma obra que merece a atenção daqueles que se interessam pelas relações entre cultura, história e política.

Referências

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  • 1
    Ver HENDERSON, Greig. Eagleton on Ideology: six types of ambiguity. University of Toronto Quarterly, s.l., v. 61, n. 2, p.280-288, jan. 1992HENDERSON, Greig. Eagleton on Ideology: six types of ambiguity. University of Toronto Quarterly, [s.l.], v. 61, n. 2, p. 280-288, jan. 1992. University of Toronto Press Inc. (UTPress). http://dx.doi.org/10.3138/utq.61.2.280.
    http://dx.doi.org/10.3138/utq.61.2.280...
    . University of Toronto Press Inc. (UTPress). http://dx.doi.org/10.3138/utq.61.2.280; KAVANAGH, James H. et al. Marxism's Althusser: Toward a Politics of Literary Theory. Diacritics, s.l., v. 12, n. 1, p.25-45, 1982KAVANAGH, James H. et al. Marxism's Althusser: Toward a Politics of Literary Theory. Diacritics, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 25-45, 1982. JSTOR. http://dx.doi.org/10.2307/464789.
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    . JSTOR. http://dx.doi.org/10.2307/464789; HARVEY, J. R.. Criticism, Ideology, Raymond Williams and Terry Eagleton. The Cambridge Quarterly, s.l., v. , n. 1, p.56-65, 1978HARVEY, J. R.. Criticism, Ideology, Raymond Williams and Terry Eagleton. The Cambridge Quarterly, [s.l.], v. VIII, n. 1, p. 56-65, 1978. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/camqtly/viii.1.56.
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    . Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/camqtly/viii.1.56.
  • 2
    Ao lado de outras obras fundamentais, como as de David Harvey, Alex Callinicos, Perry Anderson e Fredric Jameson. A esse respeito, consultar: ANDERSON, Perry. The Origins of Postmodernity. 7. ed. London: Verso Books, 1998ANDERSON, Perry. The Origins of Postmodernity. 7. ed. London: Verso Books, 1998.; FOSTER, Hal (Org.). The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Washington: Bay Press, 1983FOSTER, Hal (Org.). The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Washington: Bay Press, 1983.; HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Basil Blackwell, 1989HARVEY, David. The Condition of Postmodernity. Oxford: Basil Blackwell, 1989.; JAMESON, Fredric. Postmodernism or, The Cultural Logic of Late Capitalism. London: Verso Books, 1991JAMESON, Fredric. Postmodernism or, The Cultural Logic of Late Capitalism. London: Verso Books, 1991.; CALLINICOS, Alex. Against postmodernism: a marxist critique. Cambridge: Polity Press, 1989CALLINICOS, Alex. Against postmodernism: a marxist critique. Cambridge: Polity Press, 1989.; EAGLETON, Terry. The Illusions of Postmodernism. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2018
  • Aceito
    30 Jul 2018
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