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ESTUDOS CRÍTICOS DO DISCURSO, INTERSECCIONALIDADES E MUDANÇAS SOCIAIS

Os estudos críticos do discurso vêm apontando, desde os anos 1980, o papel central da linguagem nos fenômenos sociais, seja por sua relação com aspectos estruturantes das visões de mundo e das relações sociais, como também com processos de mudança na ordem social (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999CHOULIARAKI, Lilie; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.; FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Routledge, 2003., 2010FAIRCLOUGH, Norman. Critical discourse analysis: the critical study of language. 2. ed. UK: Pearson Education, 2010.; RESENDE; RAMALHO, 2011RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de Discurso (para a) Crítica: O texto como material de pesquisa. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.; FIGUEIREDO; BONINI, 2017FIGUEIREDO, Débora de Carvalho; BONINI, Adair. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. D.E.L.T.A., v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017.; BATISTA et al., 2018BATISTA, José Ribamar; SATO, Denise Tamaê Borges; MELO, Iran Ferreira (Ed.). Análise de discurso crítica para linguistas e não linguistas. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2018.). Na contemporaneidade, temos vivenciado fenômenos sociais que impactam diretamente nossas formas de ser e agir em sociedade. A exemplo, podemos citar os efeitos provocados pela pandemia de COVID-19, que podem ser vistos como uma reestruturação da colonialidade e dos demais sistemas que moldam nossas sociedades capitalistas: cenários de precarização das relações e condições de trabalho, ascensão de discursos extremistas e antidemocráticos evocados por líderes políticos, e o aprofundamento das opressões de gênero, de raça e de classe (VAN DIJK, 2005VAN DIJK, T. A. Discourse and racism in Spain and Latin America. Amsterdam: Benjamins, 2005.; RIEGER; FIGUEIREDO, 2018RIEGER, Pedro Gustavo; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Perspectivas linguísticas para os direitos à identidade de gênero no tribunal de justiça de Santa Catarina. Letra Magna (Online), v. 22, p. 405-426, 2018.; RESENDE, 2019RESENDE, Viviane Melo. Perspectiva latino-americana para decolonizar os estudos críticos do discurso. In: RESENDE, Viviane de Melo (Ed.). Decolonizar os estudos críticos da linguagem. Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 19-46.; PARDO, 2019PARDO, Maria Laura. Decolonização do conhecimento nos Estudos do Discurso. In: RESENDE, Viviane de Melo (Ed.). Decolonizar os estudos críticos da linguagem. Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 47 - 62.; VIEIRA, 2019VIEIRA, Viviane Cristina. Perspectivas decoloniais feministas do discurso na pesquisa sobre educação e gênero-sexualidade. In: RESENDE, Viviane de Melo (Ed.). Decolonizar os estudos críticos da linguagem. Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 83-116.; MACEDO, 2022MACEDO, Litiane Barbosa. Enegrecendo os Estudos Críticos Discursivos: Contribuições Epistemológicas Afroperspectivistas para o campo da análise crítica do Discurso no Brasil. Trabalhos Em Linguística Aplicada, Campinas, v. 61, n. 1, p. 251-264, 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/010318139561411520210310
http://dx.doi.org/10.1590/01031813956141...
; FIGUEIREDO, 2022FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. A disputa discursiva em torno dos conceitos de ‘estupro’, ‘consentimento’ e ‘violência’ em um acórdão do TJRS-Brasil. RALED, v. 22, n. 1, p. 25-36, 2022.). O cenário atual coloca em risco os grupos já marginalizados e em situação de maior vulnerabilidade social, que têm visto seus direitos duramente conquistados agora ameaçados por forças políticas ultra neoliberais para as quais o mercado está acima de direitos básicos, como é o caso do próprio direito à vida.

Tendo em mente o cenário pandêmico e pós-pandêmico, este número especial reúne trabalhos que buscam discutir o papel da linguagem como constituinte de práticas sociais que normalizam e/ou reforçam opressões e injustiças emergentes em contextos contemporâneos diversos, especialmente no que tange a grupos sociais marginalizados por questões raciais, de gênero e de classe, e as formas através das quais os membros desses grupos têm sido alvo de discursos e práticas que os posicionam em relações assimétricas de poder nas quais são marginalizados e/ou oprimidos. As pesquisas presentes nesta edição abordam diferentes perspectivas teóricas e analíticas dentro do escopo dos estudos discursivos críticos, envolvendo práticas discursivas em contextos variados, como em espaços jurídicos, políticos, midiáticos e educacionais.

O primeiro artigo, A Framework for Critical Discourse Studies on Mental Health, de Pedro Gustavo Rieger, propõe uma abordagem metodológica crítica para a análise de discursos sobre saúde mental. Partindo da análise de uma decisão judicial envolvendo o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, a proposta metodológica do autor neste número especial é dividida em oito etapas focadas na investigação de práticas discursivas relacionadas ao tema em questão. O segundo artigo, Análise crítica de práticas sociodiscursivas ideológicas misóginas: a institucionalização da violência de gênero contra a mulher na esfera judicial, de Gisleuda de Araújo Gabriel e Gislene Araújo Gabriel, discute as práticas discursivas do Poder Judiciário através das construções retóricas de dominação e violência contra a mulher presentes em uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Levando em conta a abordagem interdisciplinar desse estudo - Análise Crítica do Discurso (ADC), Teoria Crítica do Direito (TDC) e Crítica Feminista -, as autoras apresentam evidencias textuais que revelam discursos misóginos presentes nas práticas discursivas do judiciário brasileiro.

Os próximos artigos debatem discursos sexistas no campo político. O artigo Sexismo banal e persistente na política brasileira, de Carmen Rosa Caldas-Coulthard, discute “o sexismo banal e persistente na ordem discursiva” que, segundo a pesquisadora, faz-se presente e constante nas práticas discursivas contemporâneas e tem se intensificado em decorrência de uma nova onda conservadora que atinge várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Neste sentido, esse artigo discute como as práticas misóginas são decodificadas através da linguagem, tendo como corpus analítico falas do presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, eleito para mandato no período de 2019 a 2022. A autora revela que os recursos semióticos analisados apontam visões de mundo estereotipadas e conflituosas sobre as mulheres e demais grupos marginalizados. Já o artigo de Graciele Silveira, #eleitas: violência simbólica e resistência em interações na página Quebrando o Tabu no Facebook sobre a participação feminina na política, analisa manifestações de violência simbólica contra mulheres candidatas a cargos políticos, bem como as estratégias de resistência utilizadas como resposta a estas violências nos comentários da página ‘Eleitas’, do Quebrando o Tabu, no Facebook. A autora observa que as violências simbólicas se manifestam através do humor sexista e estereotipado como forma de deturpação das candidatas, reforçando estigmas sobre a participação feminina a fim de manter a hegemonia masculina no campo político.

Conforme mencionado anteriormente, neste número especial há trabalhos que analisam práticas discursivas do campo midiático, como veremos a seguir. No artigo Metáforas na representação de ações e políticas públicas dirigidas à população em situação de rua na Folha de S. Paulo: o caso da representação da assistência, a pesquisadora Viviane de Melo Resende aponta que o referido jornal relaciona as políticas públicas para pessoas em situação de rua a estratégias de guerra, bem como associa as pessoas em situação de rua à sujeira e ao perigo, o que coincide com as políticas higienistas presentes nesse veículo midiático. Já a pesquisa de Maria Aparecida Resende Ottoni e Bianca Mara Guedes de Souza, Jornalismo e insurgência discursiva: a representação das mulheres e do aborto na Revista Azmina, discute como a prática legal do aborto e as mulheres que a realizaram são representadas nesta mídia jornalística independente. Segundo as pesquisadoras, observa-se que o aborto é atrelado a um campo de disputa jurídica, sendo decidido por instâncias que detêm maior poder sobre os corpos das mulheres do que as próprias mulheres. As autoras também destacam a inexistência de vozes antiaborto nesta mídia alternativa, sendo esta uma forma de representar a prática do aborto com valoração positiva. O último trabalho a abordar o contexto midiático é o artigo de Suzana Ferreira Paulino, Estratégias discursivo-multimodais no discurso econômico-moral de publicidades bancárias brasileiras e inglesas. Baseando-se na perspectiva da economia moral, a autora investiga as construções semióticas de significado e as estratégias discursivas em publicidades bancárias brasileiras e inglesas do banco HSBC. De acordo com a autora, as estratégias multimodais apontam um discurso econômicomoral forjado e contraditório a fim de atrair clientes, supostamente priorizando necessidades sociais sobre lucros econômicos.

O artigo seguinte propõe refletirmos sobre as contribuições de uma perspectiva crítica discursiva para compreendermos a relação entre cidadania e as novas tecnologias em tempos pandêmicos. No texto A reexistência no póspandemia: considerações discursivas críticas sobre cidadania e tecnologia a partir das redes pragmáticas, Gersiney Santos nos convida a refletir sobre questões discursivas e a mobilização social, partindo de uma perspectiva crítica discursiva e de conceitos autorais provindos da Aquilombagem Crítica e das Redes Pragmáticas.

Os últimos artigos tratam de práticas discursivas no contexto educacional. O artigo de Jaqueline Santos de Souza e Daniel Vasconcelos Oliveira, Gêneros, sexualidades e língua(gens): conceitos plurais & abordagens decoloniais, explora as possibilidades de uma pedagogia decolonial, partindo de uma discussão sobre questões de gênero e sexualidades como categorias sociais estruturadas pela colonialidade. Já o artigo Uma ferramenta que veio inovar o ensino da língua inglesa na rede pública: análise crítica do discurso da notícia de lançamento da plataforma Inglês Paraná, de Pedro Américo Rodrigues Santana, Neri Souza Santana e Débora de Carvalho Figueiredo, investiga como os participantes Estado (governo), estudantes, professores, tecnologia e ensino da língua inglesa são representados em uma notícia divulgando a plataforma Inglês Paraná. Os autores discutem as implicações da representação da tecnologia na educação como algo “transformador” e “inovador”, e argumentam que as evidências textuais apontam para uma visão da política educacional como benéfica e transformadora. Contudo, também identificam na notícia analisada a presença de discursos que reforçam a desescolarização e a desqualificação dos professores.

Por fim, gostaríamos de agradecer a equipe editorial da revista Ilha do Desterro, especialmente a professora Mailce Borges Mota e a secretária executiva Paola da Cunha Nichele, por todas as orientações e suporte prestados no decorrer da organização deste número temático. Isso posto, esperamos que as contribuições aqui incluídas provoquem, para além de reflexões teóricas, metodológicas e epistemológicas, reflexões práticas que nos levem a formular linhas de ação política e social para o enfrentamento das desigualdades e injustiças provocadas pela forma assimétrica como o poder se distribui e se perpetua pela sociedade através da linguagem.

Referências

  • BATISTA, José Ribamar; SATO, Denise Tamaê Borges; MELO, Iran Ferreira (Ed.). Análise de discurso crítica para linguistas e não linguistas 1. ed. São Paulo: Parábola, 2018.
  • CHOULIARAKI, Lilie; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.
  • FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: Textual analysis for social research Routledge, 2003.
  • FAIRCLOUGH, Norman. Critical discourse analysis: the critical study of language. 2. ed. UK: Pearson Education, 2010.
  • FIGUEIREDO, Débora de Carvalho; BONINI, Adair. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. D.E.L.T.A., v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017.
  • FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. A disputa discursiva em torno dos conceitos de ‘estupro’, ‘consentimento’ e ‘violência’ em um acórdão do TJRS-Brasil. RALED, v. 22, n. 1, p. 25-36, 2022.
  • MACEDO, Litiane Barbosa. Enegrecendo os Estudos Críticos Discursivos: Contribuições Epistemológicas Afroperspectivistas para o campo da análise crítica do Discurso no Brasil. Trabalhos Em Linguística Aplicada, Campinas, v. 61, n. 1, p. 251-264, 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/010318139561411520210310
    » http://dx.doi.org/10.1590/010318139561411520210310
  • PARDO, Maria Laura. Decolonização do conhecimento nos Estudos do Discurso. In: RESENDE, Viviane de Melo (Ed.). Decolonizar os estudos críticos da linguagem. Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 47 - 62.
  • RESENDE, Viviane Melo. Perspectiva latino-americana para decolonizar os estudos críticos do discurso. In: RESENDE, Viviane de Melo (Ed.). Decolonizar os estudos críticos da linguagem. Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 19-46.
  • RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de Discurso (para a) Crítica: O texto como material de pesquisa. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.
  • RIEGER, Pedro Gustavo; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Perspectivas linguísticas para os direitos à identidade de gênero no tribunal de justiça de Santa Catarina. Letra Magna (Online), v. 22, p. 405-426, 2018.
  • VAN DIJK, T. A. Discourse and racism in Spain and Latin America Amsterdam: Benjamins, 2005.
  • VIEIRA, Viviane Cristina. Perspectivas decoloniais feministas do discurso na pesquisa sobre educação e gênero-sexualidade. In: RESENDE, Viviane de Melo (Ed.). Decolonizar os estudos críticos da linguagem Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 83-116.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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