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“Povos indígenas no Piauí: se escondeu para resistir e apareceu para existir!”1 1 Fala do Cacique Henrique Manoel do Nascimento, proferida na 17ª Semana dos Povos Indígenas do Piauí, no dia 15/04/2019, em Teresina, PI, no Museu do Piauí “Casa de Odilon Nunes”. : trajetória dos grupos indígenas da etnia Tabajara no Piauí

“Indigenous people in Piauí: he hid to resist and appeared to exist!”: trajectory of the indigenous groups of the Tabajara ethnicity in Piauí

“los indígenas de Piauí: ¡se escondió para resistir y pareció para existir!”: trayectoria de los grupos indígenas de la etnia Tabajara en Piauí

Resumo:

Nas últimas quatro décadas, no Brasil, um maior número de grupos indígenas passou a se autodeclarar e a reivindicar o reconhecimento de sua condição étnica e de seus direitos constitucionais, em um fenômeno nomeado de processo de indianização e/ou de fortalecimento da indianidade. No Piauí, destacamos os grupos da etnia Tabajara que se organizam por meio de associações indígenas, inaugurando um novo capítulo na história indígena piauiense, visto que, por muito tempo, a presença indígena no estado foi invisibilizada, silenciada e negada. Nesse bojo, o presente estudo buscou conhecer as condições sócio-históricas que contribuíram para o processo de indianização dos grupos indígenas da etnia Tabajara no Piauí. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com base nos estudos sobre produção de sentido no cotidiano. O estudo foi realizado nos municípios de Piripiri, PI, e Lagoa de São Francisco, PI, com 20 lideranças, mediante os seguintes recursos metodológicos: observação no cotidiano, conversa no cotidiano e entrevista semiestruturada. Em suma, observamos que, diante dos escombros do passado, os Tabajara buscam escrever sua história do presente, a partir do resgate histórico de suas raízes indígenas e da ação de mediadores, evocando e (re) significando fatos e acontecimentos que lhe são significativos e que fortalecem suas indianidades e sua ação política.

Palavras-chave:
povos indígenas; Tabajara; memória; ação política; indianidade

Abstract:

In the last four decades, in Brazil, a greater number of indigenous groups have come to declare themselves and claim recognition of their ethnic status and constitutional rights, in a phenomenon called the process of indianization and/or the strengthening of indianity. In Piauí, we highlight the groups of the Tabajara ethnic group that organize themselves through indigenous associations, inaugurating a new chapter in the indigenous history of Piauí, since, for a long time, the indigenous presence in the State was invisible, silenced, and denied. In this bulge, the present study sought to know the socio-historical conditions that contributed to the indianization process of the indigenous groups of the Tabajara ethnicity in Piauí. It is a qualitative research based on studies on the production of meaning in daily life. We conducted the study in the municipalities of Piripiri, PI, and Lagoa de São Francisco, PI, with 20 leaders, through the following methodological resources: observation in daily life, conversation in daily life, and semi-structured interview. In short, we observed that, in the face of the debris of the past, the Tabajara seek to write their history of the present, based on the historical rescue of their indigenous roots and the action of mediators, evoking and (re)signifying facts and events that are significant to them and that strengthen their indianities and their political action.

Keywords:
indigenous peoples; Tabajara; memory; political action; indianity

Resumen:

En los últimos cuatro decenios, en el Brasil, un mayor número de grupos indígenas ha Negado a declararse y a reclamar el reconocimiento de su condición étnica y sus derechos constitucionales, en un fenómeno denominado proceso de indianización y/o fortalecimiento de la indianidad. Destacamos los grupos de la etnia Tabajara que se organizan a través de asociaciones indígenas, inaugurando un nuevo capítulo de la historia indígena en Piauí, ya que durante mucho tiempo la presencia indígena en el estado fue invisible, silenciada y negada. En este abultamiento, el presente estudio trató de conocer las condiciones sociohistóricas que contribuyeron al proceso de indianización de los grupos indígenas de la etnia Tabajara en Piauí. Se trata de una investigación cualitativa, basada en estudios sobre la producción de sentido en la vida cotidiana. El estudio se llevó a cabo en los municípios de Piripiri, PI, y Lagoa de São Francisco, PI, con 20 líderes, a través de los siguientes recursos metodológicos: observación en la vida cotidiana, conversación en la vida cotidiana y entrevista semiestructurada. En resumen, observamos que, ante los escombros del pasado, los Tabajara buscan escribir su historia del presente, a partir del rescate histórico de sus raíces indígenas y de la acción de los mediadores, evocando y (re)significando hechos y acontecimientos que les son significativos y que fortalecen sus indianidades y su acción política.

Palabras clave:
pueblos indígenas; Tabajara; memoria; acción política; indianidad

1 INTRODUÇÃO

A invasão, a ocupação e a exploração das terras pela colonização portuguesa ocorrida no Brasil (inicialmente conhecido como Pindorama – terras das palmeiras, na linguagem Tupi) serviram para expansão do modelo mercantilista colonial, ao mesmo tempo que deflagraram o processo de dizimação da população indígena, em meio a sucessivos massacres, tortura e guerra bacteriológica, para expulsá-la de suas terras ou dominá-la e escravizá-la. Essa triste marca da história da constituição do país se arrasta até os dias atuais, com práticas não apenas genocidas, mas etnocidas e epistemicidas diante dos 305 povos indígenas restantes e que resistem duramente a ferocidade dos ataques patrocinados pelo capitalismo nacional e internacional. Ressalta-se que tudo isso tem ocorrido, independentemente dos governos à frente da República, com o apoio do Estado Brasileiro, incentivando a abertura de novas fronteiras agrícolas para ampliação do agronegócio e a exploração massiva dos recursos da natureza por empresas mineradoras e de extração de madeira.

No caso do Piauí – que, ao lado do Rio Grande do Norte, figura como unidade federativa do país que não conta com presença indígena para os órgãos oficiais –, Machado (2016)MACHADO, P As trilhas da morte. In: DIAS, C. M. M.; SANTOS, P S. História dos índios do Piauí. 2. ed. Teresina: EDUFPI, 2016. p. 385-404. discorre que o extermínio dos povos indígenas ocorreu em três momentos. O primeiro corresponde às primeiras décadas do século XVII, caracterizada pelos conflitos entre os povos indígenas e os “primeiros proprietários” de terras da região. O segundo momento compreende as últimas décadas do século XVII e as primeiras do século XVIII, marcadas pelos embates entre os indígenas e os sesmeiros. Por fim, o terceiro momento inicia-se nas últimas décadas do século XVIII e estende-se até o início do século XIX, caracterizada pelos embates entre os povos indígenas com os descendentes dos “primeiros proprietários” de terras e dos sesmeiros que habitavam a região reconhecida como sendo do estado do Piauí.

Neste cenário, o contato dos colonizadores com os povos indígenas no Piauí ocorreu das seguintes maneiras: a) guerra de extermínio, quando se tinha a intenção de eliminar todos os indígenas de um determinado grupo específico; b) guerra de expulsão, quando os indígenas eram retirados forçadamente de suas terras; c) guerra de preamento, quando os colonos capturavam indígenas e os aprisionavam com o intuito de obter mão de obra, ou seja, de escravizá-los; e d) guerra de redução, quando os indígenas eram persuadidos a se renderem a favor de suas vidas, mas, ao se renderem, eram capturados, de modo que os homens eram assassinados e as mulheres e crianças eram escravizadas (MOTT, 1985MOTT, L. R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985.).

Em virtude desse horrendo histórico de extermínio e de silenciamento forçado em que os indígenas foram submetidos, a presença indígena no Piauí permaneceu, por um longo período, invisibilizada pelos meios de produção historiográfica e pelos registros oficiais. Dias e Santos (2016)DIAS, C. M. M.; SANTOS, P S. História dos índios do Piauí. Teresina: EDUFPI, 2016. apontam que foram os estudos acadêmicos sobre a História Indígena que contribuíram para trazer a “face oculta” dessa história, até então, excluída da historiografia tradicional. Nesse sentido, destacam como os primeiros estudos sobre os povos indígenas no Piauí: “O índio no solo piauiense” (1953), de autoria do Pe. Joaquim Chaves; “O índio no povoamento do Piauí” (1984), de Moysés Castello Branco; “Os índios fervilhavam como formigas às margens dos rios e vales do Piauí” (1975), de Odilon Nunes; “Etno-história dos índios do Piauí colonial” (1985) e “Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí colonial” (1979), de Luiz Mott; e “Etno-história indígena piauiense” (1994), de João Gabriel Baptista.

Além do mais, destaca-se, nesse conjunto de obras, a descrição realizada por Padre Miguel de Carvalho, em 1697, intitulada “Descrição do Sertão do Piauí”, como sendo o registro mais antigo sobre os povos indígenas no Piauí, ao remeter, à época, a existência de 27 tribos. Logo, foi por esse estudo seminal que foi possível iniciar os primeiros estudos sobre o processo histórico dos povos indígenas no território piauiense. Apesar da imprecisão quanto ao número de grupos e etnias indígenas existentes na região reconhecida como sendo do estado do Piauí, estudos posteriores foram realizados: Pe. Joaquim Chaves (1953)CHAVES, J. O índio no solo piauiense. Teresina: Série Histórica, 1953., por exemplo, recuperou a informação da existência de 52 tribos; Odilon Nunes (1975)NUNES, O. Os índios fervilhavam como formigas às margens dos rios e vales do Piauí. In: NUNES, O. Pesguisa para a história do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. V 1. reportou em seu estudo a presença de 58 tribos; e Moysés Castelo Branco (1984) indicou a presença de somente 36 tribos.

Mas foi o estudo realizado mais recentemente, por João Gabriel Baptista (1994)BAPTISTA, G. Etno-história indígena piauiense. Teresina: EDUFPI, 1994., que apontou com maior abrangência acerca do quadro da presença indígena no Piauí. O autor registrou em seus achados a existência de quatro etnias: Jê, Caraíba, Cariri e Tupi – divididas em sete nações: Pimenteiras (Caraíba); Tremembé (Cariri); Acroá, Gueguês, Jaicós e Timbira (Jê); e os Tabajaras (Tupi). As quatro etnias presentes em solo piauiense totalizavam 158 tribos indígenas, a exemplo dos: Jenipapos, Acauã, Anacé, Canela, Gueguês, Jaicós, Gilbués, Gamelas, Tacariju, entre outros. Segundo a análise reportada por Dias e Santos (2016)DIAS, C. M. M.; SANTOS, P S. História dos índios do Piauí. Teresina: EDUFPI, 2016., o estudo de Baptista (1994)BAPTISTA, G. Etno-história indígena piauiense. Teresina: EDUFPI, 1994. foi fundamental para reparação histórica acerca da presença indígena no Piauí, ao registrar a existência de cerca de 316.000 indígenas em territórios piauienses.

Isto posto, corroboramos as teses anteriores de que a formação histórica do Piauí foi forjada sob um brutal derramamento de sangue indígena e escravização dos que restaram, sendo que, posteriormente, foram adotadas estratégias de desindianização e integração forçada das famílias descendentes, de modo a se ter um apagamento étnico, ao ponto de a FUNAI reconhecer que não contamos com a presença de indígenas no estado.

Para compreender como se deu e como se apresenta nos dias de hoje a presença indígena no Piauí, é preciso considerar a biodiversidade e a variedade geográfica, hídrica e de recursos naturais do estado. Os indígenas que aqui habitaram tinham como principal característica o nomadismo. Deste modo, viviam migrando de um território para outro em busca de alimentos, de terras férteis e de segurança, devido às perseguições e guerras travadas contra exploradores e colonizadores, como também entre tribos inimigas (CHAVES, 1953CHAVES, J. O índio no solo piauiense. Teresina: Série Histórica, 1953.). Assim, encontravam-se espalhados por todo o território piauiense: “do baixo, médio e Delta do rio Parnaíba, passando pelas cabeceiras e vales do rio Gurguéia, pela serra da Ibiapaba, cabeceiras do rio Piauí, foz e cabeceiras do rio Poty, nos limites com Pernambuco, e região central do Piauí” (DIAS; SANTOS, 2016DIAS, C. M. M.; SANTOS, P S. História dos índios do Piauí. Teresina: EDUFPI, 2016., p. 23).

No caso dos povos indígenas Tabajara, foco desta investigação, estes habitaram inicialmente as margens do Rio São Francisco, desde o litoral pernambucano (proximidades da Ilha de Itamaracá) até o agreste pernambucano (Vale do rio Pajé). Mas, devido aos conflitos e desentendimentos com os portugueses da região, os Tabajara migraram, a partir de 1585, para as demais regiões do país, a exemplo do litoral sul paraibano (ARAÚJO et al., 2012ARAÚJO, I. X.; SOUSA; V. S.; SOUZA, R. S. S.; LEITE, J. L; ANDRADE, T. M.; SANTOS, R. L A. Processo de emergência étnica: povo indígena Tabajara da Paraíba. In: CONGRESSO NORTE NORDESTE DE PESQUISA E INOVAÇÃO, 8., 2018. Anais [...]. Palmas: CONNEPI, 2012. p. 1-8.), chegando a atravessar o sertão nordestino até alcançarem a Serra do Araripe, PE, como também a região da Serra da Ibiapaba, na divisa entre o Ceará e o Piauí, além das regiões próximas ao litoral piauiense (NUNES, 1975NUNES, O. Os índios fervilhavam como formigas às margens dos rios e vales do Piauí. In: NUNES, O. Pesguisa para a história do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. V 1.; BAPTISTA, 1994BAPTISTA, G. Etno-história indígena piauiense. Teresina: EDUFPI, 1994.).

Nesse âmbito, Araújo et al. (2012)ARAÚJO, I. X.; SOUSA; V. S.; SOUZA, R. S. S.; LEITE, J. L; ANDRADE, T. M.; SANTOS, R. L A. Processo de emergência étnica: povo indígena Tabajara da Paraíba. In: CONGRESSO NORTE NORDESTE DE PESQUISA E INOVAÇÃO, 8., 2018. Anais [...]. Palmas: CONNEPI, 2012. p. 1-8. e Porto Alegre (2003)PORTO ALEGRE, M. S. Comissão dos Borboletas: a ciência do Império entre o Ceará e a Corte (1856-1867). Fortaleza: Museu do Ceará, 2003. apontam que tanto na Serra da Ibiapaba, CE, quanto a partir do Litoral Paraibano, PB, os Tabajara foram alvos de inúmeras missões jesuíticas que tinham como objetivo a fixação de aldeamentos missionários e a catequização dos povos indígenas, sendo utilizados como mão de obra agrícola e como combatentes durante as invasões estrangeiras e em ataques aos demais grupos indígenas. Além disso, os autores sinalizam que, em função da dura e brutal repressão por parte do poder Regencial às revoltas provinciais (Malês, Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Farroupilha, em que participaram negros e indígenas), acompanhada ainda dos efeitos da promulgação da Lei de Terras de 1850, por D. Pedro II, que estabeleceu parâmetros e normas sobre a posse, a manutenção, o uso e a comercialização de terras, muitos grupos e etnias indígenas foram exterminados ou dispersados pelo território brasileiro – especialmente os da região posteriormente conhecida como Nordeste –, pois a reserva de terras indígenas expressa na lei não foi cumprida. Pelo contrário, as terras foram repassadas a exploradores, grileiros e às famílias que constituíram as oligarquias da época, ocasionando mais conflitos, extermínios e a expulsão dos indígenas de suas terras. Assim, muitos aldeamentos foram extintos e suas terras incorporadas à propriedade privada e à Nação, tendo como consequência a invisibilização dos povos indígenas no cenário brasileiro, mediante o discurso de assimilação e de integração à sociedade nacional.

De acordo com Oliveira (1998)OLIVEIRA, J. P. F. Uma etnologia dos “índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mono, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003
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, até o final do século XIX, pouco se ouvia falar sobre indígenas no Nordeste, pois, tidos como “índios misturados”, por não apresentarem mais “traços culturais indígenas” como características físicas e biológicas, língua indígena falada, tradições, rituais, entre outros, não eram reconhecidos pelos órgãos estatais como indígenas. Este “apagamento” foi resultado de um longo processo de desindianização ocasionado em grande medida: 1) pela intervenção ocorrida pelos aldeamentos missionários jesuítas, entre meados do século XVII e início do século XVIII, com os trabalhos catequéticos e o disciplinamento para o trabalho; 2) pelas ações das agências indigenistas ao incentivar os casamentos interétnicos; e 3) em função da própria Lei de Terras de 1850, já mencionada, em que, ao perderam suas terras, os indígenas sobreviventes tiveram de esconder seus traços culturais indígenas, como forma de preservar sua existência.

Todavia, pós-Constituição Federal de 1988, com o fortalecimento de grupos étnicos pelo país, acompanhado do fortalecimento do movimento indígena, em um fenômeno denominado pela Antropologia como “etnogênese”, “(re)emergência étnica”, “territorialização”, “reetinização”, “etnicização”, “ressurgimento” ou “viagem de volta”, grupos e comunidades passaram a se articular em defesa de seus direitos constitucionais quanto à demarcação de terra, à atenção à saúde indígena e à educação escolar indígena. Assim, muitos grupos em luta por reconhecimento têm se organizado em associações e organizações indígenas, no intuito de reivindicar suas especificidades étnicas diante do Estado brasileiro. Porém, alerta-se que, tendo em vista que os grupos indígenas querem ser reconhecidos por suas histórias de luta e de resistência, e não por uma “suposta” ressurgência, emergência e espontaneidade, conforme os termos do campo antropológico sugerem, optamos, neste trabalho, por evidenciar o processo de indianização e/ou fortalecimento da indianidade, nomeação sugerida pela própria população indígena nos debates atuais sobre o tema (SANTOS; SANTOS, 2019SANTOS, C. J. F.; SANTOS, V. R. Decolonialidades indígenas. In: COSTA, F. A. C; MESQUITA, M. R. (Org.). Psicologio politico no Brosil e enfrentamentos o processos antidemocráticos. Maceió: Edufal, 2019. p. 231-43.).

Nesse tocante, famílias nos estados da Paraíba, do Ceará e do Piauí reivindicam seu reconhecimento étnico enquanto povos indígenas Tabajara. Na Paraíba, tais famílias encontram-se localizadas no município de Conde, de Alhandra, Pitimbu e de João Pessoa (ARAÚJO et al., 2012ARAÚJO, I. X.; SOUSA; V. S.; SOUZA, R. S. S.; LEITE, J. L; ANDRADE, T. M.; SANTOS, R. L A. Processo de emergência étnica: povo indígena Tabajara da Paraíba. In: CONGRESSO NORTE NORDESTE DE PESQUISA E INOVAÇÃO, 8., 2018. Anais [...]. Palmas: CONNEPI, 2012. p. 1-8.). No Ceará, localizam-se no oeste do estado, na região da Serra da Ibiapaba, no município de Crateús, de Poranga, de Quiterianópolis, de Monsenhor Tabosa e de Tamboril (Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Estado do Ceará [SDA/CE]- CEARÁ, 2019CEARÁ (Estado). Secretaria do Desenvolvimento Agrário. Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável do Estado do Ceará – Projeto São José IV – marco conceituai dos Povos Indígenas (Versão Final). Fortaleza: SDA, 2019. Disponível em: https://www.sda.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/60/2019/02/MARCO-CONCEITUAL-DOS-POVOS-INDI%CC%81GENAS-l.pdf Acesso em: 17 maio 2020.
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). Já no Piauí encontram-se localizadas nos municípios de Piripiri e de Lagoa de São Francisco, e se organizam politicamente por meio da Associação Indígena Itacoatiara de Piripiri, da Associação Organizada dos Indígenas do Canto da Várzea e da Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-ltamaraty (Secretaria do Planejamento do Estado do Piauí [SEPLAN/PI] – PIAUÍ, 2018PIAUÍ (Estado). Secretaria do Planejamento do Estado do Piauí. Marco da Política para Povos Indígenas. Teresina: SEPLAN, 2018. Disponível em: http://www.seplan.pi.gov.br/marco.pdf. Acesso em: 17 maio 2020.
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).

Além dos grupos indígenas Tabajara, cabe destacar a mobilização de demais grupos no estado do Piauí, a exemplo dos Cariri, Gamela e Pirajá. No caso dos Cariri, estes estão localizados no sudeste do Piauí, no município de Queimada Nova, e residem em uma região fronteiriça entre os estados do Piauí, de Pernambuco e da Bahia. Quanto aos Gamela e aos Pirajá, estão localizados na região de Chapadas das Mangabeiras, respectivamente, nos municípios de Currais e Santa Filomena (SEPLAN/PI – PIAUÍ, 2018PIAUÍ (Estado). Secretaria do Planejamento do Estado do Piauí. Marco da Política para Povos Indígenas. Teresina: SEPLAN, 2018. Disponível em: http://www.seplan.pi.gov.br/marco.pdf. Acesso em: 17 maio 2020.
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).

Diante do exposto, justificamos a importância deste estudo enquanto reparação histórica, considerando que a recuperação da produção historiográfica sobre a presença indígena no território piauiense desvelou registros até o início do séc. XIX. Porém, observamos que o atual cenário contrapõe os discursos que insistem em afirmar sobre a inexistência de indígenas no Piauí, e o compromisso nosso é contribuir com a reescrita dessa história, até então invisibilizada e silenciada.

Compreendendo, portanto, que o processo de indianização de um grupo étnico faz parte de toda uma conjuntura sócio-histórica e política (local e nacional), buscamos, no presente artigo, conhecer as condições sócio-históricas que contribuíram para o processo de indianização dos grupos da etnia Tabajara no Piauí, tomando como referência: a) o resgate de suas raízes indígenas que tecem sua memória coletiva; e b) a ação de mediadores que, em momentos distintos, fomentaram o processo de reexistência cultural e política de tais grupos no estado do Piauí.

2 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa (MINAYO, 2008MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2008.), ancorada na proposta teórico-metodológica da produção de sentido no cotidiano (SPINK et al., 2014SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (Org.). A produção de informação no pesquiso social – compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2014.). Tal perspectiva filia-se ao construcionismo social ao se deter nas relações cotidianas e sociais dos sujeitos e/ou de coletivos, na forma como produzem sentidos e se posicionam nas relações sociais. Além disso, exige do(a) pesquisador(a) uma postura crítica diante das construções sócio-históricas que perpassam o cotidiano da vida (SPINK et al., 2014SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (Org.). A produção de informação no pesquiso social – compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2014.).

O estudo ocorreu no município de Piripiri e de Lagoa de São Francisco, na região norte do estado do Piauí, onde residem as famílias pertencentes à etnia Tabajara. Em Piripiri, as famílias residem nos bairros periféricos da cidade (Matadouro, Flor dos Campos, Itacoatiara, Floresta) e na zona rural (Comunidade Canto da Várzea). Em Lagoa de São Francisco, residem na zona rural (Comunidade Nazaré). Participaram 20 pessoas indígenas Tabajara, com idade entre 18 e 88 anos, sendo 10 homens e 10 mulheres: 7 da zona urbana e 4 da zona rural de Piripiri; e 9 da zona rural de Lagoa de São Francisco.

Quanto às ferramentas de pesquisa, fizemos uso da observação enquanto estratégia de compreensão do cotidiano das pessoas, do grupo ou da comunidade, seguida de conversas no cotidiano, a fim de possibilitar espaços de socialização e de interação entre o(a) pesquisador(a) e o(a) participante. Além disso, recorremos a um roteiro de entrevista (semiestruturada) com os(as) participantes, com a finalidade de discutir questões relacionadas ao fortalecimento da indianidade e à organização social e política dos Tabajara. Embora partíssemos de um roteiro prévio, por diversas vezes, durante as entrevistas, percorremos outros campos discursivos que não estavam postos o priori (SPINK et al., 2014SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (Org.). A produção de informação no pesquiso social – compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2014.).

Todo o percurso metodológico foi registrado em diários de campo, em que narramos os acontecimentos ocorridos, as impressões suscitadas, bem como informações pertinentes ao campo-tema. O uso do diário não se trata de mero registro de informações, pois coloca em análise as forças e os dispositivos que agenciam e criam os acontecimentos pesquisados, levando em consideração as falas, o contexto e as dinâmicas do campo-tema (SPINK et al., 2014SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (Org.). A produção de informação no pesquiso social – compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2014.). A análise das entrevistas contou com a técnica de elaboração do Mapa de Associação de Ideias (Mapa Dialógico), a fim de auxiliar na organização das práticas discursivas e nortear as categorias analíticas a serem discutidas. Essa técnica implica uma interpretação fundamentada nas teorias e nos conceitos que versam com os objetivos de estudo em questão (SPINK et al., 2014SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (Org.). A produção de informação no pesquiso social – compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2014.).

Por fim, a pesquisa contou com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI), por meio do Parecer Consubstanciado n. 3.131.050, em consonância com as Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde. Porém, atendemos ao pedido dos(as) participantes do estudo de identificá-los(as) nos trechos das entrevistas, por se tratar de relatos que versam sobre suas histórias de vida e comunitárias, memórias, experiências e acontecimentos. Ademais, reconhecemos que esta é uma forma de deixar registradas suas histórias de luta e de resistência no cenário piauiense.

3 RESULTADO E DISCUSSÃO

Ao discorrerem sobre suas histórias de vida e de seus antepassados, as lideranças indígenas de Piripiri, PI, e de Lagoa de São Francisco, PI, atribuem suas raízes indígenas aos seus familiares advindos da região da Serra da Ibiapaba, CE. Ademais, declaram sua afiliação étnica à etnia Tabajara, tendo em vista que, historicamente, a região era habitada por tais grupos e abrigava aldeamentos missionários que detinham mais de 70 aldeias da etnia Tabajara (NUNES, 1975NUNES, O. Os índios fervilhavam como formigas às margens dos rios e vales do Piauí. In: NUNES, O. Pesguisa para a história do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. V 1.; BAPTISTA, 1994BAPTISTA, G. Etno-história indígena piauiense. Teresina: EDUFPI, 1994.).

Nesse âmbito, ao compartilharem de uma ancestralidade em comum, os grupos indígenas Tabajara, com seus percursos singulares e particulares, rememoram sua história familiar e comunitária, a fim de produzirem uma história compartilhada, que (re)atualiza no presente acontecimentos, lembranças e vivências do passado. Neste caso, rememoram fatos sociais e culturais de um determinado tempo histórico para construir experiências no tempo vivido e projetar planos e ações em um tempo presente.

Hampaté Bâ (2010)HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. História geral da África: I – metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212., ao estudar as tradições orais da cultura africana, expressa a importância da transmissão oral das histórias de vida e das tradições de um povo, que carregam dentro de si inúmeras possibilidades e experiências pessoais e coletivas, representadas no cotidiano da vida, uma vez que é por meio da transmissão de saberes tradicionais que a memória de um povo é tecida. Para o autor, “[...] nenhuma tentativa de penetrar a história e a ancestralidade terá validade a menos que se apoie em uma tradição oral” (HAMPATÉ BÂ, 2010HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. História geral da África: I – metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212., p. 167). Dessa forma, apoiados em uma oralidade que perpassa o campo do vivido e das narrativas de vida, em um elo entre passado e presente, os Tabajara (re)escrevem suas histórias e (re)afirmam suas indianidades, uma vez que é por meio da oralidade que a memória é evocada e (re)significada.

Àvista disso, o passado que os Tabajara se referem “não é o da ciência histórica, mas aquele em que se representa a memória coletiva” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. 1. ed. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998., p. 12). Ou seja, não se trata de uma reprodução do passado como de fato ele foi, mas de uma (re)construção dessas lembranças passadas no presente, a partir de experiências e vivências coletivas, uma vez que todas as nossas lembranças pessoais (memória individual) são tecidas e compartilhadas dentro de um grupo (memória coletiva), a partir de pontos em comum, sem desconsiderar suas linhas conflitantes (HALBWACHS, 2004HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.).

Assim sendo, por mais que as lembranças e os relatos dos indivíduos sejam expressos de modos distintos, são os pontos em comum que (re)constroem a história de um grupo, a partir de fatos e acontecimentos que lhes são significativos. No caso dos indígenas Tabajara de Piripiri e de Lagoa de São Francisco, os relatos em referência às migrações realizadas tanto por seus antepassados quanto por alguns(mas) dos(as) entrevistados(as) em relação a sua chegada no Piauí, fugidos da expropriação territorial e da seca, são constitutivos da memória coletiva de ambos os grupos. A Serra da Ibiapaba é sempre evocada nos relatos como lugar de origem e de elo com os antepassados: “A nosso relação com os cearenses é muito forte. Até porque descobrimos que somos cearenses, advindos da Serra da Ibiapaba. Todo nosso povo é do Ceará!” (Cacique Henrique Manoel do Nascimento). “Somos todos da etnia Tabajara da Serra do Ibiapaba!” (Cacique José Guilherme da Silva). “Meu povo que é da reqião do Ceará, da Serra da Ibiapaba!” (Pajé Francisco Gomes Sobrinho).

Dessa maneira, as lideranças indígenas de Piripiri, tanto da zona urbana quanto da zona rural, relatam que seus avós, pais e/ou até eles próprios vieram da Serra da Ibiapaba, por volta da segunda metade do século XX, em busca de melhores condições de vida. Afirmaram que muitas foram as famílias que desceram a Serra da Ibiapaba em condições adversas, chegando a passar fome e sede, durante o trajeto realizado em comboios. Além disso, relataram que muitas famílias vieram até mesmo sem destino e aos poucos foram se instalando pela região norte do estado do Piauí, a exemplo de Piripiri e demais municípios circunvizinhos.

A minha avó materna e a família dela partiram de Viçosa, CE, de jumento e a pé. Instalando-se nessas regiões aqui do litoral do Piauí. Tão tal que minha mãe nasceu em Batalha, PI. Depois ela veio para Piripiri, PI, em busca de melhores condições de vida, de um local que pudesse se alimentar, onde a terra fosse boa e rica. (Joselane Dias Pereira - Associação Indígena Itacoatiara de Piripiri).

Eu nasci no Ceará, na Serra do Ibiapaba. Meus pais foram acuados a dente de cachorro pelos caçadores na boca da furna. Nós nos entregamos ao branco e eles foram e amansaram nós. Depois descemos rumo a Viçosa, CE, e ficamos um tempo por lá. Meu pai morreu e ficou só eu, minha mãe e meus irmãos! Nessa época tinha muitos comboieiros que carregavam frutas do Ceará para o Piauí. Aí resolvemos vim. Era 12 léguas! Viajava o dia todinho! Aí quando já estávamos com 12 dias em uma fazenda em Luís Correia, PI, meu irmão mais velho veio para Piripiri, PI, e depois foi buscar a gente. Já estou com 44 anos aqui! (Cacique José Guilherme da Silva - Associação Indígena Itacoatiara de Piripiri).

Muitos dos que compõem os grupos indígenas Tabajara de Piripiri relataram que não sabem muito sobre a história dos seus antepassados na região cearense. Somente aqueles que vieram na infância ou juventude relembram dos tempos que moravam no Ceará e da vinda para o Piauí. Todavia, tal desconhecimento não difere da realidade dos demais grupos indígenas que se encontram diante da construção do seu processo de indianização no país, em razão da violência, da discriminação, do genocídio e do silenciamento empreendido contra os povos indígenas e contra os seus modos de vida (KÓS, 2015KÓS, C. V N. M. Etnias, fluxos e fronteiras: processo de emergência étnica dos Kariri no Piauí. 2015. 162 f Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, 2015.; LIMA, 2010LIMA, C. L S. Etnicidade indígena no contexto urbano: uma etnografia sobre os Kalabaça, Kariri, Potiguara, Tabajara e Tupinambá de Crateús. 2010. 272 f Tese. (Doutorado em Antropologia) – Departamento de Sociologia e Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, 2010.).

Corroborando o exposto, o grupo indígena de Lagoa de São Francisco atribui sua descendência indígena aos grupos familiares que habitavam a região, ainda por volta da segunda metade do século XIX, também advindos da Serra da Ibiapaba, CE. Inicialmente, atribuíram sua filiação étnica aos grupos familiares conhecidos na região como Codóis Cabeludos. Posteriormente, ao rememorarem suas histórias de vida e comunitárias, descobriram que Codóis Cabeludos era um apelido de família (não uma etnia) e que o território piauiense era ponto de passagem de rotas migratórias de grupos indígenas. Diante do agravamento da seca e da prática de expropriação de terras, diversas etnias migraram rumo à região Norte do país em busca de terras férteis e de alimentos (NUNES, 1975NUNES, O. Os índios fervilhavam como formigas às margens dos rios e vales do Piauí. In: NUNES, O. Pesguisa para a história do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. V 1.), o que levou, portanto, a inferirem que a região que corresponde à Comunidade Nazaré seria uma dessas rotas migratórias, sobretudo dos povos Tabajara, devido à proximidade com a Serra da Ibiapaba, CE. Assim sendo, assumiram seu pertencimento étnico aos Tabajaras advindos do Ceará.

As lideranças indígenas relataram ainda que a Comunidade Nazaré surgiu em torno do Olho d'Água do Cedro, lugar onde os grupos familiares indígenas Tabajara habitavam, antes mesmo da chegada dos Codóis Cabeludos na região. Para eles, os Codóis Cabeludos chegaram a princípio na região do Olho d'Água do Curralinho e, ao explorarem as terras, desceram rumo ao Olho d'Água do Cedro, onde as famílias indígenas Tabajara habitavam, o que resultou em alguns conflitos e disputa por terra e alimentos.

Nós temos os olhos d'água onde começo o histório. Tem o Olho d'Água do Currolinho onde morco o chegodo dos Codóis Cabeludos. Tem o Olho d'Água do Cedro onde tem a bananeira e o cemitério dos indígenas. Lá era onde eles viviam. Lá era a aldeia deles. A história conta gue, guando os Codóis Cabeludos chegaram e começaram a trabalhar por agui, eles começaram a descer até o Olho d'Água do Cedro, onde tinha os indígenas. Aí ocorreu um conflito, os Codóis Cabeludos foram embora e ficaram os indígenas Tabajara. (Cacique Henrique Manoel do Nascimento – Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-ltamaraty).

A Comunidade Nazaré conta com lugares que salvaguardam a identidade étnica indígena e que ajudam a (re)construir, no presente, a trajetória histórica e a memória coletiva do grupo, a exemplo dos Olhos d'Água do Cedro e do Curralinho, das bananeiras e do cemitério indígena. Tais aspectos dialogam com o exposto por Halbwachs (2004, p. 17)HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004., ao referir que: “não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial”; e por Monteiro (2006, p. 20)MONTEIRO, J. M. Prefácio. In: ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru: EDUSC, 2006. p. 19-23., ao apontar que: “as narrativas organizam os fatos não em termos de sua sequência no tempo, mas antes por meio de sua sequência no espaço”. Portanto, os olhos d'água, o cemitério e as bananeiras configuram-se como “marcadores memoriais” e ajudam as famílias indígenas da Comunidade Nazaré a organizarem suas narrativas sobre o passado e atribuírem sentidos à sua ancestralidade indígena. Trata-se de uma narrativa histórica aberta ao surgimento de novos elementos, acontecimentos e ações que também se fazem no presente pela luta empreendida pela própria comunidade.

Foi com base no resgate de suas memórias e do fortalecimento de suas indianidades que a comunidade passou a atribuir sua descendência a duas índias que foram “pegas a dente de cachorro”3 3 Expressão usada para situações em que mulheres indígenas eram perseguidas na mata por colonos, com a ajuda de cachorros, e ao serem capturadas eram submetidas a situações de violência física, emocional e sexual. : Antônia Jacinta e Josefa Jacinta. Desse modo, os Tabajara acabaram tecendo uma memória viva que é construída coletivamente no campo do vivido por meio da oralidade, que resulta no resgate e na transmissão de uma herança cultural de um povo/grupo social, no intuito de manter as histórias, os costumes, os rituais e demais tradições ligadas aos seus antepassados (HAMPATÉ BÂ, 2010HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. História geral da África: I – metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212.).

À vista disso, a afirmação indígena dos Tabajara na Comunidade Nazaré tem se dado em grande parte pelos descentes de Antónia Jacinta, de várias gerações (netos, bisnetos, trinetos e quatrinetos), que utilizam da tradição oral para manter viva toda uma história comunitária, assim como as expressões e os traços da cultura indígena, uma vez que

[...] a tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação. (HAMPATÉ BÂ, 2010HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. História geral da África: I – metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212., p. 169).

Além do mais, nesse processo de indianização, os Tabajara, seja a partir dos grupos que residem em Piripiri, seja por aqueles que vivem em Lagoa de São Francisco, apoiam-se nos membros mais velhos da comunidade e no respeito à ancestralidade para ressoar as vozes que tecem as histórias e os saberes que transcendem o tempo e o espaço, assim como para dar sentido às narrativas de origem e às lutas da comunidade.

O papai [Manoel Sinézio do Nascimento] acha que os indígenas já viviam aqui na Comunidade Nazaré e que Antônia Jacinta e Josefa Jacinta foram pegas a dente de cachorro por pessoas que passavam pela regido. Segundo ele, essas pessoas a viram, pegaram, amansaram e assim elas constituíram família aqui. A avó do meu pai [Antónia Jacinta] teve filhos de diferentes pais e uns desses filhos foi minha avó [Anízia Maria da Conceição]. (Cacique Henrique Manoel do Nascimento – Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-ltamaraty)

Aqui na Comunidade Canto da Várzea tinha uma índia que ela veio criança da Serra Grande da Ibiapaba, CE. Quando a mãe dela veio para cá, trouxe ela pequeninha, porque tinha pouco tempo que a avó dela tinha sido pega no mato. Aí ela veio e morou aqui a vida inteira e teve só uma filha. Ela morreu com 104 anos e não tinha um cabelo branco. Aí hoje o colégio da Comunidade Canto da Várzea é registrado no nome dela, Chica Cearense! (Pajé Vitorino Leite de Sousa – Associação Organizada dos Indígenas do Canto da Várzea)

Logo, podemos observar o quanto as narrativas e as histórias de vida dos mais velhos tecem o conhecimento e a memória coletiva de cada grupo Tabajara, sendo testemunhas de uma herança oral, que traz consigo a força viva de um povo, de uma tradição, de uma cultura, de uma compreensão de mundo. De acordo com Hampaté Bâ (2010)HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. História geral da África: I – metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212., ao estudar a tradição oral dos saberes africanos, os anciões são os grandes detentores de uma herança cultural e ancestral, sendo os responsáveis por tais transmissões, construções e reproduções.

Sobre a expressão “pega a dente de cachorro”, tal marca na memória coletiva da comunidade (e certamente de outras) desvela um outro lado dessa história e do seu próprio mito de fundação: o quanto as mulheres indígenas estiveram/estão suscetíveis, desde o início da colonização brasileira, a situações de agressão física, psicológica e de abuso sexual. Segundo dados do Relatório da ONU (2010), as mulheres indígenas são as principais vítimas de violências praticadas contra as comunidades indígenas, em meio às invasões e tentativas de expulsão de suas terras, sendo vítimas de feminicídios, violência sexual, tráfico e exploração sexual. Os dados demonstram que uma em cada três mulheres indígenas são estupradas. Márcia Wayna Kambeba, em entrevista para o HuffPost Brasil, elucida que “o estupro é presente e é uma forma de desmoralizar a aldeia [...] não é uma prática natural nas aldeias. É uma distorção moral e cultural”4 4 Informações recuperadas do sítio https://www.huffpostbrasil.com/2016/ll/25/por-que-a-violencia-contra-mulheres-indigenas-e-tao-dificil-de-s_a_21700429/ . Trata-se, portanto, de uma estratégia de dominação, de poder e de desmoralização que se (re)atualiza no tempo, provocadora de silenciamentos, compreensíveis diante do desconforto e da dor que causam tais lembranças.

Minho avó materna era índia. Foi pega a dente de cachorro dentro da mata. Os vaqueiros andavam dentro da mata e deu de cara com ela. Correram atrás dela de manhã até duas horas da tarde. Pegaram ela toda rasgada, arranhada de mato. Ela passou meses amarrada para poder ir amassando. Aí foram tratar dosferimentos dela. Aí o finado meu avô foi e casou com ela! (Raimunda Maria da Silva - Associação Indígena Itacoatiara de Piripiri).

Diante disso, inúmeras foram/são as tentativas de dominação, de desindianização e de integração forçada da população indígena à sociedade nacional, de forma excludente e violenta. Como resultado de séculos de violação, houve, em muitos casos, o silenciamento das tradições, dos costumes e das crenças de um determinado povo, grupo e/ou comunidade, que, por receio e até mesmo por sofrerem retaliações, escamotearam/escamoteiam sua identidade indígena enquanto estratégia de sobrevivência e de resistência diante do genocídio e do apagamento de suas raízes.

Todavia, tais tentativas e discursos têm sido contrapostos pelos processos de indianização dos grupos indígenas - a exemplo da etnia Tabajara no Piauí -, que, ao (re) elaborarem as narrativas sobre suas histórias de vida e de seus antepassados (conforme relatado), assumem suas raízes indígenas e reivindicam o reconhecimento de sua condição étnica. Este movimento tem contado com o apoio de diferentes mediadores, tais como: pesquisadores; agentes pastorais; profissionais ligados às organizações governamentais e, sobretudo, de demais lideranças indígenas de outras localidades do país, que, em momentos distintos, auxiliaram/auxiliam na rememoração das raízes indígenas e, principalmente, no processo de mobilização étnica e política no estado do Piauí.

De início, os grupos contaram com o auxílio de antropólogos (as) e de entidades sociais e/ou religiosas, que, ao desenvolverem pesquisas, ações e projetos com tais grupos e comunidades, contribuíram para o resgate histórico de suas raízes indígenas e para a constatação pública de reivindicações históricas relacionadas à garantia de acesso aos serviços públicos, à melhoria de condições de vida e de acesso à terra. Realidade semelhante à vivida por outros grupos étnicos em reexistência no país, que, diante de suas lutas e demandas sociais, contaram/contam com a colaboração de agentes externos e outros grupos e lideranças indígenas para o fortalecimento de suas ações políticas na esfera local e nacional (ARRUTI, 2006ARRUTI, J. M. A. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru: EDUSC, 2006.; KÓS, 2015KÓS, C. V N. M. Etnias, fluxos e fronteiras: processo de emergência étnica dos Kariri no Piauí. 2015. 162 f Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, 2015.; LIMA, 2010LIMA, C. L S. Etnicidade indígena no contexto urbano: uma etnografia sobre os Kalabaça, Kariri, Potiguara, Tabajara e Tupinambá de Crateús. 2010. 272 f Tese. (Doutorado em Antropologia) – Departamento de Sociologia e Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, 2010.).

Nesse âmbito, o primeiro grupo a se mobilizar no Piauí foi o grupo das famílias indígenas da zona urbana de Piripiri, por intermédio de Hélder Ferreira de Sousa, antropólogo e pesquisador vinculado à Universidade Federal do Delta do Parnaíba, autodeclarado indígena e que, conjuntamente com o Cacique José Guilherme da Silva, criou, em meados de 2005, a Associação Indígena Itacoatiara de Piripiri. “A gente começou esse ciclo indo em pessoa em pessoa, em fomílio em família, naquelas que se identificavam, né!” (Maria do Socorro da Silva). A associação conta atualmente com o registro de 53 famílias e um total de 265 pessoas, sendo 133 do sexo masculino e 132 do sexo feminino.

Quanto à mobilização do grupo indígena da zona rural de Piripiri, da Comunidade Canto da Várzea, começou em meados de 2015, por intermédio do Pajé Francisco Gomes Sobrinho (liderança do grupo da zona urbana de Piripiri) e de Romeu Tavares (representante da Coordenação Técnica Local da FUNAI). Esses, em contato com Cícero Evangelista Dias e Pajé Vitorino Leite de Sousa, moradores da comunidade, começaram a registrar os relatos acerca dos primeiros moradores que vieram da Serra da Ibiapaba, a exemplo de Chica Cearense, uma indígena que por muitos anos morou na região. Logo, foi fundada a Associação Organizada dos Indígenas do Canto da Várzea, contando com 22 famílias e o total de 60 pessoas (30 do sexo masculino e 30 do sexo feminino).

Por fim, o grupo indígena Tabajara de Lagoa de São Francisco contou, em épocas distintas, com o incentivo de Formadores do Centro de Formação Mandacaru no município de Pedro II, na figura de Deodata Maria dos Anjos e do Padre Alexandre. Assim como, posteriormente, com o incentivo de Carmen Lúcia da Silva Lima, antropóloga e pesquisadora vinculada a Universidade Federal do Piauí. De acordo com os (as) participantes, o Centro de Formação Mandacaru de Pedro II, por volta dos anos de 1990, desenvolvia atividades de cunho social e religioso na Comunidade Nazaré. Os formadores ao ouvirem os relatos sobre a chegada dos primeiros moradores na região e ao observarem nas apresentações artísticas traços que remetiam à cultura indígena foram os primeiros a incentivarem os moradores a assumirem suas raízes indígenas. Na ocasião, as lideranças relataram que o Padre Alexandre chegou a realizar uma reportagem sobre a história da comunidade e suas raízes indígenas no Jornal Impressa de Fortaleza. Tais acontecimentos fizeram com que algumas pessoas e entidades sociais locais tomassem conhecimento da história, ainda de forma bem retraída, pois eram poucos os moradores que relatavam sobre suas histórias de vida e de seus antepassados.

Os (as) participantes ainda relataram que, transcorridos mais de 20 anos desde os primeiros incentivos e mobilizações, Carmen Lúcia da Silva Lima e seu grupo de pesquisa, ao tomarem conhecimento da história da comunidade, realizaram, no ano de 2015, em parceria com os moradores, um trabalho de resgate histórico sobre a origem da comunidade e de suas raízes indígenas. Segundo os (as) participantes, este foi um trabalho de suma importância para o processo de reconhecimento étnico da comunidade e, ao mesmo tempo, muito árduo, visto que, na época, muito dos primeiros moradores já haviam morrido, como reporta o relato a seguir:

Sabemos que perdemos muito do história porque os mais velhos foram morrendo. Deve ter acontecido muito sofrimento e muitas perdas! A história indíqena é muito dolorosa quando se refere aos indíqenas no Piauí. Então, eu acho que isso contribuiu muito para que eles não contassem a história. Por isso, a qente resolveu resqatar! (Cacique Henrique Manoel do Nascimento – Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-ltamaraty).

Além disso, as lideranças atribuem outro momento de suma importância para sua mobilização étnica e política: a realização, em 2017, do III Fórum Nacional de Museus Indígenas do Brasil na Comunidade Nazaré. O evento foi um importante disparador, pois permitiu frutíferos diálogos com demais grupos indígenas do país, a exemplo dos grupos do estado do Ceará, que também contam com grupos pertencentes à etnia Tabajara. Tais ações resultaram, posteriormente, em parcerias interculturais e institucionais que fortaleceram o processo de indianização dos grupos piauienses. No mesmo ano, foi criada a Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-ltamaraty, que, atualmente, conta com 124 famílias, totȧlizando 418 pessoas autodeclaradas indígenas, 230 do sexo feminino e 188 do sexo masculino.

Dito isso, podemos observar que os agentes externos e as demais lideranças indígenas colaboraram ativamente para esse processo de rememoração das raízes indígenas e de (re) construção de uma memória coletiva dos grupos Tabajara de Piripiri e de Lagoa de São Francisco, assim como para o processo de mobilização étnica e política de tais grupos no cenário piauiense. Tal feito frutificou tanto o fortalecimento da tradição oral e da ancestralidade indígena desses grupos quanto o rompimento do ethos do silêncio, imposto pelos colonialismos vigentes, conferindo, assim, novos elementos e sentidos às narrativas sobre o passado, que mobilizaram discursos e ações sociais e políticas em prol de uma história do presente.

Logo, como já mencionamos, a construção de uma história do presente não se trata de um processo findado, ela se encontra em construção, a partir de novos acontecimentos, fatos e ações que, no cotidiano da vida, acionam novos campos de sentidos e novos marcadores memoriais às histórias de vida e comunitárias dos grupos. O resgate das raízes indígenas e as práticas de mediação sempre estarão em curso a partir das relações vividas no cotidiano e das relações sociais estabelecidas com/pelo/entre os grupos, agenciando uma história de transformação simbólica e política do grupo, cujo ethos do silêncio, anteriormente referido, cede progressivamente lugar à valorização do ato de lembrar e de trocar lembranças, que, por meio das relações sociais, vão sendo elaboradas e reescritas, além de fortalecer suas identidades políticas (ARRUTI, 2006ARRUTI, J. M. A. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru: EDUSC, 2006.).

Por fim, ressalta-se que, assim como em determinados momentos, os Tabajara de Piripiri e de Lagoa de São Francisco contaram/contam com a ajuda de agentes mediadores que os auxiliaram/auxiliam na rememoração de suas histórias de vida e no desenvolvimento de ações políticas na esfera local e nacional. Nos últimos anos, estes também passaram a desempenhar o papel de mediadores junto a outros grupos para o resgate de suas raízes indígenas e organização política. Como exemplo, citamos a mobilização étnica e política dos Gamelas (em Currais) e dos Pirajá (em Santa Filomena), que contam com o auxílio das lideranças Tabajara, assim como de demais entidades e estudiosos (as) do tema.

Nesse bojo, ainda temos os grupos familiares da etnia Tapuio que residem também na Comunidade Nazaré, em Lagoa de São Francisco, que, ao acompanharem o processo de resgate histórico dos grupos familiares da etnia Tabajara em torno de suas raízes, têm buscado afirmar sua ancestralidade indígena ligada ao povo Tapuio. Segundo relatos, os primeiros grupos familiares da etnia Tapuio, advindos do estado de Pernambuco, teriam chegado à comunidade em uma época que havia poucos moradores. Mas, por receio, imposto pelo ethos do silêncio, acabaram escamoteando suas raízes indígenas.

Nós sabíamos que erámos Tapuios, da região de Pernambuco, só que a gente tinha aquele medo de sair dizendo que erámos indígenas, por causa do preconceito. Mas aí, com a força dos Tabajara, que foram atrás de suas histórias, procuramos fazer a mesma caminhada e agora estamos juntos na luta. Aí hoje podemos nos apresentar dizendo que somos indígenas! Nõo temos mais medo daquele preconceito grande! (Maria Gorete de Sousa da Mata – Associação dos Povos Indígenas Tabajara-Tapuio-ltamaraty).

Partindo disso, as práticas de mediação, ao mobilizarem ações e reivindicações em torno de uma identidade étnica, colocam em questão certas abordagens essencialistas dos processos de constituição de identidades culturais que classificam a população em categoriais sociais, estatais e identitárias, a exemplo dos povos tradicionais, indígenas e quilombolas (VALLE, 2015VALLE, C. G. Apresentação – etnicidade e mediação como política e cultura. In: VALLE, C. G. (Org.). Etnicidode e mediação. São Paulo: Annablume Editora, 2015. p. 13- 61.), de modo que tanto as práticas de mediação quanto o resgate histórico e a organização política acabaram mobilizando campos de sentidos e significados nas próprias lideranças Tabajara e nos demais grupos indígenas do estado do Piauí, colocando em análise suas próprias representações sobre “ser indígena”, de forma a se descolarem das representações construídas a partir do olhar europeu colonizador.

4 CONSIDERAÇÃO FINAL

O presente artigo objetivou conhecer as condições sócio-históricas que contribuíram para o processo de indianização dos grupos da etnia Tabajara no Piauí, mediante suas histórias de vida e comunitárias, visto que, por muito tempo, a presença indígena foi invisibilizada e silenciada, devido aos discursos proferidos sobre inexistência de povos indígenas no estado do Piauí.

Nesse sentido, pudemos observar que os grupos indígenas de Piripiri e de Lagoa de São Francisco, embora apresentem trajetórias particulares quanto ao seu processo de mobilização étnica e política, atribuem suas raízes indígenas aos seus familiares advindos da região da Serra da Ibiapaba, CE, e declaram sua afiliação étnica à etnia Tabajara, compartilhando de uma ancestralidade em comum, que (re)atualiza, no presente, acontecimentos, lembranças e vivências de um determinado tempo histórico.

Assim, apoiados em uma oralidade que perpassa o campo do vivido e das narrativas de vida, tais grupos vêm rompendo com o ethos do silêncio em torno da sua ancestralidade indígena e conferindo novos elementos e sentidos às narrativas sobre o passado, (re)escrevendo suas histórias e (re)afirmando suas indianidades, haja vista que é por meio da oralidade que a memória coletiva é evocada e (re)significada, em um processo de construção coletiva, tecida a partir de fatos e acontecimentos que lhe são significativos e comuns, a exemplo dos relatos em referência às migrações realizadas por eles e/ou por seus familiares para o Piauí, em períodos de expropriação territorial e/ou de enfrentamento da seca, acompanhados dos relatos em menção à expressão “pega a dente de cachorro”.

Além do mais, observamos que, na construção de uma história do presente, ainda em curso, os grupos indígenas Tabajara de Piripiri e de Lagoa de São Francisco contaram com o incentivo de diferentes mediadores, tais como: pesquisadores; profissionais ligados às organizações governamentais e não governamentais; e, sobretudo, com o apoio de demais grupos indígenas do país, a exemplo dos grupos indígenas do Ceará. Tais mediadores, em momentos distintos, auxiliaram os grupos do Piauí na rememoração das raízes indígenas, no fortalecimento das indianidades e no processo de mobilização étnica e política no cenário piauiense. Certamente, esses elementos têm ajudado esses grupos a se contraporem aos discursos dominantes e totalizantes, que ainda reverberam, sobretudo, quanto à restrição ao acesso à terra e às políticas públicas destinadas aos povos indígenas.

Dessa forma, diante dos escombros do passado, os grupos indígenas da etnia Tabajara (e outros) buscam cotidianamente escrever sua história do presente, evocando e (re)significando fatos e acontecimentos que lhe são significativos, de modo a fortalecerem suas indianidades e ação política no cenário local. Daí a importância de reconhecer que muitos são os embates e as dificuldades vivenciadas pela população indígena no país, sobretudo daquela que não apresenta traços físicos característicos da representação social do protótipo do índio xinguano, devido ao processo de miscigenação e de caboclatização vivenciado pela população indígena brasileira.

Por fim, ressaltamos a importância do desenvolvimento de atividades de pesquisa e ações comunitárias que prezem pelas histórias de vida e de lutas sociais e políticas de tais grupos, de modo a potencializar a (re)construção de uma memória coletiva e viva, além de mobilizar afetos e fortalecer suas indianidades, que têm na oralidade, na memória e na ancestralidade a força viva de criação e recriação de suas histórias e reexistências.

  • 1
    Fala do Cacique Henrique Manoel do Nascimento, proferida na 17ª Semana dos Povos Indígenas do Piauí, no dia 15/04/2019, em Teresina, PI, no Museu do Piauí “Casa de Odilon Nunes”.
  • 2
    Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará, Brasil.
  • 3
    Expressão usada para situações em que mulheres indígenas eram perseguidas na mata por colonos, com a ajuda de cachorros, e ao serem capturadas eram submetidas a situações de violência física, emocional e sexual.
  • 4

REFERÊNCIAS

  • ARAÚJO, I. X.; SOUSA; V. S.; SOUZA, R. S. S.; LEITE, J. L; ANDRADE, T. M.; SANTOS, R. L A. Processo de emergência étnica: povo indígena Tabajara da Paraíba. In: CONGRESSO NORTE NORDESTE DE PESQUISA E INOVAÇÃO, 8., 2018. Anais [...]. Palmas: CONNEPI, 2012. p. 1-8.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2020
  • Revisado
    18 Dez 2020
  • Aceito
    11 Jan 2021
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