Resumo
O artigo debruça-se sobre o recorrente e conflituoso caso da execução musical em transportes coletivos, analisando as dinâmicas de tal experiência musical forçada como um ato de violência entrecortada por diversas outras violências. Discute a forma com que o medo condiciona as escutas dessa experiência musical, matizada por valores, ideias e preconceitos compartilhados sobre as músicas que circulam forçadamente no espaço público. A imposição de um determinado repertório musical aos outros passageiros configura-se como ação política de reivindicação de uma voz por indivíduos que sofrem diversos tipos de opressão, mas ao mesmo tempo colabora para a sedimentação de estigmatizações e estereótipos reforçados pela escuta forçada. Informado por entrevistas realizadas no Rio de Janeiro, o texto busca aprofundar o debate sobre usos da música em espaços públicos, incorporando as complexidades e contradições que atravessam o controle sonoro e musical em transportes coletivos nas metrópoles latino-americanas.
Palavras-chave: Música; Transporte público; Violência; Espaço público; Juventude
Resumen
El artículo se centra en el caso recurrente y conflictivo de la interpretación musical en el transporte público, analizando la dinámica de una experiencia musical forzada como un acto de violencia intercalado con varias otras formas de violencia. Se analiza la forma en que el miedo condiciona la escucha de esta experiencia musical, teñida de valores, ideas y prejuicios compartidos sobre la música que circula en el espacio público. La imposición de un determinado repertorio musical a otros pasajeros se configura como una acción política para reivindicar una voz por parte de individuos que sufren distintos tipos de opresión, pero al mismo tiempo contribuye a la sedimentación de estigmas y estereotipos reforzados por la escucha forzada. Informado por entrevistas realizadas en Río de Janeiro, el texto busca profundizar el debate sobre los usos de la música en los espacios públicos, incorporando las complejidades y contradicciones que permean el control sonoro y musical en el transporte público en las metrópolis latinoamericanas.
Palabras clave: Música; Transporte público; Violencia; Espacio público; Juventud
Abstract
The article focuses on the recurring and conflicting case of musical performance on public transport, analyzing the forced musical experience as an act of violence entangled with several other forms of violence. It discusses how fear conditions the listening of musical experience in urban environments, shaped by shared values, ideas, and prejudices about music that is spread in public transport. The imposition of a certain musical repertoire on other passengers is configured as a political action that claims to be heard by individuals who suffer different types of oppression. However, at the same time, it contributes to the sedimentation of stigmatization reinforced by forced listening. Informed by interviews in Rio de Janeiro, the text seeks to deepen the debate on the uses of music in public spaces, incorporating the complexities and contradictions that permeate sound and musical control in public transport in Latin American metropolises.
Keywords: Music; Public transport; Violence; Public space; Youth
A vida cotidiana nas grandes cidades é permeada por tensões resultantes de diversos fatores, entre os quais se destaca a desigualdade social. Como traço fundante do chamado Sul Global, constituído através de um violento processo de colonização, as assimetrias entre uma maioria populacional empobrecida e uma minoria cercada de privilégios e distinções formam uma moldura contextual a partir da qual todas as relações sociais e vínculos institucionais são experimentadas. Nesse emaranhado de conflitos, contradições e embates, o controle dos sons nos espaços púbicos e privados torna-se um elemento sensível dos encontros e desencontros do dia a dia.
Dentre uma multiplicidade significativa de sonoridades e situações que articulam, negociam e processam essas tensões, proponho pensar aqui sobre as dinâmicas que cercam a reprodução sonora em transportes coletivos, especialmente nos ônibus urbanos. Os deslocamentos populacionais nas cidades são marcados por sentimentos de solidão, tédio, irritação e desalento, ao mesmo tempo em que são atravessados por pequenos conflitos latentes, provocados pelo cansaço de corpos e mentes, pelo ritmo intenso do ir e vir do trabalho, pelas agressividades do trânsito e dos veículos e pelos tempos mortos da espera por ônibus, vans e trens. Parte desses conflitos são vivenciados e negociados através de sons e, especialmente, através de músicas que permitem ao mesmo tempo uma neutralização do ruído confuso que caracteriza a sonoridade desses trajetos (pela utilização de fones de ouvido) e uma intensificação dos enfrentamentos e diferenças entre indivíduos presos ao espaço físico dos transportes coletivos. A manipulação de aparelhos musicais é uma ferramenta de poder que produz uma ocupação espacial, manifesta a afirmação de uma presença e processa o tensionamento político de hierarquias sociais. Ter controle sobre a música que ocupa um ambiente público é uma ação que demarca uma posição de superioridade provisória nas negociações sociais dos territórios, estabelecendo um universo simbólico e ideológico com o qual todos os que circulam por tal espaço são forçados a interagir. O indivíduo ou grupo que detém tal controle manifesta pertencimento a um conjunto de ideias e valores acionado pela música e, simultaneamente, espalha esse conteúdo para além de seu espaço acústico individual, numa ação política de manifestação de poder.
O debate sobre música e cidades tem se intensificado bastante nos últimos anos, articulando diversas variáveis e abordagens (FERNANDES e HERSCHMANN, 2018; BIELETTO-BUENO, 2020). Neste artigo, busco refletir sobre os usos da música nos ônibus urbanos a partir das categorias de medo e violência, filiando-me a autores que têm pesquisado sobre a ocupação sonora e musical de espaços públicos como negociações e exercícios de poder e, portanto, como ações políticas (ARAÚJO e GRUPO MUSICULTURA, 2006; DOMÍNGUEZ RUIZ, 2015; OCHOA, 2014; GARCIA e MARRA, 2016; MENDÍVIL, 2016, entre diversos outros). Adicionalmente, a música que irrompe sem escolha no espaço apertado dos coletivos é deflagradora de tensões que também revelam hierarquias sociais, preconceitos e estereótipos, acionando o extenso debate a respeito das culturas “periféricas” (TROTTA, 2013; PEREIRA DE SÁ, 2021), “híbridas” (GARCIA CANCLINI, 1997), “subalternas” (ALABARCES e TROTTA, 2017) ou “bastardas” (RINCÓN, 2016).
Metodologicamente, o artigo está informado por entrevistas realizadas no Rio de Janeiro como parte de uma pesquisa mais ampla sobre música e incômodo, na qual pessoas de diferentes estratos sociais foram perguntadas sobre experiências musicais desagradáveis vividas em seu cotidiano. De um conjunto bastante extenso de situações e narrativas reportadas, uma parte significativa dos entrevistados mencionou as viagens de ônibus, trens e metrô como momentos desagradáveis de experiências sonoras e musicais. Alguns trechos desses relatos são reproduzidos aqui como forma de adensar o debate e acionar situações e descrições a partir dos sentimentos provocados pela experiência musical forçada. Comecemos, pois, pela análise e descrição da situação típica.
O caso do ônibus
Em artigo sobre uso de telefones celulares por jovens na cidade de Buenos Aires, Norberto Murolo (2015, p. 87-88) descreve uma situação bastante familiar para aqueles que se deslocam pelas cidades latino-americanas utilizando transporte coletivo:
Un joven se sube a un colectivo (...), paga su pasaje, se sienta en el último asiento, saca de su bolsillo un teléfono móvil y pone música. La música es una cumbia o un reggaetón. Como postal no tiene mucho de novedoso, las tecnologías de la Comunicación y del entretenimiento irrumpen en el espacio público de diversas formas. Son tantos otros en el bondi quienes también están haciendo uso de tecnologías, algunas perceptibles como teléfonos y reproductores de MP3, en otros casos solamente se ven auriculares y cables saliendo de bolsillos o mochilas y puestos en sus oídos. Esta es la diferencia con el joven del cual hablábamos, él, contrariamente del resto, no usa auriculares, sino que comparte su música con el resto de los pasajeros.
Diversas questões aparecem nesse caso ideal apresentado por Murolo (2015). Primeiro, a particular escolha de palavras para descrever a situação, com destaque para a noção de que a música é “compartilhada”. Creio não haver muitas dúvidas de que a intenção primária desse jovem ao executar música no ônibus é produzir um acompanhamento para a sua viagem. A música está sendo tocada para atender a sua demanda individual e aliviar o tédio do deslocamento. Como aponta Tia DeNora (2000), a música é agente de modulação de estados afetivos, disposições corporais e organizações temporais, processando alterações em nossa maneira de estar no espaço-tempo e nossas formas de relação com o contexto que nos cerca. Porém, simultaneamente, o protagonista dessa cena tem consciência de que o som ocupa todo o ambiente do ônibus, chegando até os outros passageiros. É improvável também que ele não imagine que a música dele pode não agradar a todos que dividem o mesmo ônibus. Nesse sentido, a ação de “compartilhar” adquire uma segunda dimensão, atuando também como afirmação de um gosto pessoal, reforçando seu pertencimento a determinados repertórios e valores sociais e impondo tais valores aos outros passageiros. Nesse jogo de ouvir, ser ouvido e impor a escuta, muitos passageiros irão avaliar a música dos jovens como altamente incômoda e invasiva. Como aponta Ana Lidia Domínguez Ruiz, “o som é um intruso por natureza, já que seu comportamento não obedece à organização espacial que estamos acostumados” (2015, p. 34).
A presença sonora de um determinado repertório musical em um dado espaço compartilhado produz mudanças na forma através da qual as pessoas interagem entre si e com o próprio espaço. Em influente artigo sobre os usos da música como artefato de tortura, Suzanne Cusick (2006) descreve uma experiência pessoal em pistas de dança como um exemplo da força vinculante das vibrações musicais nos corpos das pessoas, que provocava não somente alterações psicológicas ou sensuais, mas “subida de adrenalina, o aumento da pressão sanguínea e do ritmo cardíaco, o zumbido que permanecia em meus ouvidos por horas” (CUSICK, 2006, s/p). Evidentemente, a autora refere-se a uma experiência musical de alto volume, mas é possível estender algumas dessas alterações corporais para contextos nos quais não é exatamente a quantidade de decibéis que provoca mudanças comportamentais e somáticas, mas a situação de inadequação ou de invasão sonora. Em entrevista concedida à pesquisa, a estudante Luane, de 17 anos, moradora de um bairro de classe média da cidade do Rio de Janeiro, relata que em seu deslocamento diário pela cidade eventualmente sente-se incomodada com o som.
Eu sempre vou de ônibus pra todos os lugares e na maioria das vezes que eu entro no ônibus, quando eu passo pela roleta eu vejo que tem alguém escutando música. Eu escuto o zum zum zum, assim. Aí eu sento numa cadeira e a pessoa às vezes está no fundo do ônibus e dá pra ouvir. Muitas vezes estão com a caixinha de som, aquelas portáteis, ou às vezes estão de fone e mesmo assim dá pra ouvir. Ou às vezes estão com celular ligado como se todo mundo dentro do ônibus fosse obrigado ou gostasse de ouvir aquele mesmo tipo de música. Eu não acho isso legal porque como eu gosto de MPB, meu amigo pode gostar de funk, outro pode gostar de música clássica. É muito variável. Tem um aviso no ônibus que diz que não pode ouvir música sem fone e as pessoas insistem em ir contra essa regra.
Interessante no depoimento de Luane é a forma como ela associa o incômodo com o gosto musical. De fato, a manifestação do gosto é o resultado de um conjunto complexo de pertencimentos e identificações sociais, que demarcam uma posição do sujeito em relação ao mundo (cf. BOURDIEU, 2007). O papel dessas demarcações de territórios de gosto nos embates musicais nos transportes coletivos será discutido mais à frente neste texto, mas interessa-nos agora apontar que a adolescente busca defender o respeito ao gosto dos outros. Segundo ela, esse respeito seria obtido através do uso de fones de ouvido com reprodução em um volume adequado (que não vaze), gesto que seria entendido como uma manifestação de boa convivência social. A antropóloga Janice Caiafa (2006), ao analisar viagens de metrô na cidade do Rio de Janeiro, observa que o “silêncio de solitários” naquele espaço é uma norma de “etiqueta”, configurando-se como um acordo de “polidez” (CAIAFA, 2006, p. 59). Luane seguramente reivindica para o espaço da sua viagem de ônibus essa mesma norma e comportamento dos demais passageiros. O passo seguinte de sua retórica é a reclamação para que o indivíduo, mesmo que não tenha tolerância e boa-vontade com o próximo, pelo menos que respeite a “lei”.
Em várias outras cidades brasileiras, há leis municipais coibindo o uso de aparelhos sonoros. De acordo com essas leis (que variam de cidade para cidade), o motorista ou agente do transporte público pode solicitar a retirada do indivíduo do transporte com auxílio policial, caso o infrator se negue a silenciar seu aparelho1. Ocorre que, no cotidiano dos deslocamentos urbanos, a interferência do motorista ou de algum passageiro nessas situações é rara. Há várias razões para isso, desde a percepção de que uma interrupção na viagem será mais desagradável do que o som impertinente até a diminuição da importância de tal incômodo no quadro geral de desconfortos dos deslocamentos realizados por transportes coletivos. Em um contexto no qual os passageiros são forçados a aguentar uma série de desconfortos diários, a música seria entendida como um elemento de menor importância.
No Rio de Janeiro, a malha de transportes coletivos é controlada por empresas privadas que, a partir de uma relação complexa (e corrupta) com o poder público, possuem concessão para explorar economicamente as linhas de ônibus. Como atividade que busca o lucro, o valor das passagens é bastante alto e notadamente desproporcional à qualidade do serviço, que opera com intervalos irregulares, veículos sucateados (especialmente os que atendem a zonas de menor poder aquisitivo) que trafegam lotados e com pouco conforto para os passageiros2. Sonoramente, a consequência dessa administração privada do serviço público é que as viagens de ônibus costumam ser experiências extremamente ruidosas, nas quais a resultante sonora é um emaranhado de sons internos do próprio ônibus (motores, freadas, janelas mal fixadas) com o barulho dos passageiros (conversas, gritos com o motorista, barulhos corporais) e com diversos ruídos externos ao ônibus, característicos das grandes cidades (buzinas, sons de automóveis, conversas difusas, brincadeiras de crianças, músicas de bares, vendedores ambulantes, carros que passam, etc). Nessa polifonia destoante, chega a ser irônico a existência de uma regulação que limita o uso de música, uma vez que, em tese, sua presença poderia aliviar os desagradáveis ambientes sonoros dos ônibus. Porém, a percepção de muitas pessoas entrevistadas é que a música se torna um elemento adicional de distúrbio, induzindo valores, ritmos e ideias de modo compulsório no ambiente fechado dos veículos e aumentando a sensação de desconforto. A produtora cultural Carolina Luz, de 39 anos, também residente na cidade do Rio, relata a mesma sensação de impotência diante da música que invade suas viagens. Apesar de sua irritação ser bastante intensa, inclusive com pensamentos e ímpetos violentos, ela relata que costuma evitar qualquer intervenção direta quando se sente incomodada com o som.
Que outra coisa que irrita são esses caras que ficam ouvindo música no metrô, no coletivo, sem fone. Não sei como até hoje eu não dei uma de louca. Que minha vontade é de bater assim no celular, jogar no chão e pisar. Ah que falta de respeito dos infernos! Não [reclamo] porque eu vou perder a cabeça muito facilmente. Eu vou perder a cabeça nesse nível, a pessoa vai vir pra cima de mim e eu vou pra cima dela. Eu sei que eu não vou ter limite. Eu fico parada olhando, várias vezes. Eu estava querendo criar uma estratégia de carregar uns fones e dar um fonezinho pra você. E tem gente que bota fone, mas bota a música tão alta que você ainda escuta. Entende? Isso é de ferrar!
Duas coisas são interessantes em sua narrativa. Primeiro, a ideia de que seu grau de irritação pode fazer com que ela cruze a fronteira da “civilidade” ou da “sanidade”, provocando uma reação de “louca”. Ao confessar seu desejo de destruir o aparelho do indivíduo cuja música a incomoda, Carolina imagina-se ultrapassando uma linha de convivência cívica respeitosa e harmoniosa, o que a bloqueia. A noção de civilidade está informada a partir da ideia de controle de impulsos físicos associados a irracionalidade ou a uma indesejada animalidade. O autocontrole imposto por uma reconhecida norma assimilada socialmente é parte fundamental para o reconhecimento do desejável comportamento “civilizado” (ELIAS, 1994).
Ao mesmo tempo, a desesperança de uma solução “civilizada” para o conflito conduz seus pensamentos para a solução “violenta”, imaginando uma possível agressão física como consequência de uma eventual reclamação. Em sua percepção, a música invade sua tranquilidade, sua viagem, seu corpo e se torna um agente de mal-estar que danifica seu estado de saúde mental e física (daí a oposição entre ficar quieta ou “dar uma de louca”, ou seja, afastar-se de um estado de sanidade). Ela funciona, portanto, como um artefato de violência, ainda que seja apenas imaginada. Outros entrevistados descreveram ímpetos de destruição do aparelho sonoro e até mesmo usaram hiperbolicamente o verbo “matar” para referir-se aos indivíduos responsáveis pelas músicas que os incomodam (TROTTA, 2020). Essa aproximação do desconforto musical com violência não é aleatória. De muitas maneiras, a música funciona como artefato de violência, articulando reações e sentimentos variados, também experimentados em estreita conexão com sensações de agressividade, insegurança ou diversas formas de violação.
Música, espaço público e violência
A literatura sobre música, som e violência tem crescido exponencialmente nos últimos dez ou quinze anos, especialmente no mundo anglófono. De um modo geral, parte-se da postulação (um tanto óbvia) de que a música é som e, enquanto som, produz alterações corporais que podem ser tomadas como agressões (JOHNSON e CLOONAN, 2009; CUSICK, 2006). Interpretações sobre os usos da música em guerras (DAUGHTRY, 2015), em protestos (LEBRUN, 2009) ou em sessões de tortura (CUSICK, 2006; CHORNIK, 2014) possibilitam uma aproximação mais direta com a dimensão violenta do som e da música, matizando a ideia de que a materialidade sonora funciona como um dispositivo de poder. A música pode, assim, ser entendida como uma “tentativa de exercício de poder sobre outra pessoa e sobre o ambiente sonoro” (JOHNSON e CLOONAN, 2009, p. 147).
A classificação da música como ato de violência está relacionada com o grau de controle que um indivíduo ou grupo pode ter sobre o ambiente sonoro. De acordo com Domínguez Ruiz (2015), a expectativa de um espaço pessoal livre de intrusões sonoras é parte estruturante da sensação de segurança individual e coletiva, e seu componente subjetivo faz com que a percepção de incômodo possa variar de acordo com o momento. A autora estabelece uma oposição entre a dimensão da vida privada e os sons intrusivos que perturbam esse domínio, ultrapassando a ideia de “casa” como domínio do privado e estendendo-a a outros espaços de trânsito e permanência nas cidades. Em suas palavras, “se come na rua, se dorme no transporte público, se estuda no metrô, transformamos os restaurantes em escritórios provisórios de trabalho” (DOMÍNGUEZ RUIZ, 2011, p. 33). Essa extensão do espaço privado para ambientes públicos ajuda a pensarmos em uma intimidade acústica provisória, construída e reconstruída a cada instante, a cada esquina, a cada ônibus que se entra. A partir dessa perspectiva, o caráter intrusivo e violento da música e do som manifesta-se como uma intencional invasão de privacidade (acústica) modulada e controlada por um agente externo. Não importa se compartilhamos o espaço físico de um ônibus ou trem com outras pessoas, construímos com nossos corpos uma ocupação espacial pessoal dentro da coletividade do transporte público, que envolve uma dimensão física (o assento que ocupamos, o espaço das pernas à nossa frente, o cuidado ou falta de cuidado ao manusear bolsas e mochilas em tais espaços, etc.) e sonora (maior ou menos predisposição a conversas e comentários, usos de fones, restrição de tom de voz, toques de celulares, músicas, e assim por diante). Ao mencionar os embates sobre execução musical em ônibus no Rio de Janeiro, o educador Fredson, de 38 anos, reforça a ideia de invasão de privacidade.
Moro na Taquara e venho de ônibus. A gente encontra às vezes, 8h da manhã, aquele ônibus lotado, aí alguém resolve colocar um funk, que eu gosto, mas acho que aquele não é o horário de partilhar. Porque eu fico pensando nas outras pessoas. Ou um sertanejo, ou um gospel ou um samba, eu acho que nesse momento você fere um pouco a privacidade alheia. É uma hora que você não quer ouvir música. Se você quer ouvir, coloca o seu fone!
Observe que o seu relato não diferencia o repertório musical (apesar de ter mencionado especificamente os gêneros musicais mais populares no mercado brasileiro), mas a situação de imposição que a música instaura. Trata-se de “um exercício de poder que não somente se revela como potência acústica, mas também como uma imposição de vontades que se exerce através de diversas práticas de dominação que afetam o espaço privado” (DOMÍNGUEZ RUIZ, 2016, p. 138). Concebido como intruso, som é sempre um referente violento, cuja escuta forçada no espaço público altera as formas de convivência e influi nos comportamentos dos indivíduos, seus corpos e afetos. A sensação de violência se intensifica a partir de impedimentos e restrições que são impostas por essa escuta indesejada, que implica também um cerceamento de voz. Ao impor o seu som, silencia-se o outro, intimidando-o a não reclamar. Em outro trecho do seu depoimento para a pesquisa, Luane (citada acima) descreve seu sentimento de impotência diante do som que lhe incomoda em seus deslocamentos pela cidade.
É muito chato. Minha vontade é ir lá falar com a pessoa: “poxa, você pode botar um fone, ouvir só na sua casa sozinho”. Só que eu não conheço a pessoa. A sociedade está muito violenta eu tenho medo do que a pessoa pode fazer. Aí é complicado.
O medo é aspecto fundamental nessa negociação sonora nos ônibus. Num jogo de violências entrecortadas, Luane sente-se invadida em sua privacidade sonora e silenciada em seu direito de intervir, pois teme algum tipo de reação agressiva por parte da pessoa cuja música lhe causa desconforto. O cálculo da gestão de risco pessoal é simples. O sujeito que está espalhando seu som pelo ônibus está negociando seu poder de comandar o espaço sonoro da viagem. Está exercendo, portanto, uma ocupação não consensual do espaço coletivo, motivada por uma postura de presunção de superioridade física ou simbólica. Ouvir o som alto é uma atitude intimidatória, que aparece para Luane como um lembrete de que “a sociedade está muito violenta”.
Nas grandes metrópoles mundiais, nas quais bairros e populações são segregados e submetidos ações repressoras do estado policial que invade ruas, becos, vilas e casas, aterrorizando a todos, a ameaça de violência é uma constante. E isso é mais intenso nas áreas “populares” de tais cidades. Como resposta, cerceamentos físicos e simbólicos são impostos e auto-impostos a todos os habitantes (mesmo nas áreas mais ricas e nobres das cidades) através de um sentimento generalizado de medo. Numa superfície “assentada sobre desigualdades, dominação e exploração”, a vida nas grandes cidades se entrincheira entre “muros, grades e blindados, traindo sensações de desconfiança, preconceito e medo” (ARAÚJO, 2013, p. 3). As grades que caracterizam as paisagens urbanas de nossas cidades são um elemento visível e opressivo da gestão do medo que se configura como um elemento constante dos perigos contemporâneos. Em uma interpretação relacionada aos estabelecimentos no entorno da avenida Caseros, em Buenos Aires, Beatriz Sarlo (2014, p. 78) observa a presença das grades em todas as casas.
À noite, essa linha fortificada parece adequar-se aos perigos da região, mas numa tarde luminosa e despreocupada de domingo os barrotes são o anúncio do que poderia acontecer, ou do que os donos dos armazéns, supermercadinhos e dos quiosques temem que aconteça se não trabalharem atrás das grades. A rua é a galeria de uma prisão, com pessoas que desconfiam umas das outras, de ambos os lados, cujos movimentos são limitados pelo fechamento duplo.
O medo generalizado de irrupções de violência que parecem poder brotar de qualquer esquina é um articulador de uma violência difusa, que não se restringe ao ato de execução musical, mas transborda para toda a existência coletiva nas metrópoles. Numa definição bastante influente nos estudos sobre paz, Johan A. Galtung (1969, p. 168) afirma que a violência está presente “quando seres humanos estão influenciados de tal forma que suas realizações somáticas e mentais se encontram abaixo de seu potencial”. O desenvolvimento principal dessa definição é a formulação da noção de “violência estrutural”, termo que se refere a um complexo conjunto de condições na sociedade capaz de bloquear as realizações pessoais, “utilizados para subordinar e ameaçar as pessoas” (GALTUNG, 1969, p. 172). Com esse deslocamento conceitual, a violência deixa de ser pensada exclusivamente como um “ato” realizado por um “agente” ou de ser associada à dimensão física de tais atos (assassinato, espancamento, estupro). Pobreza e assimetria de oportunidades sociais podem, portanto, serem entendidas como formas de violência, ainda que não haja, nesses casos, um agente claro da violência e nem é possível determinar exatamente um “ato” violento. A definição de Galtung ressoa no conceito de “violência objetiva” de Slavoj Zizek (2008, p. 23), “que não seria atribuída a indivíduos e suas intenções más, mas é puramente ‘objetiva’, sistêmica, anônima”.
O etnomusicólogo Samuel Araújo e seu grupo de pesquisa Musicultura (2006) tem trabalhado com a noção de violência associada à prática musical há mais de uma década. Num projeto continuado de pesquisa participativa com moradores da Favela da Maré (uma das áreas da cidade do Rio com maior índice de violência), o grupo desenvolve uma série de reflexões sobre práticas musicais em contextos de violência. Segundo os autores, a categoria “violência” é normalmente abordada nos estudos etnomusicológicos como “um distúrbio social ou pessoal de uma ordem social implícita, ou como uma negação eventual de uma dada ordem que produz efeitos naqueles que produzem música e na música que eles produzem” (ARAÚJO e MUSICULTURA, 2006, p. 289). Indo em direção oposta, sua abordagem sugere que violência seja considerada uma condição central de produção de conhecimento, “que inclui a produção de conhecimento musical e análise cultural da música e do fazer musical” (idem). Adicionalmente, os debates do grupo ambientados numa favela com altos índices de violência física apontam “a violência simbólica através da música e da comunicação sonora não-verbal como uma constante na vida de sujeitos concretos, como uma dimensão crucial de sua experiência no mundo” (ibidem, 2006, p. 6).
A ideia de uma violência estrutural que pauta as vidas dos habitantes das grandes cidades (em especial daqueles em áreas nas quais o próprio Estado age com violência através da polícia) tem implicações relevantes para pensarmos nos usos da música em diversos contextos públicos. A imposição de um repertório musical nos transportes coletivos seria, assim, um ato violento de ocupação sonora que está relacionado com diversas outras formas de violências experimentadas tanto pelos indivíduos que detêm o controle do aparelho sonoro quanto pelos demais passageiros forçados a interagir com suas predileções musicais. Nesse processo, o contexto violento das cidades e das viagens de ônibus se articula com determinadas expectativas de individualização imaginadas para esses momentos e com o medo de qualquer posição ou ação que possa desencadear reações agressivas. Ou seja, a escuta forçada é também um silêncio forçado, mantido por um aparato de medo que atravessa cada interação humana nas cidades latino-americanas.
Chegando no ponto: juventude, música e violência
Gostaria de finalizar esse texto com um breve comentário sobre a ideia de juventude que brota em muitos dos conflitos sonoros e musicais nos transportes coletivos. Apesar de não ser exclusivamente realizada por jovens, o caso típico da música impertinente imposta nos ônibus é majoritariamente realizada por indivíduos e grupos que se encaixam nessa categoria etária. Nesse sentido, as violências estruturais (GALTUNG, 1969) e diretas que atravessam o espaço sonoro das viagens de ônibus são informadas primordialmente a partir de certas noções compartilhadas que conectam juventude, música e pobreza. Como aponta Reguillo Cruz (2007, p. 156), as narrativas midiáticas sobre os jovens sublinham aspectos negativos da classificação, nos quais frequentemente
ser jovem equivale a ser “perigoso”, “viciado em maconha”, “violento”; se recorre também à descrição de certos traços raciais ou de aparência para construir as notas [na mídia]. Então, ser um jovem dos bairros periféricos ou de setores marginais se traduz em ser “violento”, “vadio”, “ladrão”, “drogado” e “assassino” em potencial ou de fato.
Ao discutir a cobertura midiática do funk na década de 1990 no Brasil, Herschmann e Freire Filho (2003) apontam para a noção de “pânico moral”, construindo o “funkeiro” como um indivíduo perigoso a partir de uma recorrente e “histérica” associação com crimes. Por outro lado, a intensa midiatização do gênero musical colaborou para a construção de um fascínio e de uma curiosidade sobre essa música e suas festas, num processo duplo de “demonização” e “glamourização” do funk e dos funkeiros (HERSCHMANN e FREIRE FILHO, 2003, p. 62). Esse estereótipo negativo e ambíguo permanece ativo até os dias de hoje, quando jovens negros em ônibus são prioritariamente abordados em incursões policiais como “suspeitos”, num preconceito institucionalizado que é intensificado quando associado ao funk.
Nesse sentido, pensar sobre o ato de tocar som em alto volume em transportes coletivos por jovens estigmatizados como potencialmente “violentos” e “perigosos” implica em articular suas diversas variáveis políticas e seus desdobramentos éticos. É relativamente seguro afirmar que a ação tem um componente afirmativo de reivindicação de “voz” e poder. Marginalizado em milhares de situações de sua vida cotidiana, ao controlar o som do ônibus, o jovem processa uma inversão nas relações e hierarquias de poder da sociedade. Ali ele detém o poder de controle acústico e invade a intimidade dos demais passageiros com desdém e agressividade. Ao menos nesse momento, ele será ouvido. Contudo, sem negar a relevância política e estratégica da performance musical como vetor de tensionamento de embates sociais, com possíveis desdobramentos profícuos em direção a consensos e convivências menos atravessadas por estereótipos e preconceitos, talvez seja oportuno adotar um “otimismo cauteloso” (REGUILLO CRUZ, 2007, p. 161) em relação ao verdadeiro potencial transformador de tais atos de enfrentamento e ocupação de espaço.
A escuta forçada envolve o acionamento de imaginários compartilhados construídos e combinações complexas de julgamentos sobre adequação, valor e condição da experiência musical. A experiência musical imposta nas viagens de ônibus pode também reforçar os estereótipos negativos em torno de tais músicas e daqueles que as tocam. É fato que no contexto de violências que são submetidas a esse jovem, os olhares enviesados no ônibus precedem a execução musical. No caso, por exemplo, de uma possível abordagem policial durante a viagem, esse jovem será sempre alvo preferencial da violência institucional independente de ele estar ouvido música (com ou sem fone) ou em silêncio.
Por outro lado, no desconforto compartilhado da música “de pobre” que soa no ônibus reproduz-se simultaneamente uma armadilha na qual o agente inferiorizado impõe-se sonoramente no espaço público e, com isso, alimenta sua própria estigmatização. Num contexto dominado por violências, a escuta forçada ajuda a canalizar o medo e a desqualificação do jovem e de sua música a partir de um incômodo que passa a ser compartilhado pela ocupação sonora. Incômodo vivido pelo engenheiro liberal branco de classe média que reconhece na música marcas de indivíduos perigosos e inferiores numa clara tensão de classe; mas também pela senhora evangélica negra humilde, que se sente agredida com as narrativas explícitas das letras e das performances do funk ou da cumbia. O compartilhamento do incômodo com outros passageiros, que por sua vez também são vítimas de um ambiente social que lhes agride regularmente, é um componente que torna o caso da música alta mais complexa e contraditória.
Nesse espaço sonoro conflituoso, o potencial transformador do ato sonoro tende a ser precário, resumindo-se muitas vezes a uma ocupação de espaço que gera mal-estar e extrai desse mal-estar um prazer provisório de afirmação identitária, invadindo pelas frestas um sistema opressor que permanece inalterado. Outras vezes, porém, a invasão sonora é a manifestação de uma “cidadania possível” (REGUILLO CRUZ, 2007, p. 158), construída através da força que desafia processos de inclusão e exclusão. Impor o som é impor uma escuta, fazendo soar vozes e narrativas continuamente silenciadas pela opressão do estado e de diversas violências simbólicas.
Reconhecer o componente político desse jogo de desconfortos e violências da música no ônibus significa avançar na direção de uma compreensão mais aprofundada e complexa das funções sociais da música na sociedade, permeada por contradições e atos concretos que negociam relações humanas no espaço confuso, ruidoso e excludente das metrópoles.
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Lei Municipal da cidade do Rio de Janeiro nº 5.728 de 10 de abril de 2014. A íntegra da lei pode ser acessada no endereço: http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/e9589b9aabd9cac8032564fe0065abb4/aac4bd77e2175db703257cb6005a08a1?OpenDocument. Acesso em: 24 mai. 2018.
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O aumento no preço das passagens de ônibus em 20 centavos foi o estopim para uma série de manifestações políticas no país em 2013, que intensificaram o desgaste do governo da presidenta Dilma Rousseff e, amplamente difundidos pela mídia corporativa nacional, abriram espaço político e simbólico para a consolidação do golpe de estado que a retirou do poder dois anos depois. Uma série de insatisfações difusas encontraram um pano de fundo consensual e cotidiano em todo o país: o péssimo serviço oferecido pelas empresas de ônibus nas principais cidades nacionais. (cf. SINGER, 2013)
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Editado por
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Editora responsável: Maria Ataide Malcher
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Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
19 Dez 2022 -
Aceito
25 Out 2023