Resumo
Este estudo objetiva a compreensão das interfaces entre comunicação e consumo (i)material referentes ao evento Arrastão do Pavulagem, na cidade de Belém, no contexto da pandemia de Covid-19. Foi utilizado o cruzamento de análise netnográfica, entrevistas com roteiro semiestruturado e amostragem em bola de neve. Foi possível observar que os sujeitos buscam relacionar-se com objetos que acionam, com maior frequência, em suas subjetividades, sensações de pertencimento a determinado grupo social por meio do contato com a cultura local. Tais objetos agenciam memórias de vivências passadas que marcaram experiências coletivas e subjetivas e que, ao configurarem-se como materializações das culturas populares do estado do Pará e de estados vizinhos, fazem-se presentes nas manifestações realizadas pelo Instituto Arraial do Pavulagem.
Palavras-chave Arrastão do Pavulagem; Comunicação; Consumo; Cultura (i)Material; Covid-19
Resumen
Este estudo pretende compreender as interfaces entre comunicação e consumo (i)material em relação ao evento Arrastão do Pavulagem, na cidade de Belém, no contexto da pandemia do Covid-19. Se utilizó el cruce de análisis netnográfico, entrevistas con guión semiestructurado y muestreo bola de nieve. Fue posible observar que los sujetos buscan relacionarse con objetos que desencadenan, con mayor frecuencia, en sus subjetividades, sensaciones de pertenencia a un determinado grupo social a través del contacto con la cultura local. Tales objetos agencian memorias de experiencias pasadas que marcaron vivencias colectivas y subjetivas y que, al configurarse como materializaciones de culturas populares del estado de Pará y estados vecinos, están presentes en las manifestaciones realizadas por el Instituto Arraial do Pavulagem.
Palabras clave Arrastão do Pavulagem; Comunicación; Consumo; Cultura (i)Material; Covid-19
Abstract
This study aims to understand the interfaces between communication and (im)material consumption regarding the event Arrastão do Pavulagem, in the city of Belém, in the context of the Covid-19 pandemic. It was used the intersection of netnographic analysis, interviews with semi-structured script and snowball sampling. It was possible to observe that the subjects seek to relate to objects that trigger, with greater frequency, in their subjectivities, sensations of belonging to a particular social group through contact with the local culture. Such objects trigger memories of past experiences that marked collective and subjective experiences and that, when configured as materializations of popular cultures of the state of Pará and neighboring states, are present in the events held by the Instituto Arraial do Pavulagem.
Keywords Arrastão do Pavulagem; Communication; Consumption; (im)Material Culture; Covid-19
Introdução
Assim começa a apresentação do objeto desta pesquisa: um grupo de artistas ligados à cultura popular1 do estado do Pará, principalmente músicos e compositores que mantinham laços de amizade, organizou uma reunião com o objetivo de promover apresentações de carimbó nas ruas da cidade de Belém.
O coletivo, conhecido na época como Pavulagem2 do Teu Coração, realizava suas apresentações em um palco improvisado aos domingos, na Praça da República, na cidade de Belém. Com o passar do tempo, essas apresentações gratuitas começaram a atrair um público cada vez maior, que não apenas assistia aos shows, mas também participava dos cortejos realizados nas tardes de domingo.
Devido ao impacto gerado, um dos músicos fundadores do grupo decidiu percorrer as regiões do estado, conforme relatado por Lima e Gomberg (2012):
[...] pesquisando música de raiz, sons, ritmos, confecção de instrumentos próprios de determinados contextos, como, por exemplo, o carimbó. Com o tempo, juntaram-se bailarinos que investigaram as coreografias de ritmos paraenses ? carimbó, siriá, lundu, xote marajoara, retumbão, samba do cacete, entre outros
(LIMA; GOMBERG, 2012, p. 55)
Como resultado das viagens feitas pelo membro fundador do grupo musical nas áreas rurais do Pará, as apresentações do Pavulagem do Teu Coração tornaram-se mais amplas e diversas do ponto de vista cultural. Esta diversidade, conforme afirmado por Blanco (2014, p. 33), trouxe uma variedade de elementos e objetos da cultura popular, indo além do foco no Boi-Bumbá. Assim, o Pavulagem do Teu Coração se transformou no Arraial3 do Pavulagem e passou a realizar várias manifestações culturais ao longo do ano, como o Cordão do Peixe-Boi (que não é mais realizado), os arrastões/cortejos dos meses de junho e outubro, as Rodas de Boi, entre outras programações.
Com o passar do tempo, o público das apresentações cresceu tanto que o local e o percurso do evento não eram mais suficientes para acomodar organizadores e público desta manifestação cultural. Como resultado, o Arrastão4 do Pavulagem começou a percorrer a Avenida Presidente Vargas, uma das principais vias do centro de Belém: inicialmente (por mais de duas décadas) subindo a Avenida e, a partir de 2019 até o presente momento, descendo-a.
Os cortejos que compõem a festividade têm a duração de quatro dias, sempre aos domingos pela manhã. Este número está relacionado aos quatro santos da igreja católica homenageados durante o período junino: Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal. Cada cortejo do Arrastão do Pavulagem presta homenagem e busca as bênçãos de cada uma das divindades mencionadas neste parágrafo, respectivamente. Durante quatro semanas consecutivas, aos domingos, as principais vias do centro da capital paraense são tomadas por uma multidão de pessoas que se divertem cantando e dançando, como pode-se notar por meio da figura 1.
Sob o sol escaldante das manhãs de junho e julho, os membros do Batalhão da Estrela, vestidos com trajes azuis e brancos e com os rostos pintados com maquiagem multicolorida, tocam ritmicamente instrumentos de sopro e percussão, executando ritmos populares como toadas, carimbós e quadrilhas juninas. Eles se equilibram em pernas de pau, realizam acrobacias e entoam canções do grupo Arraial do Pavulagem e de outros artistas paraenses, desde a saída até a chegada dos cortejos, da Praça da República até a Praça dos Estivadores, respectivamente.
As influências provenientes das áreas rurais do estado do Pará e de regiões vizinhas são observadas por meio da combinação de diversos elementos trazidos destas localidades, como instrumentos musicais e danças, os tradicionais chapéus com fitas coloridas, o Boi Pavulagem, cavalinhos, “cabeções”, instrumentos de sopro e percussão, bandeirinhas, dentre outros.
Amaral Filho e Alves (2017) caracterizam os espetáculos como “produtos simbólicos com origem nas manifestações da cultura popular, frutos da experiência tradicional de transmissão oral, representada na ação social de uma comunidade ou grupos sociais” (AMARAL FILHO; ALVES, 2017, p. 3), que estão envolvidos em processos de resistência e pós-resistência, relacionados à promoção e ao reconhecimento que definem uma determinada manifestação cultural.
Outro elemento característico do Arrastão do Pavulagem é o Batalhão da Estrela, um grupo de brincantes que se apresenta durante os cortejos que compõem os arrastões. Esse grupo guia os cortejos ao longo da Avenida Presidente Vargas, através de suas alas, e costuma ser cercado por uma multidão de participantes que vivenciam momentos de diversão, cantando e dançando ao som dos ritmos regionais tocados pelos membros do Batalhão. No entanto, quando a pandemia de Covid-19 foi declarada em 2020, estas experiências se tornaram inviáveis por tempo indeterminado, devido aos protocolos de segurança sanitária, que exigiam o distanciamento social como medida para combater a propagação do vírus.
Assim, os cortejos do Arrastão do Pavulagem, uma manifestação cultural que ocorria há mais de 30 anos nas ruas do centro de Belém até o ano de 2019, foram transferidos para o ambiente on-line da internet devido ao isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. Os eventos passaram a ser realizados no formato de transmissões ao vivo, chamadas de Arraial do Futuro em 2020 e Arraial Brincante em 2021, como se vê nas figuras 2 e 3.
Nos dois anos, os cortejos e as demais programações relacionadas aos eventos foram divulgados, transmitidos e expandidos através das seguintes plataformas de comunicação do Arraial do Pavulagem: página do Facebook5, perfil no Instagram6 e canal no YouTube7. Este movimento pode ser observado de acordo com o que Castro (2020) destaca como uma “tecnologização da vida social [...] que dizem respeito, em síntese, às formas e práticas sociais da comunicação” (2020, p. 188), segundo o qual trata-se de “um dos efeitos sociais de maior magnitude produzidos pela atual pandemia de Covid-19” (2020, p. 188), uma vez que houve uma expansão de tais efeitos devido às condições de saúde resultantes do período pandêmico.
Foi adotado um cruzamento de três procedimentos como metodologia, a fim de coletar dados quantitativos e qualitativos em vista de possibilitar diversas compreensões do estudo. O primeiro procedimento realizado foi a netnografia na rede social Facebook do Arraial do Pavulagem, complementada com dados coletados através do Instagram e YouTube do grupo musical, seguindo as considerações de Kozinets (2014)8. Foram analisados, a partir de imagens e interações estabelecidas, os conteúdos presentes na página do Facebook do grupo Arraial do Pavulagem, individualmente, durante os períodos de 16 de abril a 15 de julho de 2020 e de 02 de junho a 18 de julho de 2021 – no total de 109 postagens, corresponderam à divulgação dos arrastões digitais.
O segundo procedimento metodológico adotado consistiu em entrevistas semiestruturadas com os realizadores dos cortejos, envolvendo cinco membros responsáveis pelos arrastões digitais do Arrastão do Pavulagem em diferentes funções: direção e roteirização das transmissões ao vivo, assessoria de comunicação, produção e músicos do grupo Arraial do Pavulagem - incluindo um membro-fundador do grupo musical e um percussionista. As entrevistas foram conduzidas entre agosto e outubro de 2021, utilizando roteiros semiestruturados adaptados de acordo com as funções dos entrevistados.
Por último, como terceiro procedimento metodológico, adotou-se a amostragem em bola de neve, conforme os estudos de Bockorni e Gomes (2021)9, que consistiu no compartilhamento de um formulário on-line entre os participantes do evento, seguindo a comprovação de público-alvo estabelecida pelos autores. O público-alvo eram os usuários das redes sociais on-line que tiveram algum tipo de envolvimento com o Arraial do Pavulagem, seja como frequentadores dos desfiles presenciais até o ano de 2019, ou acompanhando as programações digitais nos anos de 2020 e 2021.
O formulário on-line continha 41 perguntas, permitindo respostas objetivas e/ou discursivas. Para selecionar os usuários que avançariam para as demais perguntas, foram utilizadas perguntas-filtro no referido formulário, tais como “Você conhece o Arrastão do Pavulagem?” e “Você assistiu aos cortejos digitais do Arrastão, os chamados Arraial do Futuro e Arraial Brincante?”.
No total, foram registrados 104 participantes envolvidos no procedimento metodológico utilizado. O formulário foi compartilhado por meio de um link durante o período de maio a julho de 2021 - período abrangeu a expectativa e a experiência dos consumidores em relação à programação digital daquele ano.
O compartilhamento ocorreu nas seguintes plataformas dos autores: Facebook, Twitter e WhatsApp, além do compartilhamento por terceiros, seguindo a metodologia de iniciação em bola de neve. A partir das respostas obtidas, foi possível perceber alguns pontos entre os participantes da pesquisa de campo: A maioria dos sujeitos se insere na faixa-etária entre 18 e 27 anos, é moradora da Região Metropolitana de Belém10 (sobretudo, dos municípios de Belém e Ananindeua) e conheceu o Arrastão do Pavulagem em seu formato presencial, frequentando os cortejos ao lado de familiares e amigos, há mais de 12 anos.
Neste ponto, ressalta-se que, em meio a demais pesquisas já realizados que atravessam a temática dos cortejos do Arrastão do Pavulagem, o presente estudo diferencia-se dos demais por provocar questionamentos, inquietudes e trazer luz acerca das ressignificações advindas da pandemia de Covid-19 – no caso do viés desta pesquisa, nos campos de estudo acerca dos processos de comunicação e do consumo.
Comunicação e vivências do/no Arrastão na cidade desdobrada para o digital
A abordagem do conceito de comunicação aqui discutida parte da perspectiva de França (2008), que enfoca como uma experiência que ocorre dentro do processo comunicacional. A autora fundamenta suas reflexões com base nos estudos de Mead sobre a matriz conceitual das interações. Essa perspectiva foi adotada porque implica uma influência mútua entre os sujeitos, mediada por ações, uma vez que, segundo a autora, o processo comunicacional ocorre por meio de ações (ou gestos significativos) que desempenham o papel de mediador entre os sujeitos. Em outras palavras, pode-se dizer que a comunicação envolve o desenvolvimento de processos e experiências sociais.
França (2008) enfatiza que a comunicação adquire uma dimensão prática como um ato social (2008, p. 84) e torna-se parte do campo da interação, “onde um e outro estão sempre, e desde o início, implicados” (FRANÇA, 2008, p. 85). Além de ser composto por fases inseparáveis, que podem ser observados e marcados pela reflexibilidade sobre os efeitos que tais ações tiveram nos sujeitos (FRANÇA, 2008, p. 79).
Vale destacar que esta pesquisa utiliza os insights de França (2008) sobre comunicação para examinar as trocas interacionais entre usuários inseridos nas redes sociais digitais do Arraial do Pavulagem. Tal encaminhamento foi adotado devido às medidas sanitárias decorrentes da pandemia da Covid-19, que resultaram em conversações desenroladas no ciberespaço.
A pesquisa de campo revelou que os usuários experimentaram uma afetação mútua, afetando-os de maneiras diferentes. É importante ressaltar que o fluxo de comunicação na página do Arraial do Pavulagem no Facebook, juntamente com as interações previamente estabelecidas, já existia muito antes desta pesquisa ser realizada. No entanto, com o advento do isolamento social, o fluxo comunicacional e as práticas de interação adquiriram novos aspectos e questões específicas, à medida que o Arrastão da Pavulagem se transferiu totalmente para o ambiente on-line, como ocorreu nos anos de 2020 e 2021.
Ao estabelecer uma conexão entre a definição de comunicação utilizada anteriormente e sua transposição para o ambiente digital, onde ocorreram os cortejos do Arrastão, surge a discussão por Sodré (2002) sobre o “bios midiático”. Nesta abordagem, Sodré explora a existência, na sociedade contemporânea, de um quarto “bios” (ou “Existência”, como proposto por Aristóteles, de acordo com Sodré), que representa uma nova forma de vida influenciada pela tecnologização da mídia, especialmente com a presença da internet. Esta transformação tem acarretado uma série de consequências, como uma “virtualização do mundo” (SODRÉ, 2002, p. 34).
Em entrevista concedida à Revista Pesquisa Fapesp, o pesquisador compartilha sua perspectiva sobre o “bios midiático”: “Eu descrevo a mídia como o quarto bios, que é o midiático, virtual, da vida como espectro, da vida como quase presença das coisas. É real, tudo que se passa ali é real, mas não da mesma ordem da realidade das coisas” (SODRÉ, 2008, p. 78).
Ao percorrer os conteúdos presentes no bios midiático que se formou nas redes sociais do Arraial do Pavulagem a partir da transposição e recriação do espaço urbano, durante a preparação e realização dos cortejos digitais dos anos de 2020 e 2021, percebe-se a prevalência de elementos típicos do Arrastão do Pavulagem, que proporcionavam aos usuários se sentir em meio aos cortejos realizados.
Os elementos anteriormente mencionados, durante a divulgação da programação digital dos eventos realizados ao longo dos anos de 2020 e de 2021, são ilustrações do Boi Pavulagem, dos chapéus de fitas coloridas, de membros do Batalhão da Estrela, de bandeirinhas, estandartes, instrumentos musicais e “cabeções”, unidos por cores variadas – as mesmas cores presentes nas fitas dos chapéus dos membros do Arraial e do Batalhão da Estrela, como pode-se ver nas figuras 4 e 5.
Desta forma, torna-se possível compreender o espaço urbano que foi transposto para o ambiente digital da internet a partir dos aportes de Canevacci (2016), que propõe o conceito deste espaço como metrópole comunicacional, que é resultante das “relações entre a expansão digital cruzada pelo trio comunicação-cultura-consumo (2016, p. 176). Segundo o pesquisador, a comunicação é o elemento determinante na configuração da metrópole comunicacional, uma vez que descentraliza o conceito de sociedade e a compreensão de diversos fenômenos, tais como inovações, conflitos e tensões, e faz com que esta seja algo flutuante e policêntrica (2016, pp. 176-177).
Ao traçar pontes entre as proposições de Canevacci (2016), também acerca da pluralidade e fragmentação do público consumidor existente nesta metrópole, e o cenário amazônida, no qual esta pesquisa se desenvolve, e no que se refere aos desdobramentos e peculiaridades dos conteúdos ligados aos cortejos digitais do Arrastão do Pavulagem, realizados nos anos de 2020 e de 2021, propõe-se diálogos com as considerações de Santos (2010) sobre a publiCIDADE. Tal diálogo é estabelecido ao visualizar os sujeitos de uma cidade como público consumidor que produz e consome sentidos.
Uma vez que este estudo lança olhar para as interações entre sujeitos, que engendram as práticas de comunicações analisadas ao longo do texto, considerou-se oportuno dilatar tal campo de observação e analisar também as interações entre sujeitos e os objetos – desta forma, adentrar-se-á no outro eixo de estudo deste artigo: o da cultura material e das práticas de consumo tangível e intangível. Assim, os sujeitos envolvidos na programação do Arrastão do Pavulagem - fazedores, brincantes e frequentadores - tanto em seu formato presencial como em seu formato digital, como nos anos de 2020 e de 2021, em ocasião da pandemia de Covid-19, acionam práticas de consumo tangível e intangível ao ter contato com dimensões materiais e imateriais do evento. De acordo com Reilly e Schweihs (1998), o que define objetos enquanto tangíveis e intangíveis é o valor resultante da natureza de tais objetos.
Processos de consumo em uma abordagem da cultura material
Neste estudo, aborda-se a cultura material a partir da perspectiva de Miller (2010), que aponta que “Uma apreciação mais profunda das coisas nos levará a uma apreciação mais profunda das pessoas” (2010, p. 12). Assim, ao analisar as relações entre objetos e sujeitos, torna-se possível observar as formas com as quais estes sujeitos relacionam-se consigo, com a sociedade na qual estão inseridos e perceber camadas que formam subjetividades. Em seus estudos acerca da cultura material, Miller (2007) pontua que “as pessoas sempre consumiram bens criados por elas próprias ou por outros” (2007, p. 40) – o que possibilita encarar o consumo como um viés desta.
No caso dos objetos tangíveis, trata-se da natureza física, palpável, inerente a estes, que é experienciada pelos sujeitos. Enquanto que a natureza dos objetos intangíveis está ligada à dimensão simbólica que tais objetos possuem na subjetividade de cada sujeito. Deste modo, para proporcionar ampla compreensão das práticas de consumo que envolvem os cortejos do Arrastão do Pavulagem, optou-se por analisar tais práticas por este duplo viés: o da tangibilidade e da intangibilidade.
Ao que se refere às práticas de consumo tangível dos objetos que constituem a visualidade do Arrastão do Pavulagem, estas podem ser percebidas por duas formas: por meio da produção, venda e aquisição dos produtos oficiais e não-oficiais relacionados aos cortejos do Arrastão. A tangibilidade de tais objetos, de acordo com Ferreira e Oliveira (2020), é mensurada por “[...] elementos táteis, corporais e visuais dos ativos tangíveis lhes dão valor porque emergem de seus recursos físicos” (FERREIRA; OLIVEIRIA, 2020, p. 157). Logo, os sujeitos, no contato com tais objetos, acionam sentidos tais como visão, tato, audição, dentre outros. Os produtos oficiais, evocados neste ponto, podem ser adquiridos via perfil da loja virtual do Arraial do Pavulagem, disponível no site de rede social Instagram, chamada Lojinha Pavulagem11, conforme pode-se ver na figura 6.
O perfil da loja foi criado no ano de 2021, e meio à pandemia de Covid-19, com o intuito de arrecadar capital financeiro para a manutenção do Instituto Arraial do Pavulagem nos períodos do ano nos quais não há grande circulação monetária no Instituto, haja vista que a entrada do capital financeiro oriundo do patrocínio dos eventos, por conta dos cortejos realizados pelo Instituto, ocorre em períodos pontuais do ano, de acordo com a responsável pela loja. A Lojinha Pavulagem começou a ser divulgada de forma expressiva no ano de 2021, durante as transmissões ao vivo dos cortejos digitais da programação digital do Arraial do Pavulagem, chamada Arraial Brincante, que ocorreram entre os meses de junho e julho de 2021, embora tenha observado a divulgação dos produtos oficiais durante a programação digital realizada no ano de 2020.
Conforme os postulados de Miller (2013), “[...] o sistema de coisas, com sua ordem interna fazem de nós as pessoas que somos” (MILLER, 2013, p.83). Assim, a cultura material busca compreender conjuntamente as relações humanas e os aspectos materiais intrínsecos a ela, ou seja, as relações entre sujeitos e objetos, de acordo com a abordagem do antropólogo. Ao serem indagados sobre o que os objetos característicos do Arrastão do Pavulagem representam para si, 77,9% dos sujeitos que compõem o universo alcançado na pesquisa destacou que os objetos são uma forma de estar em contato com a cultura do estado do Pará, enquanto 60,6% dos sujeitos afirmou que possuir tais objetos representa uma forma de se lembrar de momentos marcantes vivenciados durante os cortejos. De acordo com o antropólogo, a aquisição de determinado bem material está posicionada em uma rede de relações entre sujeitos envolvidos no ato da compra e nas relações estabelecidas por estes (MILLER, 2002).
O compartilhamento de objetos e dos afetos que “revestem” tais objetos, segundo as considerações de Simmel (2006), é um dos princípios das práticas de sociabilidade e confere sentido aos ajuntamentos formados entre sujeitos (SIMMEL, 2006, p. 69). No ato do compartilhamento de objetos, cabe aos sujeitos a manutenção equivalente dos valores sociáveis de tais objetos, de acordo com o sociólogo.
A partir deste processo, vê-se que as práticas de sociabilidade, por meio da identificação com os objetos referentes aos cortejos do Arrastão do Pavulagem, colaboram para o reforço de uma identidade paraense e de sentimentos como pertencimento ao local onde se vive, à cultura da região e ao evento, em si, por meio da materialização da cultura que forma o mundo no qual os sujeitos habitam, conforme as considerações de McCracken (2007).
Alguns dos interlocutores ouvidos por meio das entrevistas semiestruturadas também foram indagados sobre o que os objetos do Arrastão do Pavulagem representavam para si mesmos e/ou quais objetos cada interlocutor mais associava aos cortejos. A comunicadora do evento destacou que o chapéu de fitas coloridas é o objeto mais associado por ela aos arrastões, e complementou que considera este adereço como o objeto que mais identifica ao evento, ao destacar que “Não importa onde você tá (no ônibus, na rua, na parada), mas, se vê uma ou um grupo de pessoas com o chapéu de fitas, por mais que você não conheça, é possível saber pra onde estão indo e estão indo pro mesmo lugar que você” (Profissional responsável pela comunicação dos cortejos digitais do Arrastão do Pavulagem, em entrevista por ocasião desta pesquisa de campo). Já o percussionista do grupo musical também apontou o chapéu de fitas coloridas como o objeto que mais identifica aos cortejos. Por fim, o membro-fundador do grupo musical e dos arrastões apontou dois objetos que identifica os cortejos: o chapéu de fitas coloridas e o Boi Pavulagem.
O consumo, segundo Barbosa e Campbell (2006, pp. 22-23), é uma experiência que possibilita aos sujeitos se reproduzir física e socialmente; bem como media relações sociais, confere status, “constrói” identidades e subjetividades, além de estabelecer fronteiras entre grupos e sujeitos. Os sujeitos que integram o Batalhão da Estrela, além de vestir as tradicionais roupas azul e branco, utilizam os chapéus oficiais do evento, já descrito nos parágrafos anteriores do presente capítulo. Devido haver um padrão na confecção destes adereços, os membros do Batalhão conseguem identificar outros membros pela disposição dos elementos do chapéu, ainda que não haja relações de proximidade entre estes sujeitos. Em contrapartida, torna-se fácil distinguir que sujeitos adquiriram chapéus não-oficiais, por meio do contato com vendedores ambulantes, por mais que haja semelhanças entre a disposição dos elementos que caracterizam tais adereços, devido ao “status” que há em portar um produto oficial tão representativo, como foi possível observar após a coleta de dados referente ao presente estudo.
Trindade e Perez (2014, p. 160) destacam que os rituais, por meio de repetições elaboradas por grupos sociais, possibilitam a perpetuação destes grupos e “demonstram as relações sociais” (TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 160). Percebeu-se que as “demonstrações de relações sociais”, apontadas por Trindade e Perez (2014), neste estudo, por meio do depoimento de uma integrante do Batalhão da Estrela, também ouvida a partir de interações decorrentes da observação participante realizada no ano de 2022, durante os cortejos que compõem o Arrastão. Segundo a interlocutora, é como se o manuseio de instrumentos de percussão como alfaias, barricas e caixas de marabaixo, (maiores, em tamanho, que outros instrumentos) conferisse status maior e colocasse estes brincantes em um patamar mais alto em relação a quem manuseia instrumentos de menor porte, tais como maracas e reco.
McCracken (2003), também destaca que ritual é um local de intermédios que, também, reflete uma repetição de movimentos que objetiva a construção, desconstrução e, mesmo, a “coisificação” do caráter simbólico nas relações entre sujeitos e objetos. Os processos de transferências de significações também podem ser compreendidos, no presente estudo, ao analisar as formas pelas quais os sujeitos atribuem significados a objetos que adquirem para si ou a fim de presentear terceiros. Ao serem perguntados se possuíam algum objeto material referente ao evento, 78,8% do universo de 104 sujeitos alcançados via amostragem em bola de neve declarou possuir itens adquiridos durante o período de realização dos arrastões.
Diante da expressividade das respostas afirmativas, os 104 sujeitos foram perguntados, então, quais itens possuem e o chapéu de fitas coloridas foi destacado como o principal objeto adquirido na ocasião dos cortejos promovidos pelo Instituto Arraial do Pavulagem. 75,6% afirmaram possuir o chapéu de fitas coloridas. Nas palavras de McCracken (2003), “Os bens são uma oportunidade para fazer cultura material” (2003, p. 104). O antropólogo também destaca que a cultura constitui o mundo, determinando como este será formado, consentindo a materialização de determinada cultura, ao propor o conceito de cultura como uma “‘planta baixa’ da atividade humana” (2007, p. 101). Assim, ao traçar perspectivas entre os objetos citados nas respostas acima tratadas com os estudos acerca da cultura material, torna-se possível interpretar tais objetos como materializações das culturas populares do estado do Pará e de estados vizinhos presentes nas manifestações realizadas pelo Arraial do Pavulagem.
Considerações finais
O presente estudo objetivou buscar a compreensão das interfaces entre comunicação e consumo (i)material referentes ao evento Arrastão do Pavulagem, na cidade de Belém do Pará, no contexto da pandemia de Covid-19, entre os anos de 2020 a 2022 – período de maior impacto da pandemia, com a transposição de diversas manifestações para o ambiente on-line, até o período de controle da mesma e flexibilização das normas de segurança sanitárias, com o retorno do formato presencial de tais manifestações.
Os processos de interação e, por conseguinte, os processos de comunicação estabelecidos entre os sujeitos envolvidos no Arrastão do Pavulagem, proporcionaram não somente o diálogo entre estes, mas, ao mesmo tempo, interações entre sujeitos e os objetos materiais que caracterizam o evento. Desta forma, os processos de comunicação foram propagados dentro e fora do ambiente das redes sociais digitais, e estabeleceram contato com processos que acionam práticas de consumo (i)material que reverberam de variadas firmas na subjetividade dos sujeitos.
Ao longo das análises e das reflexões tecidas foi possível apreender as dimensões que as afetividades e os sentidos exercem na subjetividade dos sujeitos e no ato de consumir, ao ampliar as motivações e estratégias por trás das práticas de consumo entre sujeitos e na comercialização de produtos oriundos do Arraial do Pavulagem. Também foi possível observar que aspectos simbólicos exercem significativa influência nestes processos. Esses aspectos e influências, por sua vez, podem acionar sentidos e sensibilidades, ao mesmo tempo que podem evocar lembranças de vivências, em nível micro e em nível macro, que irão balizar as práticas de consumo tangível e intangível, bem como as experiências com tais objetos, com outros sujeitos, consigo mesmos, com a festividade do Arrastão do Pavulagem e com a cultura local expressa por meio do evento, em um contexto atravessado, influenciado e modificado pela pandemia causada pela Covid-19 e pelas marcas deixadas pela mesma.
-
1
Abreu (2003) apresenta duas formas de observar cultura popular: a primeira, a partir de vozes outras, é equivalente ao folclore, “entendido como o conjunto das tradições culturais de um país ou região” (2003, p. 1). A pesquisadora também pontua que cultura pode ser entendida como um instrumento que possibilita a compreensão da realidade social e cultural, em uma dimensão multifacetada, e pontua que “[...] muito mais fácil do que definir cultura popular é localizá-la em países como o Brasil, onde o acesso à chamada modernidade não eliminou práticas e tradições ditas pré-modernas” (2003, p. 2).
-
2
O neologismo Pavulagem quer dizer “formoso, bonito, e pomposo e que na linguagem popular tem o significado de ‘o que gosta de aparecer’, ou o fanfarrão”, conforme atesta Blanco (2014, p. 33).
-
3
Referência ao local onde as festividades em homenagem aos santos da religião católica são realizadas.
-
4
Designação para os cortejos de rua realizados pelo grupo musical Arraial do Pavulagem. Advém da expressão popular paraense “Arrastar”, que significa conduzir um expressivo número de pessoas.
-
5
Link de acesso para a página do Arraial do Pavulagem, no Facebook: <https://www.facebook.com/arraialdopavulagemoficial>
-
6
Link de acesso para o perfil do Arraial do Pavulagem, no Instagram: <https://instagram.com/arraialdopavulagem?utm_medium=copy_link>.
-
7
Link de acesso para o canal do Arraial do Pavulagem, no YouTube: <https://www.youtube.com/c/ArraialdoPavulagemOficial>.
-
8
Kozinets (2014) define o método como sendo “[...] pesquisa observacional participante baseada em trabalho de campo on-line. Ela usa comunicações mediadas por computador como fonte de dados para chegar à compreensão e à representação etnográfica de um fenômeno cultural ou comunal” (2014, pp. 61-62) e ressalta que existem “[...] alguns fenômenos sociais que vão além da internet e suas interações sociais on-line” (2014, p. 65).
-
9
Segundo Bockorni e Gomes (2021), a amostragem em bola de neve trata-se de “[...] uma técnica de amostragem que vem sendo utilizada em pesquisas qualitativas, nos últimos anos, principalmente, porque permite que se alcancem populações pouco conhecidas ou de difícil acesso” (2021, p. 106).
-
10
Instituída por meio da Lei Complementar nº 14 de 1973, ao mesmo tempo que outras Regiões Metropolitanas do país, reúne, atualmente, sete municípios na chamada “Grande Belém”: Ananindeua, Belém, Benevides, Castanhal, Marituba, Santa Izabel do Pará e Santa Bárbara do Pará.
-
11
Link para o perfil da loja on-line do Arraial do Pavulagem, na rede social Instagram: <https://instagram.com/lojinhapavulagem?igshid=YmMyMTA2M2Y>.
Disponibilidade de dados
Os autores confirmam que os dados que suportam a pesquisa estão disponíveis por meio de solicitação aos autores.
Referências
- ABREU, M. Cultura popular, um conceito e várias histórias. In: Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
- AMARAL FILHO, O.; ALVES, R. Os Espetáculos Culturais na Amazônia: Do Boi de Parintins ao Círio de Nazaré. In: Fábio Fonseca de Castro, Otacílio Amaral Filho, Regina Lúcia Alves de Lima. (Org.). Comunicação, cultura e Amazônia 1ed. BELÉM: PPGCOM/UFPA, 2017, v. 1, p. 10-19.
- BARBOSA, L.; CAMPBELL, C. O consumo nas ciências sociais. In: BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin (Org.). Cultura, Consumo e Identidade Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
- BLANCO, D. R. Vitrine Facebook: O consumo espetacular em três espetáculos culturais de Belém-PA. 2014. 103 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação, Belém.
- BOCKORNI, B.; GOMES, A. A amostragem em snowball (bola de neve) em uma pesquisa qualitativa no campo da administração Revista de Ciências Empresariais da UNIPAR, Umuarama, v. 22, n. 1, p. 105-117. jan./jun. 2021.
- CANEVACCI, M. Metrópole comunicacional: arte pública, auto representação, sujeito transurbano. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 47, n. 1, p. 173-191, jan./jun. 2016.
-
CASTRO, F. F. Impactos da Covid-19 sobre os processos comunicacionais: Primeiras observações sobre dinâmicas, impasses e riscos. 2020. Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/pnaea/article/download/8799/6270>. Acesso em: 10 fev. 2021.
» https://periodicos.ufpa.br/index.php/pnaea/article/download/8799/6270 - FERREIRA, D.; OLIVEIRA, I. A intangibilidade e a materialidade das experiências de consumo de marca. Líbero - Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero São Paulo: Ano XXII - No 46 jul. / dez. 2020.
- FRANÇA, V. Interações comunicativas: a matriz conceitual de G. H. Mead. In: A. PRIMO et al (org.), Comunicação e Interações. Livro da Compós Porto Alegre: Sulina, p. 71-91. 2008.
- KOZINETS, R. Netnografia: realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014.
- LIMA, D. M. B.; GOMBERG, Estélio. Cultura, patrimônio imaterial e sedução no Arraial do Pavulagem, Belém (PA), Brasil. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.9, n.2, p. 53-67. nov. 2012.
- MCCRACKEN, G. Cultura & Consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
- MCCRACKEN, Grant. Cultura & Consumo: uma Explicação Teórica da Estrutura e do Movimento do Significado Cultural dos Bens de Consumo. RAE-Revista de Administração de Empresas, v. 47, n. 1, jan-mar, p.116-123, 2007.
- MILLER, D. A teoria das compras O que orienta a escolha dos consumidores. São Paulo, Nobel, 2002.
- MILLER, D. Consumo como cultura material. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 33-63, jul./dez. 2007.
- MILLER, D. Stuff. Cambridge: Polity Press, 2010.
- MILLER, D. Trecos, Troços e Coisas Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
- REILLY, R.; SCHWEIHS, R. Valuing intangible assets. New York: McGraw Hill Professional, 1998.
- SANTOS, L. C. S. PubliCIDADE belle époque: a mídia impressa nos periódicos da cidade de Belém entre 1870-1912. 2010. 269 f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
- SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
- SODRÉ, M. Antropológica do Espelho 1. ed. Petrópolis: Vozes, v. 1, 2002.
- SODRÉ, M. Muniz Sodré: Especialista em comunicação pensa que a mídia se constitui como esfera existencial regida pela economia monetária. [Entrevista concedida a] Gonçalo Junior. Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, p. 77-82, 26 ago. 2008.
- TRINDADE, E.; PEREZ, C. Os rituais de consumo como dispositivos midiáticos para a construção de vínculos entre marcas e consumidores São Paulo, v. 15, n.29, p. 157-171 - jul./dez, 2014.
Editado por
-
Editora responsável: Maria Ataide MalcherAssistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
21 Jun 2023 -
Aceito
27 Out 2023