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Um novo gatilho para um problema antigo: edema pulmonar neurogênico relacionado à quimioterapia intratecal com pemetrexede

AO EDITOR:

O edema pulmonar neurogênico (EPN) é um edema não cardiogênico definido como desconforto respiratório agudo desencadeado por uma injúria ao sistema nervoso central (SNC). As causas mais comuns são traumatismo craniano, hemorragias intracranianas e convulsões.11 Baumann A, Audibert G, McDonnell J, Mertes PM. Neurogenic pulmonary edema. Acta Anaesthesiol Scand. 2007;51(4):447-455. https://doi.org/10.1111/j.1399-6576.2007.01276.x
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2 Colice GL, Matthay MA, Bass E, Matthay RA. Neurogenic pulmonary edema. Am Rev Respir Dis. 1984;130(5):941-948.

3 Simon RP. Neurogenic pulmonary edema. Neurol Clin. 1993;11(2):309-323. https://doi.org/10.1016/S0733-8619(18)30155-5
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-44 Lo-Cao E, Hall S, Parsell R, Dandie G, Fahlström A. Neurogenic pulmonary edema. Am J Emerg Med. 2021;45:678.e3-678.e5. https://doi.org/10.1016/j.ajem.2020.11.052
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Aqui, apresentamos o primeiro caso de EPN relacionado ao tratamento intratecal com pemetrexede.

Uma mulher de 34 anos submetida a tratamento sistêmico com osimertinibe para câncer de pulmão de células não pequenas (CPCNP) metastático com mutação EGFR apresentou-se ao hospital com sintomas de progressão para a meninge. Nesse contexto, foi inserido eletivamente um cateter Ommaya no terceiro ventrículo para tratamento intratecal, e a paciente passou a receber infusão endovenosa de dexametasona (8 mg/dia). Após o procedimento, SpO2 em ar ambiente, FR e FC eram 97%, 16 ciclos/min e 85 bpm, respectivamente. O balanço hídrico permaneceu próximo de zero, e não houve necessidade de transfusão de sangue.

Cinco dias depois, pemetrexede intratecal foi administrado via cateter Ommaya (pemetrexede 50 mg mais dexametasona 5 mg dissolvidos em solução de cloreto de sódio 0,9% para preparar uma solução de 5 mL). Aproximadamente 16 h após a infusão, a paciente queixou-se de falta de ar, tosse e taquicardia. A ausculta pulmonar apresentava crepitações nas bases pulmonares. A FC e a SpO2 eram de 150 bpm e 80% em ar ambiente, respectivamente. A pressão arterial era de 140/90 mmHg. Nenhum sinal de hipertensão intracraniana foi observado. Foi iniciada suplementação de oxigênio com máscara sem reinalação (10 L/min).

A radiografia de tórax (RXT) à beira do leito mostrou opacidades pulmonares bilaterais nos campos médio e inferior e possível derrame pleural à direita (Figura 1A), e a TC de tórax confirmou extensas opacidades bilaterais em vidro fosco, relativamente simétricas, às vezes tendendo a consolidar, juntamente com espessamento septal e pequeno derrame pleural à direita (Figura 1C).

Figura 1
Em A, radiografia de tórax (RXT) à beira do leito demonstrando opacidades pulmonares bilaterais nos campos médio e inferior e possível derrame pleural à direita. Em B, RXT à beira do leito realizado duas semanas após mostrou melhora significativa das opacidades pulmonares. Em C, TC axial confirmando acometimento pulmonar e extensas opacidades em vidro fosco, por vezes tendendo a consolidação, com espessamento septal. Em D, uma RM de coluna realizada alguns dias antes da TC de tórax descartou de forma confiável anormalidades pulmonares difusas prévias. As TC coronais confirmaram a melhora significativa descrita no RXT de controle (TC basal em E vs. TC de controle realizada duas semanas depois em F).

A TC também descartou tromboembolismo. Embora não houvesse radiografia prévia para comparação, a paciente havia realizado uma RM da coluna torácica alguns dias antes (Figura 1D), que revelou que os pulmões não apresentavam anormalidades difusas, reforçando o quadro hiperagudo. Não havia sinais clínicos de infecção. Eletrólitos séricos, procalcitonina, função renal, troponina, NT-proBNP (< 125 pg/mL), hemograma e ecocardiograma não apresentavam alterações. Foi realizada broncoscopia e a análise do LBA descartou infecção.

A paciente foi encaminhada à UTI; ventilação não invasiva (VNI) foi iniciada em modo de ventilação de dois níveis (Vt = 6 mL/kg) em sessões de 120 min a cada 8 h, e a paciente foi desmamada da oxigenoterapia 5 dias depois. Nenhum antibiótico foi usado. O RXT (Figura 1B) e TC de controle após duas semanas (Figuras 1E e 1F) revelaram redução significativa das opacidades pulmonares (Figura 1B). Apesar da resolução dos sintomas respiratórios, a paciente foi encaminhada para cuidados paliativos exclusivos e faleceu 60 dias depois.

O cenário clínico foi um episódio agudo de taquicardia e desconforto respiratório em uma jovem após pemetrexede intratecal para tratamento de CPNPC metastático. Embora a doença pulmonar difusa não seja específica em exames de imagem, os achados da radiografia combinados com o rápido início dos sintomas e resolução relativamente rápida do comprometimento pulmonar favoreceram o diagnóstico de edema agudo de pulmão com um potencial fator causador (pemetrexede intratecal).

Os principais diagnósticos diferenciais foram excluídos, incluindo edema cardiogênico e nefrogênico, infecção e aspiração. Pneumonite por pemetrexede também é uma hipótese diferencial, mas o curto intervalo de tempo entre a infusão da droga e o início dos sintomas não coincide com o período habitual de início de pneumonite (semanas/meses). Pemetrexede intratecal em baixa dose também descarta pneumonite. Nossa hipótese, portanto, foi de um mecanismo neurogênico para o edema pulmonar como a principal causa dos aspectos clínicos.

Pemetrexede é um quimioterápico anticancerígeno utilizado no tratamento de CPNPC localmente avançado ou metastático, e sua administração intratecal pode ser realizada em pacientes com progressão para a meninge. Em um ensaio clínico,55 Fan C, Zhao Q, Li L, Shen W, Du Y, Teng C, et al. Efficacy and Safety of Intrathecal Pemetrexed Combined With Dexamethasone for Treating Tyrosine Kinase Inhibitor-Failed Leptomeningeal Metastases From EGFR-Mutant NSCLC-a Prospective, Open-Label, Single-Arm Phase 1/2 Clinical Trial (Unique Identifier: ChiCTR1800016615). J Thorac Oncol. 2021;16(8):1359-1368. https://doi.org/10.1016/j.jtho.2021.04.018
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pemetrexede intratecal foi administrado em 30 pacientes; o tempo médio de sobrevida foi de 9,0 meses (IC95%: 6,6-11,4 meses). Os eventos adversos mais comuns foram mielossupressão, que ocorreu em 30% dos pacientes, e neurotoxicidade. Nenhum evento pulmonar foi relatado.55 Fan C, Zhao Q, Li L, Shen W, Du Y, Teng C, et al. Efficacy and Safety of Intrathecal Pemetrexed Combined With Dexamethasone for Treating Tyrosine Kinase Inhibitor-Failed Leptomeningeal Metastases From EGFR-Mutant NSCLC-a Prospective, Open-Label, Single-Arm Phase 1/2 Clinical Trial (Unique Identifier: ChiCTR1800016615). J Thorac Oncol. 2021;16(8):1359-1368. https://doi.org/10.1016/j.jtho.2021.04.018
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O EPN foi descrito pela primeira vez em 1908 e definido como um aumento do líquido intersticial e alveolar pulmonar devido a uma descarga simpática grave após envolvimento agudo do SNC.44 Lo-Cao E, Hall S, Parsell R, Dandie G, Fahlström A. Neurogenic pulmonary edema. Am J Emerg Med. 2021;45:678.e3-678.e5. https://doi.org/10.1016/j.ajem.2020.11.052
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Determinar a prevalência real do EPN é desafiador devido ao diagnóstico complexo. Vários gatilhos diferentes do SNC foram identificados, incluindo doenças infecciosas (mais comuns), sangramento cerebral, traumatismo cranioencefálico, epilepsia, acidente vascular cerebral e outros.66 Finsterer J. Neurological Perspectives of Neurogenic Pulmonary Edema. Eur Neurol. 2019;81(1-2):94-102. https://doi.org/10.1159/000500139
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A patogênese do EPN é pouco compreendida, mas acredita-se que seja consequência de uma descarga simpática maciça secundária a uma lesão da medula oblonga. Essa tempestade simpática leva a vasoconstrição sistêmica, aumento do volume sanguíneo pulmonar, aumento da permeabilidade capilar pulmonar e subsequente acúmulo de líquido no espaço alveolar (edema pulmonar).77 Hall SR, Wang L, Milne B, Ford S, Hong M. Intrathecal lidocaine prevents cardiovascular collapse and neurogenic pulmonary edema in a rat model of acute intracranial hypertension. Anesth Analg. 2002;94(4):. https://doi.org/10.1097/00000539-200204000-00032
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,88 Šedý J, Kuneš J, Zicha J. Pathogenetic Mechanisms of Neurogenic Pulmonary Edema. J Neurotrauma. 2015;32(15):1135-1145. https://doi.org/10.1089/neu.2014.3609
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O EPN se apresenta dentro de minutos ou horas após uma lesão do SNC. No entanto, foi descrito um início mais rápido ou tardio. Dispneia é o sintoma mais comum. Taquicardia às vezes é observada concomitantemente à síndrome de Takotsubo, que tem um mecanismo semelhante.99 Inamasu J, Nakatsukasa M, Mayanagi K, Miyatake S, Sugimoto K, Hayashi T, et al. Subarachnoid hemorrhage complicated with neurogenic pulmonary edema and takotsubo-like cardiomyopathy. Neurol Med Chir (Tokyo). 2012;52(2):49-55. https://doi.org/10.2176/nmc.52.49
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O exame físico geralmente revela taquipneia e crepitações basilares. Os RXT geralmente mostram opacidades alveolares bilaterais e tamanho normal do coração.66 Finsterer J. Neurological Perspectives of Neurogenic Pulmonary Edema. Eur Neurol. 2019;81(1-2):94-102. https://doi.org/10.1159/000500139
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O diagnóstico de EPN inclui envolvimento agudo do SNC, relação Pao2/Fio2 < 200 mmHg, opacidades bilaterais nas imagens torácicas, nenhuma evidência de hipertensão atrial esquerda e ausência de outras causas (infecção, SDRA, aspiração).1010 Davison DL, Terek M, Chawla LS. Neurogenic pulmonary edema. Crit Care. 2012;16(2):212. https://doi.org/10.1186/cc11226
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O manejo do EPN consiste na abordagem da causa neurológica subjacente e na terapia de suporte para o edema pulmonar,55 Fan C, Zhao Q, Li L, Shen W, Du Y, Teng C, et al. Efficacy and Safety of Intrathecal Pemetrexed Combined With Dexamethasone for Treating Tyrosine Kinase Inhibitor-Failed Leptomeningeal Metastases From EGFR-Mutant NSCLC-a Prospective, Open-Label, Single-Arm Phase 1/2 Clinical Trial (Unique Identifier: ChiCTR1800016615). J Thorac Oncol. 2021;16(8):1359-1368. https://doi.org/10.1016/j.jtho.2021.04.018
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baseada em oxigenoterapia suplementar e VNI (incluindo CPAP). Em casos extremos, intubação com certo nível de PEEP.66 Finsterer J. Neurological Perspectives of Neurogenic Pulmonary Edema. Eur Neurol. 2019;81(1-2):94-102. https://doi.org/10.1159/000500139
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O papel dos diuréticos ainda é controverso, não havendo recomendação clara. Embora a maioria dos casos se resolva dentro de 48-72 h, o desenvolvimento de EPN está associado a desfechos de longo prazo ruins.66 Finsterer J. Neurological Perspectives of Neurogenic Pulmonary Edema. Eur Neurol. 2019;81(1-2):94-102. https://doi.org/10.1159/000500139
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Este relato de caso destaca o papel do tratamento intratecal com pemetrexede como desencadeador de EPN. Até onde sabemos, esta é a primeira descrição na literatura. Médicos devem estar cientes da importância do diagnóstico precoce e do tratamento adequado.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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