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ACONTECIMENTO, MUNDO E ENTE INTRAMUNDANO: ALGUNS PROBLEMAS NA FILOSOFIA DA ARTE DE MARTIN HEIDEGGER

ENOWNING, WORLD AND INNERWORLDLY ENTITY: SOME ISSUES IN MARTIN HEIDEGGER’S PHILOSOPHY OF ART

RESUMO

O objetivo do artigo é caracterizar, tão precisamente quanto possível, a filosofia da arte de Martin Heidegger a partir de seus distanciamentos para, em seguida, delinear um problema que nos parece estrutural. Com a noção de acontecimento [Ereignis], Heidegger pretende distinguir sua perspectiva sobre arte principalmente de outras duas, a saber, a da tradição neokantiana e a de Hegel. Isso nos permite ter uma dimensão da radicalidade conceitual de Heidegger, na medida em que o acontecimento pretende apontar um momento poético anterior ao linguístico, também compreendido como abertura de um mundo. Esse momento, contudo, escapa às relações de referência previstas na noção de mundo e se torna praticamente indizível. Além disso, a obra de arte que abre um mundo não deixa também de poder ser identificada como um ente intramundano, enredando, assim, a própria perspectiva de Heidegger em uma série de dificuldades aparentemente incontornáveis.

Palavras-chave:
Arte; Acontecimento; Heidegger; Mundo; Ente intramundano

ABSTRACT

The aim of the article is to characterize Martin Heidegger’s philosophy of art, as accurately as possible, through what he wants to take distance from; and then we seek to outline a problem that seems structural. With the notion of enowning [Ereignis] Heidegger intends to distinguish his perspective on art especially from two other ones, namely that of Neokantian tradition and Hegel’s. This allows us to have a dimension of Heidegger’s conceptual radicalism, insofar as the enowning aims to point to a poetic moment which is prior to language. This moment is conceived as a world disclosure. However, it escapes the reference relations foreseen in the notion of world, and becomes basically unspeakable. In addition, the work of art that opens up a world can also be identifed as something innerworldly, thus entangling Heidegger’s own perspective in a series of seemingly unsurmountable difficulties.

Keywords:
Art; Enowning; Heidegger; World; Innerworldly

1. Introdução

A filosofia da arte de Martin Heidegger parece pressupor uma destruição da estética tão profunda quanto a própria “destruição da metafísica” que ele colocou na base de sua ontologia fundamental. Inicialmente, essa filosofia aparece no opúsculo sobre “A origem da obra de arte”, mas se desenvolve numa série de outros escritos, como, por exemplo, os “Hinos de Hölderlin” e as preleções ministradas na Universidade de Freiburg entre 1936 e 1937 publicadas com o título de “Nietzsche I”. Em uma passagem particularmente importante dessas preleções, Heidegger afirma: “A partir da essência do ser, a arte precisa ser concebida como o acontecimento fundamental do ente, como o que é propriamente criador” (Heidegger, 2007HEIDEGGER, M. “Nietzsche I”. Trad. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007., p. 195). Contudo, uma vez que esses escritos colocam a obra de arte debaixo da noção de acontecimento [Ereignis], talvez seja no livro “Contribuições à filosofia (do acontecimento apropriador)” que um ponto de partida deva ser buscado a fim de compreender não somente a parte destrutiva, mas também a parte construtiva, por assim dizer, do pensamento de Heidegger sobre a arte. Isso nos levará a uma tentativa de caracterização da noção de acontecimento que se entrelaça de maneira peculiar a noções já consolidadas de “Ser e Tempo”, livro que à primeira vista parecia desconectado do problema da arte. A noção da obra do final dos anos 1920 que aparece de modo irrecusável na discussão sobre arte é, justamente, a noção de mundo, uma vez que a obra de arte é caracterizada, posteriormente, como portadora de uma função formadora de um complexo referencial linguístico, que compõe o mundo. Essa função de “abertura de mundo” [Welterschlieβung] constitui precisamente o acontecimento poético ou “propriamente criador” que Heidegger mencionava nos cursos sobre Nietzsche. Entretanto, à luz das noções de mundo e de ente intramundano, a noção de acontecimento, para pensar a obra de arte, parece problemática. Nesse sentido, é-nos especialmente valiosa a interpretação de Cristina Lafont, em seu livro Sprache und Welterschlieβung. Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers (1994), no qual a autora desenvolve diversos aspectos do que considera uma “hipóstase” da função de abrir o mundo em relação às outras funções da linguagem na filosofia de Heidegger, e que leva a “problemas estruturais”.

Os mais significativos são: a) “em relação com a objetividade da experiência [...] fracionar a unidade transcendental da apercepção em “aberturas de mundo” (ou “visões do mundo”) particulares, das correspondentes linguagens históricas” (Lafont, 1994LAFONT, C. “Sprache und Welterschlieβung. Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994., p. 15), inviabilizando todo sentido da suposição de um mundo objetivo; e b) “em relação com a intersubjetividade da comunicação [...], em virtude da incomensurabilidade das aberturas de mundo transmitidas em linguagens absolutamente distintas”, implicar “as conhecidas restrições relativistas quanto à possibilidade de entendimento mútuo sobre a mesma coisa e de tradução de uma linguagem em outra” (Lafont, 1994LAFONT, C. “Sprache und Welterschlieβung. Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994., pp. 15-16). Nosso objetivo pode ser entendido, neste artigo, como uma tentativa de mostrar que problemas estruturais análogos podem ser encontrados na perspectiva de Heidegger sobre a obra de arte, com as respectivas consequências para outras funções associadas a ela, não necessariamente epistêmicas, mas que dependem igualmente de seu caráter de ente intramundano. Para isso, dividiremos nossa exposição em duas partes: 1) uma investigação mais detalhada da noção de acontecimento e sua relação com o problema da arte; e 2) uma abordagem do mesmo problema à luz das noções de mundo e ente intramundano. Por fim, esperamos oferecer uma conclusão, também, tão clara quanto possível, tendo em vista as próprias obscuridades nas quais o pensamento de Heidegger parece estar implicado.

1. Arte e acontecimento

Claramente delimitada em relação às principais filosofias da arte que lhe precedem é a tese de Heidegger ([1935] 1976a, p. 73)HEIDEGGER, M. “Der Ursprung des Kunstwerks”. In: Gesamtausgabe Bd. 5. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976a. (1ª publicação: 1935) de que a arte “não vale nem como domínio performativo da cultura [Leistungsbezirk der Kultur] nem como um fenômeno do espírito [Erscheinung des Geistes], ela pertence ao acontecimento [Ereignis] a partir do qual se determina o ‘sentido do ser’. (vide ‘Ser e Tempo’)”. Assim, na contramão de boa parte dos intérpretes, que posicionam seu pensamento sobre a arte e a poesia em momento posterior a sua obra mais famosa, o filósofo deixa claro, desde já, que sua reflexão sobre arte se move no âmbito da questão fundamental de “Ser e Tempo” quanto ao “sentido do ser”. A frase, além disso, contém duas negações. Com a segunda negação, de que a arte não é um fenômeno – às vezes dito “manifestação” – do espírito, ele quer distanciar-se da estética de Hegel; com a primeira, de que a arte “não vale” [gilt weder], ele quer distanciar-se de toda uma tradição do “valor estético”, tradição que vai de Kant, passando pelo neokantismo, Max Weber até, recentemente, Habermas, segundo a qual a arte é um domínio ou âmbito performativo da cultura. Heidegger quer erigir, portanto, contra essas perspectivas, a concepção da obra de arte como “acontecimento” (Cf. Herrmann, 1980HERRMANN, F-W v. “Heideggers Philosophie der Kunst. Eine systematische Interpretation der Holzwege-Abhandlung „Der Ursprung des Kunstwerks“.” Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1980., p. xviii).

Nos anos seguintes à publicação de seu livro surpreendente de 1927, Heidegger dedica-se a vários cursos universitários que dão origem a um manuscrito que, se estivéssemos pensando cronologicamente, prepara a tão propalada “virada” em relação a “Ser e Tempo”. Mas essa justificativa é desnecessária, pois, de um lado, o texto sobre a origem da obra de arte, além de remeter à pergunta pelo sentido do ser, defende enfaticamente a concepção da arte como “Ereignis” e, de outro, este manuscrito a que nos referimos veio à luz com o título “Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis)”, traduzido felmente em português por “Contribuições à filosofia (do acontecimento apropriador)”, e reúne vários textos da década de 1930 (cf. Heidegger, 2015HEIDEGGER, M. “Contribuições à filosofia (Do acontecimento apropriador)”. Trad. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015.).1 1 Também nesse período, estendido à década de 1940, se dá o encontro com Hölderlin, que Werle (2005, pp. 17-18) distingue do período posterior a 1950 e que ele coloca sob a rubrica de “clareira do ser”, em que Heidegger teria se dedicado mais à questão da essência da linguagem do que da poesia. À página 46, ele escreve: “Desse modo, a publicação do volume sobre a Ereignis confrma que a famosa virada [Kehre] já estava em curso bem antes do surgimento da ‘Carta sobre o Humanismo’,” à qual está geralmente associada, acrescentaríamos. Temos, portanto, bastantes motivos para nos preocupar menos com os detalhes exegéticos do itinerário intelectual de Heidegger e mais com uma determinada continuidade da concepção heideggeriana de linguagem e poesia que se concentra na função de abrir o mundo, como veremos a seguir. Na mesma direção também pensa Lafont (1994, p. 23): “a continuidade das premissas fundamentais do desenvolvimento da concepção de Heidegger, que é levantada em todas as fases do seu trabalho (também divergentes sob outros aspectos) parte, com especial clareza, da concepção de ‘verdade’ como ‘desocultamento’ [Unverborgenheit], que já é assumida em Ser e Tempo com a equivalência entre verdade e ‘abertura do ser-aí’ [Erschlossenheit des Daseins], e depois da ‘virada’ sob o nome de ‘clareira do Ser’ [Lichtung des Seins] se mantém, do ponto de vista da concepção, inalterada.” As traduções das obras referidas neste artigo, quando não indicadas, são de nossa responsabilidade. A expressão ‘Leistung’ contém o cerne do que está para ser negado; deriva do verbo ‘leisten’, que significa ‘performar’, no sentido de ‘levar a cabo’, ‘produzir’, ‘cumprir’. Certamente o espírito, em Hegel, não produz a obra da mesma maneira que o artista; o que Heidegger quer negar, neste caso específico, é a lógica subjacente à necessidade histórica das obras de arte em relação ao espírito de uma época, à qual vai contrapor, por assim dizer, uma poética do destino. Além disso, com a crítica à concepção da arte como “expressão de vivências”, referindo-se especialmente a Dilthey, e dos poemas como “portadores de beleza”, nos quais o poeta exprime algo de sua natureza interna ou que “viveu”, ou seja, no conceito de “alma do poeta”, ele faz sucumbir também o espírito de um povo, tal como este se apresenta em Hegel, embora não mencione explicitamente o seu nome:

Como é que se encara, no meio de tudo isto, a poesia em que se concentram as vivências? Ela é representada como uma expressão de vivências, expressão da qual o poema é, então, o condensado. Estas vivências podem ser concebidas como as vivências de um indivíduo isolado, portanto, de forma ‘individualista’, ou como expressão da alma das massas, ou seja, de modo ‘coletivista’, ou, na acepção de Spengler, como expressão da alma de uma cultura, ou, na acepção de Rosenberg, como expressão da alma de uma raça, ou como expressão da alma de um povo. Todas estas concepções da poesia, por vezes ainda misturadas, movimentam-se dentro dos limites de um único modo de pensar (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 34).2 2 Sobre a etimologia do verbo ‘poetar’ [dichten] enquanto ‘condensar’, cf. Deutsches Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm, 1971.

Na verdade, segundo ele, esse modo de pensar não deveria ser imputado a este ou àquele teórico da poesia, a uma superficialidade aleatória, mas à própria “maneira de ser do homem do século XIX e da modernidade em geral” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 35). Porém, acima de tudo, quando Heidegger diz que “a poesia é o acontecimento fundamental do ser enquanto tal”, ele quer dizer que a poesia nunca é resultado de uma produção. Ela não se explica por uma referência ao poeta ou a uma causalidade externa, mas a partir da própria essência da poesia, que é acontecimento.3 3 Em Heidegger, a palavra “essência” [das Wesen], como sabemos, tem o significado especial e temporalizado do sentido de ser vinculante, precisamente oposto ao essencialismo da metafísica. Heidegger quer retirar a consequência profunda, mas não reconhecida por Kant, da ideia de uma causalidade indeterminada no juízo reflexionante estético, pois se a obra de arte precede o conceito que lhe possibilita, não é outra coisa se não um acontecer, relacionado antes à verdade, no sentido de desocultamento, e não à validade, mesmo que somente estética.

Mas, afinal, o que é o acontecimento (apropriador), esta noção heideggeriana tão largamente apropriada?4 4 É incontável a quantidade de pensadores que se apropriaram da noção heideggeriana de acontecimento e a desenvolveram em alguma direção própria: Foucault, Derrida, Deleuze, Vattimo, Caputo, Žižek, etc. Em primeiro lugar, a pergunta não pode ser colocada desta maneira, “em jeito de definição. Isso tem de ser, antes de tudo, experimentado. Esta experiência, porém, requer certamente uma instrução” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 36). Trata-se não de falar sobre algo, mas de “ser transferido para o acontecimento” (Heidegger, 1989HEIDEGGER, M. “Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis)”. In: Gesamtausgabe B.65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1989., p. 3),5 5 “...dem Er-eignis übereignet zu werden”. No radical ‘–eignen’ ressoa o caráter de pertencimento do Dasein ao Ser, explícito nesta passagem de O Princípio da Identidade: “No homem impera um pertencer ao ser; tal pertencer escuta o ser, porque é transferido [übereignet] para este.” Em nota ao seu exemplar de mão, Heidegger esclarece o sentido de übereignet – transferido, entregue como propriedade – enquanto “vereignet in das Ereignis” (Heidegger, 2006, p. 39). da mesma forma que “‘falarmos sobre’ poesia só pode ser nefasto, visto que, em caso de necessidade, um poema já diz por si só o que tem a dizer” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 12). Nesse sentido, a reflexão de Heidegger sobre a arte se revela como uma espécie de “estética” não-apofântica da verdade e, por isso mesmo, para usar a expressão de Badiou, se revela definitivamente como inestética (cf. Badiou, 2002BADIOU, A. “Pequeno manual de inestética”. Trad. M. Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.). Em todo caso, ainda que Heidegger queira – em vez de interpretar, dissecar, etc. –, submeter-se à esfera de poder da poesia (de Hölderlin, é preciso dizer), é inevitável que fale deste poeta e de sua poesia. Mas isso significa, para ele, um modo de dizer inteiramente específico, porque “do acontecimento acontece um pertencer dizente-pensante [denkerisch-sagendes] ao ser e na palavra ‘do’ ser” (Heidegger, 1989, p. 3HEIDEGGER, M. “Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis)”. In: Gesamtausgabe B.65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1989.), com ênfase no genitivo subjetivo.

No início, não há apenas a passagem vazia do tempo, há um tremor. “Esse tremor se fortalece, então, para o poder da mansidão resolvida de uma ternura daquele endeusamento do deus dos deuses, a partir da qual acontece a alocação [Zuweisung] do Da-sein no Ser, como sendo para este a fundação da verdade” (Heidegger, 1989HEIDEGGER, M. “Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis)”. In: Gesamtausgabe B.65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1989., p. 4). O acontecimento, ainda que seja um todo, uma unidade indissolúvel, pode ser acompanhado como a passagem sutil do tremor à mansidão. Sendo assim, o acontecimento não é neutro em sentimentos. Porém, não é um sentimento da interioridade ou da subjetividade; é, por assim dizer, um sentimento da existência. Heidegger escolhe para isso a expressão “tonalidades afetivas” [Stimmungen], entre as quais a angústia é a fundamental [Grundstimmung] porque nos coloca diante da possibilidade do nada e, portanto, também do ser (cf. Heidegger, 2003HEIDEGGER, M. “Conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão”. Trad. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.). Não somente o acontecimento não é neutro, como também é rico em disposições.6 6 O termo “disposição” também é frequentemente usado como tradução de “Stimmung”. Na tradução brasileira de Márcia de Sá Cavalcante, foi vertido por “humor” (cf. Heidegger, 1999). Ele é susto, tremor, desconfiança que depois abranda, até converter-se em timidez alegre e, finalmente, em júbilo. Acontecimento significa epifania. Mas, por fim, assegura Heidegger, ele é manso como uma ovelha.

Como se pode ver, podemos falar deste acontecimento, ele não é inefável. No entanto, só enquanto dizente-pensante é que o acontecimento pertence ao ser. “O que se passa com o dizer poético acontece de forma análoga – e não igual – com o dizer pensante da filosofia” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 47).7 7 Cumpre notar que, como exemplo deste dizer-pensante filosófico, Heidegger não menciona um tratado ou uma obra de filosofia, mas uma “aula”, onde se pode reparar “de quê e para quem realmente se fala”. Este falar pertence ao ser e sua palavra. O ser fala em sua língua, que é ela mesma acontecimento.

Só que o poema, nesse caso, já não é a coisa existente, legível e audível que ainda vai sendo, onde a linguagem se considera um meio de expressão e entendimento de que, por assim dizer, dispomos, tal como o automóvel dispõe da sua buzina. – Não somos nós quem possui a linguagem, é a linguagem que nos possui a nós, no mau e no bom sentido (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 31).

Heidegger fala-nos, aqui, de um poema que não é coisa existente, legível e audível. Onde quer que um ente nos apareça ou venha ao encontro, “este já acontece, e se é alocado. Esta é a própria essencialização do ser [Wesung des Seyns], que nós denominamos acontecimento” (Heidegger, 1989HEIDEGGER, M. “Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis)”. In: Gesamtausgabe B.65. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1989., p. 7). O que Heidegger tem em mente é o que Lafont (2004, pp. 137-138)LAFONT, C. “El problema de la apertura lingüística del mundo en la filosofía hermenéutica y analítica”. In: Galán, F, Xolocotzi, A., Garza, M. (orgs.), 2004, pp. 137-166. denomina o “a priori perfeito” da tradição hermenêutica da linguagem, segundo o qual “a linguagem determina nossa experiência ou, o que é a mesma coisa, [...] nossa abertura linguística do mundo é intranscendível (unhintergehbaren)”. Literalmente, quer dizer que não podemos retroceder, com o perdão da redundância, para trás deste a priori que é, portanto, perfeito. Mesmo assim, deve ser possível abordar este fenômeno, e Heidegger o faz a partir do que considera sua essência.

Com efeito, “para sabermos o que é o acontecer da linguagem”, segundo ele, “temos de esgotar a periculosidade da língua” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 73), pois “o caráter perigoso da língua é a definição mais originária da sua essência. A sua essência mais pura desenvolve-se inicialmente na poesia. Esta é a linguagem primordial de um povo” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 67).8 8 Naturalmente, esse tema deriva da caracterização de Hölderlin da língua como “o mais perigoso de todos os bens”. A periculosidade da língua consiste precisamente na sua decadência, na transformação em prosa, em comunicação e, por fim, em conversa fada. Desde “Ser e Tempo”, com o conceito de falatório [das Gerede], Heidegger (SuZ, §35, p. 167) opõe-se definitivamente a qualquer noção de comunicação. Mas não é só isso; de modo semelhante – e ao mesmo tempo distinto – ao perigo que Hegel via numa socialização completa do “sistema das necessidades”, e consequente desprezo pela eticidade de um povo, Heidegger coloca a decadência da língua como o perigo supremo, inclusive sob a forma de uma cultura consolidada, pois ele visa muito mais a “transformação essencial da experiência da língua no ser-aí histórico de um povo” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 67). Por isso, a menção à “linguagem primordial” não pode ser confundida com a de um produto cultural, ainda que coletivo, de um povo, que já tínhamos descartado anteriormente. Apesar do vocabulário e do estilo difícil de Heidegger, a ideia parece bastante simples: a transformação é a essência criadora da língua que só pode ser pensada a partir do seu oposto, a decadência e a consolidação, que constituem, por isso, a “não-essência” da língua:

A não-essência da língua, contudo, nunca pode ser eliminada. Mas pode ser tolerada no seu domínio necessário. A não-essência da língua pode, assim, ser aproveitada como perigo e resistência, como algo que obriga a uma afirmação constantemente nova da essência contra a não-essência (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 67).

Não se trata, portanto, de um fato contingente nem tampouco evitável. É da própria essência da língua que ela, ao surgir, corra perigo. “Dizer uma palavra essencial significa intrinsecamente entregar esta palavra à esfera da má interpretação, do abuso e da fraude, ao perigo de provocar de imediato o efeito contrário da sua vocação” (Heidegger, 2004HEIDEGGER, M. “Hinos de Hölderlin”. Trad. L. Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004., p. 66). Embora as formulações de Heidegger possam sugerir um esforço decisionista de se colocar ao lado da palavra verdadeira, o que está em jogo, aqui, é a constituição ontológica da própria linguagem ou, em todo caso, que “a não-essência da língua nunca pode ser eliminada”.9 9 Em “Ser e Tempo”, essa constituição estava descrita como inevitabilidade da impropriedade do Dasein: “Ambos os modos de ser propriedade e impropriedade – estas expressões foram escolhidas em seu sentido terminológico rigoroso – fundam-se no fato de o ser-aí ser determinado pelo caráter de ser sempre meu. A impropriedade do ser-aí, porém, não significa “ser” menos ou um grau “inferior” de ser. Ao contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção do ser-aí em seus ofícios, estímulos, interesses e prazeres” (SuZ, §9, pp. 42-43). Neste contexto – portanto, de que a não-essência ineliminável da língua obriga a uma afirmação constantemente nova da essência –, tanto a contraposição a Hegel quanto ao neokantismo são de grande importância. Permita-nos o leitor uma digressão da investigação conceitual para recordar o encontro, sumamente instrutivo, que se tornou muito famoso entre Heidegger e Cassirer na montanha mágica de Davos, em 1929, em que Heidegger expressa os motivos de sua recusa da noção tradicional de cultura.

Ele reconhece em cada produto do espírito uma manifestação da liberdade, mas exorta contra o cômodo estabelecer-se nesses produtos. Uma vez solidificado na cultura, o ato de liberdade já não existe mais. Por isso, necessita sempre se renovar, e não alimentar a nostalgia dos bens culturais, ainda que estes sejam uma expressão da liberdade. Ora, este incessante reanimar-se encontramos também na sociologia da arte como a estranha expressão do “incremento de valor” da racionalidade estética, que na verdade não é nenhum incremento, nenhuma acumulação de saber que conduzisse às infinitudes absolutas do espírito, mas antes uma necessidade quase existencial de nascer de novo.10 10 Refro-me aqui, sobretudo, à sociologia da arte de Max Weber, profundamente neokantiana, que, refetindo a tese da autonomia do estético, percebe a discrepância, nesta esfera, entre progresso técnico e incremento de valor [Wertsteigerung]: “o emprego de uma determinada técnica, por mais ‘avançada’ que esta seja, não decide o mínimo sequer sobre o valor estético de uma obra de arte. Obras de arte realizadas com uma técnica muito ‘primitiva’ – por exemplo, pinturas sem nenhum conhecimento da perspectiva – podem ser absolutamente da mesma qualidade que as obras mais acabadas, executadas à base de uma técnica racional, com a condição de que a vontade artística se restrinja às formas que sejam adequadas com a técnica primitiva. A criação de novos meios técnicos apenas significa, primeiramente, aumento de diferenciação, e oferece apenas a possibilidade de uma crescente ‘riqueza’ da arte no sentido de incremento de valor. Na verdade, não raramente se deu o efeito inverso, o de um ‘empobrecimento’ do sentimento da forma” (Weber apud Habermas, 1981, p. 251). Sobre a abordagem neokantiana da estética, especialmente os conceitos de valor e validade aplicados à esfera da arte, cf. Grupillo (2019). Ao reconstruir o debate, o biógrafo de Heidegger, Safranski, lembra como Cassirer havia citado “o cálice do reino do espírito” de Hegel, do qual jorra a infinitude,11 11 Na verdade, trata-se da frase de Schiller “do cálice desse reino dos espíritos espuma até ele sua infinitude”, com a qual Hegel encerra sua “Fenomenologia”. ao que Heidegger teria contraposto a finitude humana e a necessidade de “partindo do aspecto preguiçoso de um ser humano, o que utiliza apenas as obras do espírito, de certa forma lançar de volta o ser humano para a dureza do seu destino” (Heidegger apud Safranski, 2000SAFRANKI, R. “Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal”. Trad. L. Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2000., p. 230).12 12 A fonte da citação é: HEIDEGGER, M. “Kant und das Problem der Metaphysik”. In: Gesamtausgabe B.3. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1991, p. 291. Ali se insinuava, contra o pano de fundo da filosofia hegeliana, e num confronto direto com um dos representantes mais eminentes do neokantismo, a poética do destino que Heidegger desenvolveria, em alguns anos, com a ajuda de Hölderlin. Em suma, nem como produto simbólico (cf. Cassirer, 2001CASSIRER, E. “A Filosofa das formas simbólicas”. Trad. M. Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) nem como manifestação do espírito, uma obra de arte não supera nem é superada, seja no sentido de uma aproximação assintótica da liberdade, seja no de uma marcha absoluta na consciência da liberdade. Ao contrário, ela se assemelha muito mais a um martelar incessante sempre o mesmo ferro, um destino de renovação da liberdade, um destino como o de Sísifo.

O fundamental, aqui, para dar uma breve continuidade à discussão, são duas distintas concepções do homem original. Para Hegel, o homem encontra-se primeiramente livre, embora no abstrato; por isso, precisa alienar-se ou lançar-se numa realidade estranha para voltar a si na forma de liberdade efetiva. Assim como a criança se alegra de ver o efeito que ela causa quando atira uma pedra no lago, assim também a obra de arte é expressão do homem abstratamente livre que, depois de estranhar-se, sacrificando sua liberdade, recebe-a de volta de modo efetivo. Para Heidegger, o homem é originariamente preguiçoso, acomodado à impropriedade, ainda que esta inclua as grandes produções do espírito.13 13 E, poderíamos dizer, principalmente porque esta inclui as grandes produções do espírito, pois, como já se destacava em “Ser e Tempo”: “Cotidianidade não coincide com primitividade. Cotidianidade é, antes, um modo de ser do Dasein também, e precisamente, quando o Dasein se move numa cultura altamente desenvolvida e diferenciada” (SuZ, §11, pp. 50-51). Ele se encontra de antemão alienado de si, imerso na familiaridade das coisas e, em vez de estranhar-se para conquistar a liberdade, precisa lembrar que é um estranho, para conquistar familiaridade consigo mesmo. Nisto ele não se “supera”, mas cumpre um destino.14 14 Werle (2005, p. 40) atinge o cerne da questão, quando diz: “No início de sua existência (histórica e temporal) ele não está em casa, com sua origem, mas encontra-se exilado de si mesmo. A familiaridade, como essência da proximidade, deve ser conquistada a partir dessa distância em relação a si e às coisas, tem de ser arrancada do estranhamento, porém não no sentido de uma “superação”, mas como cultivo e distorção”. Nesse sentido, a poesia será sempre uma rememoração da estranheza, e não uma superação dela. É justamente por não haver lógica, nesse processo, que não há superação, mas cultivo insistente da questão (estranheza) do ser a partir da poética, que também constitui a essência da linguagem.15 15 Nisso, vale ressaltar, Heidegger se aproximaria de Adorno. O princípio paradoxal da forma artística como negação da síntese estética é, ao seu modo, o reiterar incessante de uma antinomia entre subjetivação e reificação. Cf. Wellmer (1985, p. 18).

Porém, é precisamente aqui que começam a aparecer problemas estruturais na concepção heideggeriana de linguagem e poesia. A abertura – ou o não-essencialismo – do uso linguístico, entendida como o excesso de singularidade em relação à universalidade da regra, pode ser pensada de duas maneiras: como função poética da linguagem, inevitável em todo uso linguístico, até mesmo o mais corriqueiro, ou como fato transcendental da abertura linguística do mundo, que Heidegger associa a um conceito temporalizado de verdade. O modo como ele concebe essa abertura leva ao problema oposto: a recusa intransigente de toda universalidade, da qual depende o discurso. Não basta que se diga que a verdade acontece na obra de arte, é preciso apontar obras, ou poetas, em que esse acontecimento, novamente com o perdão da redundância, de fato acontece. Hölderlin assumirá explicitamente esse papel. No entanto, gostaríamos de analisar o problema à luz da relação entre as noções de mundo e ente intramundano, que também se deixa entrever na diferença de simetria entre os dois exemplos que Heidegger elege em “A origem da obra de arte”, a saber, os sapatos de Van Gogh e o templo grego de Paestum. Esses exemplos são ainda interessantes por, à primeira vista, não parecerem ligados à questão da linguagem.

2. A obra de arte como abertura de mundo e como ente intramundano

O acontecimento instaura o ser num ente. Já esta forma de caracterização contém uma distinção, a própria diferença ontológica, difícil de equilibrar num procedimento de análise. Mas, é por esse caminho, também, que o pensamento do ser reconhece sua humilde dependência em relação ao ente. Embora em “Ser e Tempo” Heidegger, obviamente, já tivesse para si que “o ser é sempre ser de um ente”, sua analítica existencial parte da demonstração do primado ontológico da questão do ser (cf. SuZ, §3, p. 9). Mas é no Posfácio tardio, de 1943, ao texto “O que é Metafísica? (1929)”, que ele o formula de maneira ainda mais contundente:

Com demasiada pressa renunciamos ao pensamento quando fazemos passar, numa explicação superficial, o nada pelo puramente nadificador e o igualamos ao que não tem substância. Em vez de cedermos a esta pressa de uma perspicácia vazia e sacrificarmos a enigmática multivocidade do nada, devemos armar-nos com a disposição única de experimentarmos no nada a amplidão daquilo que garante a todo ente (a possibilidade de) ser. Isto é o próprio ser. Sem o ser, cuja essência abissal, mas ainda não desenvolvida, o nada nos envia na angústia essencial, todo ente permaneceria na indigência do ser. Mas mesmo esta indigência do ser, enquanto abandono do ser, não é, por sua vez, um nada nadificador, se é que à verdade do ser pertence o fato de que o ser nunca se manifesta (west) sem o ente, de que jamais o ente é sem o ser (Heidegger, [1943] 1976cHEIDEGGER, M. “Nachwort zu »Was ist Metaphysik?«”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976c. (1ª publicação: 1943), p. 306).16 16 Utilizo aqui a tradução de Ernildo Stein (Heidegger, 1996, p. 69).

Sem o ente, o ser é indigente, não encontra repouso, mas não é por isso um nada nadificador. O nada qualificado, como indigência do ser, é remetido, na angústia, sempre ao ser-si-mesmo ou ser-próprio do Dasein, para falar na linguagem de “Ser e Tempo”, mas aí a essência do ser ainda não está “desenvolvida”. Esse desenvolvimento, porém, não será lógico, pois “o absolutamente outro com relação ao ente é o não-ente. Mas este se desdobra (west) como ser” (Heidegger, [1943] 1976cHEIDEGGER, M. “Nachwort zu »Was ist Metaphysik?«”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976c. (1ª publicação: 1943), p. 306). Aqui, pode-se verificar uma curiosa contradição. O ser nunca se dá sem o ente, mas ele se dá no não-ente. Isso significa que o não-ente é; mas, para isso, ele tem de ser também um ente. Heidegger não procura uma solução semelhante à da dialética, não segue pelo caminho de uma lógica das determinações do vir-a-ser do ser no ente. O acontecimento quer tomar a forma de um vir-a-ser sem lógica, no qual ser e nada não pertencem mutuamente ao mesmo desenvolvimento, mas no qual o nada oferece, antes, a condição existencial, na angústia, a partir da qual o ser, indigente, encontra morada no ente, e este no ser.

Em seu exemplar de mão, Heidegger chega mesmo a tentar uma caracterização do ser anterior ao ente, em toda sua indigência e, para isso, recorre a uma série de expedientes gráficos e frasais difíceis de determinar, além do recurso de grafar ‘Sein’ com ípsilon: “Na verdade do Ser [Sein] se manifesta o ser [Seyn] enquanto essência da diferença; este ser enquanto ser é o acontecimento antes da diferença e, portanto, sem o ente” (Heidegger, [1943] 1976cHEIDEGGER, M. “Nachwort zu »Was ist Metaphysik?«”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976c. (1ª publicação: 1943), p. 306). O risco é do original,17 17 „In der Wahrheit des Seins west das Seyn qua Wesen der Diferenz; dieses Seyn qua Seyn ist vor der Diferenz das Ereignis und deshallb ohne Seiendes“. e ele contém o pensamento, tão difícil quanto inexprimível, de que o ser enquanto ser se manifesta antes de toda diferença ontológica e relação com o ente, e também com a linguagem. Porém, um se manifesta no outro. Julgamos, neste momento, oportunas as seguintes palavras de Adorno:

A dialética entre ser e ente, o fato de nenhum ser poder ser pensado sem o ente e nenhum ente sem mediação, encontra-se reprimida por Heidegger: os momentos que não são sem que um seja mediado pelo outro são para ele o uno sem mediação, e esse uno é o ser positivo. Mas o cálculo não fecha. A relação de débito entre as categorias é impugnada. Arrancado a fórceps, o ente retorna: o ser purificado do ente só permanece fenômeno originário enquanto possui em si uma vez mais o ente que exclui. Heidegger resolve esse problema com uma jogada de mestre estratégica; essa é a matriz de todo o seu pensamento. Com o termo “diferença ontológica”, sua filosofia toca até o momento indissolúvel do ente (Adorno, 2009ADORNO, Th. W. “Dialética negativa”. Trad. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009., p. 104).

Diante dessas dificuldades, e com o objetivo de retornar à questão da obra de arte, perguntamos: será que este acontecer do ser no ente, na perspectiva de “Ser e Tempo”, não se deixaria compreender como uma tendência de queda, do mundo em direção ao intramundano? Para recordarmos, “mundo” refere-se ao fenômeno da unidade prévia entre o Dasein, envolvido em seus projetos, e os entes intramundanos que lhe vêm ao encontro e que ele pode compreender como entes que se referem uns aos outros a partir dessa totalidade significativa. Como se sabe, o fenômeno pelo qual Heidegger analisa esta noção é a ocupação e, a partir dela, o ente que primeiro nos vem ao encontro na ocupação: o utensílio. Do ponto de vista da linguagem, o fenômeno do mundo culmina na análise da conjuntura ou significância [Bedeutsamkeit] (cf. SuZ, §18). O importante, para nós, é que, além de ressaltar a polissemia da palavra “mundo”, que pode se referir tanto à totalidade dos entes quanto à região em que se dá o encontro com entes afins entre si, como, por exemplo, “a região dos objetos possíveis da matemática”, Heidegger conclui que a “própria mundanidade pode modificar-se e transformar-se, cada vez, no conjunto de estruturas de “mundos” particulares, embora inclua em si o a priori da mundanidade em geral” (SuZ, §14, p. 65). Otto Pöggeler (1963, p. 209)PÖGGELER, O. “Der Denkweg Martin Heideggers”. Tübingen: Neske, 1963. resume da seguinte maneira a questão que gostaríamos de levantar, e que logo em seguida toma forma na passagem de Heidegger para uma determinada concepção da obra de arte:

Já que a própria ‘mundanidade’ do mundo, porém, é liberada como um nada, no uso do conceito de mundo se faz valer a tendência de queda, de entender o mundo a partir do intramundano: nos conceitos de história mundial (SuZ, 389, 381) e tempo do mundo (422), a ênfase cai sobre o intramundano.18 18 Pöggeler demonstra com perspicácia como a analítica do utensílio não dá o mundo [Welt] em sua mundanidade, mas apenas as conexões de sentido proporcionadas pela instrumentalidade no mundo circundante [Umwelt]. Assim, a foresta é lenha, a montanha é pedreira, etc. O mundo em sua nudez, porém, é um motivo antimetafísico, “que deixa ser o Ser mesmo em seu Nada indisponível”.

No opúsculo sobre a origem da obra de arte, Heidegger analisa dois exemplos, mas atribui a função de abrir um mundo mais enfaticamente a apenas um deles. Sobre os sapatos de Van Gogh, interpretados por Heidegger como pertencendo à camponesa, ele diz:

O que acontece aqui? O que na obra está em obra? A pintura de Van Gogh é o abrir-se [Eröfinung] daquilo que o utensílio, o par de sapatos camponês, na verdade é. Esse ente emerge para o desocultamento [Unverborgenheit] de seu ser. Ao desocultamento do ente os gregos denominavam αλήθεια. Nós dizemos verdade [Wahrheit] e pensamos muito pouco com essa palavra. Na obra, se aqui acontece um abrir-se do ente naquilo que ele é e como é, está em obra um acontecer [Geschehen] da verdade (Heidegger, [1935] 1976aHEIDEGGER, M. “Der Ursprung des Kunstwerks”. In: Gesamtausgabe Bd. 5. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976a. (1ª publicação: 1935), p. 21).19 19 Na tradução de alguns trechos do opúsculo, foram-nos de grande utilidade excelentes versões disponíveis em português, como a de Maria José Campos (Heidegger, 1992) e Laura de Borba Moosburger (2007).

Aqui, poderíamos admitir, ocorre um abrir-se do ente em seu mundo, isto é, como pertencendo a um mundo, no contexto de significância, na conjuntura de ocupação da camponesa, que o quadro de Van Gogh traz à tona. Nesse sentido, pode-se dizer que ele abre um mundo, na medida em que o torna manifesto, desoculto. A questão, entretanto, reside no tipo especial de ente que é a obra de arte: um ente que coloca o ente em geral na dimensão do aberto, na medida em que “ilumina a abertura do aberto [die Offenheit des Offenen], no qual ele emerge” (Heidegger, [1935] 1976aHEIDEGGER, M. “Der Ursprung des Kunstwerks”. In: Gesamtausgabe Bd. 5. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976a. (1ª publicação: 1935), p. 50).20 20 Em “Da essência da verdade”, o aberto de um âmbito [Ofenen eines Bezirks], e não sua abertura [Ofenheit], é destacado como horizonte no qual se dá o encontro com o ente, e que é assumido por este como campo de relação [Bezugsbereich], dentro do qual o ente se torna dizível (cf. Heidegger, [1949] 1976d, p. 184). Não deixa de ser uma decadência ou, melhor dizendo, um empréstimo. Como o ser não se dá fora do ente, ele toma emprestado ao ente que é a obra de arte o seu caráter aberto, e assim pode vir-a-ser no ente e manter, mesmo assim, o seu caráter de abertura, que não é a mera abertura vazia do nada, mas a abertura de um ente que, sendo, deixa o ser acontecer enquanto tal.21 21 Numa outra formulação, em que fica clara a relação com o conceito de mundo: “Somente a liberdade pode deixar ao Dasein um mundo imperar e mundar [walten und welten]” (Heidegger, [1929] 1976e, p. 164). A esta caracterização da verdade como “deixar ser o ente” se liga a reconhecida tese de Heidegger de que “a essência da verdade é a liberdade” (Heidegger, [1949] 1976dHEIDEGGER, M. “Vom Wesen der Wahrheit”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976d. (1ª publicação: 1949), p. 186). A obra de arte é o ente que deixa ser negando-se como ente. Sendo, a pintura de Van Gogh é tanto mais quanto o ser dos sapatos (por meio dela) a suplanta. A essência da obra de arte, segundo o exemplo do quadro de Van Gogh, seria, então, esta: pôr em obra a verdade do ente, o seu ser. Porém, prossegue Heidegger, o exemplo se presta a mal-entendidos, pois se poderia pensar que o êxito do pintor estaria numa certa concordância com um ente isolado, ou na beleza da representação, etc. Tal “mal-entendido”, entretanto, não deixa de levantar uma importante questão: era possível que os sapatos de Van Gogh abrissem o mundo da camponesa e deixassem ser os entes ali presentes, ainda que não um ente isolado, se não fosse certa capacidade artística do pintor, isto é, se não fosse, de algum modo, o valor técnico e estético da obra? E não somente isso, mas também a capacidade de trazer para a dimensão do aberto o ente que é o sapato como utensílio em seu mundo e, nesse sentido, o quadro como forma simbólica? Nisto já está em jogo o caráter ambíguo deste ente que é a obra de arte, mas não em toda a sua clareza, que só se mostra no segundo exemplo:

Aonde [Wohin] pertence uma obra? A obra pertence como obra somente ao âmbito que é aberto por ela mesma. Pois o ser-obra da obra se manifesta [west] e somente se manifesta em tal abrir-se. Dissemos que na obra está em obra o acontecimento da verdade. A alusão ao quadro de Van Gogh tentou designar esse acontecimento. Em vista disso surgiu a pergunta pelo que seja a verdade e como a verdade pode acontecer. Nós questionamos agora a questão da verdade tendo em vista a obra. Todavia, para nos familiarizarmos mais com o que está em questão, é necessário tornar mais uma vez visível o acontecimento da verdade na obra. Para essa tentativa, seja escolhida intencionalmente uma obra que não possa ser contada entre obras da arte figurativa [darstellenden Kunst]. Uma obra arquitetônica, um templo grego, não figura nada. Está simplesmente aí, em meio ao vale de rochedos escarpados (Heidegger, [1935] 1976aHEIDEGGER, M. “Der Ursprung des Kunstwerks”. In: Gesamtausgabe Bd. 5. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976a. (1ª publicação: 1935), p. 27).

A diferença ou, melhor dizendo, a dissimetria entre os dois exemplos está em que o templo grego, mais claramente do que o quadro, não põe em obra a verdade de um ente na medida em que este pertence a um mundo, isto é, abre o ente no seu contexto de referência, mas sim no fato de que o próprio templo:

[...] primeiramente junta e reúne em torno de si ao mesmo tempo a unidade daquelas vias e relações, nas quais nascimento e morte, desgraça e bênção, vitória e humilhação, prosperidade e decadência – ganham para o ser humano a figura do seu destino. A amplitude dominante dessas referências abertas é o mundo desse povo historial (Heidegger, 1976aHEIDEGGER, M. “Der Ursprung des Kunstwerks”. In: Gesamtausgabe Bd. 5. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976a. (1ª publicação: 1935), pp. 27-28).

É nos marcos estabelecidos pelo templo grego que todo ente vem ao encontro como pertencente àquele mundo. O ente entra no mundo [Welteingang] aberto pelo templo, adquirindo o status de ente intramundano. O templo mesmo, porém, ao abrir o mundo, se fecha. Ele não se deixa encontrar como algo, por sua vez, dentro do mundo por ele mesmo aberto.22 22 A seguinte passagem de Habermas (1999, p. 31), guardadas as devidas diferenças, ilustra bem o problema que parece se levantar aqui: “Se compreendemos as estruturas do mundo da vida que possibilitam o conhecimento de alguma coisa no mundo objetivo como algo que, por sua vez, se encontra no mundo, enredamo-nos nas conhecidas aporias da “coisa em si”.” Mas a verdade é que ele se deixa ver, o próprio Heidegger o reconhece, “como obra”, afinal: “A obra pertence como obra somente ao âmbito que é aberto por ela mesma”. Mas não é exatamente este ente em particular, a obra de arte, que interessa a uma filosofia da arte? Este ente que encontramos dentro de um mundo, ainda que seja por ele mesmo aberto, como encontramos também o templo como um ente dentro do mundo? Dito de forma mais direta, ainda que a época daquelas vias e relações não mais exista, pode-se até hoje visitar as ruínas do templo no sítio arqueológico de Paestum, próximo a Salerno, na região da Campânia, sul da Itália; e lá ainda hoje o encontramos “simplesmente aí”, em meio ao mesmo vale e aos mesmos rochedos escarpados. E não é a partir deste ente específico que Heidegger investiga o fenômeno do acontecimento em geral?

No sentido, contudo, que Heidegger pretende dar ao templo, diferentemente do que ocorre ao quadro de Van Gogh, a obra de arte não deveria participar do complexo de referências [Bedeutsamkeitsbezügen] que dá sentido à ocupação. Pelo contrário, ela abre um mundo no qual é possível se ocupar. Ela não se refere, sendo assim, a outro ente, mas apenas a si mesma.23 23 Poderíamos reportar esta descrição à clarificação da mesmidade [Selbstheit] através do “caráter de acontecimento de um mesmo” [Geschehenscharakters eines Selbst], em “Da Essência do Fundamento”. Esta mesmidade residiria na transcendência, enquanto “relação originária da liberdade para com o fundamento, (que) nós denominamos o fundar” (Heidegger, [1929] 1976e, pp. 164-165). O templo não teria só um caráter não-figurativo, mas também, ao que parece, um aspecto não-linguístico – no sentido de condição do linguístico – ou, se pretendemos que o modo de exposição de Heidegger é bem-sucedido, compreendemos assim o que exatamente ele tem em vista, a saber, que o linguístico só pode ser compreendido pela essência do poético, e não o contrário.

Ainda em “Ser e Tempo”, Heidegger reconhecia que o caráter de totalidade referencial [Verweisungsganzheit] do utensílio na compreensão do ente intramundano deveria ser aprofundado a partir do fenômeno da própria referência, precisamente numa análise ontológica do utensílio que se pode encontrar no “utensílio” privilegiado que são os sinais. Esta análise resulta na distinção entre referência ôntica, por exemplo, a referência do martelo à sua serventia, e referência ontológica, isto é, a referência enquanto sinal, que, por ser ontológica, pode ocorrer de muitas maneiras, como anúncio, prenúncio, vestígio, marca, etc. “Ambas se identificam tão pouco que apenas em sua unidade possibilitam a concreção de um determinado tipo de utensílio” (SuZ, §17, pp. 78-79). Porém, ao separar aquilo que ocorre em conjunto, Heidegger depara, na caracterização do sinal, com um problema análogo ao da obra de arte:

O sinal é um ente onticamente à mão que, enquanto esse utensílio determinado, desempenha ao mesmo tempo a função de algo que indica a estrutura ontológica da manualidade, totalidade referencial e mundanidade. Nisto está enraizado o privilégio desse manual no interior do mundo circundante ocupado pela circunvisão. Se a própria referência deve ser, portanto, do ponto de vista ontológico, fundamento do sinal, ela mesma não pode ser concebida como sinal (SuZ, §17, pp. 82-83, em itálico no original).

Como utensílio peculiar, o sinal – por exemplo, uma placa de trânsito – indica ontologicamente a manualidade e a mundanidade em geral de todo utensílio, mas é ao mesmo tempo ele mesmo, do ponto de vista ôntico, um manual e um ente intramundano, mas como manual privilegiado e como ente que vem ao encontro, na ocupação, em primeiro lugar. A análise fenomenológica da conjuntura de significado ou “Bedeutsamkeit”, portanto, deveria levar apenas à conclusão de que existem intelecções de significado mesmo na ausência de um “ente” ou “essência” a ser significada; em virtude do complexo de referências ou, poderíamos dizer com Wittgenstein, devido à função que o significado cumpre no jogo. Se o jogo funciona bem assim, a pergunta pela essência é descabida ou desimportante. Mas aqui os dois filósofos se separam radicalmente. Permita-nos o leitor também esta breve digressão, porque instrutiva. Ambos desacreditam um fundamento último. Mas Heidegger acredita numa indagação última: por que afinal o ser e não o nada? Em “Sobre a certeza”, fica claro que Wittgenstein (2008)WITTGENSTEIN, L. “Über Gewissheit – On Certainty”. Oxford: Blackwell Publishing, 2008. não admite uma indagação última, assim como uma dúvida radical, pois a certeza é condição de toda dúvida. Não há distinção enfática entre o linguístico e o poético. Mas Heidegger quer pensar este acontecer fundador, que funda a significância sem participar dela, isto é, o poético na origem do linguístico. Poderíamos pensar que isso é impossível ou que leva a sérios problemas conceituais. Mas, numa leitura mais caridosa, poderíamos dizer que o filósofo, mesmo assim, não pode deixar de pensar o que interpela a pensar.24 24 Para Cristina Lafont, como dissemos no início deste trabalho, este é um problema “estrutural” da análise heideggeriana da linguagem. Nossa tentativa de mostrar que ele aparece, de maneira análoga, na filosofia heideggeriana da arte corroboraria esta tese (cf. Lafont, 1994, p. 94 et seq.).

Com efeito, se o ser é sempre ser de um ente que se dá no interior de um mundo, sendo o acontecimento do ser enquanto tal simultâneo ou co-originário à abertura de um mundo, podemos dizer que a pergunta pelo ser torna-se, então, a pergunta pelo mundo, supra-horizonte no qual se responde à interpelação do ser dos entes. Porém, o mundo mesmo nunca é, ele “munda”,25 25 “Welt ist nie, sondern weltet” (Heidegger, [1929] 1976e, p. 164). do contrário o fenômeno da mundanidade seria indistinguível do fenômeno do ser. Somos levados, então, a admitir que o acontecimento da verdade, ou a abertura de mundo, na obra de arte, é “pré-ontológico” ou “ontológico em sentido lato” (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), p. 132). Heidegger tentará compreender este fenômeno a partir do entrelaçamento mútuo entre verdade, fundamento e diferença ontológica. Ou, como ele mesmo diz a propósito de onde se oculta o problema ontológico em Kant: o problema “da conexão essencial de ser, verdade e fundamento” (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), p. 136). A pergunta pelo mundo, portanto, acaba conduzindo a outros fenômenos que não se reduzem a ele: ser, verdade e fundamento. Ou, analogamente, o não se reduz ao ser, mas juntos eles compõem uma “constituição originariamente unida”. O tipo de “referência” implícito no conceito de abertura de mundo – da obra de arte ou do sinal –, ontológico em sentido lato, juntamente com a identidade pessoal do ser-aí, estaria, por sua vez, fundado na referência recíproca entre os modos de fundar, sem que seja possível esclarecer em que sentido ocorre tal “referência” que, na verdade, só é possível pela liberdade:26 26 “Subsiste aqui apenas ainda uma comunidade artificial forçada e lúdica do fraseado? Ou são os três modos de fundar, contudo, ainda idênticos numa perspectiva – embora isto seja diferente em cada caso? Esta pergunta deve ser realmente respondida de modo afirmativo. Porém, a clarificação do significado segundo o qual os três modos inseparáveis de fundar se correspondem unitariamente e, no entanto, dispersos, não se deixa conduzir no ‘nível’ da presente consideração” (Heidegger, [1929] 1976e, p. 171).

E esta abismalidade [Abgründigkeit] do Dasein não é, por sua vez, nada que se abrisse para uma dialética ou uma dissecção psicológica. O ir-se do abismo na transcendência fundante é muito antes o movimento primordial, que a liberdade executa conosco mesmo, “dando-nos a entender” com isto, isto é, antecipando-nos como originário conteúdo de mundo, que este, quanto mais originariamente é fundado, com tanto mais simplicidade atinge o coração do ser-aí, sua mesmidade [Selbstheit] no agir. A não-essência do fundamento é, portanto, unicamente “superada” no existir fático, mas nunca eliminada. (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), p. 174).

A não-essência do fundamento nunca pode ser eliminada, assim como, recordemos, a não-essência da língua, sua tendência à queda. Estas não podem ser superadas, mas apenas insistentemente recuperadas no existir fático, no exercício da liberdade, a liberdade para o fundamento, que constantemente luta, da mesma maneira, pela identidade do ser-aí consigo mesmo, somente no agir. Nesse sentido, também a obra de arte pertenceria ao abismo da liberdade, sem qualquer outra relação de significação.

Sendo assim, esta referência, ou melhor, este tipo de referência que é condição de toda referência em geral, a saber, o poético, parece tautológico.27 27 Como já havia suspeitado o jovem Adorno, no início dos anos 1930, quando formulou sua crítica ao que chamou de “momento de tautologia” em “Ser e Tempo”, no qual, segundo ele, “nada é colocado senão algumas qualidades-de-ser observadas junto ao Dasein, abstraídas do ente, transportadas ao âmbito da ontologia e convertidas em determinação ontológica, cuja interpretação deveria contribuir para a explicação daquilo que, na realidade, só é dito mais uma vez” (Adorno, 2003, p. 351). Ele se dá, juntamente com a identidade abissal do próprio ser-aí, apenas na conexão entre mundo, verdade e fundamento, sem que um fenômeno se reduza ao outro, e na qual apenas se repete a não-essência do fundamento. O poético, como essência do fundamento, é “transcendência fundante”, ou movimento primordial da liberdade. Por fim, ao ente ambíguo sobre o qual incide a pergunta pelo mundo, isto é, não pelo ser deste ou daquele ente, mas pelo ente em sua totalidade, corresponde um pensamento igualmente ambíguo:

Pelo fato de a plena essência da verdade incluir sua não-essência e antes imperar sobre tudo como dissimulação, a filosofia, enquanto pergunta por esta verdade, é em si ambivalente [zwiespältig]. Seu pensar é a serenidade da mansidão, que não se recusa ao velamento do ente em sua totalidade. Seu pensar é, especialmente, a decisão [Ent-schlossenheit] pelo rigor, que não rompe o velamento, mas que compele sua essência intacta para o aberto da compreensão [Offene des Begreifens] e, assim, para sua própria verdade (Heidegger, [1949] 1976dHEIDEGGER, M. “Vom Wesen der Wahrheit”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976d. (1ª publicação: 1949), p. 199).

Esta manobra é realmente interessante. Tudo leva a crer que uma espécie de tautologia envolve aqui a inteira tentativa de pensar a essência do desvelamento sem romper o velamento inerente ao fenômeno, o que, por sua vez, só pode ser feito por um dizer-pensante que decide guardar rigorosamente em si esse caráter mesmo, ou essência, do que é pensado. É como se todas as dificuldades de pensar o problema colocado fossem transferidas para a própria natureza do pensar e reiteradas como decisão e rigor. O filósofo deve se manter neste difícil equilíbrio, sem romper o velamento e sem desistir de compreendê-lo. O pensamento filosófico, enquanto aberto, compele a abertura de mundo para sua forma aberta, e contudo rigorosa, de perquirição, e assim resguarda a verdade da não-essência da verdade: o velamento. Sua contradição, entretanto, está em pensar o ser dos entes a partir do ente em sua totalidade, por conseguinte, a partir do ser de um “ente” que abre o mundo: “uma pergunta que não se atém unicamente ao ente, mas também não admite nenhum poder exterior” (Heidegger, [1949] 1976dHEIDEGGER, M. “Vom Wesen der Wahrheit”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976d. (1ª publicação: 1949), p. 199). A tarefa de pensar o ente na sua totalidade (mundo) a partir de um ente peculiar (a obra de arte) que abre o mundo se torna, então, um problema difícil de explicitar, destinado a refetir tão somente a natureza aberta do acontecimento e, por último, do próprio pensar; este, por sua vez, torna-se não mais que um exercício de dizer-pensante, o qual também reitera, a cada vez, a essência contra a não-essência do pensar. O pensamento é interpelado pelo ser a pensar esta questão para além do linguístico, ali onde ele encontra o poético. Mas, aqui, como o próprio Heidegger reconheceria noutra ocasião, “com suficiente frequência mostrou-se-nos [...] a dificuldade a que segue exposto o dizer pensante [denkende Sagen]” (Heidegger, [1957] 1976bHEIDEGGER, M. “Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik”. In: Gesamtausgabe Bd.11, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976b. (1ª publicação: 1957), pp. 78-79).

Conclusão

No curso de nossa investigação, colocamos o problema da tentativa de Heidegger de caracterizar a obra de arte, essencialmente, como acontecimento. Essa noção expressa, por parte do filósofo, uma recusa do conceito de cultura, seja ele entendido como valor (estético), seja como fenômeno do espírito. Isso nos conduziu a uma tomada de consciência, por assim dizer, da radicalidade do fenômeno para o qual Heidegger gostaria de apontar. Ao mesmo tempo, mostramos a conexão que este fenômeno, o acontecimento, tem com outros fenômenos já trabalhados no livro mais conhecido de Heidegger, “Ser e Tempo”, no qual as noções de mundo e ente intramundano são desenvolvidas em diferentes aspectos. Submetida a uma investigação quanto aos problemas estruturais encontrados nesse livro, a caracterização da obra de arte como acontecimento se revela problemática nos seguintes sentidos.

Em primeiro lugar, a obra de arte como abertura de mundo é um fenômeno que deveria aclarar a totalidade do ente como tal, mas só pode fazê-lo a partir de um ente específico, incorrendo assim em uma espécie de aporia. A obra de arte pertence como obra somente ao âmbito que é aberto por ela mesma. Em segundo lugar, ela não deveria participar do complexo referencial aberto por ela mesma, embora, dessa forma, inviabilize sua própria caracterização, uma vez que cai fora do âmbito da linguagem e do sentido. Em terceiro lugar, essas dificuldades são, aparentemente, positivamente valorizadas como indicando algo de essencial a ser reiteradamente preservado contra uma tendência de decadência nas abordagens que perdem de vista essas próprias dificuldades como indicando algo de essencial, o que descrevemos como sendo um aspecto de tautologia na filosofia de Heidegger, e em particular em sua filosofia da arte. A filosofia se reduziria, assim, a um exercício de pastoreio, de cuidado de um problema. Por fim, e em quarto lugar, talvez esta seja uma filosofia da arte que, por hipostasiar uma única função dela, a de abrir um mundo, deixa à margem outras funções ligadas à obra de arte como ente intramundano, tal como a função expressiva, na qual reside seu valor especificamente estético, da mesma maneira que a hipóstase da função de abrir o mundo da linguagem pode inviabilizar outras funções da linguagem, como a de designar objetos ou comunicar pensamentos. Aparentemente, a capacidade de abrir um mundo, pelo menos do modo como Heidegger a concebe, só permitiria uma única atitude diante da obra, a de ser transferido como propriedade para seu campo de poder, sem possibilidade de interpretação, julgamento e crítica, atitudes que dificilmente poderiam cair fora da consideração de uma filosofia da arte. Em contrapartida, certamente, Heidegger chama-nos a atenção para os perigos também de uma absolutização da função estética ou expressiva da arte, a que outras filosofias estão suscetíveis.

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    Também nesse período, estendido à década de 1940, se dá o encontro com Hölderlin, que Werle (2005, pp. 17-18)WERLE, M. “Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heidegger”. São Paulo: Unesp, 2005. distingue do período posterior a 1950 e que ele coloca sob a rubrica de “clareira do ser”, em que Heidegger teria se dedicado mais à questão da essência da linguagem do que da poesia. À página 46, ele escreve: “Desse modo, a publicação do volume sobre a Ereignis confrma que a famosa virada [Kehre] já estava em curso bem antes do surgimento da ‘Carta sobre o Humanismo’,” à qual está geralmente associada, acrescentaríamos. Temos, portanto, bastantes motivos para nos preocupar menos com os detalhes exegéticos do itinerário intelectual de Heidegger e mais com uma determinada continuidade da concepção heideggeriana de linguagem e poesia que se concentra na função de abrir o mundo, como veremos a seguir. Na mesma direção também pensa Lafont (1994, p. 23)LAFONT, C. “Sprache und Welterschlieβung. Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994.: “a continuidade das premissas fundamentais do desenvolvimento da concepção de Heidegger, que é levantada em todas as fases do seu trabalho (também divergentes sob outros aspectos) parte, com especial clareza, da concepção de ‘verdade’ como ‘desocultamento’ [Unverborgenheit], que já é assumida em Ser e Tempo com a equivalência entre verdade e ‘abertura do ser-aí’ [Erschlossenheit des Daseins], e depois da ‘virada’ sob o nome de ‘clareira do Ser’ [Lichtung des Seins] se mantém, do ponto de vista da concepção, inalterada.” As traduções das obras referidas neste artigo, quando não indicadas, são de nossa responsabilidade.
  • 2
    Sobre a etimologia do verbo ‘poetar’ [dichten] enquanto ‘condensar’, cf. Deutsches Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm, 1971“Deutsches Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm”. 16 Bde. in 32 Teilbänden. Leipzig, 1971 [Online]. Disponível em http://woerterbuchnetz.de/cgi-bin/WBNetz/genFOplus.tcl?sigle=DWB&lemid=GD01827. (Acessado em 13 de junho de 2020.
    http://woerterbuchnetz.de/cgi-bin/WBNetz...
    .
  • 3
    Em Heidegger, a palavra “essência” [das Wesen], como sabemos, tem o significado especial e temporalizado do sentido de ser vinculante, precisamente oposto ao essencialismo da metafísica.
  • 4
    É incontável a quantidade de pensadores que se apropriaram da noção heideggeriana de acontecimento e a desenvolveram em alguma direção própria: Foucault, Derrida, Deleuze, Vattimo, Caputo, Žižek, etc.
  • 5
    “...dem Er-eignis übereignet zu werden”. No radical ‘–eignen’ ressoa o caráter de pertencimento do Dasein ao Ser, explícito nesta passagem de O Princípio da Identidade: “No homem impera um pertencer ao ser; tal pertencer escuta o ser, porque é transferido [übereignet] para este.” Em nota ao seu exemplar de mão, Heidegger esclarece o sentido de übereignet – transferido, entregue como propriedade – enquanto “vereignet in das Ereignis” (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. “Der Satz der Indentität”. In: Gesamtausgabe B.11. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2006. (1ª publicação: 1957), p. 39).
  • 6
    O termo “disposição” também é frequentemente usado como tradução de “Stimmung”. Na tradução brasileira de Márcia de Sá Cavalcante, foi vertido por “humor” (cf. Heidegger, 1999HEIDEGGER, M. “Ser e Tempo”. Trad. M. S. Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1999. (1ª publicação: 1927)).
  • 7
    Cumpre notar que, como exemplo deste dizer-pensante filosófico, Heidegger não menciona um tratado ou uma obra de filosofia, mas uma “aula”, onde se pode reparar “de quê e para quem realmente se fala”.
  • 8
    Naturalmente, esse tema deriva da caracterização de Hölderlin da língua como “o mais perigoso de todos os bens”.
  • 9
    Em “Ser e Tempo”, essa constituição estava descrita como inevitabilidade da impropriedade do Dasein: “Ambos os modos de ser propriedade e impropriedade – estas expressões foram escolhidas em seu sentido terminológico rigoroso – fundam-se no fato de o ser-aí ser determinado pelo caráter de ser sempre meu. A impropriedade do ser-aí, porém, não significa “ser” menos ou um grau “inferior” de ser. Ao contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção do ser-aí em seus ofícios, estímulos, interesses e prazeres” (SuZ, §9, pp. 42-43).
  • 10
    Refro-me aqui, sobretudo, à sociologia da arte de Max Weber, profundamente neokantiana, que, refetindo a tese da autonomia do estético, percebe a discrepância, nesta esfera, entre progresso técnico e incremento de valor [Wertsteigerung]: “o emprego de uma determinada técnica, por mais ‘avançada’ que esta seja, não decide o mínimo sequer sobre o valor estético de uma obra de arte. Obras de arte realizadas com uma técnica muito ‘primitiva’ – por exemplo, pinturas sem nenhum conhecimento da perspectiva – podem ser absolutamente da mesma qualidade que as obras mais acabadas, executadas à base de uma técnica racional, com a condição de que a vontade artística se restrinja às formas que sejam adequadas com a técnica primitiva. A criação de novos meios técnicos apenas significa, primeiramente, aumento de diferenciação, e oferece apenas a possibilidade de uma crescente ‘riqueza’ da arte no sentido de incremento de valor. Na verdade, não raramente se deu o efeito inverso, o de um ‘empobrecimento’ do sentimento da forma” (Weber apud Habermas, 1981HABERMAS, J. “Theorie des kommunikativen Handelns”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, B. I, 1981., p. 251). Sobre a abordagem neokantiana da estética, especialmente os conceitos de valor e validade aplicados à esfera da arte, cf. Grupillo (2019)GRUPILLO, A. “‘O’ problema da estética: uma reflexão a partir do problema do conhecimento”. Revista Portuguesa de Filosofa, 75, Nr. 4, 2019, pp. 2303–28. Disponível em https://doi.org/10.17990/RPF/2019_75_4_2303.
    https://doi.org/10.17990/RPF/2019_75_4_2...
    .
  • 11
    Na verdade, trata-se da frase de Schiller “do cálice desse reino dos espíritos espuma até ele sua infinitude”, com a qual Hegel encerra sua “Fenomenologia”.
  • 12
    A fonte da citação é: HEIDEGGER, M. “Kant und das Problem der Metaphysik”. In: Gesamtausgabe B.3. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1991, p. 291.
  • 13
    E, poderíamos dizer, principalmente porque esta inclui as grandes produções do espírito, pois, como já se destacava em “Ser e Tempo”: “Cotidianidade não coincide com primitividade. Cotidianidade é, antes, um modo de ser do Dasein também, e precisamente, quando o Dasein se move numa cultura altamente desenvolvida e diferenciada” (SuZ, §11, pp. 50-51).
  • 14
    Werle (2005, p. 40)WERLE, M. “Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heidegger”. São Paulo: Unesp, 2005. atinge o cerne da questão, quando diz: “No início de sua existência (histórica e temporal) ele não está em casa, com sua origem, mas encontra-se exilado de si mesmo. A familiaridade, como essência da proximidade, deve ser conquistada a partir dessa distância em relação a si e às coisas, tem de ser arrancada do estranhamento, porém não no sentido de uma “superação”, mas como cultivo e distorção”.
  • 15
    Nisso, vale ressaltar, Heidegger se aproximaria de Adorno. O princípio paradoxal da forma artística como negação da síntese estética é, ao seu modo, o reiterar incessante de uma antinomia entre subjetivação e reificação. Cf. Wellmer (1985, p. 18)WELLMER, A. “Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985..
  • 16
    Utilizo aqui a tradução de Ernildo Stein (Heidegger, 1996HEIDEGGER, M. “Que é Metafísica? Posfácio (1943)”. In: Heidegger. Trad. E. Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (1ª publicação: 1943), p. 69).
  • 17
    „In der Wahrheit des Seins west das Seyn qua Wesen der Diferenz; dieses Seyn qua Seyn ist vor der Diferenz das Ereignis und deshallb ohne Seiendes“.
  • 18
    Pöggeler demonstra com perspicácia como a analítica do utensílio não dá o mundo [Welt] em sua mundanidade, mas apenas as conexões de sentido proporcionadas pela instrumentalidade no mundo circundante [Umwelt]. Assim, a foresta é lenha, a montanha é pedreira, etc. O mundo em sua nudez, porém, é um motivo antimetafísico, “que deixa ser o Ser mesmo em seu Nada indisponível”.
  • 19
    Na tradução de alguns trechos do opúsculo, foram-nos de grande utilidade excelentes versões disponíveis em português, como a de Maria José Campos (Heidegger, 1992HEIDEGGER, M. A “Origem da Obra de Arte”. Trad. M. J. Campos. Kriterion. Revista de Filosofa. Belo Horizonte, Nr. 86, 1992. (1ª publicação: 1935)) e Laura de Borba Moosburger (2007)MOOSBURGER, L. B. ““A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger”: Tradução, Comentário e Notas”. Dissertação (Mestrado em Filosofa) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007..
  • 20
    Em “Da essência da verdade”, o aberto de um âmbito [Ofenen eines Bezirks], e não sua abertura [Ofenheit], é destacado como horizonte no qual se dá o encontro com o ente, e que é assumido por este como campo de relação [Bezugsbereich], dentro do qual o ente se torna dizível (cf. Heidegger, [1949] 1976dHEIDEGGER, M. “Vom Wesen der Wahrheit”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976d. (1ª publicação: 1949), p. 184).
  • 21
    Numa outra formulação, em que fica clara a relação com o conceito de mundo: “Somente a liberdade pode deixar ao Dasein um mundo imperar e mundar [walten und welten]” (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), p. 164).
  • 22
    A seguinte passagem de Habermas (1999, p. 31)HABERMAS, J. “Wahrheit und Rechtfertigung”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999., guardadas as devidas diferenças, ilustra bem o problema que parece se levantar aqui: “Se compreendemos as estruturas do mundo da vida que possibilitam o conhecimento de alguma coisa no mundo objetivo como algo que, por sua vez, se encontra no mundo, enredamo-nos nas conhecidas aporias da “coisa em si”.”
  • 23
    Poderíamos reportar esta descrição à clarificação da mesmidade [Selbstheit] através do “caráter de acontecimento de um mesmo” [Geschehenscharakters eines Selbst], em “Da Essência do Fundamento”. Esta mesmidade residiria na transcendência, enquanto “relação originária da liberdade para com o fundamento, (que) nós denominamos o fundar” (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), pp. 164-165).
  • 24
    Para Cristina Lafont, como dissemos no início deste trabalho, este é um problema “estrutural” da análise heideggeriana da linguagem. Nossa tentativa de mostrar que ele aparece, de maneira análoga, na filosofia heideggeriana da arte corroboraria esta tese (cf. Lafont, 1994, p. 94LAFONT, C. “Sprache und Welterschlieβung. Zur linguistischen Wende der Hermeneutik Heideggers”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. et seq.).
  • 25
    Welt ist nie, sondern weltet” (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), p. 164).
  • 26
    “Subsiste aqui apenas ainda uma comunidade artificial forçada e lúdica do fraseado? Ou são os três modos de fundar, contudo, ainda idênticos numa perspectiva – embora isto seja diferente em cada caso? Esta pergunta deve ser realmente respondida de modo afirmativo. Porém, a clarificação do significado segundo o qual os três modos inseparáveis de fundar se correspondem unitariamente e, no entanto, dispersos, não se deixa conduzir no ‘nível’ da presente consideração” (Heidegger, [1929] 1976eHEIDEGGER, M. “Vom Wesen des Grundes”. In: Gesamtausgabe Bd. 9. Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976e. (1ª publicação: 1929), p. 171).
  • 27
    Como já havia suspeitado o jovem Adorno, no início dos anos 1930, quando formulou sua crítica ao que chamou de “momento de tautologia” em “Ser e Tempo”, no qual, segundo ele, “nada é colocado senão algumas qualidades-de-ser observadas junto ao Dasein, abstraídas do ente, transportadas ao âmbito da ontologia e convertidas em determinação ontológica, cuja interpretação deveria contribuir para a explicação daquilo que, na realidade, só é dito mais uma vez” (Adorno, 2003ADORNO, Th. W. “Die Idee der Naturgeschichte”. In: Gesammelte Schriften. Bd 1. Versão digital da edição das obras completas, sob licença da editora Suhrkamp. Berlin: Directmedia, 2003 (Digitale Bibliothek Band 97). (1ª publicação: 1932), p. 351).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    25 Out 2021
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