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CORPOS QUE DISCURSIVIZAM (NA) ARTE (TELEVISIVA)

BODIES WHICH DISCURSIVIZE (IN TELEVISION) ART

CUERPOS QUE DISCURSIVIZAN (EN) ARTE (TELEVISIÓN)

Resumo

Esta investigação de base materialista pecheutiana, tecida nos enlaces discurso-arte-psicanálise, movimenta discursivamente noções lacanianas para análise de corpos-sujeitos na Minissérie Justiça (2016) que, metaforizados em/pela dor psíquica, discursivizam (na) arte em meio a relações jurídico-sociais-ideológicas na contradição de sentidos (im)possíveis para justiça. O(s) corpo(s) analítico(s) norteia(m)-se pela indagação de como os corpos-sujeitos-discursivos - constitutivos do corpus analisado -, no (processo) artístico, dizem sobre si e o outro na relação com a instituição Justiça e com a justiça como prática institucional e social de assujeitamento destes corpos. O percurso investigado visibiliza corpos que doem (em nós) e (se) fazem arte, ao funcionarem como metáforas/meta-phora (da dor psíquica) de corpos-sujeitos (real do corpo/real do sujeito).

Palavras-chave:
Corpo artístico-discursivo; Dor psíquica; (In)Justiça

Abstract

With basis on Pecheux’s materialism, woven in the links of discourse-art- psychoanalysis, this investigation discursively shifts Lacanian notions for the analysis of bodies-subjects in the miniseries Justiça (Justice - 2016). These bodies/subjects are metaphorized by/in psychic pain and they discursivize (in) art, amidst juridical-social-ideological relations in the contradiction of (im)possible senses for justice. The analytical body/bodies is/are guided by the query of how bodies-discursive-subjects, which are constitutive of the analyzed corpus in the artistic (process), say about themselves and others in the rapport with the institution Justice and with justice as an institutional and social practice of subjection of these bodies. The investigated trajectory makes visible bodies that hurt (us) and create/become art as they function as metaphors/meta-phora (of the psychic pain) of bodies-subjects (real of the body/real of the subject).

Keywords:
Artistic-discursive body; Psychic pain; (In)Justice

Resumen

Esta investigación, basada en el materialismo de Pecheux, tejida e los enlaces discurso-arte-psicoanálisis, conduce discursivamente nociones de Lacan para análisis de cuerpos-sujetos en la Miniserie Justiça (Justicia, 2016) que, metaforizados en/por el dolor psíquico, hacen discursivo (en el) arte, en medio a relaciones jurídico-sociales-ideológicas en la contradicción de sentidos (im)posibles para justicia. El (los) cuerpo(s) analítico(s) guía(m)se por la indagación de cómo los cuerpos-sujetos-discursivos - constitutivos del corpus analizado -, en el (proceso) artístico, dicen sobre si y el otro en la relación con la institución Justicia y con la justicia como práctica institucional y social de sujeción de eses cuerpos. El camino investigado hace visible cuerpos que duelen (en nosotros) y (se) hacen arte cuando funcionan como metáforas/meta-phora (del dolor psíquico) de cuerpos-sujetos (real del cuerpo/real del sujeto).

Palabras clave:
Cuerpo artístico-discursivo; Dolor psíquico; (In)Justicia

1 CORPO(RIFICAÇÃO) INICIAL

Em “O mal-estar no corpo”, capítulo do livro O corpo torturado (organizado por Ivete Keil e Marcia Tiburi), o psicanalista Mario Fleig (2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 133) afirma que “os poetas e artistas sempre se mostram sensíveis às dores, indicando que, ao invés de calar, é preciso falar e expressar e, por esse caminho, cada um pode se tornar mais humano”. Na sequência, ao se interrogar sobre “como é possível que pela dor nos tornemos mais humanos”, Fleig (2004, p. 134) conta que ficou a refletir sobre a frase “‘Não consigo não sentir dor quando vejo alguém sofrendo’”, que teria ouvido de alguém em análise, e então afirma que “entrar em contato com a dor é também entrar em contato com o outro e consigo mesmo”, pois ela “é um dos caminhos de se experimentar e se conhecer, sentir a densidade da existência, de si mesmo e do outro” (FLEIG, 2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 134).

Pela primeira vez, sem que eu perguntasse, alguém tinha tocado na dor que estranhamente se materializava em meu corpo quando eu sentia o sofrimento de um outro desconhecido, de um outro que eu avistava de longe sem nem mesmo saber o nome, com uma trajetória que eu dessabia, mas cuja história se desenhava como uma recriação imaginária de um percurso dele/meu angustiante. Era como um estranho familiar relacionado aos meus medos e pavores.

No texto “O ‘estranho’” (‘Unheimlich’), de 1919, Freud ([1919] 1996, p. 236), no processo de formulação de “o estranho familiar”, afirma que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Ele afirma isso posteriormente à menção a Jentsch (1906), referente a um estudo do autor acerca do “‘estranho’”, sendo que, para Freud ([1919] 1996, p. 237), tal autor não teria ido além da “relação do estranho com o novo e não familiar”. Este pensamento de Freud se pauta no seguinte argumento:

A palavra alemã ‘unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich’ [‘doméstica’], ‘heimisch’ [‘nativo’] - o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a relação não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho. (FREUD, [1919] 1996, p. 237, grifos e aspas simples do autor)

Indo além da “equação ‘estranho’ = ‘não familiar’” (FREUD, [1919] 1996, p. 237), a argumentação geral de Freud ([1919] 1996, p. 262) é a de que “o estranho provém de algo familiar que foi reprimido”. Retomando tal formulação de Freud acerca de o estranho familiar ser proveniente de algo familiar reprimido e, ainda, “que retorna”, Ferreira (2004FERREIRA, M. C. L. Análise de discurso e psicanálise: uma estranha intimidade. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, p. 37-52, dez. 2004. , p. 41) esclarece que “a esse estranho que nos é familiar Freud denomina de inconsciente”, isto é, “nosso próprio inconsciente que criamos e alimentamos é também o que menos conhecemos, o mais sinistro”. Ela prossegue dizendo que a psicanálise propõe que reconheçamos esse estranho “como efeito de nossa própria constituição” (FERREIRA, 2004FERREIRA, M. C. L. Análise de discurso e psicanálise: uma estranha intimidade. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, p. 37-52, dez. 2004. , p. 41).

Quanto à releitura de Freud por Lacan, a autora afirma que este “chega mesmo num funcionamento tão a seu estilo, a inventar uma palavra - êxtimo, extimidade - para designar essa terra estranha interior, esse fora alijado pelo processo do recalque, que é o que habita de modo mais íntimo o sujeito, sua ‘exterioridade íntima’” (FERREIRA, 2004FERREIRA, M. C. L. Análise de discurso e psicanálise: uma estranha intimidade. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, p. 37-52, dez. 2004. , p. 42). Sujeito da psicanálise que se aproxima do sujeito do discurso por serem determinados/condicionados por uma estrutura cujas fronteiras não se fecham e cujo território não se homogeneíza, sendo, portanto, pelas falhas que se pode ter acesso ao sujeito, linguagem e discurso (como estruturas), esclarece Ferreira (2004FERREIRA, M. C. L. Análise de discurso e psicanálise: uma estranha intimidade. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, p. 37-52, dez. 2004. ).

Aquele outro a mim desconhecido, como um estranho familiar, não era um corpo biológico. Fleig (2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 135), ao afirmar que “o corpo é, antes de tudo, metáfora, que comporta um certo número de empregos, bastante diversificados”, sendo um “corpo plural”, esclarece que “os usos metafóricos do corpo foram explicitados e articulados de modo preciso por Lacan, dando continuidade aos achados de Freud: o corpo imaginário, o corpo simbólico e o real do corpo”.

O corpo imaginário, que se apresenta “como apreensão de um todo organizado e consistente” (FLEIG, 2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 137) é apresentado pelo autor na relação com o estágio do espelho. O corpo simbólico “é o corpo de significantes: identidade, nome, lugar na genealogia, sexo, raça, meio social, [sic] etc.” (FLEIG, 2004, p. 137). O real do corpo diz respeito ao “corpo inominável, pura fenda [...]”; corpo este “em excesso, impossível de se deixar inscrever, forcluído no simbólico [...]” (FLEIG, 2004, p. 137).

Aquele outro a mim desconhecido, portanto, era um corpo imaginário - como um testemunho indireto que (me) autentificava (n)o reconhecimento do Eu -; um corpo simbólico - significante, tomado de sentidos neste/por este mundo e nele/para além dele; um corpo real - corpo que não se apreende ou se pode nominar.

Foi aí que, depois de um percurso de tateamento analítico anteriormente realizado, eu voltei à Minissérie Justiça - um dos materiais de meu projeto de pesquisa docente e que também foi analisado por meu grupo de pesquisa, o GPDISCMÍDIA-CNPq-UEM (Grupo de Pesquisa em Discursividades, Cultura, Mídia e Arte)1 1 O trajeto analítico da Minissérie que foi desenvolvido pelo GPDISCMÍDIA-CNPq-UEM resultou no e-book Minissérie em análise: sujeito, corpo(s), imagens, organizado por mim (LARA, 2018). - tomada pelos sentidos de que “descobrimos nosso corpo pela dor” (FLEIG, 2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 131) - dor esta que é, “em última instância”, como afirma Fleig (2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 132), “sempre uma dor psíquica” -, de “um corpo torturado” (FLEIG, 2004, p. 131).

Mesmo sem saber, naquele momento, foi assim que eu fui tomada por sentidos daqueles corpos-sujeitos2 2 Refiro-me a corpos-sujeitos considerando, discursivamente, tal como Ferreira (2015a, p. 15) que será logo mais citada, que o corpo não se reduz a lugar de habitação do sujeito, mas é o “próprio sujeito”. na Minissérie Justiça: materializada em dor, como uma confirmação da hipótese, inicialmente levantada por Fleig (2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 131), de que a dor funciona como “acesso privilegiado a si mesmo e ao outro”. Tocada pelo artístico, meu corpo-sujeito, como corpo discursivo, era dor, sentida a dor psíquica dos corpos-sujeitos personagens como representantes de corpos-sujeitos reais (não biológicos).

Ferreira (2013cFERREIRA, M. C. L. O corpo enquanto objeto discursivo. In: PETRI, V.; DIAS, C. Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2013c. p. 99-107., p.106), ao pensar a noção de corpo discursivo (“não empírico, não biológico, não orgânico”) enquanto objeto discursivo em sua estrutura falha e irrupção da falta, inclui o “real do corpo como categoria incontornável”. É, portanto, movida pelos sentidos de “[...] real do corpo como categoria incontornável do campo discursivo”, como aquilo que falta, retorna e resiste a ser simbolizado, tal como também formula Ferreira (2013b, p. 78) ao discorrer sobre “O corpo como materialidade discursiva”, que observo, pela Análise de Discurso pecheutiana, ao movimentar, discursivamente, noções lacanianas, a discursivização de corpos-sujeitos da Minissérie Justiça em relações jurídico-sociais-ideológicas em processo artístico na contradição de sentidos (im)possíveis para “justiça”.

Parte do percurso investigativo focalizado neste artigo foi apresentado em sessão de Análise de Discurso durante o III Encontro Nacional e II Jornada “História das Ideias: diálogos entre sociedade, sujeito e linguagem”, realizado pelo Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2018, também como parte das minhas atividades de pós-doutoramento. A investigação integra, ainda, o projeto de pesquisa docente “Imagens visuais e projeções imaginárias de sujeitos em materiais artísticos e midiáticos” (2016-2019), que coordeno na Universidade Estadual de Maringá (UEM).

2 CORPO(S) ANALÍTICO(S)

Justiça, minissérie ficcional brasileira da Rede Globo de Televisão, foi exibida de 22 de agosto a 23 de setembro de 2016, às 22 horas, cujas histórias contadas se entrelaçam de 2009 a 2016. Escrita por Manuela Dias e outros, com protagonistas, no plural, retratou, a cada dia da semana, diferentes histórias que se entrecruzaram e se conectaram por situações cotidianas e por crimes ocorridos em uma mesma noite. Tal produção abriu ao questionamento sobre os sentidos de justiça em sociedade pela imbricação de situações ramificadas que desencadearam na prisão, no mesmo dia, de quatro personagens (não propriamente os que eu trago para observação), em Recife, 2009.

O tema/objeto investigado, “corpos que discursivizam (na) arte (televisiva)”, faz parte de um recorte analítico que realizo de tal minissérie. Na constituição do percurso de análise, parto das personagens Elisa (interpretada por Débora Bloch), Fátima (vivida por Adriana Esteves) e Beatriz (Marjorie Estiano), indagando, como, na condição de corpos-sujeitos-discursivos - ao mesmo tempo discurso e forma de subjetivação e, para além de seu habitar, “como sendo o próprio sujeito” (FERREIRA, 2015aFERREIRA, M. C. L. Discurso: conceitos em movimento. In: FERREIRA, M. C. L. (Org.). Oficinas de análise do discurso: conceitos em movimento. Campinas: Pontes, 2015a. p. 11-23. , p. 15) -, que discursivizam (na) arte, dizem sobre si e o outro, na relação com a Justiça como instituição e prática institucional e social de assujeitamento destes corpos-sujeitos. Isso significa que não são as personagens em si que interessam, mas elas tomadas como materialização de sujeitos reais (assujeitados, in-conscientes, ideológicos), em sua existência real (conflituosa, contraditória, dolorida... inapreensível). Sujeitos “Eu”, “(O)outro”, “Nós”. E é por partir desses corpos-sujeitos que discursivizam (na) arte que, no trajeto analítico mobilizado pela indagação posta, levo em conta o que afirma Ferreira (2015bFERREIRA, M. C. L. Pensando a arte como discurso. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L.; MITTMANN, S. (Org.). Análise do discurso: dos fundamentos aos desdobramentos (30 anos de Michel Pêcheux). Campinas: Mercado de Letras, 2015b. p. 263-274., p. 264) sobre a arte como discurso: ela requer ser pensada como um “dispositivo”, o que significa que ela “é um modo de nos fazer ver”.

São corpos que chamei de dilacerados, entrelaçados, segregados, que têm história(s) e são história(s), investidos de historicidade, pois “onde há corpo há historicidade, onde há historicidade há memória e onde há memória há esquecimento”, afirma Ferreira (2013 a, p. 132) ao se referir à noção de memória3 3 Memória na perspectiva discursiva, sendo o “esquecimento” o estruturante do seu funcionamento (Cf. ORLANDI, 2012, p. 169). do corpo. Carregando as marcas de suas/outras tragédias pessoais e familiares, des[re]integrados às regras jurídico-sociais, entre obrigar-se/ser obrigado a segui-las e/ou confrontado a “falhá-las”, em um contínuo (des)pertencimento à regulação e ao regimento, são corpos que discursivizam (na) arte.

Elisa, mãe inconformada com a perda da filha assassinada em casa pelo noivo traído. Professora de Direito, cindida entre as leis jurídicas e o sentimento de (in)justiça que a move pela ideia fixa de matar o assassino de sua filha, cuja pena deste, em regime fechado, durou sete anos.

Fátima, doméstica de Elisa, que mata o cachorro de seu vizinho policial, na periferia de Recife, por morder seu filho e para proteger seus filhos, é incriminada por tráfico em uma cena forjada pelo mesmo policial para penalizá-la. Personagem dilacerada pelo despedaçamento e dissolução do convívio familiar: o marido morre a facada em uma briga de bar depois de perder o emprego devido à falência da empresa de ônibus da família do noivo da filha de Elisa; quando é presa por tráfico, seu filho vira morador de rua e sua filha prostituta. Ficou presa por sete anos.

Beatriz, bailarina atropelada na saída do teatro onde se apresentara em um espetáculo de dança. Quem a atropelou foi o sócio do dono da empresa de ônibus falida, onde o marido de Fátima trabalhava, quando estava em fuga com o dinheiro roubado da empresa. Tetraplégica, no hospital Beatriz implora ao marido, que presenciara seu atropelamento, pela prática da eutanásia a um corpo, para ela, “sem vida”, sendo atendida por ele, que é, posteriormente, preso durante sete anos.

Os quatro sujeitos-personagens que permaneceram sete anos na prisão - sendo um deles Fátima, que integra minha análise, e os demais presos que se colocam em relação com outros personagens como Elisa e Beatriz, estas duas, parte constitutiva de meu percurso analítico - foram presos no mesmo dia (28/06/2009). Envolvidos em situações distintas e próximas, entrecruzadas, motivados por sentimentos e sentidos diferentes e os mesmos, foram enquadrados juridicamente em dois artigos: Art. 121 do Código Penal Brasileiro4 4 Art. 121 do Código Penal Brasileiro que enquadrou o ex-noivo da filha de Elisa e o marido de Beatriz. Embora eu tome como referência a edição atualizada até abril de 2017, o artigo em questão vigorava em 2009, ano este da prisão dos sujeitos-personagens. Posteriormente, com a Lei Nº 13.104, de 9 de março de 2015, o art. 121, § 2° do Código Penal, passou a ter o inciso VI que trata do Feminicídio. , que se refere a homicídio simples, e prevê de seis a 20 anos de reclusão, e Art. 33 da Lei Nº 11.3435 5 Art. 33 da Lei Nº 11.343 que enquadrou Fátima e outra personagem, Rose, esta não focalizada neste estudo. , de 23 de agosto de 2006, dos crimes envolvendo drogas, cuja pena é reclusão de cinco a 15 anos. Após cumprirem pena de sete anos em penitenciária, foram soltos. Prisão jurídica e cronologia dos sete que perturbam, consciente e inconscientemente, os sentimentos dos sujeitos-personagens e os sentidos de (in)justiça da/na minissérie.

Não são os sujeitos encarcerados em presídio que me interessam para análise. São os corpos-sujeitos aprisionados em dor; dor psíquica (cf. FLEIG, 2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. ). Por isso mesmo, meu recorte não focaliza os quatro sujeitos presos em presídio, mas três personagens (poderia ser menos ou mais, pois não é quantidade o que interessa à análise em questão) tomados como corpos que (se) discursivizam, artisticamente, sentidos - entre o que se quer exato e não é exatidão; entre o que se quer (a)pre(e)ndido e (não) é apreensão - de (in)justiça na minissérie.

No corpus de análise, o artístico está no jogo contraditório de sentidos de (in)justiça na/pela discursivização desses corpos envolvidos em situações/eventos distintos, próximos e distantes, entrecruzados, imbricados, penalizados com sentidos e motivos múltiplos, distintos e semelhantes, pelo/ao mesmo sistema de prisão jurídica, moral e psíquica, enquadrados diferentemente e da mesma forma. Artístico naquilo que ultrapassa o que possa ter sido pensado, desejado ou projetado por autor, diretores, montagem, edição etc.; que escapa, vaza, transborda em/pela dor psíquica; que está na falta como “[...] lugar do possível e do impossível (real da língua); impossível de dizer, impossível de não dizer de uma certa maneira - o não-todo no todo, o não-representável no representado.” (FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. L. Análise do discurso e suas interfaces: o lugar do sujeito na trama do discurso. Organon, Porto Alegre, v. 24, n. 48, p. 1-12, 2010. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/28636. Acesso em: 16 maio 2018.
http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/a...
, p. 6).

3 (SETE ANOS DE) PRISÃO DE CORPOS-SUJEITOS

Sete anos de prisão não se reduz ao cronológico de duração penal. Entre o sentido jurídico de sete anos representativos do aprisionamento temporal de corpos biológicos, separados de seus familiares, amigos, vida social - que abre a questionamentos quanto à durabilidade da pena para sujeitos enquadrados em crimes diferentes ou iguais, mas em situações distintas, ou mesmo à problematização da própria prisão em cenários forjados criminalmente ou encharcados de conflitos sociais, como desigualdade econômica, discriminação racial, abuso de autoridade etc. - estão sentidos sócio-históricos e ideológicos de corpos-sujeitos psiquicamente torturados.

O “sete”, que marca um tempo cronológico de reviravolta na vida dos sujeitos-personagens, sejam eles os que foram presos (como é o caso de Fátima), sejam os sujeitos familiares de quem foi preso ou assassinado (casos de Beatriz, cujo marido foi preso por eutanásia, e de Elisa, cuja filha foi assassinada pelo ex-noivo), amigos, outros com os quais tinham contato ou passaram a ter, e que abre ao questionamento quanto ao enquadramento e nivelamento jurídico e a (in)justiça (na aplicação) da lei, também simboliza, além do mí(s)tico, os corpos-sujeitos que doem6 6 Cf. dor psíquica em Fleig (2004). e cujo tempo segue uma outra ordem7 7 Cf. mais à frente, menção a Orlandi (2004) sobre o sentido de “ordem” relacionada ao simbólico e ao real da história. para além da cronologia.

No livro O tempo que resta,Agamben (2016AGAMBEN, G. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.) aborda o tempo messiânico:

Ele não é nem a linha - representável mas impensável - do tempo cronológico nem o instante - igualmente impensável - do seu fim; mas não é tampouco simplesmente um segmento extraído do tempo cronológico, que vai da ressurreição ao fim do tempo: é, antes, o tempo operativo que urge no tempo cronológico e o trabalha e transforma a partir do interior, tempo do qual precisamos para fazer findar o tempo - nesse sentido: tempo que nos resta. Enquanto a nossa representação do tempo cronológico, como tempo no qual estamos, nos separa de nós mesmos, transformando-nos, por assim dizer, em espectadores impotentes de nós mesmos - espectadores que olham sem tempo o tempo que escapa, o seu incessante faltar a si mesmos -, o tempo messiânico, como tempo operativo, no qual aprendemos e realizamos a nossa representação do tempo, é o tempo que nós mesmos somos - e, por isso, o único tempo real, o único tempo que temos. (AGAMBEN, 2016AGAMBEN, G. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016., p. 85-86, grifos do autor)

Discursivamente, considero que o tempo dos corpos-sujeitos tomados em análise não cabe no tempo cronológico e contém o que o cronológico não (pode) comporta(r), suporta(r) (como suporte). É um tempo inconsciente, que se dá entre a implosão e a eclosão da cronologia.

Na Minissérie Justiça, o sete se põe em relação com o que regula, organiza, rege, normatiza, disciplina, pune e apieda-se. Na regulação, organização, regimento, normatização, disciplina, punição e piedade se inscrevem seu outro, oposto desregulador, desorganizador, não regimentar, não normatizável, indisciplinar, impiedoso, mas ainda assim, punitivo, hierárquico e disciplinar. A desordem, constitutiva da ordem, está lá, perturbando e permitindo.

Na Arquitetura (“As sete maravilhas do mundo antigo” e “As sete maravilhas do mundo moderno”...), na Arte (Manifesto das sete artes, do intelectual italiano Ricciotto Canudo, ...), na Ciência (as sete propriedades da matéria...), na Cultura Popular (os sete pecados capitais...), na Literatura (Branca de neve e os sete anões; os sete livros da saga Harry Potter...), na Filosofia (as sete virtudes...), na Religião (Shabat, sétimo dia da semana; sete sacramentos...) etc., o “sete” dissemina-se nas áreas, entre e para além delas, repleto de misticismo, religiosidade, cientificidade, filosofia, poesia, historicizando (n)a significação, ao mesmo tempo, de sujeitos e sentidos no social. Eclosão de um “sete” que está em diferentes lugares, relacionado a diferentes situações, (extra)va(s)zando inquietantemente, como os sentidos de (in)justiça na Minissérie Justiça.

Há uma rede de sentidos sobre o número sete que se espalha pela internet, fazendo-o transitar entre o objetivável e o inapreensível, desde a enciclopédia Wikipédia e dicionários de língua portuguesa e de símbolos, até blogs, sites místicos, publicações de curiosidades, religião, artigos científicos etc. Entre o senso comum, o misticismo, a fragilidade de base teórica, a base investigativa possível de ser aceita e os estudos qualitativa e cientificamente sustentados, sentidos múltiplos do “número sete” se entrelaçam e se validam em abertura nessa propagação8 8 Em um Dicionário de símbolos (2018), cuja visibilidade está, aparentemente, mais para os aspectos místicos do que para quem realiza a postagem (não há um sujeito que se diga autor ou responsável pelo dizer, mas uma empresa que assina o site) - num duplo efeito de um dizer valer por si como se fosse verdadeiro e a ausência de uma fonte que lhe imprima suposta veracidade -, o “número sete” é associado à representação da “totalidade”, “perfeição”, “consciência”, “intuição”, “espiritualidade” e “vontade”, simbolizando, ainda, “conclusão cíclica e renovação”. Afirma-se, no site, que “[...] justamente por representar o fim de um ciclo e o começo de um novo, [o sete] é um número que traz a ansiedade pelo desconhecido”, tendo uma “grande importância simbólica para o mundo cristão e para muitas outras mitologias”. Por mais que tal dicionário não se sustente em base científica explicitada, sendo o site assinado por uma empresa comunicacional, o que traz, assim como determinadas outras informações presentes em postagens outras, de curiosidade mística e/ou religiosa, transita, de alguma forma, por publicações de base científica reconhecida. .

Na Introdução do Dicionário de símbolos, obra de Chevalier e Gheerbrant (2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. ), Chevalier (2018, p. XIII) afirma que, “por força de seu próprio objetivo”, o dicionário em questão “não pode ser um conjunto de definições, como os léxicos ou vocabulários usuais”, porque “um símbolo escapa a toda e qualquer definição”, sendo “próprio de sua natureza romper os limites estabelecidos e reunir os extremos numa só visão”. Anteriormente, logo ao abrir o primeiro parágrafo de sua Introdução, já chamava a atenção para a seguinte observação:

HOJE EM DIA, os símbolos gozam de nova aceitação. A imaginação já não é mais desprezada como a louca da casa. Está reabilitada, considerada gêmea da razão, inspiradora das descobertas e do progresso. Deve-se essa aceitação, em grande parte, às antecipações da ficção que a ciência comprova pouco a pouco, aos efeitos da dominação atual da imagem que os sociólogos estão tentando medir, às interpretações modernas dos mitos antigos e ao nascimento de mitos modernos, às lúcidas explorações da psicanálise. Os símbolos estão no centro, constituem o cerne dessa vida imaginativa. Revelam os segredos do inconsciente, conduzem às mais recônditas molas da ação, abrem o espírito para o desconhecido e o infinito. (CHEVALIER, 2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. , p. XII, itálico do autor, negrito meu)

O dizer acerca do número sete está distribuído em seis páginas do Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant (2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. ). A primeira menção diz respeito aos sete dias da semana e aos sete planetas, bem como a outras ordens ligadas à esfera celeste, ao cósmico e xamanismo. Ainda sobre o “sete”, há sentidos relacionados aos egípcios, ao culto de Apolo, às tradições e lendas gregas, às festas populares na China, a Buda, ao islamismo, à Bíblia, à África, aos índios, entre outros e/ou que remetem a outros ainda, até porque “certos setenários são símbolos de outros setenários” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. , p. 826).

Entre outros destaques apresentados por Chevalier e Gheerbrant (2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. , p. 826, negrito dos autores, itálico meu), vê-se o sete indicativo de “mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva”, simbolizando “a totalidade do espaço e a totalidade do tempo”, a “totalidade do universo em movimento”, bem como o setenário resumindo a “totalidade da vida moral, acrescentando as três virtudes teologais - a fé, a esperança e a caridade - às quatro virtudes cardeais - a prudência, a temperança, a justiça e a força”. Assim, como símbolo de uma “totalidade em movimento” ou “dinamismo total”, o sete aparece como “chave do Apocalipse (7 igrejas, 7 estrelas, 7 Espíritos de Deus, 7 selos, 7 trombetas, 7 trovões, 7 cabeças, 7 calamidades, 7 taças, 7 reis...)” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. , p. 827, negrito dos autores, itálico meu).

Sendo o sete fortemente relacionado à religião e à Bíblia, trago, abaixo, um trecho do dicionário que faz menção à presença dele em tal escritura:

Por exemplo: candelabro de sete braços; sete espíritos repousando na vara de Jessé, sete céus onde habitam as ordens angélicas; Salomão construiu o templo em sete anos (1 Reis, 6, 38). Não só o sétimo dia, mas também o sétimo ano é de descanso. A cada sete anos os servos são postos em liberdade, os endividados anistiados. O sete é usado 77 vezes no Antigo Testamento. O número sete, pela transformação que inaugura, possui em si mesmo um poder, é um número mágico. À tomada de Jericó, sete sacerdotes com sete trombetas devem, no sétimo dia, dar sete voltas na cidade. Eliseu espirra sete vezes e a criança ressuscita (II Reis, 4, 35). Um leproso mergulha sete vezes no Jordão e sai curado (II Reis, 5, 14). O justo cai sete vezes e levanta-se perdoado (Provérbios, 24, 16). (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. , p. 827-828, negrito e itálico isolados dos autores, trechos em itálico meus)

Mas o sete, ao sinalizar um ciclo concluído, conforme Chevalier e Gheerbrant (2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. , p. 828, grifos dos autores), também “indica a passagem do conhecido ao desconhecido”, gerando ansiedade acerca de qual será o próximo ciclo. Ainda na mesma página, afirmam que o sete é, também, “o número de Satanás, que se esforça em imitar a Deus - o macaco de imitação de Deus”.

Assim, a ordem dos sete dias, que impõe uma cronologia, regula a rotina e a temporalidade. Organiza as práticas sociais, culturais religiosas. Impõe ritmo e trabalho, normas e obrigações, para que se tenha (sensação de) “descanso”. Descanso divino no sétimo dia depois de seis dias na construção do mundo. A construção do templo em sete anos, a libertação dos servos, a anistia dos endividados. Sete que desliza para o real9 9 “O real em Lacan não é uma esfera pré-discursiva da qual o simbólico poderia aproximar-se ou distanciar-se, ao contrário, é efeito do próprio simbólico, como aquilo que o simbólico expulsa para adquirir consistência. O real é pleno, sem fissura, irrepresentável, inomeável”, esclarecem Baldini e Mariani (2013, p. 112). Real que Pêcheux (1997a, p. 29) afirma “[...] como pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser ‘assim’”, “[...] impossível... que seja de outro modo”. Esta formulação de real por Pêcheux “ressignifica”, conforme Lagazzi (2017, p. 203), “o estatuto do impossível”, pois não se trata mais de negar o possível e sim de afirmar o “real como ‘pontos de impossível’”. (inapreensível).

Na obra Em busca do real perdido, Badiou (2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 28, grifos do autor), no capítulo “A definição”, inicia sua reflexão por uma definição de real proposta, como afirma, por Lacan: “o real é o impasse da formalização”. Preferindo não partir do conceito, mas de um exemplo, ele se vale da aritmética elementar.

Quando contamos, multiplicamos ou adicionamos, pode-se dizer que estamos, de maneira prática, no interior da formalização matemática. Nosso cálculo é sempre finito: todo cálculo termina, de fato, com o que chamamos seu resultado, verdadeiro ou falso. Portanto, estamos numa formalização, que é regulamentada (há regras de adição, aquelas ensinadas às crianças), que é finita, e, no interior dessa formalização, há uma atividade particular, que é o cálculo. (BADIOU, 2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 29)

Mas há nisso, segundo ele, um ponto não explicitado: “quando calculamos a partir de números, estamos convencidos de que o resultado será um número”, o que faz supor que, “seja qual for a duração do cálculo finito, sempre encontraremos um número” (BADIOU, 2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 29, grifos do autor). Isso exige que inexista um último número. Assim, “algo nisso tudo é in-finito” (BADIOU, 2017, p. 29). A série dos números não finda, todavia, o infinito em funcionamento oculto no interior do cálculo finito não é um número, pois, argumenta o autor, não há número infinito na aritmética. “Logo, o real da aritmética finita exige que se admita uma infinidade subjacente que funda o real do cálculo ainda que como impasse de qualquer resultado possível desse mesmo cálculo, que só pode produzir números finitos”, explica Badiou (2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 29-30). E prossegue: “É nesse sentido que se pode dizer que o real dos números finitos da aritmética elementar é um infinito subjacente, inacessível a essa formalização, e que é, portanto, realmente, seu impasse. Lacan tem toda razão.” (BADIOU, 2017, p. 30).

Dando desdobramento ao seu exemplo aritmético, Badiou (2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 30, grifos do autor), chega à seguinte formulação: “o real é o ponto de impossível da formalização”.

E explica:

Isso quer dizer que aquilo que a formalização torna possível - a saber, no nosso exemplo, calcular a partir de números - só é possível pela existência implicitamente assumida daquilo que não pode se inscrever nesse tipo de possibilidade. Trata-se, portanto, de um “ponto de pensamento” que, embora condenado a permanecer inacessível para as operações que a formalização torna possíveis, não deixa de ser a condição última da própria formalização. (BADIOU, 2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 30, grifos do autor)

Badiou considera que não se atinge o real pelo uso da formalização, mas ao se explorar o “impossível para essa formalização”. Argumenta que o número infinito, na condição de número, liga-se, de maneira orgânica, à formalização aritmética, enquanto na condição de infinito, “é o impossível próprio” desta formalização (BADIOU, 2017BADIOU, A. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. , p. 31) - o que o leva a concluir, na mesma página, que o real da aritmética é “o número infinito como impossível”.

Isso também me levou a pensar, juntamente com o que eu trouxe de Chevalier e Gheerbrant (2018CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018. ), no funcionamento do número sete (sete dias da semana - sete após sete -, sete anos) na Minissérie Justiça, em relação à discursivização dos corpos-sujeitos tomados em análise, pelo funcionamento do infinito como o impossível nesse/a partir desse sete in-finito. O real da aritmética (infinito como impossível), o real da história (contradição), o real do sujeito (inconsciente), o real do corpo (falta), o real do discurso10 10 Cf. Ferreira (2015c, p. 163). Na seção seguinte, retomo esse “real do discurso” como sendo a resistência, com base na autora. (resistência).

Entre as leis de Deus e as leis dos homens (jurídicas), que se entrelaçam umas nas outras, se (in)validam para que continuem a produzir efeitos, os corpos-sujeitos analisados se entrecruzam, se entrelaçam, se historicizam! São corpos perturbados, torturados, doloridos, impossíveis. Corpos-vaso11 11 O duplo termo e a formulação conceitual “corpos-vaso” eu construo a partir do texto “Da criação ex nihilo”, de Lacan ([1960], 2008a), publicado em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. , de um vazio impreenchível e de uma saturação incabível.

Em “Da criação ex nihilo”, o psicanalista afirma:

Quero simplesmente, hoje, ater-nos à distinção, no vaso, entre seu emprego de utensílio e sua função significante. Se ele é deveras significante e se é o primeiro significante modelado pelas mãos do homem, ele não é significante, em sua essência de significante, de outra coisa senão de tudo o que é significante - em outros termos, de nada particularmente significado. Heidegger o coloca no centro da essência do céu e da terra. Ele o vincula primitivamente pela virtude do ato de libação, pelo fato de sua dupla orientação - para cima para receber, em relação à terra da qual ele eleva alguma coisa. É justamente essa a função do vaso. (LACAN, [1960] 2008a, p. 147, grifos meus)

No parágrafo seguinte, na mesma página, continua:

Esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é justamente, em sua forma encarnada, aquilo que caracteriza o vaso como tal. É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante. É a partir desse significante modelado que é o vaso que o vazio e o pleno entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e com o mesmo sentido. (LACAN, [1960] 2008a, p. 147, grifos meus)

E se considerarmos o vaso - este, qualificador desses corpos-sujeito que doem - tal como Lacan ([1960] 2008a, p. 148) o perspectivou, “[...] como um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio [...], como um nihil, como nada”, e ainda tomarmos a Coisa, “das Ding, enquanto o êxtimo mais primitivo” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014SEGANFREDO, G. de F. C.; CHATELARD, D. S. Das Ding: o mais primitivo dos êxtimos. Cadernos de Psicanálise - CPRJ, Rio de Janeiro, v. 36, n. 30, p. 61-70, jan./jun. 2014. Disponível em: http://cprj.com.br/imagenscadernos/caderno30_pdf/05_Das_Ding_o_mais_primitivo_dos_extimos.pdf. Acesso em: 4 jul. 2018.
http://cprj.com.br/imagenscadernos/cader...
, p. 61, grifos das autoras), “[...] essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa [...]” (LACAN, [1960] 2008b, p. 169), e ainda mais relacionarmos o êxtimo lacaniano ao estranho familiar freudiano12 12 No artigo “Das Ding: o mais primitivo dos êxtimos”, Seganfredo e Chatelard (2014) afirmam que “êxtimo” faz com que lembrem de “Unheimlich, o estranho familiar” que aparece no texto “O ‘estranho’” (1919), de Freud: “Ambas [as palavras êxtimo e Unheimlich] parecem carregar certa ambiguidade. Ambas parecem portar a noção de interior e exterior acontecendo juntos. Ambas são capazes de conjugar o fora e o dentro. Ambas apontam para algo da ordem do real. Êxtimo: o mais íntimo, o mais particular, o mais interior, mas que está excluído, fora. Unheimlich: aquilo que é estranho, estrangeiro e familiar ao mesmo tempo.” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. 63, grifo meu). , sentimos o sujeito em sua dor; a dor do (O)outro que dói em nós. O sujeito (em seu) real13 13 Seganfredo e Chatelard (2014, p. 66) entendem que “Lacan situa das Ding num lugar anterior ao recalque, é o que ele chama, originalmente, de o ‘fora-do-significado’ (Ibid. [a expressão Ibid., empregada pelas autoras, faz referência a O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise], p. 71). Pleno e vazio ao mesmo tempo, ou melhor, pleno de vazio”. E imediatamente interrogam: “Ora, não seria este o lugar do real?” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. 66, grifo meu). Logo mais, as autoras fazem referência ao momento em que Lacan se remete a Heidegger para ilustrar a teorização de a Coisa, partindo do exemplo do oleiro na construção de um vaso: “A modelagem de um vaso acontece a partir do nada, ‘criação ex-nihilo’. O nada, o furo, o vazio do vaso é justamente o lugar onde se situa das Ding. As paredes e o fundo do vaso são as redes significantes modeladas pelo homem em torno do real hipotético que é a Coisa. A criação de um objeto, diz Lacan, pode ter a função de representar a Coisa, de marcar seu lugar, ao contrário de evitá-la.” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. 67). . A Coisa, afirma Lacan ([1960] 2008a), p. 152), “[...] define o humano, embora, justamente, o humano nos escape”.

Como não se pode logicizar, disciplinar e administrar a Coisa, ela figura como um “mal” para a Igreja, sendo “afastada” pela Ciência.

Nem a ciência nem a religião são aptas para salvar a Coisa, nem a nos dá-la, uma vez que o círculo encantado que dela nos separa é estabelecido por nossa relação com o significante. Como lhes disse, a Coisa é o que do real padece dessa relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do significante [...]. (LACAN, [1960] 2008c, p. 164)

Diferentemente, a arte tende (a se aproximar) à Coisa. Em torno da discussão lacaniana sobre a Coisa e o mal, reunida em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, acerca da relação com a arte, a religião e a ciência, Seganfredo e Chatelard (2014SEGANFREDO, G. de F. C.; CHATELARD, D. S. Das Ding: o mais primitivo dos êxtimos. Cadernos de Psicanálise - CPRJ, Rio de Janeiro, v. 36, n. 30, p. 61-70, jan./jun. 2014. Disponível em: http://cprj.com.br/imagenscadernos/caderno30_pdf/05_Das_Ding_o_mais_primitivo_dos_extimos.pdf. Acesso em: 4 jul. 2018.
http://cprj.com.br/imagenscadernos/cader...
, p. 68) observam:

Sabemos que o mal sempre foi algo rechaçado pela humanidade. Criam-se, a todo o momento, artimanhas para dele escapar, para se distanciar dessa Coisa assustadora. Dessa forma, Lacan (1959-60, p. 164)14 14 Em suas referências, as autoras trazem O seminário, livro 7: a ética da psicanálise referido como um todo, sem distinção a textos específicos contidos em tal livro - distinção esta que eu emprego em minhas referências -, e utilizam a edição de 1991 publicada pela Editora Jorge Zahar. Como os textos de Lacan reunidos no livro 7 abrangem o período de 1959 a 1960, as menções a tal livro, realizadas pelas autoras, são acompanhadas destas datas: 1959-60. vai dizer que a arte caracteriza-se [sic] por uma organização em torno da Coisa, do vazio. A religião, por sua vez, busca a evitação do mal, apresentando um ser bom que é Deus para nos proteger da Coisa. [...]. A ciência, por outro lado, prezando o saber absoluto, isto é, fixando-se no poder do simbólico, rejeita a presença do vazio, do real e trabalha com a foraclusão da Coisa.

Sujeito à língua e à história, às determinações institucionais (religiosa, jurídica, científica etc.), assim funcionam os sujeitos, (d)nessa forma. Ao se referir à forma-sujeito como sendo “a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”, Althusser ([1973] 1978, p. 67, grifos do autor), esclarece que “[...] as relações sociais de produção e de reprodução compreendem necessariamente, como parte integrante, aquilo que Lênin chama de ‘relações sociais jurídico-ideológicas’, as quais, para funcionar, impõem a todo indivíduo-agente a forma de sujeito”.

Em Justiça, os corpos-sujeitos analisados (Elisa, Fátima e Beatriz), assujeitados às regras jurídico-sociais-ideológicas, discursivizam na ordem prisional dos sete dias... após sete dias... por sete anos, dando vazão, como corpos-vaso, à Coisa.

Orlandi (2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004. ), em Cidade dos sentidos, diferencia ordem de organização quanto ao discurso urbano. Em sua reflexão, a ordem é “do domínio do simbólico na relação com o real da história (a sistematicidade sujeita a equívoco) [,] articulação necessária e contraditória entre estrutura e acontecimento”, ao passo que “a organização [se] refere ao empírico e ao imaginário (o arranjo das unidades)” (ORLANDI, 2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004. , p. 35, grifos da autora). A autora explica que a finalidade de tal especificação é “ultrapassar a organização do discurso urbano para atingir a compreensão da ordem do discurso urbano”, ou seja, “procurar entender como o simbólico confrontando-se com o político configura sentidos para/na cidade e não ficar apenas na organização do discurso urbano que nos relega ao imaginário, às ilusões (eficazes) da urbanidade.” (ORLANDI, 2004, p. 35, grifos da autora).

Nesse sentido, ao me referir à “ordem prisional dos sete dias... após sete dias... por sete anos”, estou considerando, justamente, o simbólico na relação com o real da história, ou seja, a possibilidade de a inscrição da língua (falha, incompleta) na história (em sua contradição constitutiva) produzir o equívoco.

O tem(pl)o desses (corpos-)sujeitos no interior de um presídio ou do lado de fora... está em relação com um e mesmo presídio psíquico, sete dias após sete... anos, tempo que se destemporaliza da cronologia, metaforizando(-se em) tormento e dor, nesse impossível, real do “sete”. O cumprimento da pena, a abertura da cela, o pisar os pés para fora do presídio não libertam os sujeitos, nem os que ganharam a liberdade jurídica, nem os que, do lado de fora dos muros e da clausura de cimento, se inquietam por quem (não) entrou, por quem saiu, nem mesmo quem não está mais lá, nem dentro e nem fora da arquitetura presidial.

A prisão - esta que “ao mesmo tempo se inocenta de ser prisão pelo fato de se assemelhar a todo o resto, e inocenta todas as outras instituições de serem prisões, já que ela se apresenta como sendo válida unicamente para aqueles que cometeram uma falta.”, como afirma Foucault (2002FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU, 2002., p. 123-124) em A verdade e as formas jurídicas - não aprisiona simplesmente corpos biológicos.

Não se trata apenas da prisão de cimento, física, empírica, arquitetural, mas de como a arquitetura da estrutura prisional jurídica não dá conta de explicar a prisão psíquica de corpos que doem socialmente, corpos torturados, dilacerados... corpos que falham/faltam; corpos reais. Corpos tomamos em (in)compreensões e (im)possibilidades de (in)justiça - esta como uma categoria constitutivamente contraditória na/em relação com o sujeito como corpo discursivo. E assim a Justiça, como instituição e prática jurídica, também produz justiças, como formas “individuadas de julgar” e práticas sociais outras, ramificações suas, que se alastram, disseminam, hibridizam, mestiçam, vazam.

4 CORPOS (QUE SÃO) DOR, CORPOS (QUE) DOEM!

Como Elisa, Fátima e Beatriz, na condição de corpos-sujeitos-discursivos que discursivizam (na) arte, dizem sobre si e o outro, na relação com a Justiça como instituição e prática institucional e social de assujeitamento destes corpos-sujeitos? Esta pergunta, que norteou meu percurso investigativo, e foi apresentada na segunda parte (Corpo(s) Analítico(s)) deste texto, levou-me aos corpos-sujeito como corpos-vaso na vazão à Coisa, ao estranho-familiar, ao êxtimo, ao inconsciente, à dor psíquica - dor que dói em nós.

O sujeito do inconsciente, como explica Mariani (2017, p. 41), “não sabe de si”. Estando “submetido à cadeia significante”, ele “é representado de um para outro significante, manifestando-se [...] na forma de atos falhos, de chistes, de sonhos”. E assim se dá o encontro do sujeito com o real, “com aquilo que não tem inscrição na linguagem”: pela ordem do indizível (MARIANI, 2017, p. 41). Mas “ao ingressar na ordem simbólica, ao se constituir na linguagem, o sujeito é dividido e fica inscrito em um campo de significantes que deslizam” (MARIANI, 2017, p. 41).

Nas relações sociais de produção e de reprodução, aqui especificadas as “relações sociais jurídico-ideológicas”, que impõem a “forma-sujeito”, Elisa materializa a contradição constitutiva dessas relações, entre o assujeitamento às leis jurídicas, na ilusão de liberdade, e o desejo de burlá-las no/pelo questionamento da eficácia em sua aplicabilidade. A instituição Justiça que ela professava como professora universitária de Direito, a quem também recorrera para punição do ex-noivo de sua filha morta a tiros, é a mesma que o liberta após sete anos de prisão. Sete, para ela, como marca da insuficiência da punição. Sete dolorido. Sete que sangra sua dor (de mãe). Sete, como tempo cronológico, que não (con)diz (com) o tempo do sujeito (em) dor. Corpo jurídico e corpo-sujeito, que não são um e mesmo corpo, mas são mutuamente constitutivos, constituintes um do outro. Corpos que se metaforizam na cisão do sujeito em dor. Corpo-sujeito que busca na “justiça dos homens”, na dor do outro (matar o assassino da filha), a evasão, o transbordar da sua. Entre a estabilização e o deslize, a revolta da personagem não marca a resistência do sujeito - a não ser como confronto direto, de lados que se opõem -, mas no sujeito que é dor há, sim, rastros de resistência, como “‘real do discurso’” (FERREIRA, 2015cFERREIRA, M. C. L. Resistir, resistir, resistir... primado prático discursivo! In: SOARES, A. S. F . et. al. Discurso, resistência e... Cascavel: Edunioeste, 2015c. p. 159-167. , p. 163).

Fátima personifica o corpo-sujeito dilacerado em dor, que extravasa o corpo-suporte da dor, desafiando nossas próprias possibilidades de suportar a dor do outro doendo em nós, porque, retomando uma citação que fiz de Fleig (2004FLEIG, M. O mal-estar no corpo. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, v. 1, 2004, p. 131-139. , p. 134) no início deste texto, “entrar em contato com a dor é também entrar em contato com o outro e consigo mesmo”. Por mais que a prisão de Fátima tenha sido resultado de um cenário forjado, neste caso não é o corpo jurídico e o corpo-sujeito que se metaforizam na cisão do sujeito. São princípios proferidos pelas “leis de Deus” (fé, esperança e salvação divina) que se metaforizam no corpo-sujeito na/para a “reconstrução” de um corpo familiar esfacelado pela prisão. O corpo privado de liberdade jurídica dói na intensidade que a dor da destruição familiar massacra o corpo que é mãe, privado dos filhos. Dor que não cabe no tempo cronológico de sete anos de penitenciária e que transborda no peso simbólico que esses sete anos somatizam no extramuros: viúva de marido assassinado em briga de bar após perder emprego em empresa falida por desvio de dinheiro de um dos proprietários; filho pequeno que passa a morar na rua e sobrevive de furtos; filha que vai morar em um bordel e sobrevive da prostituição, tendo como agenciadora a namorada do ex-vizinho que incriminara sua mãe por porte ilegal de drogas. Corpo-sujeito suporte da dor. “Um corpo ferido, torturado, esquartejado, virado do avesso, rompida a superfície lisa e sensível da pele, expostos os órgãos que deveriam estar bem abrigados - ainda assim isso que nos aproxima do horror e nos remete ao limite do Real continua sendo um corpo” (KEHL, 2004KEHL, M. R. Prefácio. Três perguntas sobre o corpo torturado. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 9-19. , p. 9). Corpo-vaso, que suporta o insuportável no vazio da saturação, transborda (em) dor.

O corpo tetraplégico, o não corpo do corpo-sujeito bailarina (Beatriz), embora não esteja mais lá como corpo biológico (submetido à eutanásia) após sete anos, permanece como corpo discursivo. O corpo ausente ainda em vida para o corpo-sujeito bailarina, o corpo tetraplégico, “mesmo [sendo] um corpo em mal [sic] funcionamento, doente, restrito em seus movimentos e em sua capacidade de trocas com o meio continua sendo um corpo” (KEHL, 2004KEHL, M. R. Prefácio. Três perguntas sobre o corpo torturado. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 9-19. , p. 9). O corpo (não) dançante, “um corpo roubado a seu próprio controle - corpo que não pertence mais a si mesmo e transformou-se em objeto nas mãos poderosas de um outro, seja o Estado ou o crime; um corpo objeto do gozo maligno de outro corpo; mesmo um corpo torturado continua sendo corpo” (KEHL, 2004, p. 9-10). O corpo da eutanásia, cujo tempo cronológico não condiz com o tempo do sujeito, nem do que se vai, nem daquele que fica, mesmo que partir represente viver e ficar signifique morte em vida - e mais, mesmo que a morte recomponha o corpo-sujeito e a vida de quem fica espedace o sujeito (por) inteiro da saturação de um vazio impreenchível e de um transbordar cheio de dor que não cessa -, é um corpo.

Elisa, Fátima, Beatriz. Corpos que são metaforizados em/pela dor de tantos outros corpos doloridos, torturados. Corpos que doem, são dor, nos fazem doer. Que funcionam como metáforas de corpos-sujeitos reais de um mundo real, inapreensível, repleto em contradições, em (in)justiças. “Metáfora[s] (meta-phora)” determinada(s) por “uma região do interdiscurso”, significando transferência de sentidos, tal como compreende Pêcheux (1997bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997b. , p. 263, grifos do autor), com base em Lacan. O que possibilita tal ocorrência metafórica “é o caráter local e determinado do que cai no domínio do inconsciente, enquanto lugar do Outro (Autre), onde, diz J. Lacan, ‘se situa a cadeia do significante que comanda tudo o que vai poder se presentificar do sujeito’ ... e do sentido, acrescentaríamos.” (PÊCHEUX, 1997bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997b. , p. 263, grifo do autor).

5 CORPO(S) FINAL(IS)

“Das lutas de gladiadores aos enforcamentos públicos, das torturas aos atentados, a dor dos outros não nos deixa indiferentes, mesmo hoje, depois do embotamento da sensibilidade pela apresentação diária da dor como espetáculo” (KAPP, 2004KAPP, S. A dor dos outros. In: KEIL, I.; TIBURI, M. (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 247-264., p. 247). E assim, “[...] os povos humanitários, o culto espectador de teatro e até o sábio são esteticamente seduzidos pela dor real dos outros” (KAPP, 2004, p. 249). Dessa forma, corpos que discursivizam (na) arte (televisiva) se entrelaçam a corpos discursivizados na/pela arte.

A encenação pode tornar-se sórdida. Tomemos como exemplo a história do japonês que cortou sua amante em pedaços, em seguida juntou as partes desse corpo em alguns pratos para colocá-las em uma geladeira e logo mais comê-las. Ele tornou-se uma espécie de herói monstruoso no Japão e escreveu livros que são vendidos em quantidade... [...]. Se a justiça o tivesse condenado, não seria na qualidade de sujeito responsável por um crime e por uma encenação monstruosa. Ele próprio é totalmente objetalizado em uma tal construção cênica. [...]. Nesse sentido, a justiça não estaria habilitada a julgar sujeitos que devem reconhecer seus crimes, mas indivíduos que se metamorfosearam em objetos de arte e também transformaram o corpo dos outros enquanto tal. (JEUDY, 2002JEUDY, H.-P. O corpo como objeto de arte. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. , p. 17-18)

Em meu percurso investigativo, o que os corpos-sujeitos que discursivizam (na) arte, observados analiticamente, dizem sobre si e o outro, na relação com a Justiça como instituição e prática institucional e social de assujeitamento destes corpos-sujeitos, é que são corpos que se (in)visibilizam na relação com o (O)outro - corpos imaginários; corpos que são localizáveis, observáveis, vigiados, punidos - corpos simbólicos; corpos que não cabem em si, que deslizam, metaforizados, inquietos, insanos, intocáveis, inexplicáveis - corpos reais . Corpos que, ao discursivizarem (na arte), (se) fazem arte.

Corpos-sujeitos personagens que, pela dor que materializam em vidas15 15 No livro O uso dos corpos, Agamben (2017, p. 276, grifos do autor), ao abordar a “Obra e inoperosidade”, em meio a menções a Foucault e Benjamin, afirma que o que denomina “forma-de-vida não é definido pela relação com uma práxis (energia) nem com uma obra (ergon), mas por uma potência (dynamis) e por uma inoperosidade”. Ele compreende que “a forma-de-vida não pode reconhecer-se nem ser reconhecida, porque o contato entre vida e forma e a felicidade que nela está em questão se situam além de todo possível reconhecimento e de toda possível obra. A forma-de-vida, é nesse sentido, antes de tudo, a articulação de uma zona de irresponsabilidade, em que as identidades e as imputações do direito estão suspensas” (AGAMBEN, 2017, p. 278). Minha menção à dor que os corpos-sujeitos personagens materializam em vidas entrecruzadas pela dor que dói em nós e nos depara com a dor real de corpos-sujeitos reais não se refere a uma arte que imita a vida ou vice-versa, mas como a discursivização desses corpos-sujeitos personagens em dor funcionam como metáforas de corpos-sujeitos reais que são dor. entrecruzadas pela dor, pela dor que dói em nós, dor psíquica, nos depara com a dor real, de corpos-sujeitos reais, como “pontos de impossível no perceptível. O que não é perceptível, e que, no entanto, segue produzindo sentidos no sujeito” (LAGAZZI, 2017, p. 203, grifos da autora). Somos Elisas, Fátimas, Beatrizes ... Marielles, personagens reais do mundo em seu impossível. Corpos artísticos-reais, torturados, assassinados, cuja dor, dói em nós.

REFERÊNCIAS

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  • SEGANFREDO, G. de F. C.; CHATELARD, D. S. Das Ding: o mais primitivo dos êxtimos. Cadernos de Psicanálise - CPRJ, Rio de Janeiro, v. 36, n. 30, p. 61-70, jan./jun. 2014. Disponível em: http://cprj.com.br/imagenscadernos/caderno30_pdf/05_Das_Ding_o_mais_primitivo_dos_extimos.pdf Acesso em: 4 jul. 2018.
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  • 7GRAUS. Dicionário de símbolos. Disponível em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/numero-7/. Acesso em: 29 jun. 2018.
    » http://www.dicionariodesimbolos.com.br/numero-7
  • 1
    O trajeto analítico da Minissérie que foi desenvolvido pelo GPDISCMÍDIA-CNPq-UEM resultou no e-book Minissérie em análise: sujeito, corpo(s), imagens, organizado por mim (LARA, 2018).
  • 2
    Refiro-me a corpos-sujeitos considerando, discursivamente, tal como Ferreira (2015a, p. 15) que será logo mais citada, que o corpo não se reduz a lugar de habitação do sujeito, mas é o “próprio sujeito”.
  • 3
    Memória na perspectiva discursiva, sendo o “esquecimento” o estruturante do seu funcionamento (Cf. ORLANDI, 2012, p. 169).
  • 4
    Art. 121 do Código Penal Brasileiro que enquadrou o ex-noivo da filha de Elisa e o marido de Beatriz. Embora eu tome como referência a edição atualizada até abril de 2017, o artigo em questão vigorava em 2009, ano este da prisão dos sujeitos-personagens. Posteriormente, com a Lei Nº 13.104, de 9 de março de 2015, o art. 121, § 2° do Código Penal, passou a ter o inciso VI que trata do Feminicídio.
  • 5
    Art. 33 da Lei Nº 11.343 que enquadrou Fátima e outra personagem, Rose, esta não focalizada neste estudo.
  • 6
    Cf. dor psíquica em Fleig (2004).
  • 7
    Cf. mais à frente, menção a Orlandi (2004) sobre o sentido de “ordem” relacionada ao simbólico e ao real da história.
  • 8
    Em um Dicionário de símbolos (2018), cuja visibilidade está, aparentemente, mais para os aspectos místicos do que para quem realiza a postagem (não há um sujeito que se diga autor ou responsável pelo dizer, mas uma empresa que assina o site) - num duplo efeito de um dizer valer por si como se fosse verdadeiro e a ausência de uma fonte que lhe imprima suposta veracidade -, o “número sete” é associado à representação da “totalidade”, “perfeição”, “consciência”, “intuição”, “espiritualidade” e “vontade”, simbolizando, ainda, “conclusão cíclica e renovação”. Afirma-se, no site, que “[...] justamente por representar o fim de um ciclo e o começo de um novo, [o sete] é um número que traz a ansiedade pelo desconhecido”, tendo uma “grande importância simbólica para o mundo cristão e para muitas outras mitologias”. Por mais que tal dicionário não se sustente em base científica explicitada, sendo o site assinado por uma empresa comunicacional, o que traz, assim como determinadas outras informações presentes em postagens outras, de curiosidade mística e/ou religiosa, transita, de alguma forma, por publicações de base científica reconhecida.
  • 9
    “O real em Lacan não é uma esfera pré-discursiva da qual o simbólico poderia aproximar-se ou distanciar-se, ao contrário, é efeito do próprio simbólico, como aquilo que o simbólico expulsa para adquirir consistência. O real é pleno, sem fissura, irrepresentável, inomeável”, esclarecem Baldini e Mariani (2013, p. 112). Real que Pêcheux (1997a, p. 29) afirma “[...] como pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser ‘assim’”, “[...] impossível... que seja de outro modo”. Esta formulação de real por Pêcheux “ressignifica”, conforme Lagazzi (2017, p. 203), “o estatuto do impossível”, pois não se trata mais de negar o possível e sim de afirmar o “real como ‘pontos de impossível’”.
  • 10
    Cf. Ferreira (2015c, p. 163). Na seção seguinte, retomo esse “real do discurso” como sendo a resistência, com base na autora.
  • 11
    O duplo termo e a formulação conceitual “corpos-vaso” eu construo a partir do texto “Da criação ex nihilo”, de Lacan ([1960], 2008a), publicado em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise.
  • 12
    No artigo “Das Ding: o mais primitivo dos êxtimos”, Seganfredo e Chatelard (2014) afirmam que “êxtimo” faz com que lembrem de “Unheimlich, o estranho familiar” que aparece no texto “O ‘estranho’” (1919), de Freud: “Ambas [as palavras êxtimo e Unheimlich] parecem carregar certa ambiguidade. Ambas parecem portar a noção de interior e exterior acontecendo juntos. Ambas são capazes de conjugar o fora e o dentro. Ambas apontam para algo da ordem do real. Êxtimo: o mais íntimo, o mais particular, o mais interior, mas que está excluído, fora. Unheimlich: aquilo que é estranho, estrangeiro e familiar ao mesmo tempo.” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. 63, grifo meu).
  • 13
    Seganfredo e Chatelard (2014, p. 66) entendem que “Lacan situa das Ding num lugar anterior ao recalque, é o que ele chama, originalmente, de o ‘fora-do-significado’ (Ibid. [a expressão Ibid., empregada pelas autoras, faz referência a O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise], p. 71). Pleno e vazio ao mesmo tempo, ou melhor, pleno de vazio”. E imediatamente interrogam: “Ora, não seria este o lugar do real?” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. 66, grifo meu). Logo mais, as autoras fazem referência ao momento em que Lacan se remete a Heidegger para ilustrar a teorização de a Coisa, partindo do exemplo do oleiro na construção de um vaso: “A modelagem de um vaso acontece a partir do nada, ‘criação ex-nihilo’. O nada, o furo, o vazio do vaso é justamente o lugar onde se situa das Ding. As paredes e o fundo do vaso são as redes significantes modeladas pelo homem em torno do real hipotético que é a Coisa. A criação de um objeto, diz Lacan, pode ter a função de representar a Coisa, de marcar seu lugar, ao contrário de evitá-la.” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. 67).
  • 14
    Em suas referências, as autoras trazem O seminário, livro 7: a ética da psicanálise referido como um todo, sem distinção a textos específicos contidos em tal livro - distinção esta que eu emprego em minhas referências -, e utilizam a edição de 1991 publicada pela Editora Jorge Zahar. Como os textos de Lacan reunidos no livro 7 abrangem o período de 1959 a 1960, as menções a tal livro, realizadas pelas autoras, são acompanhadas destas datas: 1959-60.
  • 15
    No livro O uso dos corpos, Agamben (2017, p. 276, grifos do autor), ao abordar a “Obra e inoperosidade”, em meio a menções a Foucault e Benjamin, afirma que o que denomina “forma-de-vida não é definido pela relação com uma práxis (energia) nem com uma obra (ergon), mas por uma potência (dynamis) e por uma inoperosidade”. Ele compreende que “a forma-de-vida não pode reconhecer-se nem ser reconhecida, porque o contato entre vida e forma e a felicidade que nela está em questão se situam além de todo possível reconhecimento e de toda possível obra. A forma-de-vida, é nesse sentido, antes de tudo, a articulação de uma zona de irresponsabilidade, em que as identidades e as imputações do direito estão suspensas” (AGAMBEN, 2017, p. 278). Minha menção à dor que os corpos-sujeitos personagens materializam em vidas entrecruzadas pela dor que dói em nós e nos depara com a dor real de corpos-sujeitos reais não se refere a uma arte que imita a vida ou vice-versa, mas como a discursivização desses corpos-sujeitos personagens em dor funcionam como metáforas de corpos-sujeitos reais que são dor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2018
  • Aceito
    25 Ago 2019
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