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DO FATO DA LÍNGUA NA CONSTITUIÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: ARQUIVO, MEMÓRIA E IMAGINÁRIO

On the Fact of Language in the Constitution of Public Policy: Archive, Memories, and Imaginary

Del hecho del lenguaje en la constitución de políticas públicas: archivo, memoria e imaginario

Resumo

Neste trabalho o objetivo é compreender como políticas públicas que envolvem línguas atuam na tessitura e na reafirmação da língua em sua ordem imaginária. Para tanto, vale-se de um arquivo em específico, o Banco de Políticas Públicas sobre Línguas no Brasil (BPL), cuja organização tem mostrado um funcionamento articulado entre a língua como condição material do discurso e a língua como objeto simbólico. Tomando como base a Análise de Discurso em sua articulação com a História das Ideias Linguísticas, assume-se as políticas públicas como textualizações político-normativas, e a partir delas trabalha-se o fato da língua (Pêcheux, 2010) na materialidade do arquivo, para depreender a forma como discursivamente as políticas (re)significam o referido imaginário.

Palavras-chave:
Políticas públicas; Língua; Imaginário; Arquivo; Memória

Abstract

In this work, we aim to understand how public policies involving languages ​​act in the texture and reaffirmation of language in its imaginary order. To this end, we rely on a specific archive, the Public Policy Bank on Languages ​​in Brazil (BPL), whose organization has shown us an articulated functioning between language as a material condition of discourse and language as a symbolic object. Drawing on Discourse Analysis in its articulation with the History of Linguistic Ideas, we assume public policies as political-normative textualizations and, based on them, we work on the fact of language (Pêcheux, 2010) in the materiality of the archive to deduce how discursively policies (re)signify the mentioned imaginary.

Keywords:
Public Policy; Language; Imaginary; Archive; Memory

Resumen

En este trabajo, nuestro objetivo es comprender cómo las políticas públicas que involucran lenguas actúan en la textura y reafirmación del lenguaje en su orden imaginario. Para ello, nos basamos en un archivo específico, el Banco de Políticas Públicas sobre Lenguas en Brasil (BPL), cuya organización nos ha mostrado un funcionamiento articulado entre el lenguaje como condición material del discurso y el lenguaje como objeto simbólico. Tomando como base el Análisis del Discurso en su articulación con la Historia de las Ideas Lingüísticas, asumimos las políticas públicas como textualizaciones político-normativas y, a partir de ellas, trabajamos el hecho del lenguaje (Pêcheux, 2010) en la materialidad del archivo, para luego deducir cómo discursivamente las políticas (re)significan el mencionado imaginario.

Palabras clave:
Políticas públicas; Lenguaje; Imaginario; Archivo; Memoria

1 INTRODUÇÃO

Há algum tempo, nosso saber-fazer no campo das Letras permitiu abrir um espaço profícuo para a reflexão sobre políticas públicas e as formas como elas significam na historicidade de línguas e de processos que envolvem memória, história e identidade. Em nosso percurso, temos observado, no interior das Ciências da Linguagem, o quanto as políticas ainda são perspectivadas apenas em extremos que versam sobre conquistas históricas, equívocos incontestáveis ou projetos sem relevância. Desconsidera-se, com frequência, o quanto cooperam para um projeto de educação voltado ao reforço de línguas idealizadas, sistematizadas e imaginárias, inatingíveis, assim como a uma escola ideal, composta de sujeitos também ideais, mesmo quando se propõem a abarcar a diversidade.

Nessa trajetória, também tivemos a oportunidade de experienciar a construção de um arquivo de políticas públicas, denominado Banco de Políticas Públicas sobre Línguas no Brasil (BPL)1 1 Disponível em: https://www.ufsm.br/projetos/pesquisa/bpl/. Acesso em 11 abr. 2024. , um arquivo de língua, assim entendido por nós a partir de Scherer (2022) que, tecendo uma reflexão sobre o saber disciplinar, indica a importância de pensarmos em como a língua nos é dada a ver e ensinada por intermédio de vários artefatos de leitura. De modo geral, o arquivo reúne legislações formuladas nas esferas municipal, estadual e nacional brasileiras a respeito de temáticas que envolvem língua como objeto simbólico, seja a língua portuguesa, sejam outras línguas praticadas no espaço de enunciação brasileiro.

Enquanto um artefato de leitura de e sobre língua, o BPL tem nos mostrado que há uma singularidade em relação ao funcionamento da língua no conjunto das políticas públicas que constituem o seu corpora: não se trata apenas de uma reunião de tomadas de posição que se valem da língua para controlar o próprio modo como ela é significada no real pelos sujeitos e pela sociedade, mas de um arquivo que, valendo-nos de palavras de Zoppi-Fontana (2011), expõe processos discursivos em que a língua é, ao mesmo tempo, materialidade possível de inscrição do sentido na história e objeto de sua própria enunciação.

Esta perspectiva, que vemos a partir da organização do arquivo, interessa-nos na medida em que possibilita refletirmos a respeito de como a língua arregimenta a própria imagem que se faz dela, o que significa, para nós, um caminho outro de leitura, em que equívoco e história não são negligenciados. Para entendermos, portanto, como se dá esse funcionamento - da língua como condição do discurso e da língua como objeto simbólico - tomamos as políticas públicas enquanto textualizações em cuja formulação inscreve-se um imaginário de língua, em sua unidade, e produzimos uma leitura de arquivo ancorada no que Pêcheux teoriza sobre o “fato da língua” na constituição do arquivo, ou seja, o jogo contraditório entre a “língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como inscrição dos efeitos de sentido na história” (2010, p. 58, grifos do autor). Não trabalhamos, assim, em uma dada legislação de modo específico, mas com políticas públicas como corpora de arquivo e com a forma como a constituição destes corpora inscreve discursivamente o fato da língua em direção à manutenção de uma dada memória e de um dado imaginário.

Nosso trabalho fundamenta-se na Análise de Discurso em sua articulação com a História das Ideias Linguísticas e procura dar a ver que, embora as políticas públicas apresentem-se, de modo geral, como mero observatório de textualizações normativas que ofertam evidências do funcionamento de “línguas lógicas de referentes unívocos”, tomando emprestadas as palavras de Pêcheux (2010PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. Trad. de Maria das Graças L. M. do Amaral. In: ORLANDI, E. P. (org.). Gestos de leitura: da história no discurso. 3. ed. Campinas: Unicamp, 2010. p. 49-59., p. 55), interrogá-las possibilita compreender que é “no sujeito que o mundo faz sentido e que a linguagem se diz, se realiza como discurso” (Orlandi, 2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004. p. 11-70., p. 64).

2 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA

No campo das Ciências da Linguagem, são variados os trabalhos que interrogam a relação entre a construção da unidade e da identidade nacional pela língua e a constituição das ideias linguísticas no Brasil. Este escopo de investigação tem contribuído para a compreensão de que, em um país colonizado como o Brasil, em que a língua portuguesa foi imposta, experienciamos e filiamo-nos a uma memória heterogênea que não cessa de produzir efeitos diversos e contraditórios em nossa brasilidade e na historicidade da língua que falamos. Se hoje reconhecemos o Brasil como um país política e juridicamente constituído pela língua portuguesa, assim afirmando uma homogeneidade e um monolinguismo idealizados - porém necessários do ponto de vista da constituição do Estado nacional -, é porque esse imaginário, em nada lógico ou evidente, foi e continua sendo construído sócio-historicamente a partir de processos discursivos que, em diferentes tempos históricos, garantem à língua portuguesa, no espaço de enunciação brasileiro, sua historicização particular e sua posição de supremacia e poder em relação a outras línguas aqui praticadas.

Nosso trabalho envolve formas políticas de assegurar um imaginário de língua, em sua unidade, o que, em nossa posição teórico-metodológica, pode ser entendido também como a projeção de um ideal. A partir de Orlandi (2002ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento linguístico: para uma História das Ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.), sabemos que a unidade não é questão exclusiva da noção de Estado, visto que ela é condição necessária também à constituição de qualquer língua. Há língua e há línguas, duplicidade esta própria à língua enquanto objeto da linguística (Gadet; Pêcheux, 2004GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Trad. de Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004. p. 35-40.) e, portanto, ao modo de existência da linguagem. Porém, é próprio de um Estado nacional amparar-se na unidade da língua, em seu funcionamento na ordem do imaginário, para estruturar sua existência como instância política e de poder e as determinações que dela emanam. Trata-se, assim, como afirmam Pêcheux e Gadet (2004, p. 37), de um processo de transformação da questão linguística em um projeto político, que envolve a “constituição da língua nacional através da alfabetização, aprendizagem e utilização legal dessa língua” e a proclamação do ideal de igualdade a partir da absorção de diferenças pelo viés da universalização das relações jurídicas.

Recuperando um pouco a história do Brasil, ainda que a cronologia não seja indicativa de funcionamentos discursivos, observamos que, em face da colonização, unidade de Estado e de língua nacional são questões garantidas enquanto direito especialmente a partir do século XIX. Entre outros movimentos intelectuais e políticos, é neste período que se evidencia o desenvolvimento da gramatização da língua portuguesa falada no Brasil (Orlandi, 2002ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento linguístico: para uma História das Ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.), acontecimento marcado pelo gesto de autoria de brasileiros na construção de instrumentos linguísticos que dão garantia de uma representação da unidade da língua nacional, do saber sobre ela e dos meios para seu ensino. A gramatização projeta-se em relação à identidade clivada da língua na relação entre Portugal e Brasil, particularizando um processo outro de historicização da língua em território brasileiro, ao mesmo tempo que se constitui como uma tomada de posição política face à diversidade linguística e cultural brasileira, ao definir uma identidade sociopolítica aos sujeitos na perspectiva da cidadania e da escolarização por intermédio de uma língua em detrimento de outras.

A sobreposição entre língua oficial e nacional e destas com a língua materna dos brasileiros, no entanto, não acontece sem consequências. O Brasil é um país multilíngue2 2 Consideramos, como Guimarães (2007, p. 64), que o espaço de enunciação brasileiro é multilíngue tanto no sentido de que, no Brasil, “praticam-se línguas como o português (que é praticada como língua nacional-oficial), as línguas indígenas, as línguas de imigração, as línguas de fronteira, quanto no sentido de que o português se divide em várias ‘línguas’ em vários e diversos falares das regiões as mais diversas”. e a diversidade negligenciada em favor da pretensa unidade nacional continua pulsando e significando no real da experiência dos sujeitos, em nossa memória heterogênea, ainda que muito já se tenha perdido historicamente, especialmente no tocante a línguas indígenas e africanas. Assim como a identidade é movimento e está em constante elaboração, como afirma Orlandi, não há língua nacional que não se constitua em um “movimento de confrontos, alianças, oposições, ambiguidades, tensões com outras línguas” (2002, p. 94), o que acaba por (re)inscrever, constantemente, no discurso, a relação tensa entre unidade e diversidade enquanto um jogo político.

É precisamente neste ponto, que trata de formas políticas e ideológicas de se manter um dado imaginário e, portanto, uma dada memória em diferentes tempos históricos, que entendemos o papel exercido pelas políticas públicas brasileiras que envolvem línguas. Para nós, tais políticas constituem-se como materialidades linguístico-discursivas que nos possibilitam compreender a história e a memória da unidade e da identidade nacional pela língua a partir de posição política de poder do Estado como agenciador e administrador de sentidos. Ao determinarem sobre nomenclaturas, estatutos, funções sociais e usos, as políticas participam da historicidade das línguas praticadas no Brasil, universalizando relações a partir da força do aparato jurídico do Estado.

E mesmo que elas não tenham a mesma função e a relevância dos instrumentos linguísticos, não se pode dizer que não os tomem por fundamento e que a relação entre eles não possa ser colocada em perspectiva. Além de assumi-los enquanto argumentos de ciência, trabalhá-las nos possibilita também observar como elas acompanham o desenvolvimento da ciência linguística no Brasil (Orlandi, 2002ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento linguístico: para uma História das Ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.), pela forma como (inadvertida ou equivocadamente) se valem de conhecimentos sobre a linguagem para então normatizar questões linguísticas em diferentes condições de produção3 3 Entre os vários textos que tratam desta relação, destacamos o artigo “Estado, Ciência, Sociedade: por Entre Línguas e Teorias”, de Claudia Regina Castellanos Pfeiffer e Marisa Vieira da Silva, publicado no número 48 da Revista Letras (UFSM), em 2014. . Por isso, é mister assumi-las como objeto de estudo, uma vez que, mesmo sendo normativas, o que pressuporia o apagamento do político, constituem-se como materialidades que podem ser submetidas a leituras que consideram suas condições de produção e que se interessam pela explicitação de mecanismos ideológicos em funcionamento no interior de processos discursivos diferenciados. Isso nos permite ultrapassar a evidência do sentido (literal) e trabalhar repetições, deslocamentos e rupturas como parte da historicidade do sentido.

3 DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM ARQUIVO

Nosso gesto de leitura em relação às políticas públicas como textualizações político-jurídicas se dá, como expusemos, por intermédio de um arquivo em específico, o Banco de Políticas Públicas sobre Línguas no Brasil (BPL). O BPL consiste em um trabalho de organização de arquivo construído a partir de um projeto de pesquisa da UFSM voltado a políticas de língua na perspectiva da Análise de Discurso. O arquivo não se dedica a um tema em específico, mas a normatizações de modo geral, produzidas nas esferas municipal, estadual ou nacional do poder público brasileiro, que envolvem a língua como objeto simbólico direta ou indiretamente, seja de forma expressa na ementa - o preâmbulo que antecipa e apresenta a matéria legislada -, seja no corpo do texto, em meio a regulamentações de teor mais amplo e que incluem outras questões além das linguísticas.

Estando revogadas ou ainda em vigência4 4 O recorte temporal que dá limite ao arquivo do BPL vai da constituição da República aos dias atuais, mas também dá visibilidade ao Brasil Colônia e ao Brasil Império. Ainda que as Ciências Sociais e Humanas indiquem que só se pode falar de políticas públicas no Brasil mais ou menos a partir da década de 1930, quando o Estado Nacional começa a estruturar-se definitivamente, o BPL resgata esse processo discursivo “anterior” do ponto de vista cronológico porque, em se tratando de Brasil, refletir sobre o estatuto de qualquer língua que seja sem considerar a história da colonização e de outras questões linguísticas no processo de formação do Estado Nacional significaria ingenuamente deixar-se levar pela ilusão referencial própria à constituição das políticas públicas. , o BPL reúne as legislações e as disponibiliza por ordem cronológica e por regiões brasileiras, dando visibilidade a processos discursivos variados, que envolvem, de modo geral, a definição de éticas de utilização da linguagem e de alicerces conceituais que (re)estabelecem a referência identitária do sujeito com a língua. Por isso, entendemos que ele se constitui como um arquivo a partir do qual a língua em sua historicidade constitutiva é atualizada ou (res)significada sempre como uma condição, seja à identidade nacional, regional ou local, seja à cidadania. Trata-se, assim, valendo-nos das palavras de Nunes (2008NUNES, J. H. O discurso documental na história das idéias lingüísticas e o caso dos dicionários. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 52, n. 1, p. 81-100, 2008.), de um arquivo que produz uma ‘regionalização da memória’ das línguas e do saber sobre elas no espaço de enunciação brasileiro, à medida que historiciza um discurso sobre formas de garantir a unidade do Estado pela língua e de controlar a forma como deve se dar a relação do sujeito com a linguagem, em termos de uso e de identificações. Trata-se de um discurso que, reiteramos, está em pleno funcionamento, ainda mais no século XXI, em que as relações entre línguas e identidade são tão largamente afetadas por condições de produção voltadas ao multiculturalismo e à mundialização.

Em relação ao arquivo, nosso intuito não é trabalhar uma legislação em específico, mas produzir um gesto de leitura daquilo que sua própria organização coloca-nos em perspectiva. Por se tratar de legislações que envolvem línguas, temos à primeira vista a evidência da língua como objeto simbólico, sendo trabalhada pelo Estado em direção à manutenção da unidade e da identidade nacional. Entretanto, o corpus que integra o arquivo é constituído também da língua como aquilo que dá corpo e forma material ao sentido. Essa arregimentação, como perspectivamos neste texto, não é um fato qualquer, posto que os modos de textualização do discurso são indícios da forma como o Estado pratica significações, determinando a respeito dos objetos simbólicos aos quais se dedica.

Por isso, ainda que as políticas públicas apresentem-se como textualizações padronizadas que fazem funcionar “uma certa concepção de língua em que não se reconhece que a língua tem sua materialidade” (Orlandi, 2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2007., 96), ao ler o arquivo em sua forma mais ampla o objetivo é mostrar que os fatos significados nas políticas públicas estão sujeitos a interpretação e que a “língua, na medida em que é constituída pelo deslize, pela falha, pela ambiguidade, faz lugar para a interpretação” (Orlandi, 2007, p. 97).

Para assim proceder, nós nos posicionamos frente ao arquivo como materialidade sujeita a “um espaço polêmico das maneiras de ler” (Pêcheux, 2010PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. Trad. de Maria das Graças L. M. do Amaral. In: ORLANDI, E. P. (org.). Gestos de leitura: da história no discurso. 3. ed. Campinas: Unicamp, 2010. p. 49-59., p. 51, grifos do autor), na contramão de evidências e da transparência da linguagem, e trabalhamos naquilo que Pêcheux demonstra ser negado nas práticas de leitura contemporâneas: o fato da língua, melhor dizendo, o “fato teórico que constitui a existência da língua como materialidade específica” (2010, p. 56). A negação da materialidade da língua na constituição do arquivo é aquilo que, para Pêcheux, está na base da construção de leituras historicamente consagradas das culturas literária e científica, que circulam como verdadeiras, produzindo efeitos “na relação da nossa sociedade com sua memória histórica” (Pêcheux, 2010, p. 54). De forma mais precisa, separando, nas palavras de Orlandi (2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2007.), o que é literal e o que é sujeito a interpretação, aqueles que têm direito à interpretação e aqueles que não têm direito a ela, os textos instáveis e os que têm estabilidade de sentidos.

Para Pêcheux, a negação do fato da língua em sua materialidade significante acentua cada vez mais a ambiguidade entre “o trabalho sobre a plurivocidade do sentido como condição mesma de um desenvolvimento interpretativo do pensamento” e a “apreensão de um sentido unívoco inscrito nas regras de uma assepsia do pensamento (as famosas leis-semântico-pragmáticas da comunicação)” (2010, p. 54, grifos do autor). Trata-se, assim, de uma ambiguidade entre aqueles autorizados a uma sua interpretação, o que, por esta via, apresentar-se-ia como um gesto de leitura ilusoriamente superior ou destituído da própria língua como materialidade significante; e o tratamento literal dos textos, a objetividade necessária para que os arquivos “sejam facilmente comunicáveis, transmissíveis e reproduzíveis” (2010, p. 52), o que, por sua vez, apresentar-se-ia como um gesto de projeção da língua imaginária, perfeita e incapaz de falha.

Contra essas duas posições, o autor propõe que compreendamos o arquivo como “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” (2010, p. 51) e defende a possibilidade de leituras variadas e contraditórias, a partir da consideração da relação entre a “língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como inscrição dos efeitos de sentido na história” (2010, p. 58, grifos do autor). Assumir esta relação significa compreender que o arquivo “jamais é dado” (Guilhaumou; Maldidier, 2016GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D. Efeitos do arquivo. In: GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D.; ROBIN, R. Discurso e arquivo: experimentações em análise de discurso. Trad. de Carolina Fedatto e Paula Chiaretti. Campinas: Unicamp, 2016. p. 115-144., p. 116) e que pode ser lido, trabalhado e recortado pelo analista de diferentes maneiras, sendo jamais o mesmo, o que inevitavelmente envolve desconstruir o imaginário de língua como mera sintaxe, cuja ordem significante se traduz como organização dos sentidos (Orlandi, 2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2007.).

Língua é “base comum de processos discursivos diferenciados” (Pêcheux, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Unicamp, 2009. p. 77-128., p. 81, grifos do autor). Ela possui uma ordem própria, mas com relativa autonomia, o que pressupõe não a reduzirmos a um sistema meramente abstrato, ou “expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva etc., que utilizaria ‘acidentalmente’ os sistemas linguísticos” (Pêcheux, 2009, p. 82, grifos do autor). Apoiando-nos em Pêcheux, compreendemos que ser a condição de possibilidade de discursos pressupõe que o sistema da língua, em suas leis internas, seja o mesmo para quem quer que seja; mas que o sujeito, por seu turno, não é indiferente à língua, pois ele submete-se a ela para significar e o faz sempre em determinadas condições de produção que afetam o sentido. Disso decorre o sentido como um efeito e a literalidade como apenas um sentido possível.

3.1 DO FATO DA LÍNGUA (I)

Segundo Pfeiffer (2010PFEIFFER, C. C. Políticas públicas de ensino. In: ORLANDI, E. P. (org.). Discurso e políticas públicas urbanas: a fabricação do consenso. Campinas: RG, 2010. p. 05-10., p. 85), políticas públicas são textualizações “de modos de interpelação dos sujeitos pela administração jurídica do Estado”. Em outras palavras, são modos de orientação do sujeito sobre direitos e deveres, ou ainda meios a partir dos quais o Estado (re)ordena, (re)distribui, divide, resgata, afirma, delimita, atribui, organizando e administrando o espaço social urbano, constitutivamente um espaço de litígio. Tomadas nesta perspectiva de direitos e deveres da forma-sujeito de direito, que projeta sentidos de responsabilização, as políticas públicas podem ser compreendidas como textualizações político-jurídicas elaboradas como alternativa para a resolução de conflitos sociais que, como tal, inscrevem-se no político, ao mesmo tempo que agem sobre ele, visto que, frente às diferenças e desigualdades estruturantes das relações sociais, pressupõem uma tomada de posição, independentemente do objeto simbólico.

Para se constituírem em direção ao coletivo para o qual são propostas e para intervirem no social produzindo o efeito de coerência entre o que é necessário e o que é eficiente e possível, Orlandi (2010ORLANDI, E. P. Apresentação. In: ORLANDI, E. P. (org.). Discurso e políticas públicas urbanas: a fabricação do consenso. Campinas: RG, 2010. p. 05-10., p. 7) explica que as políticas públicas fundamentam-se na lógica do consenso, uma noção saturada em seus sentidos e que “pressupõe a existência de uma região homogênea de afinidades na sociedade que seria preciso distinguir para estabelecer políticas adequadas”. Considerando que a igualdade e a simetria das relações sociais são um projeto inalcançável, o consenso projeta-se como solução para o desentendimento5 5 Amparados em Rancière, entendemos desentendimento como “[...] o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo algum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura” (1996, p. 11). , a partir do imaginário de controle de sentidos que se opera no estabelecimento de uma direção única para os processos de interpretação, direção esta que se sustenta suposta ou concretamente na opinião pública6 6 É importante pontuar que, em se considerando agendas e projetos de governo, não de Estado, o caráter público das políticas é bastante frágil, pois, em sua formulação, entram em jogo muitos interesses, por vezes de posições distintas, que nem sempre correspondem àquilo que demanda a coletividade implicada. Se tomarmos como exemplo as decisões do governo Temer que excluíram a língua espanhola da grade de disciplinas da educação básica e, em um caso mais extremo, as políticas bolsonaristas voltadas ao direito à aprendizagem da norma culta da língua portuguesa e à proibição do uso de linguagem inclusiva nas escolas, veremos que o interesse público não tem condições de se sustentar como algo consensual. Estas são políticas, nesse caso, notadamente produzidas à revelia dos espaços de representação democrática, que evidenciam outros mecanismos ideológicos de controle dos sentidos, a exemplo da própria censura. e no que uma dada maioria ou coletividade entende como ideal para a condução de um dado problema.

É por esta via que observamos a primeira instância de funcionamento do fato da língua na constituição do corpus do arquivo em questão. Para produzirem o consenso e serem direcionadas a todos, as políticas públicas precisam ser escritas, lidas, aprovadas, publicadas de uma forma padrão tal que pressuponha identidade e uniformidade no tratamento linguístico e na organização do texto. Assim, no nível da formulação, os textos apresentam epígrafe, ementa, preâmbulo, artigos, alíneas, incisos, fechos, mas também frases curtas, ordem direta, vocabulário simples, impessoalidade, concisão, correção, norma padrão. Aqui, entra em jogo a língua oficial, a língua das ações formais do Estado (Guimarães, 2007GUIMARÃES, E. Políticas de línguas na linguística brasileira. In: ORLANDI, E. P. (org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes, 2007. p. 63-82.), que é trabalhada de forma pragmática em termos de objetividade, clareza, precisão, pelo compromisso jurídico-administrativo de, ao circularem, os documentos serem difundidos e “compreendidos” no efeito do sentido único de suas determinações por todos neles implicados. Por consequência, o que se destaca na constituição do arquivo do BPL é a repetibilidade em nível de organização, uma paráfrase discursiva da forma, que, dizendo sempre a partir dos mesmos modos, acaba por reinscrever constantemente no fio do discurso uma mesma memória.

Em análise das línguas da política, Zoppi-Fontana (2011, p. 67, grifos da autora) questiona-se se “há uma língua própria para os assuntos de Estado, para a administração da res pública?” Em seu trabalho, a autora define língua política como “um modo de dizer produzido no exercício do poder” (2011, p. 69, grifos da autora), que serve aos mecanismos de controle e gestão enunciativos da língua e àqueles a partir dos quais se fala sobre essa língua, principalmente no caso da mídia. Em consonância com a autora, diríamos que este funcionamento da língua no âmbito da administração pública do Estado, que se propõe neutro e universalizante, quando, por outra via, é normativo e excludente, reflete o funcionamento de línguas de madeira, uma “ilusão de uma total coincidência entre o visível, o dizível e o pensável, como efeito da pressão estabilizadora da administração, do saber técnico e da gestão simbólica sobre o movimento metafórico da língua” (Zoppi-Fontana, 2011, p. 71).

Para assim se constituírem, as políticas públicas amparam-se nos instrumentos linguísticos, servindo-se de suas normas - tanto aquelas que perfazem usos admissíveis e adequados, da gramática, quanto aquelas que autorizam sentidos possíveis, do dicionário -, associando o “efeito de homogeneidade da língua ao registro vernacular” (Zandwais, 2012ZANDWAIS, A. Subjetividade, sentido e linguagem: desconstruindo o mito da homogeneidade da língua. In: ZANDWAIS, A. (org.). História das Ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: UPF, 2012. p. 175-191., p. 182). Afirmando isso não estamos considerando que haja menção ou discussão sobre a pertinência de orientações ou de regramento dos instrumentos linguísticos nas legislações, pois as políticas públicas são textos normativos em cuja formulação não há espaço nem para a reflexão, nem para a metáfora. Por outra via, entendemos que, pelo modo como são formuladas, pelo modo como são orientadas, pela arregimentação que se faz da língua, há na textualização dessas políticas uma projeção da sistematização da língua imaginária proposta pelos instrumentos linguísticos7 7 Sobre este aspecto, entendemos a importância de recuperar as palavras de Gadet e Pêcheux (2004, p. 53, grifos dos autores) quando estes afirmam que o trabalho de gramáticos, assim como de linguistas, consiste em construir a rede do real da língua, “de maneira que essa rede faça UM, não como efeito de decisões que viriam arbitrariamente rasgar essa unidade em um fluxo, mas por um reconhecimento desse UM enquanto real, ou seja, como causa de si e da sua própria ordem”. Supor que o real da língua é representável porque inscrito em uma rede do repetível é o equívoco que se projeta nessa arregimentação da língua que se faz pelo Estado. , visto que a língua ideal, pretensamente neutra e abstrata, literal, está ali escrita e representada.

Por esta primeira instância, entendemos as políticas públicas tal como Orlandi (2002ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento linguístico: para uma História das Ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.), como ‘projeções de um desejo’, uma vez que formam um conjunto de dizeres organizados por uma norma estruturante, o juridismo8 8 Conforme Lagazzi (2010, p. 75), a instância do jurídico constitui-se como uma das memórias do dizer em nossa sociedade, sendo “configurada pela relação entre direitos e deveres logicamente estabilizados, sendo a inscrição social do sujeito constantemente demandada por práticas tensas”. , que padroniza e uniformiza os modos de dizer, dando-os a ver de forma literal e evidente, “como se não tivessem memória” (Orlandi, 2004, p. 46), destituídos do saber que os constituiu9 9 Explica Orlandi (2004) que, sem história e sem equívoco, remetemos o sentido diretamente à realidade, daí por que os textos em questão circularem como imagem pura, negando a interpretação e a própria materialidade da língua como base de processos discursivos diferenciados. . O que depreendemos são vestígios de uma língua tomada enquanto sistema abstrato, domesticável, que é arregimentada para dar corpo a sua própria representação imaginária em seu funcionamento, na discursividade. É uma língua assumida como instrumento, que serve para comunicar somente10 10 Aqui fazemos alusão a Pêcheux (2009, p. 83, grifos do autor), quando o autor afirma que a expressão instrumento de comunicação deve ser tomada em sentido figurado, não literal, posto que “esse ‘instrumento’ permite, ao mesmo tempo, a comunicação e a não comunicação, isto é, autoriza a divisão sob a aparência da unidade, em razão do fato de não se estar tratando, em primeira instância, da comunicação de um sentido”. , porque pensada para um sujeito ideal, aquele para o qual os sentidos de cidadania como condição são projetados.

3.2 DO FATO DA LÍNGUA (II)

A partir desta arregimentação como instrumento, passamos à língua como objeto simbólico, ou seja, como uma matéria a ser normatizada em parte ou no inteiro teor das legislações. Nessa perspectiva, de modo geral, dá-se visibilidade ao funcionamento da língua como materialidade passível de inscrição do sentido na história e objeto de sua própria enunciação. Zandwais (2012ZANDWAIS, A. Subjetividade, sentido e linguagem: desconstruindo o mito da homogeneidade da língua. In: ZANDWAIS, A. (org.). História das Ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: UPF, 2012. p. 175-191.), ao analisar o mito da homogeneidade da língua, explica que a relação do sujeito com a linguagem não é imune à subordinação imposta pelo Estado, porque, por meio dela, regulam-se os modos a partir dos quais o sujeito apreende o mundo, interpreta suas experiências e as inscreve em uma dada ordem simbólica. Conforme a autora:

Nos últimos dois séculos, assujeitado às leis do Estado nação, às formas de recepção e expressão culturais da nação, aos costumes da sociedade dentro da qual se reconhece como sujeito de direito, o sujeito moderno não somente passa a reconhecer-se a partir das formas como se estratifica socialmente, mas também a partir do modo como as determinações históricas que o constituem falam dele. E essas determinações permitem que ele simbolize a ordem do real pela linguagem não somente como forma de codificar o vivido, o experenciado, mas também a partir dos registros linguísticos de que ele se utiliza para interagir com o meio social, com a história e com a própria memória, ou formas de realização e de variação. Ela fala do sujeito, de suas condições de existência, de suas formas de expressão (Zandwais, 2012ZANDWAIS, A. Subjetividade, sentido e linguagem: desconstruindo o mito da homogeneidade da língua. In: ZANDWAIS, A. (org.). História das Ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: UPF, 2012. p. 175-191., p. 180-181).

Em seu texto, Zandwais (2012ZANDWAIS, A. Subjetividade, sentido e linguagem: desconstruindo o mito da homogeneidade da língua. In: ZANDWAIS, A. (org.). História das Ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: UPF, 2012. p. 175-191.) mostra-nos que o sujeito de direito necessita ser reconhecido em termos de cartorialidade, de suas filiações históricas, dos lugares que ocupa e do código que domina. Isso reforça que há, na perspectiva do Estado, uma necessidade premente de forjar o imaginário de língua homogênea, de tal forma a forjar o imaginário de unidade nacional a partir disso. Como vimos, este é um processo que será garantido no Brasil a partir da gramatização da língua nacional, a língua portuguesa, a mesma que é ensinada nas escolas e que as políticas públicas assumem como oficial e arregimentam em termos de objetividade, neutralidade e clareza. A cidadania do brasileiro, então, perpassa necessariamente a filiação à língua portuguesa, relação intrínseca essa que, da perspectiva do jurídico, desconsidera as desigualdades inerentes às relações sociais e aos sujeitos e ao plurilinguismo como condição real de existência simbólica das línguas.

A projeção imaginária do monolinguismo na relação com o sujeito de direito não significa, no entanto, que o Estado seja alheio às questões de diversidade. Pelo contrário, considerando que a diversidade está diretamente relacionada à identidade e à memória, o Estado trabalha também tais questões, para gerenciá-las, conformando-as de tal modo que elas sejam entendidas como direitos e como uma abertura democrática, sem contudo afetarem aquilo que concerne à unidade nacional. No arquivo do BPL, este tratamento da diversidade fica bastante visível quando analisamos a organização cronológica do arquivo, em que mais de setenta documentos legais tratam de outras línguas que não a portuguesa, logo no início do século XXI. Tomando-se apenas alguns títulos do arquivo para análise, observamos que o conjunto apresenta uma constante: orientar o nome da língua e classificá-la, em termos de distribuição imaginária e institucional (Guimarães, 2007GUIMARÃES, E. Políticas de línguas na linguística brasileira. In: ORLANDI, E. P. (org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes, 2007. p. 63-82.) da língua para seus falantes:

Epígrafe: Lei Municipal n. 2.178, de 24 de março de 2021.

Ementa: Registra e reconhece o dialeto trentino como patrimônio cultural imaterial do município de Rodeio.

Epígrafe: Lei Municipal n. 2.451, de 14 de abril de 2021.

Ementa: Dispõe sobre a cooficialização das línguas Hunsrick e Talian no município de Barão/RS.

Epígrafe: Lei Municipal n. 13, de 03 de maio de 2021.

Ementa: Dispõe sobre o reconhecimento da língua nativa Tupi-Nheengatu como língua cooficial do Município de Monsenhor Tabosa e dá outras providências.

Ementa: Lei Municipal n. 2.541, de 05 de julho de 2022.

Epígrafe: Institui o “Talian” - Vêneto Brasileiro como a segunda língua oficial do município de Vila Flores.

Epígrafe: Lei Municipal n. 1.888, de 02 de maio de 2023.

Ementa: Dispõe sobre a oficialização do Patxôhã (língua materna do povo indígena Pataxó) no Município de Porto Seguro e dá outras providências.

(Legislações extraídas do arquivo do BPL. grifos nossos)

Essa constante entre nome (dialeto trentino, Hunsrick e Talian, Tupi-Nheengatu, Talian, Patxôhã) e classificação (patrimônio cultural imaterial, cooficialização, língua cooficial, segunda língua oficial, oficialização), além de refletir a organização e padronização das legislações do ponto de vista do aparato jurídico-político do Estado, significa também a necessidade de classificar a língua na perspectiva da cidadania. De um lado, remonta à paráfrase discursiva da forma, visto que também obedece a um padrão de ordenamento sintático que arranja verbos, objetos e qualificadores, na pretensão da literalidade do sentido do que está dito. De outro, uma vez que é próprio do Estado estruturar sua unidade, as legislações estratificam inicialmente o que é comum à coletividade nacional, como a língua oficial e a língua nacional, e o que é externo a ela, a língua estrangeira (Guimarães, 2007GUIMARÃES, E. Políticas de línguas na linguística brasileira. In: ORLANDI, E. P. (org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes, 2007. p. 63-82.), para assim qualificarem-nas ao sujeito. A partir disso, projetam a distribuição, também imaginária e institucional, da língua de comunidades e grupos, em relação de perspectiva e hierarquia.

Resgatando mais uma vez a história do Brasil, muito embora o funcionamento da língua portuguesa como língua oficial tenha se consolidado a partir de vários processos sócio-históricos há muito tempo, observamos que esta definição só é explicitada no Artigo 13 da Constituição Federal de 198811 11 Essa questão nos parece interessante, visto que, em versões anteriores da Constituição, ou não se trata de questões linguísticas, ou se trata apenas de língua nacional ou idioma nacional, sem referente, o que dá indícios de uma trajetória de construção da relação entre sujeito e nação. Diz-se, assim, língua nacional, mas não se diz que língua é essa, pressupondo, de um lado, uma certa obviedade de sentidos e, de outro, contornando o processo de definição da representação da língua portuguesa como língua nacional, como se ele não existisse. . A língua nacional, por sua vez, figura como objeto simbólico em uma gama de políticas que atravessam os tempos históricos do arquivo, porém com mais visibilidade no século XX, momento em que se está ainda consolidando as bases para a relação sujeito e nação. Junto a esse estatuto, na superfície do arquivo, aqui entendida como o que se apresenta como o que é dado a ver em face da organização dos documentos, também o nome da língua portuguesa é mais recorrente nas políticas do último século, especialmente em virtude das várias legislações que se vinculam de forma direta ao saber sobre a língua sustentado pelos instrumentos linguísticos e que dá representação à língua nacional. Apenas a título de ilustração, selecionamos da organização do arquivo do BPL os documentos legais que seguem:

Decreto-Lei n. 8.286, de 5 de dezembro de 1945.

Ementa: Aprova o Acôrdo Ortográfico para a unidade da língua portuguesa.

Lei n. 2.623, de 21 de outubro de 1955.

Ementa: Restabelece o sistema ortográfico do “Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa” e revoga o Decreto-Lei n. 8.286, de 05 de dezembro de 1945.

Portaria n. 36, de 28 de janeiro de 1959.

Ementa: Recomendar a adoção da Nomenclatura Gramatical Brasileira, que segue anexa à presente portaria, no ensino programático da Lingua Portuguêsa e nas atividades que visem à verificação do aprendizado, nos estabelecimentos de ensino.

Lei n. 5.765, de 18 de dezembro de 1971.

Ementa: Aprova alterações na ortografia da língua portuguêsa e dá outras providências.

(Legislações extraídas do arquivo do BPL. grifos nossos)

Colocando lado a lado estas relações de distribuição e classificação, poderíamos dizer, à primeira vista, que o século XX é o século da língua portuguesa e o século XXI é o século de outras línguas. Esta, porém, é uma percepção enganosa. Isso porque, nesse recorte temporal, significam condições de produção distintas para o tratamento das questões políticas na ótica do poder do Estado. Se o século XX é notadamente marcado pelas consequências da gramatização da língua portuguesa e da organização da sociedade brasileira do ponto de vista intelectual, científico e político, o século XXI já vem sendo caracterizado pelos efeitos da mundialização e do multilinguismo (Orlandi, 2012ORLANDI, E. P. Espaços linguísticos e seus desafios: convergências e divergências. Rua, Campinas, v. 2, n. 18, p. 1-19, nov. 2012.). Essa caracterização suscita, no âmbito da gestão administrativa do Estado, a necessidade de construção de medidas regulatórias que projetam salvaguarda e não apagamento, e que validam juridicamente a relação entre uma comunidade e uma dada língua, praticada enquanto objeto de identificação e de tessitura de relações sociais e memórias coletivas.

Nesse sentido, em se tratando de discursividade, muito embora a diversidade projetada, no nível sintático, como a conquista de direitos historicamente adquiridos, a determinação do estatuto das línguas como cooficiais ou patrimônio imaterial é um gesto outro, porém mesmo, de sinalizar a diferença, que não diminui as responsabilidades nem do sujeito, nem do próprio Estado, pelo que concerne à língua portuguesa. Dito de outro modo, o jogo entre unidade e diversidade, apagamento e recuperação, que se produz enquanto efeito da organização do arquivo pela forma como o apresentamos, não decorre de um processo de rompimento de uma memória e instauração de novos sentidos. Pelo contrário, a memória da nação, a identidade nacional, a língua portuguesa em seu imaginário de unidade permanecem inscrevendo sentidos na discursividade, enquanto repetibilidade histórica, que se materializa no gesto mesmo da distinção.

A partir de Pêcheux, sabemos que a memória “não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório” (2002, p. 56). Por isso, consideramos que a memória é constantemente presentificada a partir do processo contraditório que se opera entre ordem da língua e discursividade, pela arregimentação da língua como condição e como objeto simbólico. É na e pela língua que os nomes significam e, enquanto tais, individualizam. Da mesma forma, é na e pela língua que a classificação se opera, na medida em que ela é uma forma de qualificação, que define, estratifica e, portanto, diferencia. A contradição entre o direito à língua e o dever ao Estado e à submissão à língua portuguesa se processa, assim, como um efeito do equívoco enquanto “fato estrutural implicado pela ordem do simbólico” (Orlandi, 2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2007., p. 65) - melhor dizendo, do sentido que escapa, do não pretendido. Quando ultrapassamos as questões culturais, que estão implicadas nos sentidos da diversidade na perspectiva multicultural e multilíngue, observamos a língua em funcionamento. É então, no gesto de definir a língua, de representá-la oficialmente para uma comunidade ou grupo, que a falha se inscreve, fazendo significar o que é da ordem do repetível historicamente naquilo que deveria ser da ordem do novo.

Retomando o primeiro conjunto de legislações que apresentamos, entendemos que dizer patrimônio cultural imaterial, cooficialização, língua cooficial, segunda língua oficial, oficialização não é dizer língua nacional, não é dizer língua oficial. Há, aliás, neste processo de nomeação e classificação, redundância de diferenças: ora se trata de patrimônio, ora língua cooficial, ora de segunda língua oficial. Ora se trata de língua nativa, ora de língua materna. Ora se trata de língua, ora de dialeto, ora de “o Talian”. O que aproxima e o que diferencia cada uma dessas nomeações e classificações? Teriam elas o mesmo conjunto de representações e o mesmo estatuto na distribuição imaginária da língua entre os falantes? Como significa língua nativa em relação a língua materna? Por que surge a dificuldade de nomear as línguas de imigração?

Scherer (2018), em estudo sobre a nomeação das línguas, explica que toda nomeação é uma busca pelo real da língua, por uma palavra que determine origem, dada a forma como somos interpelados pela língua e nossa necessidade de uma identidade inequívoca. A autora também explica que, ao nomearmos uma língua, definimos um campo de saber, uma representação, um horizonte de significação, ao mesmo tempo que a falta dessa definição, a dificuldade de nomear reflete a ausência de uma política assertiva na designação, que impede que tenhamos acesso à organização conceitual do que se está tomando por linguagem (Scherer, 2021).

Para nós, estes apontamentos indicam que o reconhecimento das diferenças no âmbito das políticas públicas apresenta um funcionamento contraditório, na medida em que dá visibilidade a um certo relativismo, ao mesmo tempo em que fortalece o imaginário do monolinguismo, por tornar visíveis as reais condições de uma língua ao se impor em relação às demais que permeiam o espaço linguístico (Orlandi, 2012ORLANDI, E. P. Espaços linguísticos e seus desafios: convergências e divergências. Rua, Campinas, v. 2, n. 18, p. 1-19, nov. 2012.). Ao dizer sobre o caráter oficial de uma língua, ainda que secundário, ao nomeá-la, ao distingui-la, o Estado subverte a relação do falante com a língua. Ele forja para ela um estatuto imaginário que tem como parâmetro a ideia de língua oficial e língua nacional e que, por isso mesmo, não encontra plena representação na memória afetiva, na identificação familiar, na tradição oral, nas experiências do sujeito na e pela linguagem que o constitui e pela qual ele se identifica. A (co)oficialização é, assim, um gesto de refração das condições concretas sob as quais as relações entre língua e sujeito funcionam.

Mais do isso, pelas exigências do aparato jurídico-político, ao (co)oficializar uma língua o Estado pressupõe que haja uma representação dessa língua para seus falantes. A (co)oficialização é também um gesto a partir do qual o Estado assume que poderá se constituir por esta língua, em seus atos administrativos, o que é da ordem de uma ilusão referencial. Teria uma língua cooficial as mesmas condições de instrumentalização e escolarização que a língua oficial? Quais consequências a instrumentalização produz para os sujeitos falantes? Se a língua dos atos administrativos fosse de fato alternada, entre língua oficial e língua cooficial, a quem seria dirigida cada uma? Esta divisão não significaria um processo de exclusão?

Considerando que a diversidade linguística é incontornável e a relação entre línguas é também uma questão política, entendemos, valendo-nos de palavras de Gadet e Pêcheux (2004GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Trad. de Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004. p. 35-40.), que qualquer política que se proponha a regulamentar questões que envolvam línguas inscreve-se necessariamente em um terreno de confronto das diferenças, para então reconhecê-las e, ao mesmo tempo, invadi-las, anulá-las, absorvê-las. Conforme os autores, “a alteridade constitui na sociedade burguesa um estado de natureza quase biológica, a ser transformado politicamente” (Gadet; Pêcheux, 2004, p. 37). Isso explica que as formas de distribuição, pela definição de estatutos, pela nomeação que se dá a estes são também meios a partir dos quais utiliza-se a língua para arregimentar a própria imagem que se faz dela.

4 CONCLUSÃO

Pêcheux e Gadet, na obra A língua inatingível, afirmam que “a língua é um sistema que não pode ser fechado, que existe fora de todo sujeito, o que não implica absolutamente que ela escape ao representável” (2004, p. 63). Língua é acontecimento no mundo, roupagem, lugar único e singular de nosso ser sujeito. Buscar fixá-la, domesticá-la, limitando-a em suas condições reais de existência e em seu funcionamento é, assim, um projeto do impossível, desejo por um real que, quanto mais próximo, mais inalcançável se apresenta. Pensar a arregimentação que significa nas políticas públicas nos possibilitou compreender que “o campo do interdito na linguagem é, assim, estruturalmente produzido pela língua, do interior dela mesma” (Gadet; Pêcheux, 2004, p. 30). É o fato da língua, em sua materialidade significante, que inscreve este funcionamento contraditório, a partir do qual, no fio do discurso, a sintaxe pretensamente fixa o sentido e, na discursividade, os sentidos se projetam em direção ao novo, mas se inscrevem no repetível da história e da memória. Trata-se de um repetível que, acrescentamos, não é literalidade histórica, mas memória constitutiva, o já-dito que torna possível todo dizer.

Roudinesco, em análise do arquivo no campo da Psicanálise, alerta que o “poder do arquivo é tanto mais forte quanto mais ausente for o arquivo” (2006, p. 7). Arquivo é condição da história, ensina a autora. Quando em excesso, transforma-se em saber absoluto, espelho de si. Quando ausente, abre espaço para a fantasia e para a soberania interpretativa do eu. No caso das políticas públicas, há arquivos de variadas espécies. Lê-los, considerando a sua materialidade significante, possibilita-nos transbordar, questionando a evidência e a negação do normativo em direção à abertura de um ‘campo de questões’, relembrando aqui as palavras de Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Unicamp, 2009. p. 77-128.).

Esperançar e sonhar um mundo novo, no qual as políticas efetivamente transformem o real, é preciso, mas com a consciência de que nenhuma língua existe fora da relação com o sujeito que a pratica e que desconsiderar esta necessidade mútua, da língua e do sujeito, nos (re)coloca sempre na perspectiva do imaginário.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Disponível em: https://www.ufsm.br/projetos/pesquisa/bpl/. Acesso em 11 abr. 2024.
  • 2
    Consideramos, como Guimarães (2007GUIMARÃES, E. Políticas de línguas na linguística brasileira. In: ORLANDI, E. P. (org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes, 2007. p. 63-82., p. 64), que o espaço de enunciação brasileiro é multilíngue tanto no sentido de que, no Brasil, “praticam-se línguas como o português (que é praticada como língua nacional-oficial), as línguas indígenas, as línguas de imigração, as línguas de fronteira, quanto no sentido de que o português se divide em várias ‘línguas’ em vários e diversos falares das regiões as mais diversas”.
  • 3
    Entre os vários textos que tratam desta relação, destacamos o artigo “Estado, Ciência, Sociedade: por Entre Línguas e Teorias”, de Claudia Regina Castellanos Pfeiffer e Marisa Vieira da Silva, publicado no número 48 da Revista Letras (UFSM), em 2014.
  • 4
    O recorte temporal que dá limite ao arquivo do BPL vai da constituição da República aos dias atuais, mas também dá visibilidade ao Brasil Colônia e ao Brasil Império. Ainda que as Ciências Sociais e Humanas indiquem que só se pode falar de políticas públicas no Brasil mais ou menos a partir da década de 1930, quando o Estado Nacional começa a estruturar-se definitivamente, o BPL resgata esse processo discursivo “anterior” do ponto de vista cronológico porque, em se tratando de Brasil, refletir sobre o estatuto de qualquer língua que seja sem considerar a história da colonização e de outras questões linguísticas no processo de formação do Estado Nacional significaria ingenuamente deixar-se levar pela ilusão referencial própria à constituição das políticas públicas.
  • 5
    Amparados em Rancière, entendemos desentendimento como “[...] o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo algum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura” (1996, p. 11).
  • 6
    É importante pontuar que, em se considerando agendas e projetos de governo, não de Estado, o caráter público das políticas é bastante frágil, pois, em sua formulação, entram em jogo muitos interesses, por vezes de posições distintas, que nem sempre correspondem àquilo que demanda a coletividade implicada. Se tomarmos como exemplo as decisões do governo Temer que excluíram a língua espanhola da grade de disciplinas da educação básica e, em um caso mais extremo, as políticas bolsonaristas voltadas ao direito à aprendizagem da norma culta da língua portuguesa e à proibição do uso de linguagem inclusiva nas escolas, veremos que o interesse público não tem condições de se sustentar como algo consensual. Estas são políticas, nesse caso, notadamente produzidas à revelia dos espaços de representação democrática, que evidenciam outros mecanismos ideológicos de controle dos sentidos, a exemplo da própria censura.
  • 7
    Sobre este aspecto, entendemos a importância de recuperar as palavras de Gadet e Pêcheux (2004GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Trad. de Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004. p. 35-40., p. 53, grifos dos autores) quando estes afirmam que o trabalho de gramáticos, assim como de linguistas, consiste em construir a rede do real da língua, “de maneira que essa rede faça UM, não como efeito de decisões que viriam arbitrariamente rasgar essa unidade em um fluxo, mas por um reconhecimento desse UM enquanto real, ou seja, como causa de si e da sua própria ordem”. Supor que o real da língua é representável porque inscrito em uma rede do repetível é o equívoco que se projeta nessa arregimentação da língua que se faz pelo Estado.
  • 8
    Conforme Lagazzi (2010LAGAZZI, Susy. O confronto político urbano administrado na instância jurídica. In: ORLANDI, E. P. (org.). Discurso e políticas públicas urbanas: a fabricação do consenso. Campinas: RG, 2010. p. 75-83., p. 75), a instância do jurídico constitui-se como uma das memórias do dizer em nossa sociedade, sendo “configurada pela relação entre direitos e deveres logicamente estabilizados, sendo a inscrição social do sujeito constantemente demandada por práticas tensas”.
  • 9
    Explica Orlandi (2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004. p. 11-70.) que, sem história e sem equívoco, remetemos o sentido diretamente à realidade, daí por que os textos em questão circularem como imagem pura, negando a interpretação e a própria materialidade da língua como base de processos discursivos diferenciados.
  • 10
    Aqui fazemos alusão a Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Unicamp, 2009. p. 77-128., p. 83, grifos do autor), quando o autor afirma que a expressão instrumento de comunicação deve ser tomada em sentido figurado, não literal, posto que “esse ‘instrumento’ permite, ao mesmo tempo, a comunicação e a não comunicação, isto é, autoriza a divisão sob a aparência da unidade, em razão do fato de não se estar tratando, em primeira instância, da comunicação de um sentido”.
  • 11
    Essa questão nos parece interessante, visto que, em versões anteriores da Constituição, ou não se trata de questões linguísticas, ou se trata apenas de língua nacional ou idioma nacional, sem referente, o que dá indícios de uma trajetória de construção da relação entre sujeito e nação. Diz-se, assim, língua nacional, mas não se diz que língua é essa, pressupondo, de um lado, uma certa obviedade de sentidos e, de outro, contornando o processo de definição da representação da língua portuguesa como língua nacional, como se ele não existisse.

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2024
  • Aceito
    13 Abr 2024
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