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BODENLOS EM CONVERSAÇÃO: NARRATIVA ENTRE DISCURSOS E DIÁLOGOS AUTOBIOGRÁFICOS

Bodenlos in Conversation: Storytelling Among Autobiographic’s Discourses and Dialogues

Bodenlos en conversación: narración en medio de los discursos y diálogos autobiográficos

Resumo

O convite ao encontro com a palavra-princípio Eu-Tu, feito por Martin Buber, figura como horizonte ético no pensamento de Vilém Flusser. A partir de conceitos defendidos pelo ensaísta tcheco-brasileiro, tais como conversação, discurso e diálogo, o presente ensaio visa interpretar a produção textual do próprio autor - aqui, especificamente na autobiografia Bodenlos. Como aporte metodológico, pela própria natureza da pesquisa, utiliza-se de pesquisa bibliográfica e, condizente com o referencial teórico, privilegia a interpretação no lugar de instrumentos analíticos. Como resultados, indica a manifestação da definição de comunicação proposta por Flusser - a relação entre diálogos e discursos - nas narrativas produzidas pelo próprio autor.

Palavras-chave:
Comunicação; Narrativas; Autobiografia; Eu-Tu; Vilém Flusser

Abstract

Martin Buber’s invitation to the meeting with the I-Thou principle, is an ethical horizon in Vilém Flusser’s thinking. Based on concepts defended by the Czech-Brazilian essayist, such as conversation, discourse and dialogue, this paper aims to interpret the author’s own textual production - here, specifically in the autobiography Bodenlos. As a methodological contribution, by the very nature of the research, it uses bibliographic research and, consistent with the theoretical framework, privileges interpretation in place of analytical instruments. As results, it indicates the manifestation of the definition of communication proposed by Flusser - the relationship between dialogues and discourses - in the narratives produced by the author himself.

Keywords:
Communication; Narratives; Autobiography; I-Thou; Vilém Flusser

Resumen

La invitación al encuentro con la palabra-principio Yo-Tú, realizada por Martin Buber, figura como horizonte ético en el pensamiento de Vilém Flusser. A partir de conceptos defendidos por el ensayista checo-brasileño, como la conversación, el discurso y el diálogo, este ensayo tiene como objetivo interpretar la producción textual del propio autor, específicamente en su autobiografía Bodenlos. Como contribución metodológica, dada la naturaleza de la investigación, se utiliza la investigación bibliográfica y, de acuerdo con el marco teórico de referencia, privilegia la interpretación en lugar de instrumentos analíticos. Como resultado, se señala la manifestación de la definición de comunicación propuesta por Flusser, es decir, la relación entre diálogos y discursos, en las narrativas producidas por el propio autor.

Palabras clave:
Comunicación; Narrativas; Autobiografía; Yo-Tú; Vilém Flusser

1 INTRODUÇÃO

O presente texto tem por objetivo realizar uma discussão sobre a narrativa autobiográfica Bodenlos, de Vilém Flusser, como sujeita à leitura a partir de conceitos do próprio autor, tais como a ideia de conversação, discurso e diálogo - este último, indissociável da palavra-princípio Eu-Tu, de Martin Buber1 1 Este ensaio é uma versão revisada e ampliada de trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Narrativas Contemporâneas nas Mídias, realizado pelo Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Cultura, EPCOM, 26 de setembro de 2021. .

Para tanto, fazemos uso da pesquisa bibliográfica (Stumpf, 2010STUMPF, I. R. C. Pesquisa bibliográfica. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 51-61.) como aporte metodológico. A partir disso, traçamos nossas próprias reflexões - caminho coerente com o processo proposto pelo próprio Flusser (2002FLUSSER, V. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002., p. 114), para quem “o último significado da obra é deslocado, pela morte, do intelecto do autor para os intelectos dos seus interlocutores”, uma vez que “toda frase de obra de pensador morto aponta para o intelecto que a recebe”.

Trata-se, ainda, de procedimento coerente, levando-se em conta a afirmação de Flusser sobre a Teoria da Comunicação como “uma disciplina interpretativa, inserida no campo das Ciências Humanas, já que ela necessita criar significados e interpretar os fenômenos muito mais do que explicá-los” (Silva, 2013SILVA, M. C. C. A comunicação como artifício: uma leitura sobre Vilém Flusser. Teorias dos meios de comunicação no Brasil e no Canadá, v. 1, p. 259-272, 2013., p. 269). Para ele, uma coisa se torna natureza na medida em que é explicada, ou se torna espírito na medida em que se interpreta. Oferece o exemplo da nuvem, que se torna um fenômeno diferente para um meteorologista e para um comunicólogo. Neste trabalho, pretendemos exercitar a interpretação do fenômeno que são as narrativas de Vilém Flusser contidas em Bodenlos. Destacamos que se trata da autobiografia do desterrado (o tcheco que, fugindo da guerra, alcançou o Brasil e sua cultura, daí o título - Bodenlos em alemão significa “sem chão, sem raízes”), mas também se trata de uma discussão narrada, na qual se coloca em pauta as interlocuções ao longo da vida de Flusser - sua relação de alteridade com aqueles com os quais dialogou. O diálogo relatado serve também para a discussão de conceitos fundamentais construídos ao longo da produção da obra de Flusser, tais como sua Teoria da Comunicação, Monólogo, Discurso e Diálogo. Assim, a narrativa, neste caso, fala de uma vida em relação com outros e, também, em relação com as reflexões estabelecidas a partir da vivência fenomênica das coisas a seu redor.

Apontamos para a pertinência de tal estudo devido ao fato de que, embora teórico presente nas discussões da área, a própria manifestação das comunicações do autor - referidas como ficção filosófica, termo cunhado por Gustavo Bernardo - ainda encontra espaço profícuo para reflexões. Nesse sentido, entendemos que a própria escrita de Flusser pode ser interpretada sob a luz dos conceitos por ele defendidos. Mais do que isto, à primeira vista, parece que estes conceitos são utilizados para a composição da autobiografia, pelo fato de que Flusser dedica determinados capítulos apenas à discussão de conceitos, não ao relato de sua vida e suas relações. Porém, os conceitos são percebidos na prática existencial contida nos relatos. É como se o autor alertasse para uma epistemologia da existência, na qual imperam a falta de fundamento e sentido resultantes da necessidade de fugir da guerra; a adaptação a um novo mundo, completamente estranho, operada pelo mergulho na língua, portanto na cultura, mediante um processo de alteridade realizado em conversação com outros; o discurso resultante desse diálogo, ou seja, a própria obra autobiográfica como legado aos leitores interessados.

Dado o caráter polivalente da obra do ensaísta desenraizado, com discussões que perpassam a comunicação, a cultura, a sociedade, as tecnologias, os jogos, a linguagem, a religião, a política, o existencialismo, a literatura e a história - para ficar em apenas alguns exemplos -, consideramos relevante a busca por ampliar as reflexões de um autor cuja biografia permitiu, simultaneamente, um olhar íntimo e exterior à cultura brasileira. Similarmente, ainda hoje - trinta anos após o seu ocaso -, seu olhar tanto sincrônico quanto diacrônico dos processos comunicacionais oferece pistas valiosas para compreendê-los.

Destacamos ainda o valor de se evidenciar uma perspectiva comunicacional, como é o caso da flusseriana, que celebra uma postura ética pautada pelo respeito ao outro, que privilegia a intersubjetividade, isto é, a concepção do sujeito como constituído por suas relações. Nesse sentido, num contexto social pautado por intolerâncias, polarizações e extremismos, somados à hiperobjetivação de nossas conexões interpessoais, (re)ler Flusser se faz atual e necessário.

2 CONVERSAS E CONVERSAÇÕES

Em Língua e Realidade, seu primeiro livro publicado no Brasil, em 1963, Flusser (2021FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: É Realizações, 2021.) reflete, fenomenologicamente, sobre a linguagem. Situa, em síntese, a realidade como uma característica da linguagem, de maneira a excluir a possibilidade de acessarmos qualquer fenômeno que não seja mediado pelas línguas. Poliglota, reconhece inclusive que, ao alterarmos a língua, alteramos a própria realidade. Defende o poliglotismo como um modo de ampliação de nossas visões de mundo.

A partir desse diagnóstico, afirma que a língua é situada entre dois polos do nada: num deles, a impossibilidade de articulação leva ao silêncio autêntico, enquanto no outro, a impossibilidade de definição leva ao silêncio inautêntico. Da relação com o silêncio autêntico emana nossa conexão com o transcendente, expressa em linguagem por meio da oração - daí a afirmação de que a religiosidade é, essencialmente, de onde flui nosso senso de realidade (Flusser, 2002FLUSSER, V. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002.).

Próxima à oração está a poesia, que é a forma como a linguagem materializa novos mundos, um processo “criador” e também capaz de levar ao inarticulável, acrescentamos, ao constituir-se de forma integral (a poesia, mais do que forma e conteúdo, é forma que é também conteúdo, indissoluvelmente). A poesia amplia o nosso olhar para a realidade, criando outras possibilidades de real, em que a marca da abertura é um processo inesgotável. Tudo pode ser uma metáfora de tudo. Deste modo, a poesia opera com a possibilidade de conexões múltiplas e complexas. Por outro lado, do silêncio inautêntico origina-se o balbuciar, o impossível de ser definido e articulado em palavras - linguagem inautêntica. A Figura 1 explicita tal relação.

Figura 1
Fisiologia da língua

Ao tocar o equador entre esses dois polos, situamos o que percebemos/concebemos como realidade. Nossa relação linguística, nesse nível, dá-se pela conversação e pela conversa (fiada), camadas que “consistem de redes que podem ser consideradas, subjetivamente, como formadas por intelectos que irradiam e absorvem frases, e, objetivamente, como formadas por frases que se cruzam em intelectos” (Flusser, 2021FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: É Realizações, 2021., p. 175). Para o autor, pensar e formular frases são processos indissolúveis nessa camada - já que em outras, como é o caso da poesia e da oração, o processo de formular frases passa a ter relação mais íntima com o sentir do que com o pensar. Podemos discordar de Flusser afirmando que a poesia envolve a racionalidade e a lógica, mas não há dúvida de que ainda que não seja inteligível, ela pode produzir sentidos (nem sempre significados ou um significado final), proporcionando uma experiência inexplicável, irrepetível e até intraduzível. O trunfo da poesia está, portanto, em não excluir a esfera do sensível - pelo contrário. E, ainda que se trate de uma engenharia da palavra, como bem apontado na obra de João Cabral de Melo Neto, entre outros poetas, tal engenharia deve se converter em estesia para o fruidor poroso e aberto à participação no processo que se opera de forma erótica (Silva, 2009SILVA, M. C. C. A pele palpável da palavra. A comunicação erótico-poética em Memórias Sentimentais de João Miramar. Sorocaba/SP: Ed. Provocare, 2009.).

A camada da conversa “é composta de detritos da conversação que penetram imperceptivelmente, qual o detrito do plankton no mar, em camadas inferiores. A expressão portuguesa conversa fiada exprime excelentemente essa situação” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.a, p. 167). No que diz respeito à cibernética (Wiener, 1968WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1968.) como uma das bases teóricas de Flusser, a conversa possui relação direta com a entropia, termo emprestado da termodinâmica, que diz respeito à tendência inexorável à desordem. Embora não seja caracterizada ainda pelo excesso de ruído, é patente a redundância como fundamento da conversa. Conversa é, grosso modo, para Flusser, um ecoar improdutivo e determinado.

Quando existe equilíbrio entre redundância e ruído, ou seja, quando os envolvidos têm o suficiente de linguagem comum para que se compreendam e o suficiente de linguagem incomum para que possam ampliar o repertório uns dos outros, temos a possibilidade de gerar informação, fenômeno neguentrópico por princípio. Vale lembrar que Flusser fala sobre a comunicação como um processo neguentrópico, que busca organizar o caos, pois acumulamos um manancial desordenado de dados que, por meio do discurso, são armazenados, preservados e distribuídos. O discurso é neguentrópico na medida em que conserva/preserva as informações acumuladas ao longo do tempo, distribuindo-as a partir de sua repercussão; o diálogo é neguentrópico na medida em que sintetiza novas informações a partir do processamento de dados. É justamente a afinidade com a informação que caracteriza a conversação, ao contrário da conversa fiada. “Formam-se frases, isto é, surgem informações, e estas são emitidas e tornam-se mensagens” (Flusser, 2021, p. 175). Existe autenticidade no processo de irradiação, absorção e cruzamento de frases.

Apontamos que informação, nesse contexto, é tratada num sentido amplo. Escapa de qualquer utilitarismo ou instrumentalização. Tudo aquilo que é fruto do processo de incorporação de um ruído pela linguagem é informação, independentemente de sua aplicação futura. Tampouco diz respeito àquilo que lemos nos jornais - embora uma notícia de jornal possa informar, por vezes ela também pode ser deveras redundante ou ruidosa. A expressão popular falar como uma maritaca ganha um sentido completamente novo na primeira vez que vemos e, principalmente, ouvimos uma maritaca. Deixa de ser conversa e passa a ser conversação, já que houve a incorporação do que outrora era um ruído. Informou. Assim:

A constante formação de novas frases, isto é, o constante reagrupamento de palavras de acordo com as regras de diversas línguas em formações novas, o surto, portanto, de sempre novas informações, faz com que o território da conversação cresça constantemente. Neste sentido a conversação é produtiva. Ela expande o território da realidade e lhe submete novas regiões de relações antes não estabelecidas (Flusser, 2021FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: É Realizações, 2021., p. 176).

Ao partirmos deste ponto da reflexão de Flusser, e em diálogo com o autor, pontuamos que, embora a expansão da realidade admita uma dimensão ética - frases como tivemos uma presidenta, por exemplo, demonstram uma expansão da realidade no sentido de mitigar os males do machismo -, em alguns casos tal expansão pode ser problematizada, tal como quando incorporamos termos como ‘judiação’ e ‘denegrir’, que podem ser considerados racistas, como pertinentes ao nosso vocabulário - e à nossa realidade. Desta forma, o que concluímos é que a ampliação da realidade, seja por meio da poesia que amplia as conexões com o mundo, ou por meio da conversação, que se dá na relação com o outro, no entrecruzamento de discursos e diálogos, não se pode perder de vista a dimensão ética como horizonte para o novo. A relação eu-tu, discutida a seguir, pode oferecer a base para a reflexão sobre a intersubjetividade como contraponto à negação, destruição ou invisibilização do outro.

3 EU-ISSO E EU-TU

Um dos temas transversais na obra de Flusser é a intersubjetividade. No que diz respeito à relação com o item anterior, observamos que:

O clima que prevalece na camada da conversação é de intelectos realizados pelo contato com outros. Os intelectos são abertos uns para os outros, são reais não por estarem aqui (Dasein), mas por estarem juntos (Mitsein). Os intelectos absorvem informações emitidas por outros, isto é, aprendem e compreendem, e emitem informações novas, isto é, articulam (Flusser, 2021FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: É Realizações, 2021., p. 180).

Ainda nesse sentido, Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.a, p. 170) chega a afirmar que “o intelecto, sendo um processo, só é real na medida em que participa da conversação”. Para Flusser (2019), a cisão entre sujeito e objeto culmina num mundo constituído por programas, com seus aparelhos (objetos programados) e funcionários (sujeitos programados).

Em Filosofia da Caixa Preta, Flusser parte da máquina fotográfica como metáfora, para abordar um universo em que as imagens técnicas são fruto de uma programação desconhecida, já que operamos aparelhos sem conhecer a profundidade de suas engrenagens, sua capacidade de programação. Ao apertar comandos, passamos a funcionários do aparelho, somos aparelhados pelas máquinas que construímos. Nas palavras do autor:

O aparelho funciona, efetiva e curiosamente em função da intenção do fotógrafo. Isto porque o fotógrafo domina o input e o output da caixa: sabe com que alimentá-la e fazer com que ela cuspa fotografias. Domina o aparelho sem, no entanto, saber o que se passa no interior da caixa. Pelo domínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa é por ele dominado (Flusser, 2011FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Annablume, 2011., p. 44).

Podemos ampliar o olhar da máquina fotográfica para outras e distintas formas de aparelhamento, que vão desde a utilização de quaisquer equipamentos eletrônicos até o funcionamento das instituições e do próprio Estado. Flusser (2011FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Annablume, 2011., p. 40) expõe que:

Quando os instrumentos viraram máquinas, sua relação com o homem se inverteu. Antes da revolução industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as máquinas eram por eles cercadas. Antes, o homem era a constante da relação, e o instrumento era a variável; depois, a máquina passou a ser relativamente constante. Antes os instrumentos funcionavam em função do homem; depois grande parte da humanidade passou a funcionar em função das máquinas. Será isto válido para os aparelhos? Podemos afirmar que os óculos (tomados como protoaparelhos fotográficos) funcionavam em função do homem, e hoje, o fotógrafo, em função do aparelho?

Ao objetificar o mundo e os outros seres, humanos ou não, perpetuamos a lógica do aparelho.

Como alternativa a esse diagnóstico, Flusser aposta - no sentido atribuído por Pascal (1958PASCAL, B. Pascal’s Pensées. New York: E. P. Dutton, 1958. Disponível em: https://cutt.ly/eb7CpH7. Acesso em: 22 maio 2021.
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) - na intersubjetividade, ou seja, nos indivíduos projetando-se uns aos outros, em situação de engajamento e responsabilidade.

Uma das mais relevantes influências de Flusser para tal posicionamento é o filósofo Martin Buber (2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001., p. 51), para quem “não há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-Isso”. Em suas palavras-princípio, Buber aponta para a dualidade do ser humano, que a partir de suas atitudes interage com o mundo de maneiras distintas.

Numa interação objetiva com o mundo (Eu-Isso), o humano experimenta as coisas - e coisas, aqui, significam tanto os objetos (Isso) quanto um olhar objetificado(r) para outros seres humanos (Ele ou Ela). “O experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza ‘nele’ e não entre ele e o mundo. O mundo não toma parte da experiência” (Buber, 2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001., p. 53).

Já na interação intersubjetiva com o mundo (Eu-Tu), o humano se relaciona. Ressaltamos que, de acordo com Buber (2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.), relação é reciprocidade. Ao contrário da experiência Eu-Isso, mediada por (pré-)conceitos, a relação Eu-Tu é imediata, de maneira a constituir um mundo das relações, do qual a pessoa, ao encontrar-se nele e com ele, torna-se partícipe. Tal mundo compreende três esferas:

A primeira é a vida com a natureza. Nesta esfera a relação realiza-se numa penumbra como aquém da linguagem. [...] A segunda é a vida com os homens. Nesta esfera a relação é manifesta e explícita: podemos endereçar e receber o Tu. A terceira é a vida com os seres espirituais. Aí a relação, ainda que envolta em nuvens, se revela, silenciosa mas gerando a linguagem (Buber, 2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001., p. 53).

Assim, assumir a palavra-princípio Eu-Tu não corresponde apenas a uma postura ética em relação aos outros seres humanos - foco do presente texto -, mas também em relação a todos os demais fenômenos que nos cercam, passando, por exemplo, pela emergência das questões ambientais (Gabriel; Silva, 2019GABRIEL, G.; SILVA, M. C. C.. O poético na comunicação ambiental: reflexões a partir da campanha A Natureza está falando. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia, Sorocaba, v. 7, n. 15, 2019. Disponível em: https://cutt.ly/8b72N4S. Acesso em: 22 maio 2021.
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), já que podemos avaliar a objetificação da natureza como uma das causas da crise do clima que experimentamos. Perpassa também uma atitude aberta ao princípio do religare (Pichiguelli; Silva, 2017PICHIGUELLI, I,; SILVA, M. C. C. Comunicação, poesia e o religare. Comunicologia, Brasília, v. 10, n. 2, 2017. Disponível em: https://cutt.ly/db79sqN. Acesso em: 22 maio 2021.
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), que compreende o sagrado como imanente no humano e presente em tudo o que o cerca, muito além de qualquer institucionalidade religiosa. Tanto Buber (2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.) quanto Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.a), quando se referem ao supralinguístico, aproximam as relações humanas das relações religiosas. Nesse sentido, cabe apontar que a palavra religare, origem latina do português religião, é “formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). O religare, nesse sentido, é a forma primeira de vínculo, concebida não só como vínculo entre os homens e os deuses, mas especialmente entre os próprios homens” (Miklos, 2012MIKLOS, J. Ciber-religião: a construção de vínculos religiosos no ciberespaço. Aparecida: Ideias & Letras, 2012., p. 18).

Ressaltamos que a palavra-princípio Eu-Isso depende de um Eu cristalizado, que impõe suas concepções pré-predicativas ao experimentar algo, de modo que:

O Eu da palavra-princípio Eu-Isso, o Eu, portanto, com o qual nenhum Tu está face-a-face presente em pessoa, mas é cercado por uma multiplicidade de “conteúdos” tem só passado, e de forma alguma o presente. Em outras palavras, na medida em que o homem se satisfaz com as coisas que experiencia e utiliza, ele vive no passado e seu instante é privado de presença. Ele só tem diante de si objetos, e estes são fatos do passado. Presença não é algo fugaz e passageiro, mas o que aguarda e permanece diante de nós. Objeto não é duração, mas estagnação, parada, interrupção, enrijecimento, desvinculação, ausência de relação, ausência de presença. O essencial é vivido na presença, as objetividades no passado (Buber, 2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001., p. 58).

Contudo, não se pode viver exclusivamente no presente (embora muitos vivam exclusivamente no passado, ou, ainda, antecipando o futuro). Por isso, similar ao que acontece entre conversação e conversa, em que “os intelectos realizados em conversação projetam-se da camada da conversa ou tendem a decair nela” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.a, p. 169), “cada Tu, após o término do evento da relação deve necessariamente se transformar em Isso. Cada Isso pode, se entrar no evento da relação, tornar-se um Tu” (Buber, 2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001., p. 71). O motivo da transitoriedade da conversação, que consideramos ser aplicável também à relação, é que os indivíduos:

À medida que são realizados, participam da conversação, isto é, apreendem, compreendem e articulam. À medida que ainda não são realizados, ou à medida que não conseguem mais realizar-se, deixam de apreender e compreender, refletem surdamente frases, participam da conversa. À medida, portanto, que são realizados, são livres, e à medida que ainda ou já não são realizados, são determinados. O intelecto, sendo um processo, só é real na medida em que participa da conversação, e a conversa é somente o último estágio irreal, logo fictício, na realização do intelecto (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.a, p. 169-170).

Posteriormente, Flusser atrelaria o olhar cibernético que repousa na linguagem, visto em Língua e Realidade, a uma postura ética, herdeira de sua influência buberiana. A esse aglutinamento entre conversação e relação, Flusser dá, em alusão à “verdadeira transformação da comunicação em comunhão” de Buber (2014BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2014., p. 37), o nome de comunicação.

4 DISCURSOS E DIÁLOGOS

Ao definir sua teoria da comunicação humana - comunicologia - como “aquele processo graças ao qual informações adquiridas são armazenadas, processadas e transmitidas”, Flusser (2014FLUSSER, V. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum. São Paulo: Martins Fontes, 2014., p. 45) aponta para uma abordagem tripartite da comunicação. A primeira delas é um olhar para a cultura, “aquele dispositivo graças ao qual as informações adquiridas são armazenadas para que possam ser acessadas” (Flusser, 2014, p. 45). Cabe ao estudo da cultura acessar as memórias (informações armazenadas) e, por conseguinte, apreender a matéria-prima comunicacional, já que as características da cultura (tais como a oralidade, a materialidade, a escrita e/ou a telemática) implicam possibilidades comunicacionais distintas.

As duas outras abordagens - transmissão e processamento de informações - são focais no presente estudo. Ao “método pelo qual as informações que estão depositadas em uma memória são transmitidas a outros”, Flusser (2014FLUSSER, V. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum. São Paulo: Martins Fontes, 2014., p. 50) nomeia discurso, enquanto ao “método graças ao qual informações que estão depositadas em duas ou mais memórias são trocadas para conduzir a novas informações”, Flusser (2014, p. 49-50) nomeia diálogo. Embora sejam etapas distintas,

[...] discurso e diálogo devem estar acoplados para que a comunicação aconteça, pois no discurso são distribuídas informações que foram anteriormente elaboradas no diálogo, e no diálogo são trocadas informações que anteriormente penetraram na memória graças a um discurso (Flusser, 2014FLUSSER, V. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum. São Paulo: Martins Fontes, 2014., p. 50).

Comunicação, portanto, é processo que se faz do equilíbrio entre discursos e diálogos. O discurso tem caráter conservador e distributivo, enquanto o diálogo serve para produzir o novo. No desequilíbrio entre ambos, a sociedade sofre com o elitismo (prevalência de diálogos) e com o totalitarismo (prevalência de discursos). Isso porque, com os diálogos restritivos e limitados, ou a informação não circula, exceto em guetos de privilegiados - tais como, apontados por Flusser, a Ciência e a Arte -, ou ocorre, com a repercussão dos discursos, uma massificação que não permite que novas informações sejam sintetizadas. Dessa maneira, apresentam-se os dois limites do diálogo:

Primeiro: quando as informações em duas memórias se assemelham muito, o diálogo é redundante. As pessoas que têm mais ou menos as mesmas informações não podem dialogar entre si. Segundo: quando informações completamente diferentes estão depositadas em duas memórias, então os diálogos são impossíveis, porque toda informação de uma é ruído para a outra. Se eu falar exclusivamente tcheco e vocês, exclusivamente suaíli, não poderemos nos entender (Flusser, 2014FLUSSER, V. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum. São Paulo: Martins Fontes, 2014., p. 50).

É patente a correlação com a neguentropia já presente no conceito de conversação (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.a). Contudo, nesse caso, o ensaísta adiciona dinâmica ao processo: ao adquirir uma nova informação, seja por meio de transmissões discursivas ou de processamentos dialógicos, essa informação é armazenada - torna-se memória -, o que faz com que novos elementos estejam disponíveis para serem futuramente processados e/ou transmitidos. A conversação Eu-Tu tende ao empate, ou seja, à situação em que novas informações não podem mais ser processadas. Mas isso não significa que, em um próximo encontro entre essas mesmas pessoas, novas informações não poderão ser processadas - afinal, em contato com outros discursos e diálogos, as memórias dessas pessoas são ampliadas, de maneira que terão novos elementos informativos a processar.

Para além da questão informativa per se, destaca-se a intersubjetividade, ou seja, a tendência do sujeito de se projetar rumo a outros sujeitos - uma relação Eu-Tu (Buber, 2001BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.) - como contraponto à objetivação aparelhística e programática, também presente em nossa sociedade, na qual discursos massificantes e diálogos elitizantes convivem sem se relacionar. Experimentam-se, talvez apontasse Buber (2001).

5 BODENLOS: A NARRATIVA POR UMA TESSITURA DIALÓGICA

A obra de Vilém Flusser, tecida ela mesma a partir de suas elaborações conceituais, apresenta-se como uma intensa conversação, atestado de sua discussão sobre a importância dos diálogos para equilibrar os discursos e produzir novas informações, processo este que envolveu suas próprias memórias - portanto, uma relação com um passado de estrangeiro, descrita em Bodenlos: Uma autobiografia filosófica, publicado originalmente em 1994, primeiramente em alemão.

A obra se abre com o título Monólogo, que traz, em Atestado de Falta de Fundamento, o significado do título do livro, a ausência de raízes, a falta de chão, de sentido e de razão para a existência, o que impulsiona para a dúvida e, consequentemente, para o adiamento da morte. Por mais que pareça o fruto da experiência pessoal do autor com a guerra e sua condição de fugitivo/imigrante, a obra se torna uma metáfora para o sem-sentido da existência, da guerra, da dificuldade de se estabelecer diálogos ou relações. Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 20) explica que: “O termo ‘absurdo’ significa originalmente ‘sem fundamento’, no sentido de ‘sem raízes’. Como é sem fundamento uma planta posta em vaso. Flores na mesa do jantar são exemplos de vida absurda”. O absurdo do degredado se estende à condição da existência humana, projetada para a morte.

É na falta de fundamento, experiência privada e solitária, que surgem as religiões, métodos “de proporcionar fundamento” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 20). Essa experiência da falta de fundamento é que motiva a escrita de uma autobiografia, como se o narrar pudesse aplacar minimamente o absurdo, tornando-se a própria narrativa uma forma de fundamentar parcialmente nossa existência, como afirma Flusser, ao tratar da narrativa autobiográfica:

A experiência da falta de fundamento não pode ser precipitada em literatura, filosofia e arte sem ser falsificada. Pode apenas ser circunscrita em tais formas, para ser parcialmente captada. Mas é possível atestá-la, de maneira direta, autobiograficamente: na esperança de que tal atestado sirva de espelho para outros. [...] É este (e não, assim espero, vaidade ou vontade de auto-afirmação) o motivo do presente livro (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 21).

Na sequência, o autor narra as lembranças de uma Praga Entre as Guerras, que ofereceu a marca indelével de uma cultura que impôs dois idiomas e, portanto, duas visões de mundo; colocadas em choque com A invasão nazista, que produziu um sentimento ambíguo: “Assim Praga morreu. Nos últimos dias passávamos por suas ruas impregnadas de mil memórias como por cidade estranha” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 33); uma sensação descrita como inesperada, a de libertação vertiginosa, pois: “Doravante não se pertencia mais a ninguém e a lugar nenhum, era-se independente” (Flusser, 2007, p. 39).

E em A Inglaterra Sitiada, que compõe a última parte do Monólogo, Flusser relata (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 43): “A gente apostava que a Alemanha ia ocupar a França e a Inglaterra, portanto que a gente ia ser assassinada”. Assim, Flusser deixa a Europa e migra para um território no qual poderia abandonar por completo a realidade.

Essas lembranças dão conta de ressaltar os contrastes entre a pátria deixada junto com suas complexas convergências, oferecendo um panorama do ambiente cultural e linguístico em que Flusser é criado e que depois precisa abandonar: do judeu tcheco-alemão para o desenraizado (bodenlos) pela guerra, que chega em terreno brasileiro (e mais que tudo, paulista) para abandonar a realidade na qual parecia ter raízes fortemente fincadas. Aqui a narrativa que toma corpo envolve A Guerra em São Paulo, descrita como um jogo entre São Paulo e Praga, possível somente “porque se baseava sobre o jogo mais fundamental do amor e do suicídio: brincava-se sempre com a ideia de matar-se. E brincar com o suicídio proporciona a liberdade do jogo entre os tempos e com os tempos” (Flusser, 2007, p. 49). Ou seja, deixar Praga e estar em São Paulo é visto como uma luta entre o amor e o desejo de matar-se. A tentativa de um novo amor em um novo lugar no qual não há raízes.

Tal liberdade reaparece em O Jogo do Suicídio e do Oriente, no qual narra que: “O Oriente interessava apenas como método para a transformação do pensamento em objeto do não-pensamento” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 65); e, ainda, no capítulo A Natureza Brasileira, apontada pelo ensaísta como motivo de levá-lo a um engajamento em cultura, assumido como engajamento contra sua própria natureza, uma espécie de suicídio.

A partir de A Língua Brasileira, o autor descreve uma dialética existencial pela qual passou a utilizar o engajamento na língua portuguesa como instrumento, “mediação de um engajamento em prol de uma realidade linguística (que era a sociedade brasileira” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 91). Em outras palavras, ele se deixou dominar pela língua portuguesa a fim de que pudesse dominá-la, engajando-se a fim de utilizar esse engajamento em prol da sociedade brasileira, tornando-se escritor brasileiro.

É neste percurso narrativo-descritivo que a conversação se desenvolve, entre a infância em Praga e o tornar-se tcheco-brasileiro autodidata, sem formação superior validada para atuação na academia, o que não o impediu de se tornar professor e intelectual reconhecido, pois atuou como professor em instituições como a Fundação Armando Álvares Penteado, o Instituto Tecnológico de Aeronáutica e a Universidade de São Paulo. Nesta conversação que se desenvolve e das memórias de um eu que se observa como um tu, Flusser - como uma outra versão de si mesmo, brasileiro, olha para seu passado e, pouco a pouco, passa ao eu-tu com outros, seus pares e ímpares.

Assim, a autobiografia se faz na relação com os interlocutores de Flusser a partir de Diálogos, sequência em que o autor retoma a discussão dos conceitos de discurso e diálogo, explicando que, levando-se em conta a noção de informação, há diferenças fundamentais entre o diálogo e o discurso. Para Flusser (2007), o discurso possui caráter tradicional, porque o receptor está ligado às fontes informativas da cultura; conservador, porque preserva as informações dessa cultura; dinâmico, por transportar informações do passado ao futuro; e progressivo, porque ramifica as informações a um número sempre crescente de receptores, fazendo com que estas penetrem em camadas cada vez mais amplas.

No discurso, há um clima existencial, segundo Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.), no qual se engajam publicistas, líderes carismáticos, pregadores, professores, que estão em posse de informações válidas, ou seja, de valores que serão transmitidos a outros. É nesse posicionamento que o autor se coloca em Bodenlos ao tratar de seu engajamento assumido como professor universitário e jornalista.

Já o diálogo é um processo no qual detentores de informações parciais ou duvidosas, ou ainda, segundo Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.), duvidadas, trocam essas informações, a fim de alcançar síntese que leve à informação nova. O diálogo é, conclui o autor, revolucionário, por visar salto a partir de um nível contraditório que chega a tético (com a nova informação aceita pelos participantes do processo).

O diálogo também é circularmente não-progressista, porque estruturalmente trata-se de um circuito fechado - ainda que o número de participantes possa aumentar gradativamente - e porque a síntese alcançada pode não ultrapassar o círculo dos participantes. Seu clima existencial envolve o engajamento de políticos (que, para o autor, são aqueles que estão em relação e produzem intersubjetividade), filósofos, artistas e ensaístas. Aqui, Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.) trata da condição existencial sua e daqueles com os quais buscou engajamento. Para ele, os engajados no diálogo possuem informações duvidosas e duvidadas e dedicam suas vidas a colocar tais informações à prova, a fim de alcançar informação válida, ou seja, valores.

Colocando-se à prova, Flusser (2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007.) apresenta os contatos significativos estabelecidos ao longo de sua vida, frutos da troca de experiências com intelectuais brasileiros e estrangeiros radicados no Brasil, com os quais mantinha um contato contínuo, polêmico e provocador, uma conversação interdisciplinar e multitemática, na qual partilhava de reflexões com interlocutores com funções sociais e posições políticas diversas, o que não excluía simpatizantes da extrema direita, demonstrando a enorme capacidade de abertura de Flusser; sendo um emigrado judeu, cuja família inteira morrera em um campo de concentração, ainda assim encontrara a possibilidade de se relacionar, por exemplo, com Milton Vargas. Além dele, estão elencadas em Bodenlos pessoas de áreas e ideologias distintas: Alex Bloch, Vicente Ferreira da Silva, Samson Flexor, João Guimarães Rosa, Haroldo de Campos, Dora Ferreira da Silva, José Bueno, Romy Fink, Miguel Reale e Mira Schendel.

Vilém Flusser, poliglota e ciente de que cada língua compõe uma nova forma de acessar o mundo, naturalizou-se brasileiro na década de 50 e assumiu a língua portuguesa como sua. E foi a partir da cidade de São Paulo que o ensaísta pensou a realidade brasileira: produziu uma vasta bibliografia em português, além de escrever regularmente para jornais como O Estado de São Paulo e Folha de S.Paulo. Sua relação com o Brasil envolveu uma longa trajetória, que culmina em livro publicado originalmente em alemão, A Fenomenologia do Brasileiro: Em Busca de um Novo Homem. Assim, para fechar um ciclo de mergulho na cultura brasileira, o ensaísta parece empreender um diálogo com o tcheco-alemão desenraizado e retornado à Europa, após sua imersão em outro mundo, um território “inteiramente exótico e fantástico” (Flusser, 2007, p. 46) no qual fora “automaticamente sombra”, passando a um engajamento, tornando a ele mesmo detentor de uma nova língua, um novo homem a ser rememorado pelo mundo da língua alemã.

Foi também com a língua portuguesa e a cultura brasileira (além do inglês, francês e alemão) que o ensaísta estabeleceu um constante diálogo consigo, com os fenômenos e com os outros de suas relações. Em seus textos, construiu cenários sobre temas diversos, da filosofia à linguagem, passando da fenomenologia à teoria das mídias e às artes. Com o uso do ensaio, incitou e incita ainda seus leitores à dúvida, com provocações que não trazem respostas fechadas, mas inspiram a continuidade da conversação, portanto, do diálogo: “Pois uma das ambivalências do ensaio é seu caráter a um tempo monológico e dialógico, isto é, ser monólogo em busca de resposta” (Flusser, 2007FLUSSER, V. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. Revisão técnica Gustavo Bernardo. São Paulo: Annablume, 2007., p. 108). O formato do ensaio, aberto, provoca, faz com que novas perguntas de desdobrem nos leitores, em um movimento para a continuidade da conversação. Para Flusser, a obra é um legado. O autor abdica de seu discurso, que se transforma em diálogo com seus leitores. Ao trazer os diálogos que realizou com aqueles com os quais conviveu, Flusser faz com que seus leitores dialoguem também com eles, não apenas com o discurso do autor. Cabe ao leitor duvidar, descrer, abraçar ou não a visão oferecida em sua interbiografia, como poderíamos chamar, uma biografia escrita sob a condição do diálogo com a memória e com os outros.

Assim, não é estranho que entre seus escritos, na tentativa de buscar a compreensão de seu próprio percurso, esteja essa narrativa autobiográfica, Bodenlos, cruzamento entre discursos e diálogos dos quais Flusser participou e entre os quais procurou engajar-se (ou encaixar-se/desencaixar-se). Reconhecemos em Flusser, a partir de nossa concepção de narrativa como uma forma de mediação da experiência (Silva; Santos, 2015SILVA, M. C. C.; SANTOS, T. C.. Peregrinação, experiência e sentidos: Uma leitura de narrativas sobre o Caminho de Santiago de Compostela. E-Compós, v. 18, n. 2, 2015. Disponível em: https://cutt.ly/Tnzdf8H. Acesso em: 3 jun. 2021.
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), a utilização de um método narrativo para expor suas concepções de mundo, conectado à fenomenologia, mas também para aplicar os conceitos que idealizou, demonstrando-os, como as noções de discurso, diálogo, comunicação e neguentropia, entre outras. Deste modo, podemos compreender seus ensaios como formas mediadoras dos fenômenos humanos, capazes de auxiliar na representação, interpretação, identificação, crítica e, mais do que isso, na proposição de novas realidades ou, no mínimo, na antecipação de cenários atrelados à visão dos fenômenos sociais descritos, narrados e problematizados pelo autor.

6 CONSIDERAÇÕES

Compreendemos Bodenlos como uma narrativa autobiográfica tecida à base de discurso, diálogo e conversação, numa relação Eu-Tu. Se a pessoa buberiana (ou o sujeito em projeto flusseriano) é composta por relações, uma autobiografia só poderia ser construída por meio de diálogos. Em alguma medida, Bodenlos aponta para a própria concepção flusseriana de comunicação: se esta é a dinâmica entre diálogos e discursos, o texto do livro é um discurso intermediário entre dois diálogos. A partir do diálogo com cada interlocutor, é construído o discurso apresentado no capítulo respectivo àquela pessoa. Ao mesmo tempo, ao apresentar um tom provocativo nesses discursos, Flusser convida para novos diálogos, dessa vez entre o texto e seus leitores, para os quais leva também os interlocutores apresentados na obra, cujas memórias são expandidas - há uma sobrevida de Flusser em interlocução com eles, e de Flusser e deles com os que leem. Neste sentido, talvez fosse possível chamar essa autobiografia de interbiografia, dada a consciência de Flusser sobre a comunicação como forma de escapar da morte, por meio dos discursos e, sobretudo, do diálogo. Flusser se comunica pela narrativa, refletindo sobre a comunicação: epistemologicamente, metodologicamente e pragmaticamente.

A primeira parte (Monólogo) é um diálogo do Flusser naturalizado brasileiro com o desenraizado que cresceu na cultura judaico-tcheca, falante do tcheco e do alemão, que se impregnou de uma cultura praguense indelével. Há o retorno do olhar de um Flusser mergulhado na cultura brasileira - inclusive no momento que começa a se desenraizar desta cultura - mas que olha para esse passado e se põe em diálogo consigo mesmo, feito por meio da ressignificação do passado. O monólogo é, assim, diálogo com a memória distante, seu passado e sua infância.

Nesse ínterim, percorre a Praga da infância, a Praga devastada pela guerra, a sensação de libertação por ver uma Praga destruída, o nazismo, a Inglaterra sitiada e a certeza de que seria assassinado. Por essa certeza, vem para o Brasil, o que significa um abandono de tudo aquilo que fazia sentido para ele - a Europa deixa de ser o centro do mundo, e ele só pode continuar existindo indo para um território completamente exótico. Sai do sem sentido de uma cultura perdida para o sem sentido de uma cultura desconhecida. Já em São Paulo, inicia uma guerra com ele mesmo, na tentativa de compreender essa cultura da qual passa a participar, deixando-se dominar pela língua para engajar-se, dominar e intervir nessa cultura, tornando-se ensaísta brasileiro. Este monólogo aparente se torna um diálogo em busca de futuro: o eu que morre e torna-se discurso em busca de um eu em devir, tecido no diálogo entre duas culturas distintas.

Sua interferência na realidade brasileira se faz na segunda parte (Diálogos), com as relações que começam a ser estabelecidas com seus interlocutores. Se na primeira parte encontramos o diálogo como compreensão de si, na segunda encontramos os diálogos, apresentados em narrativas, sobre o quanto o ensaísta pensa que seus interlocutores o atingiram ou o quanto foram ou não atingidos por ele. Polemista, deixa esses posicionamentos em aberto, para que o leitor consiga também entrar nesse diálogo.

Apresenta também um redimensionamento para a ideia de discurso e diálogo, apontando o discurso como a propagação de um valor já validado, de modo que o emissor é detentor de valores que quer passar para os outros. No diálogo, por sua vez, existe uma tentativa de validação de valores, colocando à prova informações duvidosas e duvidadas. Em sua autobiografia, Flusser se põe à prova a partir do momento em que retoma sua origem. Ao colocar-se em diálogo, os valores daquele Flusser-que-era são postos em xeque na relação com o Flusser-que-se-tornou.

Trazer a memória da infância, que poderia ser um discurso, torna-se um diálogo na medida em que ele, no tempo presente, revisita o passado e, de posse daqueles valores do passado, olha para aquele tempo e o (re)valida, criando informação nova na interlocução entre passado e presente. Ainda, quando narra sobre seus interlocutores, mostra os discursos com os quais ele cruzou os seus próprios, e o quanto esses discursos se tornaram diálogos na medida em que ele põe seus interlocutores e a si mesmo à prova. Ao transmitir isso para o leitor, Flusser projeta um discurso que se torna novamente um diálogo, colocando um valor que é duvidado. Ao leitor, em posse de seu próprio repertório, cabe ou não validar tal informação.

Por meio da narrativa, ele faz uma aproximação fenomenológica da realidade, (re)construindo, criticando, interpretando, (re)criando e até projetando cenários - característica recorrente em outras obras nas quais aparecem narrativas similares. Dessa forma, a narrativa é, ela mesma, falta de sentido e busca de sentido, por meio da manutenção da dúvida e por meio da tentativa de engajamento. A autobiografia é uma forma de captar parcialmente essa relação para que ela possa servir de espelho para o outro. Assim, a narrativa é um modo de materializar a possibilidade de comunicação com o outro e, em alguma medida, um alento diante da própria angústia do existir.

REFERÊNCIAS

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    Este ensaio é uma versão revisada e ampliada de trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Narrativas Contemporâneas nas Mídias, realizado pelo Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Cultura, EPCOM, 26 de setembro de 2021.

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2021
  • Aceito
    13 Nov 2023
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