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NÃO TEM CABIMENTO: A NEGAÇÃO NO PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO DE SUJEITOS GORDOS

It does not Fit: The Negation in the Process of Subjectivation of Overweight Subjects e

No tiene cabida: la negación en el proceso de subjectividad de sujetos gordos

Resumo

Com base nos pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso pêcheuxtiana, este estudo busca compreender os efeitos de sentido que emergem do excesso de operações discursivas de negação nos relatos de sujeitos gordos. A partir da análise, propõe a possibilidade de tal excesso apontar para um processo de resistência no discurso desses sujeitos. O sujeito gordo, interpelado pela Formação Discursiva (FD) dominante, não consegue uma identificação com as evidências que a FD produz: seu corpo se impõe como uma barreira para o processo de identificação. O sujeito, contudo, também não encontra possibilidade de identificação fora da FD dominante. Percebe-se, então, que o processo de subjetivação do sujeito gordo é atravessado por uma negação: o sujeito é aquilo que ele não é. Em outras palavras, o sujeito gordo precisa se subjetivar pelo avesso da evidência. Esse processo se lineariza em seu discurso por meio do uso excessivo da negação.

Palavras-chave:
Discurso; Corpo; Subjetividade; Gordo; Resistência

Abstract

Based on the theoretical and methodological assumptions from Pêcheux’s Discourse Analysis, this study aims to comprehend the sense effects that emerge from excessive discursive operations of negation in narratives mobilized by overweight subjects. From the analysis, the article proposes a possibility where that excess is related to a resistance process in the discourse of those subjects. The overweight subject, interpelled by the dominant Discursive Formation (DF), cannot establish an identification with the evidences that the DF produces: the body imposes itself as a barrier to the process of identification. However, the subject does not find a possibility of identification outside the dominant DF. The process of subjectivation of the overweight subject is crossed by a negation: the subject is what he/she is not. In other words, the overweigth subject needs to be subjectified by the opposite of the evidence. This process is linearized in his/her discourse through excessive negation uses.

Keywords:
Discourse; Body; Subjectivity; Overweight; Resistance

Resumen

En base a los presupuestos teórico-metodológicos del Análisis de Discurso pêcheuxtiana, ese estudio busca comprender los efectos de sentido que emergen del exceso de operaciones discursivas de negación en relatos de sujetos gordos. Desde el análisis, se propone la posibilidad del exceso señalar hacia un proceso de resistencia en el discurso de esos sujetos. El sujeto gordo, interpelado por la Formación Discursiva (FD) dominante, no logra identificación con las evidencias que la FD produce: su cuerpo se impone como barrera para el proceso de identificación. El sujeto, sin embargo, también no encuentra posibilidad de identificación fuera de la FD dominante. Así se percebe que el proceso de subjetivación del sujeto gordo es atravesado por una negación: el sujeito es lo que no es. Es decir, el sujeto gordo necesita subjetivarse por el revés de la evidencia. Ese proceso se hace lineal en su discurso por medio de utilización demasiada de la negación.

Palabras-clave:
Discurso; Cuerpo; Subjetividad; Gordo; Resistencia

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nunca fomos expostos a tantas imagens de corpos e nunca falamos tanto sobre corpos como na sociedade atual. Em quase todas as esferas da atuação humana, o corpo assume um lugar de destaque, configurando-se como um dos principais espaços simbólicos na construção dos modos de subjetividade e desempenhando o papel principal nas relações que os sujeitos estabelecem com o mundo. Porém, alcançar uma relação harmoniosa com nossos corpos é da ordem do impossível.

Passamos, atualmente, por um período de valorização da imagem corporal; nesse contexto, a busca por um ideal de “corpo perfeito se tornou uma grande preocupação para os sujeitos. A imagem corporal assume uma relevância tão grande nas relações sociais que pode se configurar como um fator de discriminação e exclusão social no caso de o sujeito estar fora do padrão corporal imposto socialmente. As representações de beleza e saúde veiculadas pela mídia e pelas redes sociais alimentam os estereótipos de corpo perfeito e impõem configurações corporais, muitas vezes inalcançáveis.

O corpo gordo, nesse cenário, é marginalizado e estigmatizado. Ao valorizar a magreza, a sociedade transforma a gordura em um símbolo de derrota moral e o sujeito gordo passa a ser visto como negligente, preguiçoso, aquele que não tem capacidade de transformar-se numa versão melhor de si mesmo, características extremamente condenáveis dentro das exigências do estilo de vida atual. Frente à norma social, o corpo gordo passa a ser um corpo desviante, indesejável e, por vezes, desumanizado.

A obesidade, hoje, de acordo com Vigarello (2012VIGARELLO, G. As metamorfoses do gordo: história da obesidade no ocidente. Petrópolis: Editora Vozes, 2012., p. 318), é caracterizada por um fenômeno inédito: sua situação de epidemia. O obeso passou a ser visto como um doente social, um indivíduo incômodo aos olhos atuais. Para o autor, a identificação cada vez maior dos sujeitos com seus corpos “acentua, no caso do obeso, uma insuperável dilaceração íntima: o sujeito passa a sentir-se traído pelo seu próprio corpo, mas é nele que encontra a expressão de sua subjetividade”; assim, a relação sujeito/corpo passa a ser mais conflituosa, pois negar o próprio corpo seria negar a si mesmo.

Nessa perspectiva, Le Breton (2012) desenvolve a teoria da promoção do corpo a alter ego: o corpo passa a desempenhar o papel principal na relação do sujeito com o mundo, é transmutado em substituto do sujeito. Segundo ele, “busca-se uma sociabilidade ausente, abrindo em si uma espécie de espaço dialógico que assimila o corpo à possessão de um objeto familiar, ou o alça à posição de parceiro” (LE BRETON, 2012LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012., p. 249). Este corpo dissociado torna-se, no imaginário atual, o meio pelo qual é possível transformar o sujeito imaterial. O corpo passa a ser cuidado, mimado, explorado como território a conquistar, objeto de todas as atenções e investimentos. Cuidar bem do corpo passa a ser sinônimo de cuidar bem de si. Podemos observar, assim, o esgarçamento dos limites da relação entre os sujeitos e seus corpos, já que, a partir do corpo, o sujeito obtém benefícios narcísicos e sociais. A relação com o corpo é atravessada por imaginários de felicidade, beleza e saúde, responsáveis por nutrir a obsessão atual pela “forma corporal perfeita”.

As relações que os sujeitos estabelecem com seus corpos, contudo, não são estritamente individuais e, sim, mediadas por uma série de discursos que circulam socialmente sobre o corpo. A mídia, nesse contexto, assume um papel extremamente relevante, pois tem o poder de selecionar quais discursos serão mais difundidos; dessa forma, “manipula” os imaginários sobre o corpo que serão assumidos como “verdades” na sociedade.

Das revistas de moda aos perfis fitness nas redes sociais, há um grande investimento em chamar a atenção das pessoas para tudo o que envolve o corpo. Nos últimos tempos, cresceu consideravelmente o número de programas de televisão que tratam de questões relativas à saúde e ao bem-estar físico. Em geral, nesses programas, médicos, nutricionistas, psicólogos, especialistas em preparação física, dentre outros profissionais do campo da saúde são chamados para explicar determinados fenômenos que envolvem o corpo: dar dicas de o que comer, alertar para hábitos nocivos à saúde física e mental, divulgar novas pesquisas e descobertas do universo científico, de maneira acessível a todos os públicos.

Além disso, há no mercado uma série de produtos, receitas e procedimentos que prometem ajudar a modificar o corpo para alcançar o padrão desejado. Desde intervenções cirúrgicas que utilizam a biotecnologia para alterar a forma corporal e atender aos interesses do mercado, passando por diferentes propostas de atividades físicas que prometem eliminar peso e modelar o corpo em pouco tempo, até serviços de acompanhamento nutricional de coachings sem formação profissional adequada, que vendem métodos restritivos de alimentação e asseguram resultados rápidos e efetivos.

A reflexão sobre os processos de mercantilização da relação dos sujeitos com seus corpos na formação social capitalista nos leva a perguntar: quais os efeitos da “ditadura do corpo perfeito” no processo de subjetivação de sujeitos cujos corpos estão à margem desse padrão, como os sujeitos gordos? Para compreender essas relações, elegemos como objeto de estudo um conjunto de relatos do projeto Não tem Cabimento, desenvolvido por uma blogueira que se autodesigna Mulher Gorda, no qual são reunidos, em um perfil da rede social Tumblr, depoimentos de sujeitos que relatam situações de gordofobia pelas quais passaram durante a vida. Os textos que contêm esses depoimentos foram publicados no Tumblr do referido projeto de forma anônima. Cada um dos relatos recebe como título Não tem cabimento, seguido de uma hashtag com o número do relato referente à sequência em que ele é publicado no blog.

Cabe atentar para o nome dado ao projeto: “Não tem cabimento”. Ao mesmo tempo que a expressão não ter cabimento é utilizada, popularmente, para fazer referência a situações nas quais algo foge ao eticamente esperado ou convencionado popularmente como “correto”, também nos convida a pensar sobre a forma como a sociedade se organiza política e estruturalmente. Em outras palavras, o nome do projeto convida a fazer o seguinte questionamento: o que ou quem “cabe” numa sociedade organizada em torno de um padrão inatingível?

Para refletir acerca dessas questões, nos ancoramos teoricamente na Análise de Discurso desenvolvida por Michel Pêcheux, teoria que articula saberes advindos da Linguística, do Materialismo Histórico e da Psicanálise, permitindo-nos, assim, considerar, pelo viés do discurso, a subjetividade tanto em sua constituição individual - considerando a subjetividade determinada pelo inconsciente - quanto no plano social - observando a forma como o histórico e o político afetam as imagens que o sujeito produz de si e do outro.

2 DISCURSO, CORPO E RESISTÊNCIA

Em um texto de retificação publicado em 1978, Pêcheux (2014bPÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD69). [1969]. In: GADET, F; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014b.) passa a repensar a questão do assujeitamento ideológico, levando em consideração a contradição. Nessas reflexões, o autor considera que não há, apenas, reprodução e aceitação das evidências produzidas pela ideologia dominante. Para o autor, há algo da ideologia dominante que, na luta de classes, é desestabilizado/transformado pela ideologia dominada. A partir dessas reflexões, Pêcheux (2014b [1978], p. 281) postula:

- não há dominação sem resistência: primado prático da luta de classes, que significa que é preciso “ousar se revoltar”.

- ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja: primado prático do inconsciente, que significa que é preciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, é preciso “ousar pensar por si mesmo”.

Assim, articulam-se as duas ordens: da ideologia e do Inconsciente. Pêcheux (2015aPÊCHEUX, M. Ousar pensar e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes. Décalages [1984], v. 1, n. 4, p.1-22, 2015a. [1984], p. 16) ressalta que as duas ordens não se confundem; contudo, a ideologia não pode ser pensada sem referência ao registro do inconsciente. Por um lado, “o lapso, o ato falho, etc. constituem, enquanto quebras e fragmentos de rituais, as matérias-primas da luta ideológica das classes dominadas”; por outro lado, “o círculo-ritual da interpelação ideológica é a matéria prima da dominação ideológica”. Desse modo, a ideologia dominante trabalha, incessantemente, para reforçar seus pontos de fragilidade, que emergem nas falhas do ritual de interpelação nas quais se instaura a resistência.

É possível perceber que, nessa perspectiva, o sujeito é um elemento fundamental na instauração da resistência. Ele é pensado como efeito da interpelação ideológica e ocupa, sempre, um lugar em relação à formação social em que está inserido e uma posição em relação à FD que o interpela. Como nem a FD nem a maneira como o sujeito se relaciona com ela são homogêneas, Pêcheux (2014aPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio [1975]. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014a. [1975]) instaura três modalidades discursivas do funcionamento subjetivo: identificação, contraidentificação e desidentificação.

A primeira modalidade, a identificação, caracteriza um processo no qual haveria uma relação especular, de coincidência entre o Sujeito universal e o sujeito da enunciação. Pêcheux caracteriza essa modalidade como o discurso do bom sujeito. Beck e Esteves (2012BECK, M; ESTEVES, P. M. O sujeito e seus modos - identificação, contraidentificação, desidentificação e superidentificação. Leitura, Maceió, v. 2, n. 50, 135-162, jul./dez. 2012., p. 141) atentam para o fato de que a sobreposição sujeito/Sujeito permitiria uma “identificação plena do sujeito (autônomo), que funcionaria sozinho, sem policiamento contínuo e sem qualquer dúvida sobre a posição assumida no âmago de uma formação ideológica”. Teríamos, nesse sentido, o efeito do “livre assujeitamento”, que produz a ilusão de que o “indivíduo interpelado em sujeito se assujeita livremente ao Sujeito e ‘caminha sozinho’, conforme a expressão de Althusser, reconhecendo o estado de coisas existente” (PÊCHEUX, 2015aPÊCHEUX, M. Ousar pensar e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes. Décalages [1984], v. 1, n. 4, p.1-22, 2015a. [1984], p. 08).

É preciso considerar, contudo, que Pêcheux, no desenvolvimento de sua teorização, observa que essa forma de compreender o funcionamento do mecanismo de interpelação-assujeitamento apontaria para o “retorno idealista de um primado da teoria sobre a prática” (PÊCHEUX, 2014cPÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. [1978]. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014c. [1978], p. 276). O autor propõe pensar, então, que essa “identificação plena” acarretaria um “efeito sujeito-ego-pleno, sem lugar para a instância do inconsciente”, e, portanto, sem lugar para a falha, para o equívoco, para a contradição, o que é objeto de sua crítica, pois a resistência é própria de todo o processo de interpelação ideológica, não existindo ritual sem falhas.

Com essa consideração, o processo de identificação do sujeito com a forma-sujeito da FD que o interpela nunca se dá de maneira integral. Isso abre espaço para a segunda modalidade, a contraidentificação. Nesse processo, o sujeito questiona as evidências produzidas pela FD que o interpela. Não há, portanto, uma plena identificação do sujeito com a forma-sujeito que regula a FD. Pêcheux caracteriza esse processo como o discurso do mau sujeito, uma vez que ele passa a questionar os sentidos que até então eram evidentes. Embora o processo em questão instaure a resistência no processo de interpelação, ele ainda ocorre no interior da FD, fazendo trabalhar a sua heterogeneidade.

Sobre essa modalidade de subjetivação, Beck e Esteves (2012BECK, M; ESTEVES, P. M. O sujeito e seus modos - identificação, contraidentificação, desidentificação e superidentificação. Leitura, Maceió, v. 2, n. 50, 135-162, jul./dez. 2012., p. 149) apontam que o que está em jogo não é “uma discordância incompleta, mas um ligeiro deslocamento discursivo em relação ao discurso reproduzido na memória da FD dominante”. Esse movimento não chega, portanto, a efetuar um rompimento com a forma-sujeito da FD, “mas engendra espaços não dominantes no âmbito dessa mesma FD, imbricada a outras”. O sujeito, ao se contraidentificar, rejeita saberes da FD, mas não é capaz de irromper para além das evidências da ideologia que o interpela.

Por fim, a terceira modalidade, a desidentificação, ocorre quando o sujeito rompe com a FD em que estava inscrito e com os saberes que ela produz. Pêcheux (2015bPÊCHEUX, M. Papel da memória [1985]. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. 4. ed. Campinas: Pontes, 2015b. [1985]) destaca, contudo, que não se trata de uma dessubjetivação do sujeito, pois esse processo seria impossível, o que ocorre é uma redefinição da forma-sujeito dominante, uma vez que o sujeito “desidentifica-se de uma formação discursiva e sua forma-sujeito para deslocar sua identificação para outra formação discursiva e sua respectiva forma-sujeito” (INDURSKY, 2011INDURSKY, F. Da interpelação à falha no ritual: a trajetória teórica da noção de Formação Discursiva. In: BARONAS, R. L. (Org.) Análise de Discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de Formação Discursiva. São Carlos: Pedro & João, 2011. p. 77-91., p. 85).

É através dessas três modalidades de tomada de posição propostas por Pêcheux que o sujeito do discurso reproduz/transforma as relações de produção e os saberes vinculados a elas, e essa transformação só é possível porque a contradição é constitutiva do processo de identificação e do funcionamento da FD. Assim, de acordo com De Nardi e Nascimento (2016, p. 88), o assujeitamento ideológico, por ser da ordem do político e do simbólico, é sempre marcado pela resistência, “não como resposta à sujeição mas como elemento fundante do processo”. Porque há falha no ritual e contradição da ordem da ideologia que podemos “falar em resistência e em dominação, tomando-as como contemporâneas no sentido de que coexistem sem, no entanto, se confundir”.

Ao tratar dos deslocamentos no discurso revolucionário, Pêcheux (1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. [1982]. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 19, p. 7-24, jul./dez. 1990. [1982], p. 17) postula que:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo; falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras...

A partir da citação de Pêcheux, podemos refletir sobre a relação entre língua e ideologia. Se a materialidade por excelência do discurso é a língua, é na língua, principalmente, que podemos observar as marcas da resistência. Observando os relatos do projeto Não tem Cabimento, conseguimos identificar uma série de elementos linguísticos utilizados pelos sujeitos para falar de si e da sua relação com seu corpo, que podemos considerar como marcas, na língua, do funcionamento da resistência no processo de subjetivação dos sujeitos gordos. Uma dessas marcas é a negação, da qual trataremos a partir de agora.

De acordo com Indursky (2013INDURSKY, F. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp, 2013., p. 261 [grifo da autora]), a negação “é um dos processos de internalização de enunciados oriundos de outro discurso”, podendo, assim, indicar a existência de diversas operações discursivas. A autora aponta que, quando um sujeito produz um discurso, a partir do lugar discursivo que assume, o faz por uma predicação afirmativa, identificando seu dizer com os saberes da FD que o afeta. Quando ocorre uma predicação negativa, a autora propõe que essa operação discursiva seja classificada em três categorias: negação externa, negação interna e negação mista.

A negação externa é aquela que incide sobre um discurso que provém de uma formação discursiva antagônica. Essa operação apresenta duas características principais: a marca de negação é explícita e o discurso do outro é implícito. É estabelecida, então, uma fronteira entre o discurso do sujeito e o discurso do outro. Como o discurso do outro não pode ser dito pelo sujeito, permanece recalcado em seu interdiscurso específico; o funcionamento dessa modalidade negativa transforma esse discurso outro em seu contrário e o sujeito, assim, o incorpora em seu discurso.

A negação interna, por sua vez, assim como a externa, revela a presença de um discurso-outro; contudo, não estabelece fronteiras ideológicas, pois incide sob um discurso que provém da mesma FD que a internaliza, ou seja, não opõe FDs antagônicas como na modalidade anterior, mas “diferentes posicionamentos subjetivos no interior de um mesmo quadro ideológico” (INDURSKY, 2013INDURSKY, F. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp, 2013., p. 281).

Por fim, a negação mista mobiliza as duas operações anteriores, incidindo, ao mesmo tempo, sobre discursos inscritos em diferentes domínios do saber. Isto é, dá-se, nessa operação, a confluência entre uma relação de antagonismo e uma relação de contradição; em um mesmo enunciado discursivo, o sujeito refuta uma evidência de outra FD e contrapõe-se a uma evidência da FD que o interpela.

Tais operações, de acordo com Indursky (2013INDURSKY, F. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.), se materializam linguisticamente através de vários marcadores, nomeados pela autora como marcadores de negação. Esses marcadores podem ser de diferentes classes gramaticais: advérbios como não; prefixos de negação como in-, des-; pronomes indefinidos como jamais, ninguém; entre outras formas diversas.

Em nosso corpus, foram encontrados diversos marcadores de negação; contudo, para fins de análise, recortamos apenas as sequências nas quais aparecem os advérbios não e nem. Selecionamos este marcador considerando, a partir da proposta de Ernst (2009ERNST, A. G. A falta, o excesso e o estranhamento na constituição/interpretação do corpus discursivo. In: SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO - SEAD. 4., 2009, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2009.), o efeito de palavras, expressões e proposições que aparecem em excesso no corpus. Com base nisso, trazemos a análise de algumas sequências discursivas de referência retiradas de depoimentos do projeto Não Tem Cabimento.

(SDR01) Minha única fase de não gorda foi na infância, era tão magra que chegavam a contar minhas costelas. O tempo passou e com isso o terror de sofrer preconceito todos os dias, não precisa ser comentado, apenas o olhar de algumas pessoas denunciam a repulsa.

A SDR01 é o parágrafo que dá início a um dos relatos. Podemos observar que o sujeito começa seu depoimento recuperando uma memória sobre seu corpo e designa uma fase da sua vida, quando seu corpo era magro, como fase de não gorda. É importante atentarmos para essa escolha de designação. A expressão não gorda está, nesse contexto, funcionando como substituta de magra; contudo, os efeitos de sentido produzidos pelas duas expressões são diferentes. Ao usar a designação não gorda, o sujeito divide sua vida, sua trajetória, em duas fases: antes e depois de tornar-se gorda. Ambas as fases têm como referência principal a gordura, seja pela ausência ou pela presença. A gordura está de tal forma inscrita em sua subjetividade que o rompimento com o próprio significante parece ser um processo traumático.

Em seguida, ao relatar a fase de sua vida em que era magra, o sujeito apela ao excesso, através do uso do intensificador tão e da expressão contar as costelas, comumente utilizada de forma pejorativa para se referir a pessoas consideradas “magras demais” para o padrão corporal da sociedade contemporânea. Podemos perceber, na sequência, que o sujeito é interpelado pela FD que denominamos como Formação Discursiva do corpo perfeito (FD1), que impõe um padrão corporal rígido, condenando e marginalizando qualquer formato corporal que não obedeça ao estabelecido, seja pela presença da tão condenada gordura, quanto pela magreza quando considerada excessiva.

Para compreender o funcionamento da FD1, é preciso considerar que o corpo, na formação social capitalista, é tomado como um objeto a ser moldado pelo sujeito que é interpelado a sentir-se sempre insatisfeito com sua forma corporal e estar sempre em busca de alcançar um ideal imaginário de corpo perfeito. A partir dessa FD são colocados em circulação sentidos que alimentam o processo de mercantilização da relação dos sujeitos com seus corpos. Os sujeitos interpelados por essa FD estão em constante conflito com sua imagem corporal. Pelo fato de o ideal de corpo perfeito ter sido concebido justamente para ser inatingível, mobilizando, assim, toda uma indústria de produtos e serviços de cuidados corporais, o sujeito jamais consegue sentir-se satisfeito com seu corpo. No caso do sujeito gordo, a angústia em relação ao corpo se acentua, uma vez que sua forma corporal está à margem extrema da imagem idealizada. No processo de disputa pelos sentidos, podemos considerar a FD1 como a FD dominante, uma vez que ela coloca em circulação as evidências produzidas pela ideologia capitalista, isto é, a ideologia dominante.

Da mesma forma, podemos considerar, na análise dessa SDR, a necessidade que o sujeito tem de exemplificar ao outro quão magra era, apresentando-lhe uma representação visual de sua magreza da infância, era tão magra que chegavam a contar minhas costelas. Podemos, portanto, pelo viés do esquecimento n° 2, relacionar essa necessidade à atuação das formações imaginárias: a imagem que o outro tem de si precisa ser reconfigurada enunciativamente. Aí está, então, a atuação da FD do corpo perfeito nos processos imaginários.

Ao colocar a gordura como característica principal do seu corpo, o sujeito do discurso em análise responde imaginariamente a essas determinações ideológicas. A mídia, ao criar e disseminar a noção de corpo perfeito, faz com que os sujeitos, interpelados pela FD1, passem a estabelecer uma relação de conflito com seus corpos. Sobre essas relações, Vigarello (2012VIGARELLO, G. As metamorfoses do gordo: história da obesidade no ocidente. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.) sugere que o sujeito gordo vive um conflito de identidade, pois seu corpo, expressão máxima de sua identidade, lhe causa mal-estar. Na perspectiva discursiva, acreditamos que o conflito se dá pelo complexo processo de interpelação ideológica do sujeito, que, por ter um corpo que não se encaixa nos padrões corporais ditados pela mídia, não se identifica plenamente com a forma-sujeito da FD1. O sujeito, então, por também ser corpo, não encontra lugar para si, pois não controla o que seu corpo enuncia.

Seguindo com a análise da sequência, podemos observar a questão dos afetos atravessando o discurso. Ao utilizar a expressão terror e sofrer para caracterizar as situações de preconceito às quais foi exposto por ser gordo, são atualizadas as relações de afeto envolvidas no resgate da memória dos episódios vividos. Em relação a esses sentimentos, o sujeito coloca que não precisa ser comentado. Cabe perguntar: por que o terror e o sofrimento não precisam ser comentados? Temos dois gestos de interpretação, não excludentes: i) porque há algo do sofrimento experienciado pelo sujeito que é da ordem do não dizível, do impossível de ser representado simbolicamente; e ii) porque os interlocutores para quem esse relato foi produzido, por terem vivências semelhantes, compreendem o sofrimento implicado em ter um corpo completamente à margem do padrão, dispensando, assim, a necessidade de tentar expor um sentimento que é compartilhado pelos demais sujeitos gordos.

No primeiro caso, precisamos atentar para a natureza dos relatos produzidos, isto é, para sua função de testemunho. De acordo com Mariani (2016, p. 54), o testemunho se configura em um falar que tem como característica sua urgência, que aponta para “o não esquecer e para um não deixar os outros esquecerem”. Contudo, como a linguagem é insuficiente em dar conta de um todo real, torna-se impossível falar de um “todo vivido”. Há, então, uma tensão entre a memória e o esquecimento. Nas palavras da autora, “de um lado o fantasma da memória, aquilo que, pela via do imaginário insistimos em recordar [...] do outro, o furo da memória, que insiste em ficar sem representação”. Podemos pensar, a partir disso, que o “não precisa ser comentado”, do sujeito enunciador da SD01, pode estar relacionado a um não é possível de ser comentado, pois há algo do trauma de “sofrer preconceito todos os dias” que tropeça na impossibilidade de dizer, isto é, resiste a ser simbolizado.

Além disso, temos um segundo gesto de interpretação, que envolve a questão das formações imaginárias em jogo nesse processo discursivo. Ao produzir os relatos, os sujeitos estabelecem uma relação imaginária com seus interlocutores. Nesse caso, são outros sujeitos gordos que acompanham o projeto Não tem Cabimento e que, por isso, estão cientes do sofrimento atrelado ao corpo gordo em uma sociedade que cultua a magreza e, por consequência, condena a gordura e a transforma em um símbolo de derrota moral. Ao enunciar, então, o terror de sofrer preconceito todos os dias não precisa ser comentado, o autor estabelece que, mesmo sem serem simbolizados, esses sentimentos são compreendidos por aqueles que assumem um mesmo lugar na formação social, a saber, o lugar de gordo.

Ainda em relação ao imaginário, é interessante observar a questão do olhar, que surge a partir do enunciado “apenas o olhar de algumas pessoas denunciam a repulsa”. O olhar pode ser pensado, nesse contexto, como uma forma de o discurso dominante se materializar em gesto. Podemos perceber, no processo de subjetivação dos sujeitos gordos, o excesso de controle do outro, materializado pelo gesto do olhar.

Não podemos considerar, obviamente, que o que a materialidade em questão nos permite interpretar são os sentidos que o sujeito gordo atribui ao olhar do outro. Temos, então, mais uma vez, a ação das formações imaginárias sendo determinadas pela FD dominante. Os sentidos que o sujeito gordo atribui ao olhar alheio são os previstos pela FD que o interpela; assim, repulsa, deboche, desprezo, nojo e opressão fazem emergir processos de significação que, a partir da FD do corpo perfeito, podem e devem ser relacionados à imagem do corpo gordo. A partir de outras FDs, os sentidos atribuídos ao olhar sobre o corpo gordo poderiam ser outros.

(SDR02) Me sinto mau por todas as vezes em que eu não me senti bonita, em que eu me importei com as coisas que dizem pra mim, por não me aceitar do jeito que eu sou e principalmente por me culpar por não ser do jeito que as pessoas querem que eu seja. Lamentável eu não conseguir ter meu amor próprio por causa de vários babacas ao meu redor.

Através da operação discursiva de negação, o sujeito na SDR02 retoma uma série de enunciados comuns dos famosos discursos de autoajuda, muito utilizados pela mídia para disseminar um imaginário de sujeito que teria pleno controle sobre si e seria capaz de controlar, conscientemente, a relação que estabelece com sua imagem. Esses enunciados são: sinta-se bonita, aceite-se do jeito que você é, seja como você quer ser e não como as pessoas querem que você seja e tenha amor próprio. Contudo, sentir-se bonita, aceitar-se e ter amor próprio, exige, ao sujeito interpelado pela FD1, um corpo magro. Ao não conseguir identificar-se com esse discurso, porque sua forma corporal impõe-se como uma barreira para essa identificação, o sujeito se sente frustrado e o marca linguisticamente através do excesso de sentenças negativas. O impossível do corpo ganha forma no excesso da língua.

Esses elementos nos permitem ler a SDR02 atrelada à complexa questão do ressentimento, pois o sujeito coloca-se como ressentido, assombrado pelo impossível de controlar a imagem que produz de si, uma vez que ela é dependente da imagem que o sujeito acredita que o outro tenha dele. De acordo com Kehl (2005KEHL, M. R. O ressentimento camuflado da sociedade brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 71, p. 163-182, mar. 2005., p. 164), “ressentir-se implica, por um lado, uma persistência no sofrimento; por outro, a atribuição a um outro da responsabilidade pelo que nos faz sofrer”. Podemos compreender os relatos com caráter autobiográfico como um resgate da memória, e o sujeito da SDR02 persiste, justamente, na memória do sofrimento de não conseguir se relacionar de maneira harmoniosa com seu corpo.

Em relação ao outro, na SDR02 ele é referido de três formas: (i) pelo implícito na conjugação do verbo dizer em terceira pessoa, no enunciado “as coisas que dizem pra mim”; (ii) pelo sintagma as pessoas, no enunciado “as pessoas querem que eu seja”; e (iii) pela expressão babacas, no enunciado “por causa de vários babacas ao meu redor”. Na primeira e terceira formas, embora os referentes não estejam determinados, há elementos no enunciado - para mim e ao meu redor - que restringem o referente e, portanto, nos permitem identificar o outro como pessoas do círculo social que, de alguma forma, interagem com o sujeito gordo. Na segunda forma, por outro lado, temos a expressão genérica as pessoas, que não aponta para um referente específico. Podemos pensar que, nesse caso, o outro é toda uma formação social estruturada pelas evidências produzidas pela FD1, que impõe ao sujeito uma configuração corporal impossível de ser alcançada. Temos duas configurações desse outro ao qual o sujeito atribui a responsabilidade pelo seu sofrimento: o outro enquanto formação social que, através da FD1, regula que corpo deve ou não existir, e o outro enquanto sujeitos interpelados pela FD1, que reproduzem esses saberes sobre o corpo no processo de interação com o sujeito gordo e são responsáveis pela manutenção da opressão.

Kehl (2005KEHL, M. R. O ressentimento camuflado da sociedade brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 71, p. 163-182, mar. 2005., p. 164) argumenta, ainda, que o sujeito ressentido cobra do mundo, através de suas repetidas queixas, “a satisfação de um desejo diante do qual ele recuou”. As queixas funcionam, ao mesmo tempo, “como meio de gozo e como resistência” para que o sujeito, assim, não tenha que se deparar com sua própria responsabilidade no evento pelo qual foi prejudicado. Compreendemos que esse complexo processo ocorre pelo atravessamento das formações imaginárias na forma como o sujeito se subjetiva; o sujeito acredita que o outro é a única barreira para a aceitação de sua condição corporal e deposita nele a responsabilidade por seu sofrimento, isentando-se, portanto, dessa responsabilidade.

Outra condição central do ressentimento, de acordo com Kehl (2005KEHL, M. R. O ressentimento camuflado da sociedade brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 71, p. 163-182, mar. 2005., p. 165), é que o sujeito estabeleça “uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu valor”. Podemos relacionar isso ao excesso de discurso relatado apresentado nos depoimentos dos sujeitos. A imagem que o sujeito gordo produz de si está sempre atrelada à imagem que ele antecipa que o outro tenha dele. Esses outros aparecem, nos relatos, de diferentes formas: no lugar do pai ou da mãe opressores, que, desde a infância, condenavam a relação dos sujeitos com a comida; no lugar do médico, que toma o sujeito gordo sempre como doente, mesmo sem nenhum exame ou procedimento avaliatório; no lugar do par romântico em potencial, que despreza o sujeito gordo em função de sua forma física. Na SDR em análise, esse outro é projetado nas pessoas do convívio social do sujeito que, para ele, deveriam ser as responsáveis por fazê-lo sentir-se bem com seu corpo, mas, por reproduzirem os saberes da FD1 que condena a forma física gorda, produzem justamente o efeito contrário.

(SDR03) De uma coisa tenho certeza, sou muito mais saudável que muita gente magra e com certeza ser gordo não é sinônimo de não ter saúde, as pessoas confundem muito isso.

(SDR04) E outra coisa que me incomoda bastante é o fato de algumas pessoas esconderem seus preconceitos atrás da saúde… KIRIDINHO, ACEITE: NEM TODO MAGRO É SAUDÁVEL ASSIM COMO NEM TODO GORDO TEM PROBLEMA DE SAÚDE. Não adianta falar que pra mim ficar bonita deveria emagrecer, pois ficaria mais saudável…

Ao começar esse gesto de análise, parece que o processo de subjetivação do sujeito gordo se dá atravessado por uma negação: o sujeito é aquilo que ele não é. Ao contrário de sujeitos que se autoidentificariam com o padrão de corpo determinado ideologicamente, o sujeito gordo precisa se subjetivar pelo avesso da evidência. Ao não conseguir fazê-lo, marca linguisticamente esse impossível. Isso significa que não existe identificação fora da FD dominante, a FD1.

Pêcheux (2014cPÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. [1978]. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014c. [1978]) introduz o termo contraidentificação para caracterizar o processo ideológico no qual o sujeito não se identifica plenamente com a forma-sujeito que regula a FD, assumindo uma nova posição-sujeito no interior da FD que o interpela. Podemos perceber esse processo a partir da análise das SDRs que compõe nosso corpus. A FD1, pela qual o sujeito é interpelado, reproduz a evidência de que apenas o corpo magro pode ser considerado belo e saudável. Atravessada por saberes da FD da saúde (FD2), o corpo gordo, nessa perspectiva, é considerado patológico. Os discursos produzidos a partir da FD2, que concebe o corpo como organismo biológico que possui regras próprias de funcionamento e pode/deve sofrer intervenções cirúrgicas e farmacológicas para potencialização de suas funções, se sustentam em uma busca por dominar os discursos produzidos sobre os corpos e estabelecer formas corretas de como os corpos devem ser, determinando o que é considerado normal ou não. Por se constituir com base em uma lógica científica que produz o efeito absoluto de verdade, os saberes produzidos pela FD da saúde ultrapassam os limites da FD e se naturalizam como sentidos sempre-já-lá.

Podemos observar que o sujeito da SDR03 não se identifica com esses sentidos; ele se coloca, justamente, numa posição antagônica quando enuncia “ser gordo não é sinônimo de não ter saúde”. Nesse enunciado, por meio da estratégia discursiva de negação, ele retoma um enunciado reproduzido a partir da FD1 e o nega, assumindo, assim, uma posição-sujeito diferente, que aceita a possibilidade de um sujeito ter um corpo gordo e ser saudável, colocando-se inclusive no lugar desse sujeito ao enunciar “sou muito mais saudável que muita gente magra”. A posição tomada pelo sujeito, aqui, questiona que haja uma relação direta entre magreza e saúde, gordura e doença.

Na SDR03, podemos perceber o funcionamento de um processo de negação mista. Nesse caso, ao se colocar como gordo e saudável, o sujeito se contrapõe à FD2, que compreende o corpo gordo como patológico, FD de origem do enunciado ser gordo é sinônimo de não ter saúde, incorporado pelo sujeito ao seu discurso através da modalidade negativa. E, ao mesmo tempo, questiona a evidência de que é preciso ter o padrão corporal imposto pela mídia para ser saudável, reproduzida pela FD1. Podemos identificar, assim, uma falha no ritual de interpelação ideológica. O sujeito, ao questionar os saberes que são reproduzidos a partir da FD1, ou seja, ao se contraidentificar, institui uma forma de resistência à forma-sujeito dessa FD e aos domínios de saberes que ela organiza. Podemos identificar um funcionamento discursivo bastante similar na SDR4. A operação discursiva em ambas as sequências é a mesma: a negação do pré-construído, advindo da FD2, todo gordo é doente. A forma como esse processo é linearizado no discurso em questão é que muda. Na SDR4, a operação de negação se materializa através do uso do marcador nem no enunciado: “NEM TODO MAGRO É SAUDÁVEL ASSIM COMO NEM TODO GORDO TEM PROBLEMA DE SAÚDE”.

Enquanto na SDR3 a autora propõe que a reprodução dos sentidos - magro é saudável/gordo é doente - produzidos a partir das FD1 e 2 podem ser considerados como uma confusão, como podemos perceber pelo enunciado “as pessoas confundem muito o”, na SDR4 a autora propõe que a reprodução de tais sentidos sobre o corpo deve ser considerada como preconceito: “outra coisa que me incomoda bastante é o fato de algumas pessoas esconderem seus preconceitos atrás da saúde”. Embora a autora não fale em gordofobia - expressão usada principalmente no âmbito da militância para designar ações de discriminação de sujeitos em função da sua forma corporal -, ela sugere que algumas pessoas se apoiam no discurso da saúde para justificar ações gordofóbicas, dissimulando a aversão ao corpo gordo produzida pela FD1 como preocupação com a saúde das pessoas com sobrepeso.

A posição-sujeito assumida pelo sujeito gordo, como podemos observar nas sequências em análise, é demarcada pela negação do discurso-outro, isto é, o sujeito gordo, ao se subjetivar, o faz negando as evidências sobre o corpo gordo reguladas pela forma-sujeito da FD dominante: o corpo gordo é feio, o corpo gordo é doente e demais sentidos que derivam dessas duas evidências estruturais. Com base nisso, propomos considerar o excesso de discurso-outro como um sintoma da falta de o sujeito gordo reconhecer para si um lugar de enunciação. Nossa reflexão se sustenta na noção de lugar enunciativo proposta por Zoppi-Fontana (1999, 2017).

Por meio do conceito de lugar enunciativo, Zoppi-Fontana (1999, p. 16) busca refletir sobre uma dupla problemática: “a divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação, na sociedade”. Embora muitos autores, de diferentes áreas do conhecimento - filosofia, sociologia, ciências políticas - tenham se debruçado sobre essas temáticas, o que diferencia a teorização proposta pela autora é que ela o faz articulando essas discussões com os pressupostos da AD.

Para melhor compreensão da noção em questão, retomemos Pêcheux e suas afirmações sobre a implicação do lugar discursivo no processo de produção dos sentidos. De acordo com o autor:

[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição [...] Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que enuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo a posição do orador e do que ele representa (PÊCHEUX, 2014bPÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD69). [1969]. In: GADET, F; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014b. [1969], p. 76, grifos do autor).

Com base nessas reflexões, na tentativa de alimentar a teorização sobre os efeitos produzidos por uma enunciação a partir do lugar de onde é proferida e sobre a relação desse lugar com os mecanismos institucionais que compõem a formação social, Zoppi-Fontana (1999) propõe a noção de lugar enunciativo, no âmbito do processo de interpelação ideológica, levando em consideração as relações de identificação dos sujeitos com a forma-sujeito e com as posições-sujeito definidas nas formações discursivas. Assim, a autora compreende os lugares de enunciação como uma dimensão das posições-sujeito, que fazem parte do processo de constituição do sujeito do discurso, relacionadas às demandas políticas que envolvem a prática discursiva.

Os lugares de enunciação, tanto pela presença quanto pela ausência, configuram um modo de dizer afetados, diretamente, pelos processos históricos de silenciamento. Nesse caso, tais modos de dizer mobilizam o imaginário de um eu ou de um nós do qual a representação social retira a legitimidade e a força performativa da enunciação. É a partir desses “lugares enunciativos e, portanto, do processo de constituição do sujeito do discurso, que se instauram as demandas políticas por reconhecimento e as práticas discursivas de resistência” (ZOPPI-FONTANA, 2017ZOPPI-FONTANA, M. “Lugar de fala”: Enunciação, Subjetivação, Resistência. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO (WOMEN’S WORLD CONGRESS), 11.,13., 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2017., p. 67).

Com referência aos discursos sobre o corpo gordo, o lugar enunciativo que produz um efeito de verdade e credibilidade é o lugar assumido, em geral, pelos profissionais da saúde, tanto no espaço médico-clínico quanto no espaço midiático. A ciência médica configura um modo de dizer, afetado por processos históricos, que legitima sentidos sobre o corpo gordo - como um corpo doente, que precisa ser tratado, medicado, modificado - que alimentam um imaginário negativo em relação a essa configuração corporal.

O discurso médico, a partir de seu lugar legitimado, impõe definições de normalidade, que produzem evidências consideradas socialmente como verdades hegemônicas. Ao impor regras sobre os corpos e transformar tudo o que foge à norma em patológico, o discurso médico-clínico age como uma ferramenta de controle social. Assim, a medicina comanda e exerce domínio sobre a vida das pessoas por meio do consumo de medicamentos, técnicas e terapias legitimados por um racionalismo científico.

Temos, ainda, o trabalho da mídia na disseminação de imaginários negativos sobre o corpo gordo. Apoiada no discurso médico-clínico do padrão de corpo saudável, a mídia constrói e apresenta à sociedade um ideal de corpo perfeito a ser seguido, ideal esse que promove um processo de mercantilização da relação dos sujeitos com seus corpos. Nesse contexto, o sujeito gordo é completamente negado e silenciado. Nas poucas vezes em que a mídia coloca em circulação alguma representação do corpo gordo, é sob o estereótipo do “gordo cômico”, que compensa o fato de ter um corpo fora do padrão sendo “bem-humorado”, ou para efeito de contraste ao corpo magro em peças publicitárias nas quais, em geral, o corpo gordo assume o lugar do mau exemplo, do feio, do deforme, que precisa ser modificado com urgência. Na disputa política pelos sentidos, o discurso médico e midiático sobre o corpo gordo é dominante, legitimando uma imagem do sujeito gordo como feio, doente, incapaz, e, assim, deslegitimando qualquer discurso que parta desse sujeito e que questione essas evidências.

Já que o discurso dominante sobre o corpo gordo é o discurso do outro, o sujeito, na forma como se subjetiva, não consegue encontrar um lugar de identificação, e acaba se determinando a partir da imagem que o outro constrói sobre si. A incorporação de enunciados que definem o que o sujeito não é - através de operações discursivas de negação - é uma marca, na materialidade linguística, desse excesso de discurso-outro no processo de subjetivação do sujeito gordo.

O sujeito se reconhece como gordo e se subjetiva a partir dos sentidos produzidos pela FD dominante. O efeito produzido pela negação e silenciamento do corpo gordo é de que esse corpo não é permitido na formação social atual. A impossibilidade de ter um corpo gordo na formação social marca, então, uma impossibilidade subjetiva: há algo que o sujeito não pode ser, com o qual o sujeito não pode e não deve se identificar. Essa impossibilidade, ao mesmo tempo que constitui o sujeito determinando-o, marca, também, a impossibilidade de ele ser o que “deveria” ser, pois o corpo não o permite.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As sequências discursivas analisadas nesta reflexão trouxeram relatos de sujeitos gordos. Os relatos foram feitos de forma anônima e voluntária, sendo os participantes do projeto Não Tem Cabimento convidados, através da rede social, a publicar um depoimento sobre a forma como o corpo determina as suas relações sociais. A proposta se embasa na impossibilidade de a subjetividade ser considerada separada do corpo, o que revela que a subjetivação só acontece em relação com o corpo.

No caso da análise empreendida, o sujeito não consegue encontrar um lugar próprio de subjetivação para si em função da negação de seu corpo - uma negação inscrita na palavra, na sintaxe verbal e corporal que (des)organiza o sujeito. Ao ser o corpo e ter um corpo, não se pode ser o que a determinação ideológica dominante prevê. Enquanto a identificação o convoca ao dominante, o corpo o convoca ao dominado no jogo de forças da interpelação ideológica. Nessa contradição, o sujeito não encontra lugar de enunciação, o que amarra sua estrutura subjetiva à determinação dominante, e é na divisão da negação que o sujeito encontra os elementos linguísticos que lhe possibilitam a subjetivação (uma subjetivação pelo avesso). Por não encontrar para si um lugar de enunciação, o sujeito resiste em se desidentificar.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2020
  • Aceito
    23 Nov 2021
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