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SOBRE O POLÍTICO E A RESISTÊNCIA NO FILME O FOTÓGRAFO DE MAUTHAUSEN

Political Discourse and Resistance in the Movie The Photographer of Mauthausen

Acerca del político y la resistencia en la película El fotógrafo de Mauthausen

Resumo

A perspectiva teórica deste texto é a da Análise de Discurso em diálogo com a Semântica do Acontecimento. Toma-se como objeto de análise o filme O fotógrafo de Mauthausen. O filme narra a história de Francesc Boix, ex-soldado da Guerra Civil Espanhola, preso no campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, durante a Segunda Guerra Mundial. Procura-se compreender como a narrativa do filme diz do político e da resistência do sujeito. O político é o conflito na linguagem porque o real é dividido de modo desigual. O político se inscreve em materialidades significantes diversas no filme: no contrabando de objetos banais, nas artimanhas para esconder provas incriminadoras, na língua e no próprio corpo. Ao resistir, os sujeitos podem agitar o discurso e constituir outros sentidos e outras posições-sujeito. É o que as materialidades significantes mostram: a recusa em assumir apenas a identidade de prisioneiro que lhes foi imposta.

Palavras-chave:
Análise de Discurso; Mauthausen; Político; Resistência

Abstract

From the theoretical perspective of French Discourse Analysis, in dialogue with the Semantics of the Events, we take as object of analysis the movie The Photographer of Mauthausen. It tells the story of Francesc Boix, a former soldier in Spanish Civil War, imprisoned in the concentration camp at Mauthausen, Austria, during the World War II. We aim to understand how the movie' s narrative mobilizes the political discourse and resistance of the subject. The political discourse is the conflict in language because the real has an uneven division; the political discourse in the movie takes inscription into different significant materialities: the smuggling of banal objects, the artifices to hide incriminating evidence, the discourse and the body itself. When resisting, the subject can stir up the discourse, as well as constitute other meanings and subject positions. That is what the significant materialities show: the refusal in assuming only the prisoner identity imposed on them.

Keywords:
Discourse Analysis; Mauthausen; Political Discourse; Resistance

Resumen

La perspectiva teórica de ese texto es el Análisis del Discurso en diálogo con la Semántica del Acontecimiento. Se coge el análisis de la película El fotógrafo de Mauthausen como objeto. La película narra la historia de Francesc Boix, que fuera soldado de La Guerra Civil Española, arrestado en el campo de concentración de Mauthausen, en Austria, durante la II Guerra Mundial. Se busca comprender cómo la narrativa de la película habla del político y de la resistencia del sujeto. Lo político es el conflicto em el lenguaje porque es dividido de manera desigual. Lo político se inscribe en materialidades significantes diversas en la película: en el contrabando de objetos banales, en trucos para ocultar evidencia incriminatoria, en la lengua y en el propio cuerpo. Cuando resisten, los sujetos pueden agitar el discurso y construir otros sentidos y otras posiciones-sujeto. Es el que las materialidades significan y muestran: el rechazo en asumir solamente la identidad del prisionero que se les fue impuesta.

Palabras clave:
Análisis del Discurso; Mauthausen; Político; Resistencia

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho conjuga arte, cinema, linguagem e discurso. O cinema é uma manifestação artística e também é linguagem. Refletir sobre o cinema como arte e linguagem, a partir de uma perspectiva materialista-discursiva, é colocar, de saída, espessura semântica nesse objeto simbólico. Inserimo-nos em uma perspectiva que reflete sobre a linguagem na relação constitutiva com o sujeito e a situação.

A perspectiva teórica em que este texto1 1 Este trabalho originou-se de reflexões do grupo de pesquisa: A partilha do sentido: o político e a tecnologia na sociedade, sob a coordenação deste autor. se insere é a da Análise de Discurso em diálogo com a Semântica do Acontecimento. Esses campos compartilham entre si uma base materialista de estudo da linguagem. Tomamos como objeto de análise o filme baseado em fatos reais O Fotógrafo de Mauthausen, de 2019, disponível na rede de streaming Netflix. Procuraremos compreender como a narrativa do filme diz o político, no sentido de um “conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma divisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento” (GUIMARÃES, 2002GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002., p. 16). O político2 2 O conceito de político, para Guimarães, baseia-se no filósofo francês Jacques Rancière. Para este autor, “a política [ou o político] existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituição é o todo da política enquanto forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à aritmética das trocas e das reparações” (RANCIÈRE, 1996, p. 27). O que Rancière nos quer mostrar é que o todo da comunidade não é a mera (re)união de suas partes. O espaço da comunidade não é neutro, é litigioso. As partes estão em conflito e há a disputa para se apagar as diferenças e manter cada um em seu devido lugar. Além disso, o autor afirma que só há política porque a ordem social não é uma ordem natural ou uma ordem dada pelos deuses. é parte do funcionamento dividido e conflituoso das línguas. Como diz Zoppi-Fontana (2012, p. 7): “Por ser necessariamente atravessada pelo político, a língua é marcada por uma divisão, pela qual os falantes se identificam”.

Para nos ajudar a compreender o movimento político dos sentidos no filme tratado, trabalharemos outros conceitos, como os de materialidade significante e o de metonimização das imagens. A materialidade significante amplia a relação entre a língua e a história e considera as diferentes materialidades significantes (o som, a imagem) na relação com a história. Segundo Lagazzi (2010, p. 173), as diferentes materialidades reiteram “a importância de tomarmos o sentido como efeito de um trabalho simbólico sobre a cadeia significante, na história, compreendendo a materialidade como o modo significante pelo qual o sentido se formula”.

O conceito de metonimização das imagens é formulado por Lagazzi (2010) a partir do dizer de Lacan (1978LACAN, J. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.): “o deslocamento é uma metonímia”. Diz o autor: “deslocamento, [...] essa virada da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentada como o meio mais eficaz de que dispõe o inconsciente a fim de burlar a censura” (LACAN, 1978LACAN, J. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978., p. 242).

Esse deslocamento diz do desejo do sujeito e o mantém em movimento. “A metonimização produz pontos de resistência que retornam e se reafirmam na equivocidade das imagens” (LAGAZZI, 2010, p. 180, grifos nossos). Segundo a autora, o político também se percebe na imagem, pois ela “abre para a possibilidade de deslocamento porque expõe o sujeito aos sentidos, abrindo para diferentes processos de identificação” (LAGAZZI, 2010, p. 181).

São esses pontos de resistência atrelados ao político como afirmação de pertencimento dos desiguais que procuramos flagrar na materialidade significante do filme. A noção de resistência é compreendida na relação com a de sujeito do discurso, a partir de Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Orlandi e al. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. Anexo III, p. 269-287. Ed. original: 1978.). O sujeito do discurso é uma posição sujeito na trama de discursos. Ele é um sujeito afetado pelo inconsciente, portanto, dividido, que se encontra na ilusão de controle de seu dizer, e interpelado pela ideologia a ocupar um lugar social.

É a partir de Althusser (1985ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: Notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 10. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.) que sabemos que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos. Essa interpelação se dá por meio de aparelhos denominados Aparelhos Ideológicos do Estado. A ideologia é o mecanismo responsável pela evidência do sentido e do sujeito. É devido à ideologia que sabemos o que é um patrão, um professor, um policial.

Pêcheux (1978/20093 3 A primeira data refere-se à data da retificação de Pêchux “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”, texto que consta no anexo de Semântica e Discurso, com data de publicação inicial de 1975. A segunda data refere-se à data da obra consultada. Como a obra e o texto de retificação são momentos teóricos diferentes, faz-se necessário referenciá-los de modo diverso. Fazemos essa diferenciação de datas ao longo do artigo para melhor situar o leitor. ) interessa-se pelo modo como o sujeito é capaz de se voltar contra as causas que o determinam. O autor vai especificar que a luta ideológica de classes é “como um processo de reprodução-transformação das relações de produção existentes” (PÊCHEUX, 1978/2009, p. 274, grifos do autor). Isto é, não há apenas reprodução, há a possibilidade de transformação das relações. Isso porque a interpelação ideológica do sujeito é um ritual com falhas. Diz o autor:

Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, “uma palavra por outra” é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso político...) (PÊCHEUX, 1978/2009, p. 277).

e mais à frente:

O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica) bem que poderiam ter alguma coisa de muito preciso a ver com esse ponto sempre-já aí, essa origem não-detectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidias de alguma coisa “de uma outra ordem”, vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio. (PÊCHEUX, 1978/2009, p. 278).

A resistência e a revolta são possíveis porque o sujeito, ao assumir uma posição no discurso, insere-se em uma formação discursiva, que “é o lugar da constituição do sentido (sua “matriz”, por assim dizer)” (PÊCHEUX, 1975/2009, p. 148). As formações discursivas não são fixas e imutáveis, elas estão em constante transformação; suas bordas não são delimitáveis, o que faz com que se interpenetrem, formando uma rede. O sujeito do discurso, interpelado pela ideologia, identifica-se com uma(s) formação(ões) discursiva(s) que o domina(m). Essa identificação funda a unidade imaginária do sujeito (PÊCHEUX, 1975/2009). Portanto, nem os sujeitos nem os sentidos são transparentes, mas heterogêneos, moventes, fluidos.

A partir do que foi tratado, procuraremos flagrar, na materialidade significante do filme, cenas que dizem do político, da quebra do ritual ideológico de dominação, cenas que mostrem momentos em que há transgressão de uma fronteira imaginariamente delimitada. Essas cenas dizem da resistência do sujeito, pois mostram o que está lá e não deveria estar, fala-se quando não se deveria falar, faz-se o que não se deveria fazer; e o sujeito, ao tomar essa posição afirmativa, pode alterar o movimento dos sentidos.

Para mostrar essas cenas, empregaremos como procedimento metodológico o conceito de recorte de Orlandi (1984ORLANDI, E. P. “Segmentar ou recortar”. In: Linguística: questões e controvérsias, publicação do Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba, Série Estudos n. 10, p. 9-26, 1984., p. 140): “o recorte é uma unidade discursiva: fragmento correlacionado de linguagem-e-situação. [...]. Os recortes são feitos na (e pela) situação de interlocução”. Recortaremos cenas do filme para trabalhar a fundamental relação descrição e interpretação em Análise de Discurso. Para Orlandi (2007a, p. 21):

A interpretação está presente em toda e qualquer manifestação da linguagem. Não há sentido sem interpretação. Mais interessante ainda é pensar os diferentes gestos de interpretação, uma vez que linguagens, ou as diferentes formas de linguagem, com suas diferentes materialidades, significam de modos distintos (ORLANDI, 2007aORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007a., p. 9).

2 A NARRATIVA FÍLMICA NA RELAÇÃO ENTRE DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA

Baseado em fatos reais, o filme O Fotógrafo de Mauthausen, dirigido por Mar Targarona, narra a história de Francesc Boix4 4 Cabe ressaltar que o que nos importa é a posição sujeito de Francesc Boix colocada em funcionamento na narrativa do filme. Não procuramos fazer uma correspondência da história do filme com uma realidade fora do filme. (1920-1951), um fotógrafo espanhol, comunista e ex-soldado da Guerra Civil Espanhola. Ele é preso no campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, durante a Segunda Guerra Mundial. Para este campo eram enviados aqueles que tinham maior nível de educação e cultura. Boix se torna fotógrafo do campo e, de início, acredita estar protegido por ser prisioneiro de guerra. Sem muita demora, ele descobre que os oficiais executavam prisioneiros e forjavam fugas para justificar as execuções. Fotografias eram tiradas dos prisioneiros mortos a título de provas de suas “fugas”. Ao descobrir que o Terceiro Reich perde para o exército soviético em Stalingrado e temendo uma piora da situação, Boix apressa-se em esconder os negativos das fotografias que, agora, são provas dos crimes cometidos pelos oficiais alemães.

A narrativa do filme constrói-se em um contraste entre a imponência do dominador, nas figuras dos oficiais alemães e do próprio campo de concentração, e a fraqueza dos dominados, na figura dos prisioneiros. Esse contraste não é disjuntivo, mas dado ao equívoco, a falhas. Pêcheux (1978/2009, p. 281) vai dizer que “não há dominação sem resistência” e focamos inicialmente nas cenas dessa resistência dos prisioneiros na materialidade significante do contrabando no filme.

O contrabando no filme é o gesto5 5 De acordo com Pêcheux (1969/2010), gestos são atos no nível simbólico, como assobiar, jogar uma bomba numa assembleia. Orlandi (2010) toma a questão do gesto e liga-o à interpretação: “No modo como tomo a questão do gesto e o ligo a interpretação, estou dizendo que, na prática simbólica, produzimos gestos de interpretação, sendo estes, modos de interferir no mundo, através da prática simbólica que é a interpretação. Repito: a interpretação é uma prática (simbólica) em meio a outras práticas (sociais)” (ORLANDI, 2010, p. 10). político da resistência do sujeito, pois é proibido, mas se faz mesmo assim. O produto contrabandeado é o que lá está, mas não deveria estar. Por isso, compreendemos que os objetos escondidos e/ou contrabandeados são também pontos de ancoragem de uma memória6 6 A memória de sentidos ou memória discursiva é, para Pêcheux (1999, p. 52), “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”. de sentidos que afirmam um pertencimento a uma outra vida dos prisioneiros. Em outras palavras, esses objetos constituem, na narrativa fílmica, imagens metonímicas do desejo do sujeito, pontos de resistência (LAGAZZI, 2010) que vêm romper o discurso hegemônico do campo de concentração de Mauthausen.

Assim, os objetos mais simples, como uma gaita ou uma fotografia da família, mostram, nas condições em que se encontram, que os prisioneiros não se identificam completamente com aquela posição que lhes impuseram. Aquilo que se contrabandeia coloca o desejo do sujeito em movimento e insere-o em uma outra posição no discurso. Segundo Orlandi (2007bORLANDI, E. P. A questão do assujeitamento: um caso de determinação histórica. ComCiência, v. 89, p. 2, 2007b., p. 2), a resistência dos sujeitos é o que “constitui outras posições que vão materializar outros lugares”. Percebemos a falha no ritual de interpelação ideológica pelo gesto político do contrabando logo na cena inicial.

Nesta cena, sob uma trilha sonora de filme de terror, vemos chegar um grupo de prisioneiros espanhóis ao campo de concentração - Mauthausen -, e essa cena centraliza-se em especial em um homem caminhando com o uso de uma muleta sob o braço direito e com o outro braço apoiado sobre um garoto de cerca de dez anos, e mais adiante ficamos sabendo que se trata de pai e filho. Suas vestes são puídas e sujas. O pai, que não tem parte da perna esquerda, aparenta tristeza e o filho parece preocupado. Ninguém fala nada. O título do filme aparece então na tela e corta-se para a fachada imponente do campo de concentração. Neve circunda o local e o vento assovia denotando uma aparência lúgubre. Pai e filho param e olham o pórtico meio assustados. Nele está encravada a suástica nazista e logo acima a figura em bronze de uma águia. Esses símbolos provavelmente ressoam na memória um prenúncio de horrores que os aguardam. Ao fundo, a voz do narrador (que depois sabemos tratar-se de Boix) nos diz: “Em Mauthausen, tudo é feito para impressionar”.

Impressionar pode ser parafraseado por dominar. A cena acima descrita traz o discurso de dominação em que se inserem aqueles que dirigem o campo de concentração nazista. Esse discurso será contrastado com o discurso de resistência dos prisioneiros, a que daremos visibilidade.

Sob agressões físicas e verbais, os prisioneiros adentram uma sala e lá ocorre o famoso ritual de despersonalização: seus pertences são espoliados, são despidos, têm a cabeça raspada, classificados de acordo com o “crime” que cometeram, e recebem um número para identificá-los. Os oficiais alemães os designam apenas por esses números. Eles passam por tudo isso enquanto tremem de frio. Então, ocorre a primeira quebra do ritual. Um prisioneiro mais antigo, encarregado dos pertences dos novatos, vê uma oportunidade, uma brecha na segurança, e embolsa uma gaita. Aqui tem-se um gesto político. Ele faz o que não se deve(ria) fazer. Ele “rouba” daqueles que roubam. Um gesto equívoco: é mesmo um roubo? Essa cena é o prenúncio de uma rede de contrabando de objetos que segue no campo de concentração ao longo do filme.

Segue-se então a cena imediata à anterior: os prisioneiros estão nus ao ar livre sobre o chão branco de neve. É o momento da identificação fotográfica. O mal-encarado oficial alemão fotógrafo encarregado está completamente agasalhado e bem asseado em seu límpido uniforme nazista, diferente dos prisioneiros nus e desalinhados à sua frente. Ele levanta seu rosto carrancudo da câmara e ajeita dois magros prisioneiros. E então tira outra foto. O narrador chama-o de “Os olhos de Mauthausen”.

Logo em seguida, em um reluzente carro preto, chega o diretor de Mauthausen com um olhar penetrante e muito sério, um olhar hierárquico, no dizer de Foucault (1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.). Ele calça suas luvas e desfila em frente aos prisioneiros para acertar sua dominância. Com apenas um aceno, sem dizer palavra, autoriza a seleção daqueles que vão para outra instituição. Entre eles, o pai aleijado. Ele é separado de seu filho (o nome do garoto é Anselmo Galván). O novo grupo entra em um furgão preto, mas antes recebe de um prisioneiro mais antigo os famosos uniformes listrados. O pai, ao receber seu uniforme, vê, no meio dele, escondida, sua gaita.

Fotograma 1
A gaita escondida no uniforme

No fotograma 1, vemos a imagem da gaita “roubada” para ser devolvida ao dono. Ela contrasta com o uniforme: que sentidos esta cena política da gaita faz funcionar junto à narrativa do filme? A gaita insere-se em uma cadeia significante maior. Ela é um instrumento musical, um objeto muito particular. Não se trata apenas de devolver algo a seu dono, mas de criar um laço, uma identificação de grupo. Um modo de dizer a esse pai que ali ele não está sozinho. A gaita é a marca de que os prisioneiros não são um amontoado de pessoas, mas que estão ali em trocas simbólicas e históricas resistindo à opressão. A gaita retornará em outras cenas, movimentando sentidos de pertencimento à vida longe daquela prisão. Não há espaço para explorar essas demais cenas, pois fogem ao nosso foco, mas cabe-nos dizer que esses outros sentidos postos em funcionamento pela gaita só são possíveis devido ao gesto político inicial de seu “roubo”.

3 OS NEGATIVOS, UM LIVRO E A NECESSIDADE DE UM MUNDO SEMANTICAMENTE NORMAL

A cena do “roubo” da gaita, materialidade significante que introduz o contrabando no filme, prepara o espectador para outras cenas similares. Insere o contrabando em uma rede. Com outras cenas, outros objetos são apresentados. O principal deles são os negativos de fotografias retiradas nas dependências e adjacências do campo de concentração. A próxima cena que trazemos diz respeito aos negativos.

No campo de concentração de Maunthausen, cada prisioneiro é encarregado de uma tarefa. A Francesc Boix cabe, junto a outro prisioneiro, assistir o fotógrafo oficial do campo. Boix aprendera o ofício com o pai que, aos domingos, transformava a cozinha em uma câmara escura. Fotografar os prisioneiros, a princípio, funciona apenas para criar um banco de dados de identificação. Este ofício faz com que Boix circule por outros locais além do campo e entre em contato com outras pessoas.

Ele também acompanha o oficial que tira fotografias dos prisioneiros abatidos ao tentarem “fugir”. E é ao atentar para estas fotografias que ele descobre que os oficiais estão executando os prisioneiros e forjando “fugas” para camuflar seus crimes. A fotografia é a prova da fuga. A título de exemplificação dessas execuções, tem-se a cena em que um prisioneiro é baleado na cabeça à queima-roupa e depois seu cadáver é jogado por cima de uma cerca de arame farpado; então, tira-se a foto para comprovar sua tentativa de “fuga”. O oficial alemão fotógrafo certamente sabe dos crimes, mas não se importa.

Boix, então, indigna-se ao ver que fotografa falsas tentativas de fuga. Mas logo percebe que as fotografias são mentiras que contam a verdade. Boix então decide esconder os negativos como prova desses crimes. A partir desse gesto político, Boix vai mobilizar outros prisioneiros para auxiliá-lo, em uma série de cenas de resistência em que sempre há o risco de serem mortos. Em uma dessas cenas, tem-se uma reunião clandestina entre os prisioneiros; eles ouvem um rádio improvisado, provavelmente montado com produtos contrabandeados. Ficam sabendo que a Alemanha perdera a batalha de Stalingrado. Comemoram. Abraçam-se. Sorriem como não se vê em momento algum do filme. Nesta cena, são mais conterrâneos espanhóis do que prisioneiros, apesar de suas figuras maltrapilhas. Mas um deles, a voz da razão, parece preocupado; Boix pergunta-lhe o que o preocupa, e o prisioneiro alerta que a situação pode piorar: “Até agora, os nazistas achavam que venceriam a guerra. Imagine o que acontecerá se perceberem que podem perder.”.

É a vez de Boix esconder o rádio e ele o faz em um sujo buraco no assoalho próximo à cama de outro prisioneiro, onde estão já escondidos diversos outros itens contrabandeados: maços de cigarro, um par de sapatos, lápis, um isqueiro, uma fotografia de família. Itens banais, mas que remontam ao cotidiano normatizado, à necessidade de um “mundo semanticamente normal” (PÊCHEUX, 1983/2015, p. 34). O que nos interessa destacar é que esses itens estão escondidos, o que os torna equívocos para a cena em questão, pois são materialidades que dizem do político. Devido à condição de existência dos prisioneiros, não poderiam possuir tais itens. Mas lá eles estão.

Mas por que há a necessidade desses simples objetos para constituir a vida diária dos prisioneiros? Segundo Pêcheux (1983/2015), o ser humano tende a uma univocidade lógica nas diferentes instâncias sociais. Essa necessidade de um sentido único é própria ao sujeito pragmático e “começa com a relação de cada um com seu corpo e seus arredores imediatos” (PÊCHEUX, 1983/2015, p. 34). Ainda segundo o autor:

O sujeito pragmático - isto é, cada um de nós, os “simples particulares” face às diversas urgências de sua vida - tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica: isto se marca pela existência dessa mutiplicidade de pequenos sistemas lógicos portáteis que vão da gestão cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o porta-notas, as chaves, a agenda, os papéis etc) até “as grandes decisões” da vida social e afetiva (eu decido fazer isto e não aquilo, de responder a X e não a Y etc...) passando por todo o contexto sócio-técnico dos “aparelhos domésticos” (PÊCHEUX, 1983/20157 7 Cabe ressaltar que esta citação se insere no momento teórico final de Pêcheux. Trata-se de texto apresentado na Conferência “Marxismo e Interpretação da Cultura: Limites, Fronteiras, Restrições”, na Universidade de Illinois Urbana-Champaign de 8 a 12 de julho de 1983. , p. 33).

Pode-se concluir que a posse dos objetos banais contrabandeados é gesto de resistência, pois eles se inscrevem em uma formação discursiva contra-hegemônica ao discurso dominante nazista que os subjetiva apenas enquanto prisioneiros obedientes. Essa formação discursiva contra-hegemônica diz de uma posição sujeito outra destes prisioneiros, pois traz à tona laços de amizade, memórias familiares. São gestos que dizem do desejo do sujeito de resistir a uma posição que lhe foi imposta. Mesmo em meio ao pó, à sujeira, estes objetos são materialidades significantes que colocam em movimento o desejo de uma vida outra.

Os objetos banais contrabandeados dizem da vida diária levada pelos prisioneiros entre eles mesmos. Esses objetos criam um laço de identificação entre eles, inserindo-os em uma mesma formação discursiva - que evoca sentidos do familiar, da irmandade e amizade, lembrando-os de que são conterrâneos unidos pela injustiça que os colocou ali. Por isso são escondidos. Por isso são políticos. Eles dizem de uma vida que corre nos subterrâneos do campo de concentração; se forem descobertos, haverá consequências. Já os negativos são de uma outra ordem. Eles ligam os prisioneiros ao que está fora do campo de concentração. Ligam-se a uma história maior que a da vida diária. Os negativos dizem de um desejo de justiça, de esperança.

Com a ordem de destruir todas as cópias incriminadoras, o desejo de justiça move Boix a esconder algumas. Ele usa negativos novos no lugar dos usados e, a princípio, o oficial alemão não desconfia de nada. Queimam-se as provas no mesmo forno onde se queimam os cadáveres dos prisioneiros mortos. Boix presencia um corpo nu e esquelético estendido em uma mesa sendo inserido em um dos fornos; ao lado deste, uma bandeja com dentes de ouro que foram extraídos do cadáver. Boix guarda o choque e o terror para si, pois naquele momento não pode fazer nada.

Por efetuar seu trabalho de forma satisfatória ou por interpretar bem seu (aparente) papel de prisioneiro disciplinado, Boix é recompensado pelo fotógrafo alemão oficial. Ele é levado a uma sala de prostituição no próprio campo de concentração.

Tem-se uma nova cena com um gesto político. Na entrada do quarto, a cafetina alemã alerta: “É proibido falar ou trocar coisas. Se quebrarem as regras, serão enviados ao Buraco”. Quando está na cama com a prostituta, Boix não consegue concretizar o ato sexual porque sua mente vagueia para o corpo sendo incinerado no forno. Esse pensamento na hora errada diz da identidade ousada de Boix. Então ele olha para o lado e vê um livro “La vida es sueño” (A vida é sonho) e reconhece que a prostituta é espanhola. Ela havia sido induzida a prostituir-se com a falsa promessa de ser libertada. Boix quer iniciar um diálogo com ela, mas ela o silencia, pois estão sendo vigiados.

O pensamento lá onde não deveria estar conduz ao objeto livro, este também fora do lugar. Objetos se inserem em uma cadeia significativa de outras coisas que lá estão onde não deveriam estar: o livro, a mulher espanhola e o próprio pensamento8 8 Segundo Althusser (1985, p. 88-89, grifos do autor), ideias são “actos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, que são também definidos pelo aparelho ideológico material de que relevam as ideias”. de Boix que parece convocar a uma ação contra toda aquela indignação por que passam. São objetos que só fazem funcionar um sentido político devido à conjuntura em que se encontram. Objetos que identificam seus donos. A partir do livro, a mulher deixa de ser apenas uma prostituta, torna-se uma conterrânea e possível comparsa para esconder os negativos. E assim o faz: em outra visita, desconsiderando o silêncio imposto, Boix pede que ela esconda alguns negativos no livro.

4 O TEATRO COMO GESTO POLÍTICO DE RESISTÊNCIA

Nesta parte do texto, mostraremos como a cena da peça teatral no filme é uma materialidade significante emblemática para se compreender os gestos políticos dos prisioneiros. Teatro é encenação, fingimento, representação e arte. No teatro, podemos ser quem geralmente não somos. Na peça teatral que os prisioneiros montam, eles encenam e dizem o que, abertamente, não fariam9 9 Lembremos o poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente. [...]. .

Orlandi (2012aORLANDI, E. P. Sentidos em fuga: efeitos da polissemia e do silêncio. In: CARROZZA, G.; SANTOS, M. dos; SILVA, T. D. da (Org.). Sujeito, Sociedade, Sentidos. Campinas, SP: Editora RG, 2012a. p. 11-27.), ao parafrasear o aforismo de Nietzsche - Temos a arte para não morrer de verdade -, diz: “Temos a arte para não morrer da verdade” (ORLANDI, 2012aORLANDI, E. P. Sentidos em fuga: efeitos da polissemia e do silêncio. In: CARROZZA, G.; SANTOS, M. dos; SILVA, T. D. da (Org.). Sujeito, Sociedade, Sentidos. Campinas, SP: Editora RG, 2012a. p. 11-27., p. 11, grifo da autora). Em ambos, autor e autora, está em jogo a arte como a possibilidade de outra vida, pois a verdade pode matar. Quando Orlandi produz a deriva de - da outros sentidos manifestam-se em um movimento polissêmico. A autora define a polissemia como “diferentes movimentos de sentido no mesmo objeto simbólico” (ORLANDI, 2012a, p. 12). A cena do teatro no filme coloca em funcionamento um movimento de sentidos. Vamos entender melhor esta cena da peça teatral.

Alguns prisioneiros não querem arriscar a vida para esconder negativos. Boix os convence dizendo que se trata de provas contra os alemães e que os horrores que presenciam e sofrem não deveriam ser esquecidos. Então, vários prisioneiros mobilizam-se para esconder os negativos nos mais variados locais dentro do campo de concentração. Reunidos no barracão onde dormem, celebram o sucesso dos atos em evidente manifestação de alegria. Então, um guarda os flagra rindo e comemorando. Como a alegria não é autorizada ali, os prisioneiros mentem dizendo que estão ensaiando uma peça teatral. O guarda cai na mentira e agora precisam levá-la até o fim. Para os oficiais alemães, a peça teatral dos prisioneiros é entretenimento, um passatempo para fugirem do tédio. Eles se entretêm com uma desafinada e desajeitada peça apresentada pelos prisioneiros espanhóis. Mas, para estes, a peça teatral sustenta uma mentira e encoberta uma tentativa de fuga.

Os negativos precisam sair do campo porque os alemães descobrem que os prisioneiros contrabandeiam. O modo que os prisioneiros encontram é enviar os negativos dentro de caixas de granito que vão para Berlin. Alguém deve ir junto, a princípio é Boix. Enquanto a peça é encenada como distração, Boix se prepara, mas no último momento, outro prisioneiro solicita ir em seu lugar: se seu pedido fosse negado, ele denunciaria o plano. Boix concorda e o deixa viajar na caixa em seu lugar com a promessa de que cumpra com o plano.

Durante a encenação da peça, um dos guardas, um kapo10 10 Kapos eram os judeus encarregados pelos alemães de vigiar outros judeus prisioneiros. Eles supervisionavam os trabalhos forçados e executavam tarefas administrativas, e muitas vezes abusavam do poder que possuíam. O narrador do filme, Francesc Boix, os descreve como: “Atores que acreditam em seus personagens”. russo, levanta-se para realizar sua ronda noturna habitual. Ele precisa ser distraído. Um dos prisioneiros atores improvisa uma canção para entreter o kapo. Ele canta uma música provocativa em espanhol ao guarda e os outros prisioneiros riem. O guarda suspeita de que está sendo zombado, mas finge momentaneamente não saber. Depois, ele convida o prisioneiro-ator para um suposto passeio.

O kapo russo leva este prisioneiro ao precipício conhecido como o “Muro dos Paraquedistas”, e de lá o arremessa. O prisioneiro não morre instantaneamente e arrasta-se ensanguentado à escadaria ao lado. Mas o mais interessante é que na hora de sua morte, ele esboça um sorriso. O sorriso é um gesto político de afirmação do prisioneiro na situação extrema de sua morte. Um sorriso polissêmico, seja talvez porque provocou o guarda bruto ou porque fez seus colegas rirem, divertirem-se quando não deveriam ou, até mesmo, por saber que sua morte teve um propósito, pois acobertava uma tentativa de fuga. Um gesto político no meio da agonia de sua morte. É o último momento que pode assumir uma posição outra que não a de prisioneiro. Um gesto carregado de esperança. Um sorriso que está lá onde não deveria estar.

5 LÍNGUA, DISCURSO E RESISTÊNCIA

Nesta parte do texto, focaremos o discurso de Francesc Boix para salvar os negativos incriminadores. O foco é a língua como materialidade significante.

Boix é levado à festa de aniversário de dez anos do filho do diretor de Mauthausen para este ser fotografado. Lá, ele entreouve uma conversa entre o diretor e o chefe da pedreira para onde muitos prisioneiros são levados. É sabido que lá eles são mais bem tratados. Boix aproveita a oportunidade e indica o garoto Anselmo para trabalhar na pedreira na intenção de tirá-lo do campo e da morte iminente. O chefe da pedreira aceita. Anselmo vai morar em um alojamento e com ele leva mais alguns negativos.

Mas antes disso, em outro momento da festa, o filho do diretor ganha um revólver de aniversário e quer brincar com ele ali mesmo. Seu pai sádico carrega o brinquedo com munição de verdade e ajuda o garoto a mirar nos empregados da festa, todos prisioneiros de Mauthausen. Ele atira em um garçom e este cai imediatamente. O próximo alvo é Anselmo, mas neste momento Boix se interpõe e tenta persuadir o diretor a poupar Anselmo. O diretor, que a todo momento segura o braço do filho e ajuda-o a mirar, diz: “Se não quer ser o próximo, não interfira”. Neste momento, o chefe da pedreira interfere e diz que Anselmo, por ser jovem, pode ser útil, e que poupe pelo menos ele. O filho do diretor, armado e assustado, hesita em atirar, seu pai toma-lhe o revólver da mão e atira em outro garçom-prisioneiro, em vez do garoto. Boix ajudara a salvar a vida do menino.

Aqui, vemos a resistência no discurso de Boix - um discurso político de afirmação. O discurso lá onde não deveria estar, rompendo limites, quebrando barreiras. No momento em que assume uma posição discursiva outra que não a de prisioneiro-fotógrafo, Boix estilhaça o ritual do discurso de dominação. O discurso de Boix agita as redes de memória e o trajeto dos discursos de seus dominadores. Pêcheux (1983/2015) diz que:

Só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido performativo do termo (PÊCHEUX, 1983/2015, p. 56).

Finda a festa e de volta ao campo de concentração, tem-se outra cena envolvendo o discurso político de Boix. Esta cena se dá na câmara de revelação de fotografias do campo de concentração. Nela, Boix revolta-se contra o fotógrafo oficial. O gatilho foi a execução de outro prisioneiro que tentara escapar. Quando o oficial alemão está calmamente relatando a qualidade das fotografias recém-reveladas, Boix o ofende: “Você é um filho da puta”. Boix confronta o oficial por este ser um voyeur que, por meio de suas lentes, vê como os outros matam, morrem, emocionam-se, sofrem e transam, em uma completa animalização daqueles que ali se encontram. O oficial é um espectador passivo das atrocidades do campo. Ao ver que está sendo confrontado, ele diz: “Não vou tolerar desobediência” e aponta o revólver para Boix.

Vemos em funcionamento, nesta cena, o mecanismo da antecipação discursiva11 11 Segundo este mecanismo, “todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte.” (ORLANDI, 2003, p. 39). . O oficial alemão espanta-se porque achava que a dominação sobre os prisioneiros era completa. Ele tinha a imagem de si mesmo apenas como a de um registrador dos acontecimentos do campo de concentração. Função similar à de sua câmera fotográfica. Assim como sua câmera não seleciona o que está sendo fotografado, o fotógrafo não julga o que acontece a seu redor. Inserido no discurso de dominação nazista, ele não antecipa o conflito, mas seu revólver está lá para acertar sua dominância e colocar as coisas no lugar.

A antecipação também é equívoca, pois nunca sabemos que efeitos de sentido nossos dizeres provocam nos outros. Boix desafia-o a atirar: “Só sabe disparar com sua câmera”. Boix sabe que não é do comportamento do fotógrafo oficial tomar partido em uma ação. O oficial não atira, conforme antecipado por Boix. Este, então, o agride e se revolta, quebrando muitos objetos da câmara escura. Ele é então preso por outros guardas em uma solitária.

O que vemos na confrontação de Boix com o fotógrafo oficial é que Boix afirma seu pertencimento pela primeira vez no filme de modo aberto e direto, sem se esconder. Ele se arrisca ao enfrentar o oficial nazista e coloca tudo a perder. Aqui, tem-se um gesto político que se dá na materialidade significante da língua: “filho da puta”, Boix diz. Esse enunciado, talvez já muito ensaiado, mas não dito, insere o discurso de Boix em uma formação discursiva em conflito com a formação discursiva do oficial alemão. O enunciado em questão é a materialidade da não dominação completa, da não identificação apenas com a identidade de prisioneiro.

Como a identidade se constrói discursivamente, o oficial alemão vê agora Boix como um prisioneiro revoltado e recorre a seu revólver para subjugá-lo. O gesto político de Boix reside nesse conflito onde se tem, do lado nazista, uma formação discursiva que se volta ao consenso, à violência, à subjugação e à dominação e, do lado dos prisioneiros espanhóis, uma formação discursiva que aponta para o dissenso e a resistência.

6 O CORPO COMO MATERIALIDADE DA RESISTÊNCIA DO SUJEITO

Nesta parte, mostraremos como Boix, após ser preso na solitária, resiste também pelo corpo. Compreendemos o corpo como uma materialidade significante no filme. É uma materialidade histórica, social e política. O sujeito significa no corpo e pelo corpo. O corpo que está em jogo neste trabalho não é (apenas) o biológico, mas (também) o simbólico. Um corpo que sangra, sua, suja-se, mas sangue, suor e sujeira significam nas condições específicas em que são produzidos. Em sua materialidade significante, é opaco e pode resistir a sentidos dominantes. O corpo pode ser discursivizado na relação com a história e a ideologia. Segundo Orlandi (2012bORLANDI, E. P. Discurso em Análise: Sujeito, sentido e ideologia. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012b., p. 87): “a forma sujeito histórica tem sua materialidade e [...] o indivíduo, interpelado em sujeito pela ideologia traz seu corpo por ela também interpelado”.

Boix é enviado a um quarto pequeno, sujo e vazio, sem uma cama sequer. Uma voz fantasmagórica ecoa no ar: “Você sabe o que é ter fome? Ter um estômago vazio, dia após dia? Sem ninguém para conversar. Tenho sorte de ter os vermes. Falo com eles e depois os como, para que não contem a ninguém”. A voz é o prenúncio do que aguarda Boix: Fome, solidão, loucura. A voz vem do quarto ao lado, de um antigo colega prisioneiro de Boix - Valbuena - que está ali há mais tempo. O colega revela-lhe o paradeiro de dois rolos de negativos que um outro prisioneiro, antes de ser enforcado, escondera no próprio corpo. O antigo prisioneiro morreu, mas não revelou aos alemães onde os prisioneiros escondiam os negativos. O corpo que é privado, espancado, humilhado e morto também é usado como um esconderijo, em um gesto contra seu dominador.

Boix é levado a uma outra sala para ser interrogado acerca do paradeiro dos negativos. Lá é amarrado e espancado pelo diretor, por um outro oficial e pelo próprio fotógrafo oficial. Quando este o espanca, Boix o encara com o rosto ensanguentado e sorri. Boix não cede. O corpo resiste.

Boix não é morto - talvez porque os alemães precisassem de mais tempo para fazê-lo ceder. Ele é abandonado na sala, amarrado; o torso nu está ensanguentado e hematomas cobrem seu corpo. Ele ouve o som de tiros e explosões lá fora. As forças libertadoras haviam chegado. Guardas alemães retiram Boix da sala e o levam para um dos carros fechados usados para asfixiar os prisioneiros com gás carbônico. O carro começa a se movimentar e, ao perceber do que se trata, Boix alerta os que lá se encontram. Eles lutam para não respirar o gás mortal. O corpo resiste.

Mas a tubulação que se conecta ao escapamento do carro está rompida. Os oficiais param o carro. Não sabem o que fazer. Armados, eles retiram os prisioneiros do carro e pedem que se ajoelhem. Um dos prisioneiros diz que é inútil matá-los agora, mas o oficial mata-o mesmo assim, e a um outro que tentara correr. Ele então corre a arma entre os prisioneiros ajoelhados e para em Boix dizendo: “Você”. Um dêitico que traz ao momento a importância de Boix para a história. O dêitico está em rede parafrástica com “Você sabe onde estão os negativos” ou “Você planejou contra nós o tempo todo”. Ou, até mesmo, “Você resistiu”. Uma explosão alerta o oficial alemão da proximidade do inimigo e então foge. Os prisioneiros estão finalmente livres. Boix deita-se no chão e chora de felicidade. O corpo resistiu.

Boix volta ao campo de concentração para recuperar os negativos. Ao adentrar a câmara escura, depara-se novamente com o fotógrafo oficial. Ele está sentado na cadeira, subjugado. Desta vez, é Boix quem aponta-lhe uma arma. O oficial diz: “Só tirei fotos. Não matei ninguém. Eu os imortalizo”. A quem o pronome os se refere? Os prisioneiros? Os alemães? Todos, talvez. A câmera não seleciona. “Sou inocente. Só segui ordens.12 12 Em uma clara referência ao julgamento de Adolf Eichmann relatado por Hanna Arent em seu livro: Eichmann em Jesuralém. ” é a última fala do oficial alemão. “E será julgado exatamente por isso”, Boix responde.

Então, Boix retira a câmera do pescoço do oficial. Fotógrafo e câmera antes eram um só, inseparáveis, agora podem ser significados de modo distinto. O oficial fundira-se a seu objeto de trabalho. Perdera-se nele. Acreditava não ser responsável por nada. Sem a câmera, resta o homem a ser responsabilizado e julgado pelos próprios atos.

Na última cena do filme, Boix e alguns outros colegas, agora trajando vestimentas comuns, assumindo, portando, uma outra posição-sujeito, vão ao encontro do garoto Anselmo e recuperam os últimos negativos. Seu último gesto é tirar uma fotografia daquele grupo que vivenciou, resistiu e sobreviveu aos horrores de um campo de concentração nazista.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos, neste trabalho, compreender como o político se inscreve em materialidades significantes diversas no filme O fotógrafo de Mauthausen. O político é o conflito na linguagem porque o real é dividido de modo desigual. O político se dá de diversos modos no filme: no contrabando de objetos banais, nas artimanhas para esconder provas incriminadoras, na língua e no próprio corpo. Essas materialidades inscrevem o sujeito prisioneiro em posições outras no campo de concentração e dão visibilidade a modos de resistência a discursos dominantes.

Na situação extrema de privações, fome, espancamento, injustiça e morte o sujeito pode resistir. E, ao resistir, pode agitar o discurso e constituir outros sentidos e outras posições sujeito. É o que as materialidades significantes mostram: a recusa em assumir apenas a identidade de prisioneiros que lhes foi imposta.

REFERÊNCIAS

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  • PESSOA, F. Poesias. Fernando Pessoa. Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor. Lisboa: Ática, 1995.
  • RANCIÈRE, J. O desentendimento - política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
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  • ZOPPI-FONTANA, M. A arte do detalhe. Web Revista Discursividade: Estudos Linguísticos, Campo Grande, n. 9, p. 1-27, jan. 2012
  • 1
    Este trabalho originou-se de reflexões do grupo de pesquisa: A partilha do sentido: o político e a tecnologia na sociedade, sob a coordenação deste autor.
  • 2
    O conceito de político, para Guimarães, baseia-se no filósofo francês Jacques Rancière. Para este autor, “a política [ou o político] existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituição é o todo da política enquanto forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à aritmética das trocas e das reparações” (RANCIÈRE, 1996RANCIÈRE, J. O desentendimento - política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996., p. 27). O que Rancière nos quer mostrar é que o todo da comunidade não é a mera (re)união de suas partes. O espaço da comunidade não é neutro, é litigioso. As partes estão em conflito e há a disputa para se apagar as diferenças e manter cada um em seu devido lugar. Além disso, o autor afirma que só há política porque a ordem social não é uma ordem natural ou uma ordem dada pelos deuses.
  • 3
    A primeira data refere-se à data da retificação de Pêchux “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação”, texto que consta no anexo de Semântica e Discurso, com data de publicação inicial de 1975. A segunda data refere-se à data da obra consultada. Como a obra e o texto de retificação são momentos teóricos diferentes, faz-se necessário referenciá-los de modo diverso. Fazemos essa diferenciação de datas ao longo do artigo para melhor situar o leitor.
  • 4
    Cabe ressaltar que o que nos importa é a posição sujeito de Francesc Boix colocada em funcionamento na narrativa do filme. Não procuramos fazer uma correspondência da história do filme com uma realidade fora do filme.
  • 5
    De acordo com Pêcheux (1969/2010), gestos são atos no nível simbólico, como assobiar, jogar uma bomba numa assembleia. Orlandi (2010ORLANDI, E. P. A contrapelo: incursão teórica na tecnologia: discurso eletrônico, escola, cidade. RUA [online], Campinas, SP, v. 2, n. 16, p. 6-17, 2010.) toma a questão do gesto e liga-o à interpretação: “No modo como tomo a questão do gesto e o ligo a interpretação, estou dizendo que, na prática simbólica, produzimos gestos de interpretação, sendo estes, modos de interferir no mundo, através da prática simbólica que é a interpretação. Repito: a interpretação é uma prática (simbólica) em meio a outras práticas (sociais)” (ORLANDI, 2010ORLANDI, E. P. A contrapelo: incursão teórica na tecnologia: discurso eletrônico, escola, cidade. RUA [online], Campinas, SP, v. 2, n. 16, p. 6-17, 2010., p. 10).
  • 6
    A memória de sentidos ou memória discursiva é, para Pêcheux (1999PÊCHEUX, M. Papel da Memória. In: ACHARD, P. et al.. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. Campinas, SP. Pontes, 1999. p. 49-58., p. 52), “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”.
  • 7
    Cabe ressaltar que esta citação se insere no momento teórico final de Pêcheux. Trata-se de texto apresentado na Conferência “Marxismo e Interpretação da Cultura: Limites, Fronteiras, Restrições”, na Universidade de Illinois Urbana-Champaign de 8 a 12 de julho de 1983.
  • 8
    Segundo Althusser (1985ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: Notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 10. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985., p. 88-89, grifos do autor), ideias são “actos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, que são também definidos pelo aparelho ideológico material de que relevam as ideias”.
  • 9
    Lembremos o poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente. [...].
  • 10
    Kapos eram os judeus encarregados pelos alemães de vigiar outros judeus prisioneiros. Eles supervisionavam os trabalhos forçados e executavam tarefas administrativas, e muitas vezes abusavam do poder que possuíam. O narrador do filme, Francesc Boix, os descreve como: “Atores que acreditam em seus personagens”.
  • 11
    Segundo este mecanismo, “todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte.” (ORLANDI, 2003ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2003., p. 39).
  • 12
    Em uma clara referência ao julgamento de Adolf Eichmann relatado por Hanna Arent em seu livro: Eichmann em Jesuralém.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    26 Ago 2021
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