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A DEMANDA DO OUTRO E O IMAGINÁRIO: A PUBLICIDADE DA PEPSI EM SITES SOBRE PROPAGANDA

The Demand of the Other and the Imaginary: Pepsi Advertisements on Sites about Advertising

La demanda del otro y lo imaginario: publicidad de Pepsi en sitios sobre publicidad

Resumo

Este artigo tem o objetivo de mostrar como os sites Brainstorm9 e Geek publicitário produzem e fazem circular sentidos sobre propagandas da Pepsi, particularmente no tocante à demanda do sujeito e ao imaginário sobre a Pepsi e o sujeito-consumidor. Para isto, foram mobilizados conceitos da Psicanálise em sua interface com a Análise de Discurso pecheutiana. A análise do corpus não resultou diretamente da análise das propagandas, mas da imagem que os comentários dos sites criam destas. Concluiu-se que há um roteiro pré-definido pelo posicionamento da marca pelo qual o sujeito deve trilhar permanecendo apenas na demanda e calando o desejo.

Palavras-chave:
Propaganda; Demanda; Sujeito; Análise do Discurso; Psicanálise

Abstract

This article aims to show how the Brainstorm9 and Advertising Geek websites produce and circulate meanings about Pepsi advertisements, particularly with regard to the subject's demand and the imaginary about Pepsi and the consumer-subject. For this, concepts of Psychoanalysis were mobilized in its interface with Pecheux's Discourse Analysis. The analysis of the corpus did not result directly from the analysis of the advertisements, but from the image that the comments on the sites create of them. It was concluded that there is a script pre-defined by the brand positioning through which the subject must tread, remaining only on demand and silencing the desire.

Keywords:
Advertising; Demand; Subject; Discourse Analysis; Psychoanalysis

Resumen

Este artículo presenta una análisis de cómo los sitios de publicidad Brainstorm9 y Geekpublicitário producen y hacen circular significados sobre los anuncios de Pepsi, particularmente con respecto a la demanda del sujeto y las imágenes sobre Pepsi y el sujeto consumidor. Para esto, los conceptos de Psicoanálisis se movilizaron en su dialogo con el Análisis del Discurso de Pêcheux. El análisis del corpus no resultó directamente del análisis de los anuncios, sino de la imagen que los comentarios de los sitios web crean a partir de ellos. Se concluyó que existe un camino predefinido para el posicionamiento de la marca a través del cual el sujeto debe cumplir, quedando solo en demanda y silenciando el deseo.

Palabras clave:
Publicidad; Demanda; Tema; Análisis del Discurso; Psicoanálisis

1 INTRODUÇÃO

Uma das premissas da sociedade capitalista é a de possibilidade de escolha do objeto de consumo pelo sujeito comum. Ocorre que em meio ao universo de mercadorias disponíveis, o posicionamento de marcas determina a identidade de um produto. É o que ocorre com alguns produtos como palha de aço, cujo nome comum passa a ser o nome de uma das marcas, como Bombril; Omo, para sabão em pó, etc. Nota-se um uso recorrente de uma metonímia para designar o produto. Esta designação não é neutra, nem despropositada, posto que depende do posicionamento da marca do produto.

No setor de bebidas, especificamente de refrigerantes, a Coca-Cola aparece durante todo o século XX, como produto original deste setor e também icônico do sistema político-econômico capitalista. Basta notar nas principais capitais do capitalismo contemporâneo as imagens de Coca-Cola e slogans que convidam o sujeito a um modo de ser atlético, jovial, participativo do mundo do consumo.

Por estas razões, criam-se demandas. O sujeito não consome apenas o produto. Também consome um lugar de reconhecimento do Outro. Ocorre que parece não haver substituição a muitas destas demandas. Uma posição-sujeito é instalada. No caso da Coca-cola, o atrelamento da marca a uma identidade de consumidor que a aceita como origem do setor de refrigerantes, sobretudo de cola, e como um objeto insubstituível, ratifica sua veiculação como objeto de “desejo”.

A alternativa da demanda no caso da Coca-Cola parece ter deixado no imaginário do posicionamento de marca um lugar instalador de novas demandas. Há estratégias de instalação de demandas que aparecem em propagandas da Pepsi tal como vamos analisar neste artigo. Dessa forma, nosso objetivo é mostrar de que forma posições-sujeito emergem em meio ao jogo da demanda instalado pelo posicionamento de anúncios e comentários às propagandas da marca Pepsi.

2 ASPECTOS TEÓRICOS

2.1 SUJEITO: A NECESSIDADE, O DESEJO E A DEMANDA

No processo de posicionamento de marca e de produto, a propaganda, ou seja, o discurso propagandístico, possui o papel crucial de levar a cabo a produção, circulação e fixação de sentidos sobre as marcas e os produtos.

De um ponto de vista discursivo, diremos que o posicionamento de marca e a propaganda são parte de um processo de criação tanto da identidade como de um imaginário social sobre o produto em questão.

Em um nível pragmático, as propagandas são produzidas em agências de publicidade usando recursos para elaborar uma estratégia de posicionamento da marca e do produto, incluindo também uma forma de fisgar o consumidor. Para a Análise do Discurso (AD), esse nível pragmático de um sujeito consciente é determinado por filiações em redes discursivas, ou seja: formações discursivas, interdiscurso e memória entram em jogo sem o controle do sujeito e de modo inconsciente.

Trata-se de uma rede de sentido (interpretação) que depende de efeitos de anterioridade (do “já dito”) e de “exterioridade” de um enunciado, ou seja, como uma condição de interpretação estabelecida por uma conjuntura social e histórica. De forma determinante, anterioridade e exterioridade ficam recalcadas e, por conta disso, produzem sentido, razão pela qual o sujeito é interpelado (instado a ocupar um lugar e impedido de ocupar outros lugares) sob efeito do inconsciente e da ideologia.

Portanto, em última instância essa estratégia consciente é determinada por aquilo que o sujeito recalca, mas que o determina. Do ponto de vista da noção de sujeito da Psicanálise que atravessa a AD, o sujeito é tomado pelo discurso e pelo significante, como nas palavras de Dor (l992, p. 45): “A supremacia do significante se traduz, portanto, eletivamente por uma dominação do sujeito pelo significante, que o predetermina lá mesmo onde ele crê escapar a toda determinação de uma linguagem que ele pensa controlar”.

Se a propaganda trabalha o desejo e a demanda do sujeito, precisamos compreender esses conceitos. Sendo assim, podemos partir da afirmação lacaniana de que a demanda (do sujeito) é sempre demanda do Outro.

A criança recém-nascida não sabe demandar. Antes estava automaticamente alimentada e aquecida no ventre da mãe; agora, ao sentir o primeiro desconforto ela chora; esse choro será a primeira demanda da criança. Ouvindo a criança chorar a mãe formula hipóteses: Ela está com frio? Está com fome? Com sede?

É importante frisar que não se trata da necessidade, que, a partir desse momento, está perdida para sempre. Ou seja, não há acesso à necessidade em si. Como a criança mesma não sabe se tem fome, sede ou frio, é a oferta da mãe que vai determinar a demanda. A leitura (interpretação) da necessidade pela função materna já instala uma demanda. Se a criança só conhece a água, ela não vai demandar Coca-Cola ou Pepsi. Isso aparece na discussão de Soler (2012SOLER, C. O inconsciente: que é isso? São Paulo: Anablume, 2012.) sobre o grafo do desejo. Como afirma Soler (2012, p. 29): “A Dialética do pedido de comida é o exemplo mais simples, mais convincente dessa estrutura que faz com que eu só possa demandar com a oferta que me foi feita”.

A figura 1 mostra a impossibilidade do acesso direto à demanda e como a leitura da demanda acima mencionada é inserida em uma cadeia significante cuja natureza dialética dirige um significante a outro e faz emergir o sujeito (LACAN, 1999LACAN, J. O Seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1999. Original de 1957-1958.).

Figura 1
Acesso indireto à demanda

Esta é uma discussão de alcance amplo e complexo que percorre, sobretudo, a leitura lacaniana da noção de pulsão e recalque na obra de Freud. Soler (2012SOLER, C. O inconsciente: que é isso? São Paulo: Anablume, 2012.) explica que a intenção da criança em demandar (linha horizontal) encontra o grande Outro, e recebe dele, em retroação, a resposta para sua demanda s(A): o sentido dado pelo Outro. A criança não sabe o que quer, mas, mesmo assim, o Outro responde “Você quer isso”. Então, é através do Outro (A) que a criança recebe o significado da sua demanda, que é um significado dado pelo Outro s(A). Esta intervenção do Outro pode ser ilustrada pela figura 2. A respeito desta, afirma Soler:

A linha horizontal escreve a cadeia de solicitação de um ao passo que a linha curva, retrógrada, escreve a resposta do Outro, sua oferta, se quisermos. É a oferta que determina a mensagem do um como significado do Outro. O “você quer isso” emitido pelo Outro está na frente, isto é, tem a antecedência e a prioridade sobre o “eu quero isso”, que apenas inverte a mensagem do Outro que, portanto, é de fato um significado do Outro. Daí a expressão de Lacan dizendo que na fala o sujeito recebe sua mensagem do Outro sob uma forma invertida (SOLER, 2012SOLER, C. O inconsciente: que é isso? São Paulo: Anablume, 2012., p. 28)

Figura 2
Intervenção do Outro

Eidelsztein (2017EIDELSZTEIN, A. O grafo do desejo. São Paulo: Toro Editora, 2017.), por sua vez, discute necessidade, demanda e desejo a partir de seu esquema número três (Fig. 3). O sujeito falante está sempre na demanda. Falar é, em suma, demandar. Por isso, como dissemos, não se trata jamais de necessidade. A necessidade é perdida para sempre. Segundo Eidelsztein (2017), o sujeito da necessidade é um sujeito “mítico”

Figura 3
Esquema n. 3

No movimento de demandar o sujeito frequentemente diz: “não era bem isso que eu queria” (expressão nossa). Isso aponta para um resto que nenhum objeto da demanda pode satisfazer e que coloca o desejo como esse resto. O sujeito busca seu objeto metonimicamente, sempre trocando de objeto e buscando encontrar esse objeto inencontrável que é o objeto do desejo (objeto a). A partir dessas teorizações, podemos concluir que o desejo é o mais além da demanda.

Há, por isso, um deslocamento inerente à cadeia significante, de modo que nesta são provocadas torções; ou seja, o que parecia o início de uma demanda é realçado em outro lugar, o que parecia “início” torna-se “fim” (LACAN, 1999LACAN, J. O Seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1999. Original de 1957-1958.); como notamos na figura 3, é o que faz com que a relação entre necessidade e desejo sempre passe pela demanda e que esta relação seja sempre entre um lugar “aquém” e “além” não definido a priori, mas pela troca de objetos da demanda. Portanto, o sujeito poderia chegar ao “mais além” da demanda caso se perguntasse pelo seu desejo.

Esta configuração aparece no grafo do desejo através da pergunta “Che vuoi?” (O que você deseja?), que aparece em destaque na figura 4, na qual a letra “d” indica a posição do desejo no grafo.

Figura 4
Grafo do desejo (terceira forma).

Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1992.) explica que a fantasia dá ao sujeito o roteiro pelo qual pode procurar o objeto de desejo. A partir disso, defendemos que as propagandas da Pepsi podem fazer parte de um roteiro como esse, um quadro ficcional que dá ao sujeito a moldura da tela na qual esse roteiro se movimenta. A fantasia é tratada por Žižek (1992) como fantasia ideológica, que vem do Outro para tamponar o desejo do sujeito.

Citando:

A fantasia aparece, pois, como uma resposta à pergunta “Che vuoi?” ao enigma insustentável do desejo do Outro, da falta existente no outro; mas ao mesmo tempo é a própria fantasia que, por assim dizer, fornece as coordenadas do nosso desejo, isto é, constrói o contexto que nos permite desejar algo. A definição habitual de fantasia (“um cenário imaginário que representa a realização do desejo”) é. pois, um tanto enganosa, ou pelo menos ambígua: na cena da fantasia, o desejo não é preenchido, “satisfeito”, mas constituído (seus objetos são dados etc.) - graças à fantasia aprendemos ‘como desejar’. (ŽIŽEK, 1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1992., p.115-116, itálico no original)

Como também pode ser notado, o grafo do desejo trabalha com duas retroações. No nível superior encontramos o significado do Grande Outro Barrado

, indicando que o Outro é estruturado por inconsistência simbólica. Para o trabalho que estamos realizando isso pode ser tomado como o fato de que no real não há este sentido que o grande Outro possa dar ao sujeito sobre seu desejo e seu gozo. Ou seja: existe um buraco no desejo que jamais será preenchido. Isto porque a pulsão não é acessada diretamente; o sujeito emerge entre significantes e também por conta do modo pelo qual a pulsão é veiculada. Uma destas formas de veiculação é a fantasia, que intercede no contorno desta inconsistência do simbólico.

Este preenchimento é fornecido de forma ilusória pela propaganda, o que implica uma posição que disfarça a inconsistente presença do grande Outro. A este respeito vale recorrer novamente a Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1992., p. 120): “Por isso encontramos, no lado esquerdo do nível superior do grafo, ou seja, no lugar do primeiro ponto de intersecção entre o gozo e o significante

, o significante da falta no Outro, da inconsistência do Outro [...]”. Estas considerações são relevantes para a compreensão da relação entre sujeito e demanda, todavia a análise não tem como foco o conceito de fantasia.

Ocorre que as propagandas do refrigerante Coca-Cola com as quais a marca Pepsi dialoga sustenta um efeito de anterioridade para o roteiro “do desejo” que parece fixado ao nível da demanda. Por conta disso, o sujeito não está autorizado a decifrar este percurso e nem mesmo a se questionar sobre a posição de consumidor que ocupa e nem mesmo questionar sobre a relação entre esta posição que lhe é imposta, tal como ela coopta ideologicamente a leitura que faz no registro do imaginário de modo que fica refém da demanda. Por conta disso, faz-se necessário dialogar com a abordagem pecheutiana da relação entre posição-sujeito, imaginário e ideologia.

2.2 POSIÇÃO-SUJEITO, IMAGINÁRIO E IDEOLOGIA

Uma das contribuições da AD na interface com a Psicanálise é discutir a forma pela qual o reconhecimento pelo sujeito em face da instalação pelo grande Outro da demanda ratifica que o enunciado “É isso o que você quer” (expressão nossa) é validado por uma tomada de posição. É o caso de perguntar: como o sujeito se reconhece a partir de uma tomada de posição diante da demanda? Uma das maneiras de debater este processo de consolidação da evidência da demanda e da tomada de posição é pelo conceito pecheutiano de sujeito do discurso.

Para Pêcheux (1988PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: UNICAMP, 1988.), as “verdades” do sujeito resultam de mecanismos ideológicos que mobilizam uma direção do sentido. A começar pela evidência dada pela interpelação ideológica fundamental de que “sou eu que falo”, esta concepção de sujeito está diretamente influenciada pela abordagem lacaniana da dialética entre sujeito e Outro. Desta evidência fundamental decorrem outras teorizações em AD sobre de que modo o Outro fala alhures (pela anterioridade e pela “exterioridade”) e é revelado ou disfarçado no sujeito.

Esta retomada serve para argumentar que, uma vez que não há coincidência entre o sujeito (o qual emerge por retroação entre significantes) e a autopercepção de seu lugar no imaginário e no simbólico também não há equivalência entre formas ideológicas, posto que há o efeito heterogêneo de “simulação e recalque que engendram” e cuja condição de existência é permeada pelas “diferentes relações de produção econômicas, com os diferentes tipos de contradições políticas e ideológicas resultantes dessas relações” (PÊCHEUX, 1988PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: UNICAMP, 1988., p. 77).

A abordagem pecheutiana, influenciada pelo pressuposto lacaniano dos três registros do sujeito, aponta que o imaginário é eficaz por conta da ideologia e também porque o jogo entre as relações de produção mantém essas contradições disfarçadas. Segundo Orlandi: “O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas [...] por relações de poder” (ORLANDI, 2002ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002., p. 42)

Dando mais um passo, podemos dizer que as propagandas, enquanto produtos simbólicos, são peças discursivas, no sentido de que “uma peça discursiva representa uma unidade significante” (ORLANDI, 1996ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 52). Esses processos discursivos fazem circular um imaginário de um produto, embora seja uma imagem criada (especular) essa imagem que circula como parte da identidade do produto.

Pêcheux (1997bPÊCHEUX, M. [1969]. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997b. p. 61-161.) se dedica a trabalhar a questão do imaginário e das condições de produção do discurso no texto de 1969 no qual coloca as questões relacionadas ao jogo entre interlocutores A e B, a saber:

Nossa hipótese é a de que esses lugares estão representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo supor que o lugar como feixe de traços objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se encontra aí representado, isto é, presente, mas transformado; em outros termos o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. (PÊCHEUX [1969], 1997b, p. 82)

Falando sobre as condições de produção do discurso, Pêcheux (1997bPÊCHEUX, M. [1969]. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997b. p. 61-161.) constrói uma tabela com as formações imaginárias e suas respectivas perguntas, que segue adaptada no quadro 1:

Quadro 1
Formações imaginárias

Segundo Pêcheux, “o referente [...] pertence igualmente às condições de produção” (p. 83). Do que resulta o final do quadro:

Quadro 2
Condições de Produção

Para o autor, não se trata de sujeitos empíricos, mas de posições imaginárias e discursivas; nem de transmissão de informação e sim de “efeitos de sentido” (PÊCHEUX, 1997bPÊCHEUX, M. [1969]. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997b. p. 61-161., p. 82).

Nesse jogo de imagens, como analistas, podemos tomar a Pepsi como o referente, e dizer que a questão é a imagem que o consumidor vai construir desse produto a partir da propaganda.

Também podemos pensar na Pepsi como a enunciadora (emissora) tal que: “quem sou eu para lhe falar assim?”. Esse quem “sou eu” está relacionado à imagem que a Pepsi tem de si, mas também a uma identidade a ser projetada para o outro.

Esse jogo de imagens está pragmaticamente projetado para criar uma demanda de consumo no sujeito. Demanda e desejo são dois conceitos da Psicanálise que podem ser articulados com um tratamento discursivo que leve em conta a ideologia, de forma a considerarmos que a ideologia sedimenta uma tomada de posição, por conta de a produção da evidência do sentido estar entrelaçada a uma demanda direcionada ao sujeito consumidor. Além disso, a tomada de posição da marca pode ser entendida se debatemos a eficácia (ORLANDI, 2002ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002.) material do imaginário tal como aparece na proposta pecheutiana.

Em outras palavras, há uma eficácia do imaginário na captura do sujeito em acreditar na posição que ocupa como única possível por conta da forma pela qual o efeito do inconsciente e da ideologia é dissimulado. Esta dissimulação depende do outro, que, no registro do imaginário, afeta as formações imaginárias formando “evidências subjetivas” (PÊCHEUX, 1988PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: UNICAMP, 1988., p.153), uma vez também que no registro do imaginário “o paradoxo é, precisamente, que a interpretação tem, por assim dizer, um efeito retroativo que faz com que todo indivíduo seja ‘sempre-já-sujeito’” (PÊCHEUX, 1988, p.155)”.

Deste modo, a interpretação que a marca tem de si mesma e a posição do sujeito transitando pela demanda é a evidência da tomada de posição interpelada pela evidência ideológica e também em que o lugar do grande Outro não é interpretado por um intérprete que decifra o desejo, mas que ao nível da demanda articula trocas e substituições imaginárias. No máximo, troca uma marca de refrigerante por outra.

Sendo assim, a evidência de si mesmo (do sujeito) se mistura e dissimula o “estranhamente familiar”, mistura esta “[...] de absurdo e de evidência [...]” (PÊCHEUX, 1988PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: UNICAMP, 1988., p.155). A questão do trânsito do sujeito pelas formações imaginárias implica sua tomada de posição, seja estranhando o sentido, seja por não se dar conta da evidência do sentido articulada a uma evidência da demanda estabelecida pelo posicionamento da marca.

3 METODOLOGIA E FORMAÇÃO DO CORPUS

Em AD, a formação do corpus não se separa das questões iniciais formuladas pelos analistas (pesquisadores). Em nosso caso, o contato com as primeiras sequências discursivas nos levou a um corpus que permitiu tratar a questão da imagem e da identidade no discurso publicitário, e também relacionar a AD com conceitos da Psicanálise como demanda, desejo e outros.

Inicialmente é formado um corpo de dizeres (um corpus) a partir do qual se instala uma referência em uma zona do sentido e da qual se extraem direcionamentos para a disputa de sentido ali percebida em torno de uma razoável homogeneização semântica (COURTINE, 2014COURTINE, J. J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos/SP: Edufscar, 2014.).

Esta homogeneização em torno do “objeto” do discurso é a da oferta de refrigerante, a qual está recoberta pelo destaque de uma marca (Coca-Cola) em detrimento de outras. Sendo assim, o corpus é formado por este conjunto de sequências discursivas organizadas a fim de pontuar e problematizar questões voltadas ao estranhamento do sentido e à tomada de posição do sujeito consumidor diante do posicionamento de marca. Notaremos, então, que o corpus segue uma espécie de lógica própria, mas recortada e arranjada pelo analista à medida que põe para dialogar teoria e análise, estas também indissociáveis.

4 ANÁLISE

Frakenthal (2008) explica que posicionamento de marca é “o lugar que a empresa quer ocupar no coração e mente do seu público-alvo”. Após a circulação por anos do enunciado “Pode ser”, mais recentemente a Pepsi apresentou novo posicionamento de marca, agora marcado pelo “só que sim”. Como se nota, temos duas propagandas. Uma sucede a outra no tempo. O mote da primeira diz: “Pode ser” e o da segunda: “Só que sim”.

Aqui vamos analisar sites da internet que produzem e fazem circular sentidos sobre a propaganda e outros conteúdos. As SD 1, 2 e 31 1 Disponíveis em: https://www.b9.com.br/17560/pepsi-estreia-campanha-aproveitando-o-momento-do-pode-ser/ são parte de uma página produzida pelo site B9 ou “Brainstorm9”. A segunda matéria faz parte do site “Geekpublicitário” na qual se encontram as SDs 4, 5, 6 e 72 2 https://geekpublicitario.com.br/22002/pepsi-so-que-sim/ .

A eficácia material do imaginário nestas propagandas decorre de como elas mobilizam posições-sujeito. Esta mobilização depende das condições de produção dos discursos em circulação; em suma: quem fala? para quem fala? Sobre o quê fala? Em outras palavras, a imagem do emissor, do receptor e do referente. Todas estas questões recortam sentidos já estabelecidos, o que notamos nas SDs:

SD1 - Pepsi estreia campanha aproveitando o momento do “Pode ser?”

A pergunta “Pode ser?” é uma pergunta em torno da demanda e de seu objeto, “pode ser x”? Trata-se do Outro questionando o sujeito sobre sua demanda. Essa pergunta recalca em si o fato de que toda demanda é demanda do Outro. A demanda do Outro se instala no sujeito como demanda do “eu”, permanecendo recalcado seu traço de alteridade. Por isso, o sujeito dono de si mesmo seria também dono de sua demanda, ou seja: saberia o que quer. Esta “clareza” sobre o gerenciamento da própria demanda não permite ao sujeito vacilar; diante da aparente dúvida, já há uma resposta antecipada, pois o Outro (da marca) já contabiliza “acertos” e “erros” de escolhas do sujeito consumidor feitas no passado. É o que vemos na SD2:

SD2 - Você mesmo já deve ter passado por isso. Vai no bar ou restaurante, pede uma Coca-Cola e o garçom, quase que em tom de desculpas, diz: “Tem Pepsi, pode ser?”.

Diferentemente do recém-nascido que não sabe falar nem demandar, aqui temos um sujeito que demanda algo específico, como dito na SD1, efeito do recalque da demanda do Outro. Pelo menos no nível da consciência pode-se dizer que ele sabe o quer: uma Coca-Cola. Porém, a oferta do Outro é de uma Pepsi (“Tem Pepsi, pode ser?”). Portanto, temos a frustração do sujeito acostumado a pedir Coca-Cola no “tom de desculpas” do garçom. Temos aqui no nível do não dito, o “não era bem isso” característico da demanda. Uma demanda que deixa um espaço de insatisfação.

Essa poderia ser uma oportunidade de o sujeito se questionar sobre sua própria demanda. Questionar sua demanda e suspender a repetição de “Uma Coca-Cola, por favor” que poderia propiciar uma abertura para o desejo do sujeito, de não permanecer na posição naturalizada que recupera outro lugar do não dito: “o que eu quero é Coca-Cola”. O sujeito, em tese, poderia chegar no mais além da demanda se perguntando pelo seu desejo. Porém esse questionamento do desejo exige condições específicas, como as proporcionadas pela situação instaurada num contexto clínico de Psicanálise.

Fora disso, o sujeito continua sempre no deslizamento metonímico da demanda, podendo até trocar de objeto. O sujeito substitui (troca) de objeto ao nível da demanda, mas como não lhe é possível decifrar o desejo, interpretar as metonímias que interferem na cadeia significante, tem de se haver com a opção imposta pela marca; por conta disso, fica vulnerável à demanda do Outro ratificando o lugar dominante da posição de marca.

Retomando a teoria no aspecto de que só se pode demandar o que foi ofertado, resta ao sujeito aceitar a Pepsi, pois “é o que tem”. Sabemos que as grandes marcas fazem contratos de exclusividade com os estabelecimentos que vendem alimentos e bebidas, de sorte que decidir por um estabelecimento já inclui uma oferta (e uma demanda) à revelia do sujeito. Trata-se, portanto, de uma cadeia significante estabilizada semanticamente por um padrão de “escolha” consumidora. Nota-se, portanto, que os elos desta cadeia se filiam tanto ao imaginário do consumidor comum quanto ao que antepara a assessoria da marca, como aparece na SD3.

Outro aspecto a ser notado é que existe nas formações imaginárias da propaganda uma antecipação da expectativa do consumidor pelo garçom, o qual já antecipa que o consumidor não vai apreciar a troca no seu “tom de desculpa”. É o que afirma Pêcheux: “[...] indicamos mais acima que todo processo discursivo supunha, por parte do emissor, uma antecipação das representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia do discurso” (1997b, p. 84, itálico do autor).

SD3 - Segundo a Pepsi e a AlmapBBDO, foram quatro anos de planejamento e pesquisa da campanha, que agora coloca a marca assumindo sua grande verdade na tentativa de quebrar um hábito do consumidor brasileiro.

A SD3 indica o que comentamos anteriormente sobre posicionamento de marca: que as propagandas possuem um papel importante no posicionamento de marcas; que no nível pragmático isso é feito com muito estudo e com muita intencionalidade. Porém, é algo que não se pode controlar totalmente. Além do que o sujeito elaborador da propaganda também é tomado por uma memória que o antecede e domina. Propagandas são projetadas para ser sucesso, mas podem ser um fracasso também. O formulador e o receptor são tomados numa dinâmica que lhes é estranha. Por conta disso, o trecho “assumindo sua grande verdade” pode ser entendido como uma remissão à imagem/identidade assumida pela Pepsi de ser segunda em relação à Coca-Cola, e que essa estratégia seria eficaz na captura da demanda do sujeito. No jogo de imagens em relação à coca-cola, trata-se, pois, “para o orador de transformar o ouvinte (tentativa de persuasão, por exemplo)” (PÊCHEUX, 1997bPÊCHEUX, M. [1969]. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997b. p. 61-161., p. 85).

Por sua vez, o fragmento “tentativa de quebrar um hábito do consumidor brasileiro” remete à demanda já instalada na maioria dos consumidores brasileiros de pedir “Uma Coca-Cola, por favor!” Ou seja, trata-se, no nível intencional, de quebrar um automatismo de repetição, como já analisado nas SDs1 e 2.

Identidade aqui deve ser entendida como posição do sujeito diante da demanda. No caso da SD3 notamos também que há uma formação imaginária que alinha o sucesso da marca ao sucesso do consumidor da marca. Na sociedade capitalista de consumo, as marcas são determinantes para o reconhecimento social e a formatação da identidade imaginária do sujeito.

Esta demanda pré-instalada não retira a posição de consumidor que o assujeita, mas permite substituir uma marca, no caso Coca-Cola, por outra, no caso, Pepsi. O sujeito soube, portanto, “fazer a escolha certa”. Para Žižek (2011ŽIŽEK, S. O “novo espírito” do capitalismo. Tradução Maria Beatriz de Medina. In: ŽIŽEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo/SP: Boitempo, 2011. p. 53-62., p. 53):

[...] fundamentalmente, compramos mercadorias não pela utilidade ou pelo símbolo de status; compramos para ter a experiência que oferecem, consumimos para tornar a vida prazerosa e significativa. Essa tríade lembra necessariamente a tríade RSI lacaniana: o Real da utilidade direta (comida boa e saudável, qualidade de um carro etc.), o Simbólico do status (compro determinado carro para indicar meu status - ponto de vista de Thorstein Veblen), o Imaginário da experiência prazerosa e significativa.

Por conta deste acerto no registro do imaginário, o sujeito filiado à estabilidade semântica da marca aquieta a troca de objetos cujo manejo como demanda lhe oferece uma tomada de posição. É a marca, portanto, que lhe define outro momento para o alvo da demanda ratificado em “é isso o que você quer” (expressão nossa), até que haja um novo posicionamento, como na SD4:

SD4 - Pepsi apresenta novo posicionamento “Só que sim”

Vemos um diálogo que subjaz a esta sequência e que pode ser descrito da seguinte maneira: “a - Pode ser? - (Não) Pode”. A divulgação, sete anos depois, do enunciado “Só que sim” recupera dois caminhos principais como resposta à pergunta: “- Sim, pode ser Pepsi” e também recupera a expectativa com a qual esta SD lida no plano das formações imaginárias, tal que caso haja uma expectativa, ou a confirmação de uma negativa (“Não, não pode ser Pepsi”) que capture o consumidor com algo do tipo “Olha, mesmo que não possa ser Pepsi, sim, é Pepsi”. Como se nota, há uma ilusão da dúvida, mas já se sabe o que seria a demanda do Outro. É o que aparece na SD5:

SD5 - Depois de 7 anos apostando no mote “Pode Ser”, a Pepsi finalmente assumiu uma nova assinatura para iniciar o processo de distanciamento da sensação de segunda opção causada pela anterior.

Tomando a SD5 como interpretante de “pode ser” e da campanha publicitária da Pepsi, podemos dizer que, até então, a imagem veiculada era a de ser a segunda opção em relação à Coca-Cola, e mais ainda que a Pepsi aceitava essa imagem para si. Aqui, tomando “A” como a Pepsi, podemos dizer que a imagem que a Pepsi tinha de si mesma [I(A)A] era a imagem de segunda em relação à Coca-Cola. Mais do que isso, a propaganda toma sua segunda posição como mote de sentidos que circulam fixando uma imagem e uma identidade da Pepsi. Mas a nova campanha “Só que sim” visa romper com essa imagem e instalar uma nova imagem e identidade para a Pepsi. Somam-se a isto elementos novos em meio às formações imaginárias de aproximação e distanciamento em relação à Coca-Cola tal como vimos mostrando e como aparece na SD6.

SD6 - No novo comercial “Sereia”, a Pepsi mostra que quando alguém pede Pepsi, a pessoa pode ser vista como um “peixe fora d’água”, e tenta criar várias relações de como pode ser positivo ser um peixe fora d’água.

Se o sujeito escolhe Pepsi numa sociedade dominada pela Coca-Cola, esse sujeito pode ser visto como estranho. Aqui temos as formações imaginárias descritas por Pêcheux: I(A)A e I(b)A. Ou seja, a imagem que o sujeito tem de si e a imagem que tem de si a partir da interpretação da imagem do outro, incluindo a imagem do referente, que é a Pepsi ou a Coca-Cola. Esse estranhamento não é resultado das propriedades físicas da Pepsi ou da Coca-Cola, mas do valor simbólico e imaginário das bebidas. Esse valor simbólico e imaginário é que dá a consistência de identidade na teoria psicanalítica. Não importa se “o valor de uso” da mercadoria x é maior ou menor que o da mercadoria y. Importa se os outros consumidores atribuem prestígio à marca e se consumir Pepsi é visto com bons olhos ou não. Um observador pode afirmar “Xi, esse sujeito bebe Pepsi”.

Do ponto de vista da “escolha certa” ou da localização da demanda no registro do imaginário, vale lembrar esta argumentação de Nominé (2018NOMINÉ, B. Sobre identidade e identificações: conferências (2014-2015). São Paulo: Blucher, 2018., p. 27), para quem:

Esse significante ideal é o que indica ao sujeito, muito cedo na sua vida, o que ele deve ser para responder aos critérios do amor do Outro. [...] aquilo que o sujeito tem de interiorizar é, em primeiro lugar, o olhar do Outro. Esse olhar do Outro é, depois, algo que faz signo ao sujeito sobre o modo em que o outro lhe olha: Com bons olhos ou maus olhos

A aposta do sujeito de que possa ser representado pela escolha de um significante ideal e que possa escolhê-lo faz parte da constituição do que Lacan (1978LACAN, J. Le mythe individuel du nevrosé ou poésie et vérité dans la névrose. Ornicar?, n. 17-18, p. 290-307, Paris: Seuil, 1953/1978.) denominou mito individual do neurótico, tal como aparece em diversos trabalhos de Authier-Revuz (1998). Esta aposta ratifica uma posição, que pode ser entendida também como um modo de apagar a alteridade na linha do que Pêcheux (1988PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: UNICAMP, 1988.) denominou esquecimento número um, pelo qual o sujeito acredita ser a fonte e origem do sentido. Esta crença alimenta a ilusão de que a escolha por Coca-Cola ou Pepsi é uma livre escolha. Faz parte deste processo escolher ser um “peixe fora d’água” ou ser uma “sereia”. Portanto, a dialética com o Outro dá lugar a uma dicotomia.

O sujeito deve se reconhecer na imagem de um “peixe fora d’água” ou de uma “sereia”, e investir essa imagem de valor positivo. Assim, as propagandas se colocam como um espelho para o sujeito, que pode investir sua libido nessa imagem e se reconhecer nesse lugar. Este reconhecimento remete a “[...] A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na descendência da amamentação que é o filho do homem no estágio de infans (LACAN, 1966/1996, p. 98)” e revive o estádio do espelho que “[...] é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial” (p. 98). É um reviver em que o que não foi suficientemente atendido é realocado como demanda como um lugar a ser ocupado face a uma antecipação.

Deslocado deste lugar do sujeito comum consumidor, o jogo da demanda e da “escolha” pela bebida também aparece em discursos instalados do lugar da posição de marca, como já dissemos. Na SD7, este lugar é vozeado por um deslocamento operado por um comentário que tenta incluir a visão do consumidor e também incluir o que seria uma visão da marca sobre si mesma.

SD7 - Eu nunca gostei muito da assinatura “Pode Ser”; pois acredito que a Pepsi tem identidade mais do que suficiente para se assumir como um grande player e não uma segunda opção [à Coca-Cola].

Do ponto de vista pragmático, esta imagem criada pela publicidade instala uma imagem-identidade a ser incutida no consumidor. O sujeito enunciador denuncia a campanha anterior relatando um complexo de inferioridade da Pepsi ao se assumir como segunda escolha. Daí resultaria essa mudança da identidade e da imagem da marca que agora se coloca “como um grande player e não uma segunda opção [à Coca-Cola]”.

O sujeito enunciador coloca sua posição pessoal, que é também a posição de um profissional da propaganda. “Eu nunca gostei muito da assinatura ‘Pode Ser’” e também o trecho “pois acredito que a Pepsi” mostram que temos aqui marcas textuais de individualidade e argumento de autoridade, além de uma crítica. Vejamos:

SD8 - Essa nova campanha me deixou um pouco mais animado por ver que a marca está passando para um segundo momento, ainda assim eu não achei nem um pouco vantajoso dizer aos seus consumidores que eles podem ser vistos como peixes fora d’água ao consumirem seus produtos.

A marca linguístico-discursiva “ainda assim” presentifica uma mudança de posição do sujeito, de modo que no início da SD8 a posição é positiva em relação à propaganda (“Essa nova campanha me deixou um pouco mais animado por ver que a marca está passando para um segundo momento”), e na segunda parte é negativa (“eu não achei nem um pouco vantajoso dizer aos seus consumidores que eles podem ser vistos como peixes fora d’água ao consumirem seus produtos”).

Novamente existe um posicionamento do enunciador (profissional da propaganda) continuando a escrita da SD7 e que ao mesmo tempo apresenta a imagem do “peixe” fora d'água como um problema, uma solução infeliz para a imagem da marca.

Outro ponto relevante a ser analisado é sobre a avaliação que este especialista faz para o sujeito comum. Ele se apresenta como um comentador que, parafraseando Pêcheux (1997cPÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E.P. (Org.). Gestos de Leitura: da história no discurso. Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, 1997c. p. 55-67.), está autorizado a “ler o arquivo” interpretando-o para o sujeito comum. Além disso, confere ao jogo imaginário em questão um lugar de suposto saber do ponto de vista tanto do que Pêcheux (1997a), em O discurso: estrutura ou acontecimento denomina lugar do estrategista, quanto do ponto de vista de quem lidaria com o desconhecimento imaginário da ideologia (PÊCHEUX, 1996PÊCHEUX, M. O mecanismo do (des) conhecimento ideológico. In: ŽIŽEK, S. (Org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro/RJ: Contraponto, 1996. p. 143-152.).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise do corpus formado por comentários acerca do posicionamento da marca de refrigerante Pepsi, pudemos discutir do ponto de vista do lugar do sujeito comum determinado pela demanda implicada em uma tomada de posição do sujeito do discurso.

A análise mostrou de que forma este posicionamento de marca influencia a ilusão de escolha do sujeito e sua tomada de posição a partir de uma leitura indireta que é feita da relação entre necessidade, desejo e demanda. A torção passível de ser operada para que o sujeito siga pistas e decifre o objeto “a” é cooptada por um roteiro predefinido pelo qual o desejo é calado, além de fornecer um imaginário no qual o sujeito pode se espelhar e se reconhecer.

REFERÊNCIAS

  • AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, 1998.
  • COURTINE, J. J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos/SP: Edufscar, 2014.
  • DOR, J. Introdução à Leitura de Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
  • EIDELSZTEIN, A. O grafo do desejo. São Paulo: Toro Editora, 2017.
  • FRAKENTHAL, R. 6 exemplos de posicionamento de marca bem-sucedidos, 5/jun/2018, recuperado de https://mindminers.com/blog/exemplos-posicionamento-de-marca/. Acesso em: 13 maio 2020.
    » https://mindminers.com/blog/exemplos-posicionamento-de-marca
  • LACAN, J. Le mythe individuel du nevrosé ou poésie et vérité dans la névrose. Ornicar?, n. 17-18, p. 290-307, Paris: Seuil, 1953/1978.
  • LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: ŽIŽEK, S. (Org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro/RJ: Contraponto, 1996. 97-103.
  • LACAN, J. O Seminário - livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1999. Original de 1957-1958.
  • NOMINÉ, B. Sobre identidade e identificações: conferências (2014-2015). São Paulo: Blucher, 2018.
  • ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002.
  • ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/SP: UNICAMP, 1988.
  • PÊCHEUX, M. O mecanismo do (des) conhecimento ideológico. In: ŽIŽEK, S. (Org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro/RJ: Contraponto, 1996. p. 143-152.
  • PÊCHEUX, M. O Discurso: Estrutura ou acontecimento? Campinas: Pontes, 1997a.
  • PÊCHEUX, M. [1969]. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997b. p. 61-161.
  • PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E.P. (Org.). Gestos de Leitura: da história no discurso. Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, 1997c. p. 55-67.
  • SOLER, C. O inconsciente: que é isso? São Paulo: Anablume, 2012.
  • ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/RJ: Zahar, 1992.
  • ŽIŽEK, S. O “novo espírito” do capitalismo. Tradução Maria Beatriz de Medina. In: ŽIŽEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo/SP: Boitempo, 2011. p. 53-62.

REFERÊNCIAS DAS SDS

  • 1
    Disponíveis em: https://www.b9.com.br/17560/pepsi-estreia-campanha-aproveitando-o-momento-do-pode-ser/
  • 2
    https://geekpublicitario.com.br/22002/pepsi-so-que-sim/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2020
  • Aceito
    06 Maio 2022
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