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WE CAN DO IT!: DISCURSOS SOBRE A FORÇA DA MULHER NAS MOVÊNCIAS DA HISTÓRIA

WE CAN DO IT!: DISCOURSES ABOUT WOMEN’S STRENGHT IN THE MOVEMENTS OF HISTORY

WE CAN DO IT!: DISCURSOS SOBRE LA FUERZA DE LA MUJER EN LA MOVILIDAD DE LA HISTORIA

Resumo

Este artigo analisa os discursos produzidos pelo célebre cartaz de fundo amarelo que traz a imagem de uma mulher operária com a legenda We can do it!. Criado na Segunda Guerra Mundial e repetido pelos feminismos dos anos 1980 e 2010, o cartaz produz discursos que se relacionam com distintas conjunturas históricas. O estudo objetiva analisar os discursos sobre a força da mulher, materializados pelo enunciado verbo-visual, para compreender como as condições de possibilidade históricas motivam a enunciação da capacidade feminina em épocas distintas. Este trabalho se inscreve no campo da Análise do Discurso filiada a Michel Foucault, que investiga as práticas discursivas e a formação de objetos e subjetividades. Assim, mobiliza os conceitos foucaultianos de enunciado, arquivo e acontecimento. A análise demonstra que as condições de retorno da imagem promovem transformações nas regras de formação desses discursos. Logo, as descontinuidades históricas determinam as repetições desse enunciado como acontecimentos únicos e singulares.

Palavras-chave:
Discurso; Enunciado; Acontecimento; Mulher; Feminismo

Abstract

This article analyzes the discourses produced by the famous yellow background poster with the image of a working woman and the title We can do it!. Created in the World War II and repeated by the feminisms in the 1980s and 2010s, the poster produces discourses that relate to different historical conjunctures. We propose an analysis of discourses about the women’s strenght, materialized by the verb-visual utterances, in order to understand how historical conditions of possibility motivate the enunciation of women’s capacity at different times. Affiliated to the Foucauldian Discourse Analysis, a field that investigates the discursive practices and the formation of objects and subjectivities, this work mobilizes the concepts of utterance, archive, and event. The analysis demonstrates that the image’s conditions of return modify the formation rules of theses discourses. Therefore, historical discontinuities determine the repetitions of this utterance as unique and singular events.

Key-words:
Discourse; Utterance; Event; Woman; Feminism

Resumen

Este artículo analiza los discursos producidos por el célebre afiche de fondo amarillo que trae la imagen de una mujer operaria con la leyenda We can do it!. Creado en la Segunda Guerra Mundial y repetido por feminismos de los años 1980 y 2010, el afiche produce discursos que se relacionan con distintas coyunturas históricas. El estudio tiene el objetivo de analizar los discursos sobre la fuerza de la mujer, materializados por el enunciado verbo-visual para comprender cómo las condiciones de posibilidad históricas motivan la enunciación de la capacidad femenina en épocas distintas. Este trabajo se inscribe en el campo de Análisis del Discurso afiliada con Michel Foucault, que investiga prácticas discursivas y la formación de objetos y subjetividades. Así, moviliza conceptos de Foucault para enunciado, fichero y acontecimiento. El análisis demuestra que las condiciones de retorno de la imagen promueven transformaciones en las reglas de formación de eses discursos. Luego, discontinuidades históricas determinan las repeticiones de ese enunciado cómo acontecimientos únicos y singulares.

Palabras clave:
Discurso Enunciado; Acontecimiento; Mujer; Feminismo

1 INTRODUÇÃO

As obras de Michel Foucault oferecem postura de análise dos documentos históricos, e pode ser mobilizada para investigar práticas discursivas. Em seu livro A arqueologia do saber (2012 [1969]), o autor alinhava os pressupostos que orientaram suas pesquisas anteriores1 1 As pesquisas anteriores em que Foucault mobiliza a metodologia arqueológica para analisar a formação e transformação de objetos de discurso são: Nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico (1963), História da Loucura (2003 [1972]) e As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966). e oferece conceitos que podem auxiliar o analista do discurso a compreender como acontecimentos históricos motivam os modos de enunciação de objetos e subjetividades.

De acordo com Foucault, o discurso é um conjunto de “práticas que produzem sistematicamente os objetos de que se fala” (2012, p. 60). A abordagem foucaultiana consiste em examinar as condições de possibilidade históricas que determinaram que, numa dada época, os sujeitos se enunciassem de dadas formas e não de outras - como loucos e sãos, normais e anormais. Com efeito, o exame do “solo histórico” de aparecimento dos enunciados demonstra que as práticas do sujeito na história constituem os modos de enunciar a si, o outro e os objetos de saber.

Nessa direção, este artigo tem por objetivo analisar enunciados verbo-visuais que materializam discursos sobre a força da mulher em épocas distintas (anos 1940, 1980, 2010). A postura de análise se vale de conceitos foucaultianos que se voltam para as movências da história a fim de identificar “rastros” de rupturas e mutações nos regimes de enunciabilidade, bem como a emergência de acontecimentos discursivos.

Imagem 1
O cartaz We can do it!

Para o corpus de análise, selecionamos cartazes produzidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), referentes à publicidade que convoca mulheres a trabalhar nas fábricas de material bélico nos EUA. Dentre esses cartazes, é conhecida, em especial, a imagem da jovem mulher de lenço vermelho nos cabelos e de braços flexionados em gesto de força. Na imagem de fundo amarelo, na parte superior, vem a célebre legenda: We can do it!.

Além deste, analisamos dois cartazes de publicidade produzidos aproximadamente na mesma época. Ambos falam da força da mulher e de sua participação como operárias durante a guerra.

O corpus de análise também se constitui de imagens atuais, que repetem a postura da mulher da ilustração dos anos 1940: tanto a gestualidade do corpo quanto a vestimenta e a legenda. Por isso, analisamos enunciados produzidos em domínio associado feminista e que repetem a imagem anterior. Essas imagens são compartilhadas, na atualidade, em blogs e comunidades no Facebook.

Nas análises, tomamos os cartazes, a capa e as reproduções atuais como enunciados que formam uma rede em que se estabelecem relações de coexistência, diferenciação ou de exclusão (FOUCAULT, 2012). Nos diferentes momentos em que esse enunciado retorna, vemos surgir significações históricas singulares sobre a capacidade da mulher. Produzidos em épocas particulares, esses discursos demonstram a existência de um trajeto histórico, marcado por movências e mutações. Produzidos na conjuntura da Segunda Guerra Mundial, os enunciados entraram em dispersão e retornam associados ao feminismo. Daí a singularidade: hoje, o cartaz We can do it! é (re)produzido por sujeitos posicionados historicamente em grupos que lutam pela condição das mulheres.

Inscrito em abordagem foucaultiana de análise dos discursos, este artigo tem os seguintes objetivos específicos: i) descrever as condições históricas de emergência desses enunciados; ii) compreender as regras de formação de discursos sobre a força da mulher em momentos distintos da história; iii) verificar se o retorno do enunciado We can do it!, pelos discursos feministas, instaura acontecimento discursivo, produzindo sentidos singulares.

Em primeiro momento, este artigo trata da postura de análise da fase arqueológica de Foucault. Fundamentamos os conceitos de enunciado, arquivo e acontecimento elaborados na obra A arqueologia do saber (2012 [1969]). Na terceira seção, descrevemos e interpretamos as materialidades verbo-visuais do cartaz “We can do it”, atentando para as condições históricas que possibilitaram sua emergência. Voltamo-nos para o arquivo daquela época para compreender as regras de formação dos discursos e as motivações históricas para dadas formas de enunciação. Em suma, o que foi possível dizer e ver, naquele momento histórico [anos 1940] em relação à força da mulher.

Na quarta seção, analisamos o acontecimento da volta do enunciado “We can do it”. Verificamos que a repetição do mesmo enunciado produz sentidos singulares em relação aos anteriores. No momento de surgimento, os sentidos produzidos se associam à força de trabalho da mulher. Com o retorno do enunciado, em outras conjunturas, os sentidos produzidos são de força como autonomia e independência femininas. Além disso, a dispersão do enunciado, na era digital, cria condições de significar a força feminina em associação ao empoderamento e às identidades de mulheres engajadas ao feminismo. As diferentes significações sobre a força da mulher e a mutação nas regras de formação dos discursos nos permitem constatar que o retorno da imagem instaura acontecimento discursivo.

2 A ARQUEOLOGIA NA ANÁLISE DISCURSIVA: ENUNCIADO, ARQUIVO E ACONTECIMENTO

Ao utilizar o termo arqueologia, Foucault não pretende trabalhar em busca das origens dos acontecimentos - tal como pressupõe o significado do termo grego arché [origem]. Com o termo, na acepção francesa de archive, Foucault propôs um tipo de pesquisa que se dedica a “extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégia poder-saber. MOTTA, M. B. (Org.). Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 257).

A arqueologia busca encontrar o próprio fato do discurso, pois visa “descobrir por que e como se estabelecem relações entre acontecimentos discursivos” (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégia poder-saber. MOTTA, M. B. (Org.). Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 258). Dessa forma, a arqueologia consiste em postura de análise dos acontecimentos com vistas a compreender as condições históricas de emergência dos discursos e as mutações nas práticas discursivas.

Realizar análise discursiva, orientando-se pela postura da arqueologia, implica considerar questões como: o jogo de regras históricas que definem as transformações de um objeto de discurso; as relações de coexistência entre os enunciados; a ruptura nas práticas discursivas e a descontinuidade que as atravessa (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégia poder-saber. MOTTA, M. B. (Org.). Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 103).

Trazer essas questões para o campo da Análise do Discurso permite problematizar a relação entre acontecimentos históricos e a enunciação, dando a ver a relação entre enunciado, história e memória. Assim, produzir enunciados liga-se à possibilidade de o sujeito dizer alguma coisa em determinado momento histórico. Liga-se, também, à relação que um enunciado mantém com outros, produzidos antes ou simultaneamente, formando uma rede.

Analisar enunciados demanda questionar não o que está neles “escondido”, tampouco uma mensagem “implícita”. E sim, seus modos de existência, o que significa “o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual” (FOUCAULT, 2012, p. 133). Trata-se de compreender as motivações históricas para o fato de essas formas de enunciação terem aparecido e nenhuma outra em seu lugar.

Com isso, a arqueologia de Foucault (2012) analisa os enunciados considerando sua singularidade e condições de aparecimento, postura que mobilizamos para compreender a emergência e o retorno do cartaz We can do it! em diferentes épocas. Analisar esse enunciado segundo abordagem arqueológica requer examinar os acontecimentos, como os de 1942, período da Segunda Guerra Mundial, que possibilitaram colocar a imagem da mulher como protagonista de uma publicidade de fábrica de armamentos.

Nesse gesto, podemos tomar o cartaz como “rastro” das práticas discursivas daquela época e interrogar: por que surgiu a imagem da mulher como sujeito de força naquele momento? Por que essa imagem e não outra (a da mulher como sujeito frágil) em seu lugar? Dessa forma, a arqueologia permite depreender as relações entre as condições históricas e o modo de enunciar a subjetividade da mulher, bem como as possibilidades de o enunciado permanecer e modificar-se através da história.

Foucault não compreende o enunciado como sendo necessariamente uma proposição, uma frase, um ato de fala. O diferencial dessa concepção de enunciado está em concebê-lo como uma função que pode ser exercida não só por materialidades linguísticas, mas também por materialidades visuais (imagens, fotografias, ilustrações), criptográficas, numéricas, entre outras. O enunciado em Foucault não é exclusivamente linguístico, pois também se produz através de outras materialidades, o que nos leva a considerá-lo como sendo de natureza semiológica (GREGOLIN, 2002GREGOLIN, M. R. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, C. A.; SANTOS, J. B. C. (Org.). Anális do discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2002, p. 19-42.).

O enunciado é, portanto, “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2012, p. 105). É uma função que se exerce através de: i) uma posição-sujeito; ii) um campo referencial; iii) um domínio associado e iv) uma materialidade repetível. Inclusive, por seu caráter repetível, o enunciado funciona segundo uma dialética repetição-singularidade (GREGOLIN, 2002GREGOLIN, M. R. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, C. A.; SANTOS, J. B. C. (Org.). Anális do discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2002, p. 19-42.).

Assim, o cartaz We can do it! pode ser considerado um enunciado, pois se compõe de materialidade verbo-visual que se repete na produção de novos enunciados que circulam atualmente, sobretudo na internet. Apresenta, também, em sua constituição, marcas verbais e visuais que constroem a posição do sujeito em relação ao campo referencial, ou seja, o referente histórico do enunciado na instância de seu aparecimento - como, por exemplo, a fabricação de armamentos, o feminismo, o empoderamento das mulheres, etc. Além disso, o cartaz circula historicamente estabelecendo um domínio de associações com outros enunciados já existentes ou atuais, funcionando como uma espécie de “nó” numa rede de enunciados.

Nesse sentido, Foucault destaca o papel do a priori histórico, que dá “conta dos enunciados em sua dispersão”, ou seja, “do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho” (FOUCAULT, 2012, p. 155). O a priori histórico evidencia o “conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva” (FOUCAULT, 2012, p. 156) e que determinam a produção dos enunciados que se ligam e se modificam em limiares decisivos.

Ademais, o a priori histórico não garante um alinhamento sucessivo dos enunciados, em que cada um se perfilaria num encadeamento causal, de sentidos evidentes e transparentes. Em vez disso, o a priori faz aparecer, na densidade das práticas discursivas, “os sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização)” (FOUCAULT, 2012, p. 157). O a priori possibilita ao analista do discurso depreender o sistema de regras fornecidas pelas condições históricas. E a esse sistema de enunciabilidade, Foucault propõe o nome de arquivo.

Para Foucault, o arquivo não é a soma de todos os textos de uma cultura nem de todos os documentos do passado. É aquilo que possibilita que os enunciados apareçam “graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo” (FOUCAULT, 2012, p. 158). Às coisas ditas, o analista não pergunta o que se encontra por trás delas, e sim ao sistema de enunciabilidade, àquilo que possibilitou que elas pudessem ter sido ditas. O arquivo, desse modo, representa “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2012, p. 158).

O arquivo descreve as regras que determinam aquilo que pode emergir neste e não em outro lugar, nesta época e não em outra. Define a forma como o enunciado é transformado e atualizado na instância do acontecimento. Utilizar o conceito de arquivo, na Análise do Discurso, permite identificar os movimentos, as mutações, as rupturas, uma vez que “ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. ‘É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados’” (FOUCAULT, 2012, p. 159).

Em relação aos objetos de análise, o conceito de arquivo possibilita trabalhar com um conjunto de enunciados verbo-visuais, dispersos no tempo e no espaço, que circulam em décadas e contextos sociais e históricos particulares. Apesar dessa dispersão, a descrição do arquivo mostra que as imagens produzidas nas décadas de 1940, 1980 e 2010 estabelecem certa unidade nas movências da história, porque se interligam por algo em comum: são enunciados que materializam as regras de formação dos discursos sobre a força da mulher em diferentes períodos.

A postura da arqueologia se volta para aquilo que é efetivamente dito numa época. Interroga aquilo que é possível dizer sobre sujeitos e objetos, tendo em vista o momento em que se diz. Por isso, a análise do enunciado toma a direção de uma análise histórica. Nesse sentido, Foucault (2012) propõe trabalhar com uma concepção de história descontínua, baseada na casualidade e no acidente. Para o autor, é preciso recusar a continuidade porque prescinde da ideia de origem - o que na Análise do Discurso é refutada. A formação dos discursos é então analisada em sua descontinuidade e dispersão.

Toda enunciação mantém relação com a história e a memória, de modo que Foucault (2015FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégia poder-saber. MOTTA, M. B. (Org.). Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.) considera o acontecimento como o fato de um sujeito, situado historicamente, enunciar alguma coisa. Dizer algo numa dada conjuntura ultrapassa o campo das proposições, pois prática que se inscreve no domínio histórico. A enunciação liga-se à história, que se constitui daquilo que os sujeitos disseram (ou dizem) em momentos diferentes. A partir dessas proposições foucaultianas, Jean-Jacques Courtine desenvolve o conceito de memória discursiva. Compreende-se, assim, que um conjunto de já-ditos, que circulam em distintas épocas - podendo retornar, dispersar-se ou apagar-se - constituem uma memória discursiva, que corresponde à “existência histórica de enunciados” (COURTINE, 2009COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução dos Bacharéis em Letras pela UFRGS. São Carlos: Edufscar, 2009. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012 [1969]., p. 105-106).

Em Arqueologia, a enunciação é compreendida como um “acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”, porque se liga a algo que já foi dito e, ao mesmo tempo, “abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória” (FOUCAULT, 2012, p. 34-35). Dessa forma, assumimos uma postura que toma o acontecimento como “o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento”, instaurando uma singularidade em relação ao que foi dito antes (FOUCAULT, 2015, p. 249).

Um enunciado poderá ser dito diversas vezes, e tantas quantas forem ditas seus sentidos serão únicos. O enunciado é sempre marcado por circunstâncias bem determinadas, o que permite considerar que a enunciação é um acontecimento que não se repete. Dessa forma, Foucault (2012) considera o acontecimento como efeito de uma ruptura histórica, que instaura transformações no arquivo da época.

O acontecimento irrompe por um movimento de atualização de discursos nas redes de memória. Alia-se, portanto, aos retornos e às mudanças nas práticas discursivas; afinal, “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 23. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013., p. 25). Desse modo, a concepção foucaultiana de acontecimento fundamenta os gestos analíticos deste artigo, uma vez que, nos movimentos de retorno do cartaz We can do it! depreendemos a produção de sentidos novos em relação ao que foi dito e visto antes e em outros lugares da história. A cada vez que esse enunciado verbo-visual é repetido, em conjunturas particulares, é possível demonstrar que a enunciação é um acontecimento único e singular.

Logo, para analisar as singularidades, é preciso “estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado” (FOUCAULT, 2012, p. 31). E são as movências da história que indicam transformações nas regras de formação dos discursos. Assim como as descontinuidades, as diversas vias abertas nas tramas da história se ligam, de um lado, a “rastros” e remanências de discursos e, de outro, a transformações e singularidades.

3 AS PUBLICIDADES DE TRABALHO FEMININO NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945)

Assentados os pressupostos da arqueologia foucaultiana, atentamos para enunciados produzidos durante a Segunda Guerra Mundial no intuito de estimular mulheres a trabalharem em fábricas de armamento nos EUA. Com vistas a analisar as condições de emergência, empreendemos breve histórico acerca da produção desses cartazes que enunciam sobre a força da mulher.

Em 1942, Geraldine Hoff Doyle foi fotografada enquanto trabalhava em uma fábrica de armamentos para a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em Detroit, no estado de Michigan, Estados Unidos. A imagem, à semelhança daquela de tantas mulheres na época, serviu de inspiração para aquilo que se tornou um símbolo de significados históricos diversos. Naquele ano, o artista J. Howard Miller foi contratado pelo Westinghouse Company’s War Production Coordinating Committee, situado em Pittsburgh na Pensilvânia, para ilustrar uma série de pôsteres que incentivassem as mulheres a assumir postos de trabalho inicialmente direcionados aos homens nas fábricas de materiais bélicos.

Para tanto, Miller infiltrou-se no universo das mulheres operárias que trabalhavam em uma fábrica nos arredores de Detroit. Fotografou-as para ter ideia de como retrataria o tipo de mulher que serviria de estímulo num contexto social em que faltavam homens para o referido trabalho - afinal, grande parte deles estava servindo na guerra. O resultado foi o pôster de fundo amarelo, que traz uma mulher de lenço vermelho de bolinhas brancas, com as sobrancelhas arqueadas, impondo o bíceps dobrado num gesto de força. Acima da imagem, a legenda em um balão, com a fala da personagem. Um slogan para estimular as mulheres para um trabalho que, a princípio, era feito somente por homens: We can do it! [Nós podemos fazer isso!].

O pôster de Miller, contudo, não foi bastante divulgado na época, sendo distribuído exclusivamente pela empresa Westinghouse e somente em algumas fábricas instaladas na Pensilvânia. Ele só foi distribuído entre as fábricas do centro-oeste do país no ano seguinte, mais precisamente durante duas semanas de fevereiro de 1943.

Imagem 2
Geraldine Hoff Doyle trabalhando em fábrica no Michigan em 1942

Imagem 3
O pôster We can do it! , produzido por J. Howard Miller em 1942

A imagem tornou-se ilustrativa não só de uma publicidade de incentivo às mulheres para trabalharem na manufatura bélica, mas também de um acontecimento histórico: a entrada das mulheres no universo operário, antes predominantemente masculino.

Tendo em vista as condições históricas de emergência, podemos depreender que a imagem produz sentidos de patriotismo, pois surgiu em um período de guerra, quando os EUA integraram o grupo dos Aliados, reforçando-o para a vitória em 1945. E, ainda, devido aos elementos materiais que compõem a imagem: as cores que fazem referência à bandeira norte-americana. A mulher usa um lenço vermelho e branco e uma camisa azul.

Acerca da gestualidade, destaca-se o rosto da mulher. É uma jovem que está conforme os padrões de beleza: cílios alongados, nariz fino e pequeno, lábios levemente pintados, bochechas coradas e queixo simétrico. Um rosto feminino belo que apresenta semblante sério e bravo, com sobrancelhas arqueadas. A feição apresenta traços que remetem à representação de feminilidade que circula socialmente (beleza) e, ao mesmo tempo, diferenciam-se da visão da mulher como delicada e amável. Essa maneira de representar os gestos faciais - firmeza e força - exclui a imagem da mulher de semblante dócil e com sorriso no rosto.

Tendo em vista o domínio associado do enunciado, observamos que, na relação com outras imagens já existentes, este se diferencia de uma representação marcada por clichês e estereótipos da mulher maternal, sensível e frágil. Soma-se a isso o punho cerrado, em posição de “queda de braço” - a conhecida competição para saber quem é o mais forte. Assim, a imagem abre a possibilidade de representar a mulher com classificação distinta, como sujeito capaz de exercer força física.

Destacamos, ainda, a relação que a imagem estabelece com a legenda que expressa a fala da personagem. O enunciado verbal [We can do it] - traduzido como “Nós podemos fazer isso” - materializa a posição-sujeito de quem fala, bem como os sentidos produzidos tendo em vista o campo referencial e o domínio associado (FOUCAULT, 2012). O sujeito que enuncia se posiciona como um “nós” [we], que é interpretado a partir da figura feminina da ilustração. Portanto, esse “nós” é compreendido em referência a um “nós, mulheres”.

A personagem fala em nome de um conjunto de sujeitos, por isso, também podemos identificar sentidos de coletividade. O uso da primeira pessoa do plural é motivado pelo campo referencial do enunciado: o cartaz se refere a uma publicidade, que tem por objetivo estimular e chamar mulheres para o trabalho na manufatura bélica. Ademais, o verbo empregado [can do] modaliza a ação da mulher com sentidos de capacidade e possibilidade. Relacionados, os sentidos de coletividade [we] e de capacidade [can do] têm efeitos positivos de incitação e crença na força feminina - o que pode contribuir para adesão ao trabalho.

Nessas condições, uma leitora (mulher) pode interpretar os sentidos do cartaz pelo viés da identificação com o “nós” [we] e da posição-sujeito de capacidade, “podemos fazer” [can do].

Quadro 1
Efeitos de sentido de We can do it!

Neste ponto da análise, atentamos para a significação do pronome indefinido [it], traduzido como “isso”, o que nos abre possibilidade de diálogo com Michel Pêcheux (2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X.). Segundo o autor, a história (ordem do acontecimento) constitui os sentidos da língua (estrutura), de modo que o discurso é ao mesmo tempo estrutura e acontecimento. A visada pecheutiana pode ser colocada em diálogo com a postura da Arqueologia considerando os seguintes aspectos teóricos: i) a compreensão histórica da enunciação e do acontecimento discursivo como atualização de discursos (PÊCHEUX, 2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X.) e ii) os pressupostos foucaultianos sobre as condições históricas, que possibilitam a emergência de enunciados enquanto acontecimentos singulares (FOUCAULT, 2012).

Produzido no “ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória”, o acontecimento discursivo instaura singularidade, de modo que os sentidos da língua podem vir a ser outros (PÊCHEUX, 2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X., p. 17). Com isso, Pêcheux (2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X.) destaca que podem ocorrer equívocos na interpretação, afinal, o sentido não é evidente, estável e nem único. No caso do enunciado [We can do it], por ser indefinido, o pronome inglês [it] opaca aquilo que se compreende como a prática que a mulher tem capacidade de fazer. É um pronome que abre a possibilidade para o equívoco e que, ao retornar, pode produzir significações outras.

Logo, cabe interrogar: o que há de motivação na história (ordem do acontecimento) que leva os sujeitos a dizerem [we can do it] (estrutura da língua) neste momento e neste lugar? Questões que permitem constatar que, a depender do momento histórico, “isso” (o que as mulheres podem fazer) significa diferentemente. Desse modo, são as urgências da história que produzem a significação de “it” [isso].

Considerando as condições de emergência, podemos também interrogar: por que uma publicidade que afirma a capacidade das mulheres de trabalhar nas fábricas de armamento e não outro tipo de anúncio? Naquela época, as fábricas norte-americanas tinham alta demanda de armas e, ao mesmo tempo, enfrentavam uma crise no quadro de funcionários. A maioria dos homens que aí trabalhavam precisou se afastar para servir como soldados, pois, os EUA se tornaram aliados da Inglaterra na guerra. Com isso, a aparição da publicidade para recrutar mulheres não foi aleatória, e sim motivada por necessidades econômicas.

Tendo em vista essas condições de possibilidade históricas, temos os seguintes sentidos para o pronome [it/isso] na década de 1940:

Também podemos analisar esses discursos tendo em vista o domínio associado do enunciado. Segundo Foucault (2012), esse domínio é habitado pelas associações que um enunciado estabelece com outros, formando uma espécie de “rede de enunciados”. Desta feita, quando o sujeito fala “Nós podemos fazer isso”, coloca em relação uma prática exercida pelas mulheres, naquele momento pontual da história - a fabricação de armamentos - com outras práticas também feitas pelas mulheres [nós].

No domínio associado, o enunciado [we can do it/nós podemos fazer isso] funciona como um “nó” numa rede e mantém relações de diferenciação com outros enunciados, que circulam no mesmo período (anos 1940), tais como: [as mulheres têm capacidade de fazer trabalho doméstico]; [as mulheres não podem fazer trabalho pesado]; [as mulheres não são capazes de trabalhar em fábricas]; [as mulheres só podem trabalhar em casa], entre outros.

Embora estabeleça relação de diferenciação no domínio associado, o aparecimento do enunciado [We can do it!] e os sentidos de capacidade das mulheres para um trabalho considerado “masculino” não implica, na década de 1940, acontecimento singular. O deslocamento das mulheres do espaço privado para o público, assim como a afirmação de sua capacidade para o “trabalho nas fábricas” mostra indícios de abertura de lugares para a mulher na sociedade. No entanto, essa abertura não implica transformações nas regras discursivas e nas posições que as mulheres podem assumir em relação aos homens.

Assim, o enunciado pôde emergir devido às condições de possibilidade históricas [falta de mão de obra masculina nas fábricas] e àquilo que era necessário naquele momento [suprir a demanda de armas vendidas para a guerra]. Mesmo com a inserção das mulheres nas fábricas, há manutenção de regras rígidas que definem aquilo que elas podem e devem fazer. As mulheres até podiam adentrar as fábricas e fazer “trabalho de homem”, mas ainda tinham o dever de exercer papel de servidora, bela e leal aos interesses de alguém - o marido ou a indústria ou a nação.

Um exame do solo histórico de emergência mostra que o cartaz integra uma série de outros enunciados verbo-visuais que proliferaram no mesmo período. Esses enunciados estabelecem relações por terem referenciais em comum: o trabalho feminino nas fábricas; a Segunda Guerra Mundial; o patriotismo norte-americano. Em postura arqueológica, vemos que esses enunciados se interligam, no tempo e no espaço, por uma regra em comum (FOUCAULT, 2012): a necessidade de as mulheres servirem não só a família e o marido, mas também a nação, os Estados Unidos da América.

Nas imagens 4 e 5 são apresentadas mulheres operárias de bela aparência e de corpos e traços femininos - e não masculinizados.

Imagem 4
Publicidade do governo norte-americano

Imagem 5
Publicidade do governo norte-americano

Nesses cartazes é possível identificar elementos que se repetem: i) as cores da bandeira norte-americana no fundo ou nas roupas (signos de patriotismo); ii) o uso do lenço de bolinhas amarrado nos cabelos e a maquiagem para ressaltar a beleza e a feminilidade; iii) as vestimentas para o trabalho (macacões, camisa e calça); iv) a posição das mãos como que prontas para manusear instrumentos de trabalho; v) o olhar que inspira obstinação e confiança para a função operária; vi) as frases e os slogans de incentivo às mulheres. Os enunciados verbais que compõem os cartazes são: The girl he left behind is still behind him, She’s a wow, I’m proud… my husband wants me to do my part2 2 As expressões utilizadas nos cartazes podem ser traduzidas da seguinte maneira: “A garota que ele deixou para trás ainda está atrás dele”, “Ela é uma ‘wow’!”, “Nós não podemos vencer sem elas” e “Meu marido quer que eu faça a minha parte”. .

Na imagem 4 é possível verificar a legenda que traz a sigla WOW (Women Ordenance Worker), que apresenta duplo sentido. Além de significar “Mulheres fabricadoras de munição”, a sigla pode significar também uma interjeição em inglês, traduzida como “uau”. Essa expressão, vinculada ao tipo de mulher que trabalha nas fábricas de materiais bélicos, indica uma euforização da mão de obra feminina. Mobiliza sentidos de surpresa, estupefação e satisfação diante da força que ela tem. Em suma, a imagem constrói uma forma de subjetividade para a mulher norte-americana, que encarna o papel de Rosie ou de “mulher Wow” e que assume os postos de trabalho que eram exclusivamente dos homens.

Atentando para a materialidade linguística no cartaz (imagem 4), observamos as posições assumidas pelos sujeitos no discurso. A começar pela mulher, enunciada como [the girl], verificamos uma posição passiva, de objeto que sofre a ação do homem [the girl he left behind]. Já a posição do homem, expressa pelo pronome [he/ele], é ativa porque pratica ação de deixá-la [he left]. Assim, a mulher “é deixada para trás”, trabalhando nas fábricas, enquanto o homem sai do país para lutar na guerra. A maneira como os sujeitos são posicionados dá a ver as regras de formação dos discursos naquelas condições históricas. A mulher pode ser enunciada na condição de sujeito que recebe ação do homem [é deixada para trás] - e não de sujeito que pratica ação sobre alguém. Já o homem pode ser enunciado enquanto sujeito que exerce ação sobre a mulher.

Quanto à expressão [is still behind him/“ainda está atrás dele”], destacamos o uso do dêitico “para trás”, que faz referência ao espaço. Na relação com aquilo que é visto na imagem, podemos dizer que “still behind him” pode significar tanto permanência no país, à espera do companheiro, quanto permanência no posto de trabalho antes ocupado por ele. Além disso, o enunciado [is still behind/ainda está atrás] pode produzir outros efeitos de sentido além daquele de espaço - pode significar estar “atrás” em posição de inferioridade ou de obediência.

Portanto, “estar ainda atrás” pode significar que a mulher fica “atrás” dele não só na vida privada - esposa devotada - mas também “atrás dele” porque segue seu exemplo, seus passos na vida pública, trabalhando nas fábricas de armamento. O dêitico [atrás] é modalizado por um advérbio [still/ainda], que evidencia manutenção nas regras de formação desses discursos: a mulher ainda pode e deve obedecer ao marido; a mulher ainda pode e deve ajudar a nação.

Na imagem 4, a mulher inclina o rosto para cima, como se observasse, na parte superior do cartaz, seu companheiro, soldado da guerra. Na relação entre o verbal e o visual, o sujeito da enunciação situa o homem em posição superior, de ideal a ser seguido. Daí os sentidos de “behind” (atrás) não só em referência ao espaço, mas também à inspiração para a mulher, que segue os exemplos de heroísmo do marido - porque de certa forma também está servindo a pátria. Desse efeito de sentido, depreendemos outra regra de formação dos discursos no arquivo daquela época. Enquanto exemplo de “herói”, que está “à frente”, em posição de referência a ser seguida, pode e deve se situar o homem (marido e soldado). E na posição de sujeito que fica “para trás”, que segue o exemplo de heroísmo, pode e deve se situar a mulher (esposa e operária).

Vejamos esquematicamente as regras que distribuem as posições para os sujeitos históricos (homens e mulheres):

Quadro 2
Regras de formação dos discursos

Com isso, mesmo com a transição da mulher do espaço doméstico para o espaço operário, há manutenção nas regras e nas divisões das posições que ocupam. O homem “está à frente” e ela “permanece atrás”, significação motivada por uma regra social, aceita naquela época, que determina à mulher permanecer “à sombra” do marido. Tendo em vista o funcionamento desse arquivo, depreendemos que o homem é enunciado em posição central e exemplar, já a mulher é enunciada como coadjuvante e auxiliar - portanto, não protagonista.

O outro pôster (imagem 5) apresenta a mulher operária ao lado do marido que a observa em posição de apoio. Ao fundo, a bandeira norte-americana dá o teor patriótico à propaganda, que demonstra a regra de formação dos discursos naquela pontualidade histórica: as mulheres podem e devem ser obedientes aos maridos e, também, à nação. Na parte inferior do pôster, vem o enunciado linguístico que, na relação com o visual, surge como uma espécie de legenda daquilo que diz a mulher. Com o uso de pronomes pessoais e adjetivo possessivo em primeira pessoa, o enunciado constrói a posição-sujeito da mulher: [I’m proud... my husband wants me to do my part].

Nas materialidades, verifica-se que o posicionamento da mulher é construído em relação ao posicionamento do homem. Assim, a satisfação enunciada [I’m proud/Eu estou orgulhosa] surge como consequência de o marido querer que a esposa faça a parte dela na guerra e, por extensão, servir a nação. Destacamos aí o uso do verbo “querer” [my husband wants me/meu marido quer que eu], que modaliza a posição do homem com sentidos de volição. A materialidade linguística dá a ver outra regra de funcionamento do arquivo daquela época: quem tem a possibilidade de “querer” que a mulher faça algo é o marido, e não ela mesma. A possibilidade de o homem “querer” que a mulher faça algo mostra uma hierarquia, uma distribuição das possíveis posições a serem ocupadas por cada um deles.

Essas práticas discursivas manifestam que a posição de subjetividade da mulher é construída de modo a eximi-la de vontade própria. A mulher é colocada em discurso por uma prática de objetivação (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Org.) Michel Foucault, uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-250.), pela qual o outro (uma terceira pessoa) atribui forma ao sujeito ao enunciá-lo. Ou seja, é o outro [marido] que define a maneira de a mulher ser e se conduzir. Além disso, estabelece-se uma tensão entre aquilo que pode e deve fazer o sujeito, tendo em vista sua posição naquela conjuntura histórica. O enunciado [Ele (marido) quer que eu faça a minha parte], no domínio associado, estabelece relações de exclusão com outro enunciado [Eu (mulher) quero fazer a minha parte].

Embora o pôster traga a mulher em posto de trabalho nas fábricas, o regime de enunciabilidade define que essa mulher não tem autonomia, logo, não tem possibilidade de fazer suas próprias escolhas. Afinal, é a ele que cabe “querer” que a mulher trabalhe, e não a ela mesma. Dessa forma, o enunciado produz posicionamento de autoridade e decisão para o marido, e de obediência para a mulher. O que pode ser interpretado, ainda, na expressão [my part/minha parte]. Através do adjetivo possessivo [minha] e do substantivo [parte] enquanto tarefa, constroem-se sentidos de dever e obrigação. Daí, outra regra de formação dos discursos daquele momento: é necessário que a esposa não só siga a vontade do marido, mas também faça a “sua parte”, que cumpra seu dever para com a nação.

Por fim, o aparecimento desses documentos históricos dá a ver uma tensão entre acontecimentos, bem como uma contradição nos posicionamentos aí assumidos pelas mulheres. Apesar de serem enunciadas como sujeitos “capazes para o trabalho masculino”, há manutenção nas regras sobre aquilo que podem e devem fazer. A produção de sentidos de força da mulher se dá conforme as motivações e condições de possibilidades históricas da época: a necessidade de mão de obra para a manufatura bélica.

Quando as publicidades dizem que “as mulheres podem fazer isso” ou, ainda, que “os homens querem que as esposas façam sua parte”, identificamos contradição entre uma posição de atividade [We can do it] e uma posição de passividade [my husband wants me to do my part]. Conservam-se as regras que colocam a mulher em posição de: sujeita à autoridade de outros sujeitos (maridos/nação); isenta de vontade própria; inscrita numa hierarquia de poderes. Assim, a entrada das mulheres nas fábricas não implica aparecimento de regras de enunciabilidade novas - como autonomia feminina, por exemplo. E sim, a manutenção de um regime que determina à mulher dizer e ser: forte para trabalhar; leal aos interesses do marido; patriota e servil.

4 O ACONTECIMENTO DA VOLTA DO ENUNCIADO WE CAN DO IT! PELO DISCURSO FEMINISTA

Nesta seção, analisamos enunciados que repetem o cartaz We can do it! produzido nos anos 1940 e que atualizam significações históricas. Décadas depois, a imagem produzida por Miller retorna em um domínio bastante diferente: o feminismo. Há indícios de que nos anos 1980 a imagem passou a ser mobilizada por feministas, num período que remonta à segunda onda do feminismo norte-americano (1960-1980). Nessa fase do movimento, a principal reivindicação das mulheres referiu-se à igualdade de gêneros, tanto no âmbito privado (família, casamento, sexualidade) quanto no âmbito público (direitos civis, salários, leis).

Segundo Linda Nicholson, a partir dos anos 1970 “as feministas da segunda onda começaram a focalizar com mais ênfase que em outros períodos as diferenças entre mulheres e homens” (NICHOLSON, 1996NICHOLSON, L. The second wave: a reader in feminist theory. London: Routledge, 1996., p. 147). O movimento, então, concebeu que essas diferenças “foram elementos cruciais do feminismo radical”3 3 Tradução nossa de trecho da obra de Linda Nicholson (1996, p. 147): “In the early 1970s, second wave feminists began to focus more extensively than prevously on the differences between women and men. I describe this move as an intensivity of focus rather than a complete change of directions, because a focus on the differences between women an men was crucial element of the radical feminism of the late 1960s”. (NICHOLSON, 1996, p. 147). Com efeito, esse enfoque das lutas feministas foi manifestado pelo discurso de que “o pessoal é político”. Naquela pontualidade histórica, anos 1980, as feministas norte-americanas viram no pôster We can do it! uma representação de suas reivindicações quanto à desigualdade de gênero e a práticas machistas. E, principalmente, as feministas viram na imagem a possibilidade de enunciar sentidos de fortalecimento de si próprias.

Para analisar discursos segundo a postura da arqueologia, é preciso examinar o solo histórico de emergência dos enunciados para compreender suas relações com acontecimentos históricos. Foucault (2012) assinala que as práticas discursivas não são depreendidas na relação entre palavras e coisas, e sim da relação entre aquilo que dizemos e algo “mais” que vem da história. É esse “mais” que move os discursos e que motiva os sujeitos a enunciarem as mulheres tal como o fazem - [mulher sexo frágil x mulher ser de força]; [mulher sujeita ao marido e à nação x mulher autônoma e independente]. Trata-se de interrogar as condições de possibilidade históricas para saber por que emerge este discurso [força enquanto autonomia da mulher] em 1980, e não outro em seu lugar [força enquanto capacidade de trabalho].

Nesse sentido, destacamos os acontecimentos históricos que ocorreram nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. Consoantes a Foucault (2000FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 15. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2000.), assumimos uma concepção de história descontínua, de vias múltiplas em que os acontecimentos podem sobrepor-se ou dispersar-se. Nas movências da história, os acontecimentos não são vistos como relações de causa e efeito, pois podem manter relações entre si de forma acidental e imprevista. Com isso, enunciados de épocas diferentes podem retornar ou dispersar, transformar-se ou apagar-se.

No final dos anos 1960, nos EUA, eclodiu o movimento hippie. Foi uma geração que protestou contra a rigidez nos costumes e padrões de sexualidade e contra a Guerra do Vietnã. O lema “paz e amor” proliferou indefinidamente e colocou em circulação práticas distintas daquelas que regeram as relações conjugais nos anos 1940. Somam-se a isso, nos anos 1970, as lutas contra leis antiaborto realizadas pelo feminismo francês, e a criação da pílula anticoncepcional. Portanto, aquela conjuntura histórica foi marcada por discursos favoráveis à liberação sexual, ao controle da reprodução, à autonomia da mulher sobre o próprio corpo.

Esses acontecimentos históricos, embora heterogêneos e dispersos no tempo, mantêm relações entre si e condicionam a transformação de discursos sobre o papel da mulher em relação à família e ao casamento. Desta feita, nos anos 1980 vemos uma transformação no arquivo que rege a formação dos discursos. Do mesmo modo, depreendemos a emergência de um novo regime de enunciabilidade, que forma discursos menos rígidos - em relação aos anos 1940 - sobre a conduta da mulher. Com efeito, os acontecimentos na história possibilitam deslocamentos nas posições de subjetividade para as mulheres e transformações naquilo que elas podem e devem dizer e fazer.

No domínio de atualidade, o pôster em que a mulher surge com o bíceps dobrado, o olhar obstinado e sério produz significação singular da força da mulher. Não se trata mais da mulher dona de casa, esposa, operária em fábricas de armamentos, e sim daquela mulher que luta pelos mesmos direitos que os homens (políticos, econômicos, sexuais, reprodutivos, etc.). Atentando para a materialidade linguística [We can do it], constatamos um trajeto de sentidos marcado por descontinuidades e transformações. Nos anos 1940 [can do] produzia sentidos ligados à capacidade das mulheres para o trabalho “masculino”. Contudo, quando volta em 1980, o fato de as mulheres enunciarem [can do] significa a possibilidade de ter direitos iguais aos dos homens.

No retorno, a significação histórica de “nós podemos” [we can] modifica-se de capacidade de fazer o mesmo trabalho que os homens para a possibilidade de ser iguais aos homens, de assumir posições civis igualitárias. A expressão [we can do it], com destaque para o verbo “poder”, passa a produzir sentidos de possibilidade da autonomia feminina - o que promove ruptura no arquivo da época, nas regras que definem o que a mulher pode dizer, ser e fazer. Instauram-se, assim, significações singulares, motivadas pelas transformações históricas concernentes às relações de gênero.

Nesse movimento de repetição-atualização, depreendemos o acontecimento discursivo. Vejamos a transformação dos discursos:

Quadro 3
Movimentos de atualização dos discursos

Ao retornar associado ao discurso feminista, o enunciado [We can do it!] significa uma prática enunciada em inglês como empowerment - que pode ser traduzida para o português como “empoderamento”. Prática pela qual o sujeito afirma o poder de si, de modo que a posição de subjetividade do enunciado é construída em termos de força feminina “autoatribuída”. Dessa forma, os sujeitos que dizem [We can do it!/Nós podemos fazer isso!], nesta conjuntura histórica, enunciam a si mesmos como sujeitos que exercem poder sobre si, que têm possibilidade de controlar suas próprias ações e comportamentos fora de regulações patriarcais.

Como a própria imagem sugere, pelo gesto de flexão do braço, há produção de discursos sobre a força da mulher. Nos anos 1940, vemos a circulação de um discurso de força feminina, porém, força de trabalho. A mulher era enunciada como forte tendo em vista seu papel econômico: mão de obra. Dizer [we can do it!], portanto, significava “poder fazer” um trabalho industrial, no interior de uma economia capitalista, majoritariamente movida por homens, sujeitando-se à extração de força produtiva.

No acontecimento de sua volta, nos anos 1980, passa a circular um discurso de força feminina ligada à autonomia e à igualdade de gêneros. Ao enunciar [we can do it!], o sujeito da enunciação afirma “poder fazer” a militância feminista e, sobretudo, “poder ser” vista socialmente em pé de igualdade com os homens. Na instância do acontecimento, a emergência desses sentidos de força da mulher desloca a posição de subjetividade ocupada por elas outrora.

De posição de sujeição à economia norte-americana e ao marido, o sujeito passa a ocupar a posição de resistência através da enunciação de empoderamento [we can do]. Logo, há um processo de subjetivação (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Org.) Michel Foucault, uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-250.), pois o sujeito trabalha sobre sua própria forma no discurso, situando-se fora das regulações de outrora - processo que pode ser depreendido, na materialidade da língua, na afirmação de si em termos de “poder fazer” e “poder ser” forte e autônoma [we can do it].

Atentamos ainda para a transformação nos sentidos do complemento objeto direto da ação do sujeito mulheres - aquilo que elas podem fazer. Na opacidade da língua, o pronome indefinido [it] tensiona memória e atualidade (PÊCHEUX, 2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X.), dando a ver o acontecimento discursivo. No movimento de retorno, a espessura histórica do pronome [isso] possibilita a produção de sentidos singulares:

No entanto, a imagem não cessou de proliferar. Em outro momento histórico, nos anos 2010, vemos o retorno da imagem em lugares de enunciação distintos das conjunturas anteriores: as mídias digitais. Os movimentos feministas desta década passam a se organizar no ciberespaço e formam comunidades, reunindo sujeitos de lugares diferentes do mundo em torno de pautas e interesses em comum (LÉVY, 1999LÉVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.). Nas redes sociais - Facebook, Twitter, Blogger - as feministas produzem, consomem e compartilham conteúdos que abordam a condição da mulher.

Nas movências da história, a imagem We can do it! retorna de forma imprevisível. Em conjuntura marcada pela globalização, vemos o enunciado ser repetido e produzir significações singulares porque emerge conforme regras e determinações históricas outras. Vejamos as imagens 6, 7 e 8 que as feministas produzem e colocam em circulação na internet nos dias atuais.

Na imagem 7, vemos uma novidade: a mulher que assume posição central não é branca, e sim negra. Já na imagem 8, outra diferença: a mulher é muçulmana, pertencente a uma comunidade árabe. E na imagem 6, vemos a reunião de mulheres diferentes - tanto do ponto de vista racial e étnico quanto religioso - que se posicionam favoravelmente ao mesmo objetivo: lutar pela condição das mulheres.

Imagem 6
Pôster We can do it! com novas personagens femininas

Imagem 7
Mulher negra como sujeito do feminismo

Imagem 8
Mulher muçulmana como sujeito do feminismo

Em conjuntura histórica anterior, a imagem de “Rosie” produziu sentidos de força feminina para a mulher que pertencia a um público específico. Eram representadas como fortes as mulheres brancas, de classe média, casadas e heterossexuais. Hoje, contudo, a imagem é repetida e coloca em circulação representações diferentes da força da mulher. Podem também ocupar essa posição no discurso mulheres que pertencem a outros grupos sociais como: mulheres negras, orientais, árabes; mulheres de classe baixa, média ou alta; mulheres casadas, solteiras, mães; mulheres heterossexuais, homossexuais ou bissexuais; estudantes, profissionais liberais, artistas, etc.

Há uma mudança nas regras que definem qual mulher pode tomar posição no discurso e enunciar a si como forte. Com o acontecimento da volta da imagem, nesta década, surgem outros sujeitos pelos quais o feminismo também luta. Isso porque a imagem retorna em conjuntura histórica marcada pelas lutas em torno das identidades. De acordo com Stuart Hall (2003HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.), as identidades passam pelo viés da representação e são produzidas na tensão entre aquilo que os sujeitos apresentam de igualdade e diferença. No meio digital, os sujeitos estabelecem relações constantes de troca entre o que é idêntico e o que é diferente. A referência do que é ser uma mulher forte e empoderada é construída tanto local quanto globalmente.

A volta da imagem We can do it! propicia o cruzamento de práticas discursivas dos feminismos de épocas distintas (anos 1980 e anos 2010) e de formas de subjetividade heterogêneas. Nessas condições, os sentidos de força da mulher podem ser atribuídos a uma pluralidade de sujeitos de formações históricas e repertórios culturais particulares.

Nos enunciados verbais que acompanham as imagens 6 e 8 - [We all can do it!/Nós todas podemos fazer isso!] e [We can do it, too!/Nós podemos fazer isso também!] - vemos a materialização dessa mutação nas regras de quem pode e deve ser a mulher forte. Marcas como “too” (também) e “all” (todas) produzem sentidos de união entre mulheres, bem como de inclusão. A singularidade do retorno está na maneira como o enunciado [We can do it!] significa inclusão no coletivo: pelo viés da sororidade4 4 Sororidade é uma noção que surge no feminismo como efeito de movimentos antiautoriários. Consiste em postura que recusa toda organização hierárquica entre mulheres, de modo que “pertencer ao movimento [feminista] representa a realização de uma nova ideologia, a pesquisa de sentido e de valores comuns. A essa nova ideologia denominou-se ‘sororidade’: Sisterhood is Powerful (a sororidade é poderosa)” (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009, p. 146). e da diversidade identitária. Evidencia-se, assim, a relação entre práticas discursivas e acontecimentos da atualidade. Desse modo, temos produção e circulação de sentidos singulares:

Quadro 4
Transformações na posição de sujeito do feminismo

Nas condições históricas atuais, a repetição do enunciado We can do it! dá a ver um regime de enunciabilidade distinto, cujas regulações têm a ver com o surgimento de um feminismo chamado interseccional. O termo interseccional é definido no campo da Sociologia como “uma forma de interpretação para pensar como as intersecções de raça e classe, ou raça e gênero, ou sexualidade e classe, por exemplo, formam alguns grupos em contextos sociais específicos” (COLLINS, 1998COLLINS, P. Fighting words: Black women and the search for justice. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998., p. 208, tradução nossa).

Compreendemos, dessa forma, que o contexto da globalização e das mídias digitais favorece a transformação de regras de formação de discursos sobre a força da mulher. Ampliam-se, assim, os sujeitos que podem e devem se identificar com a imagem e ver-se representados por ela.

Aquilo que é dito e visto mantém relações com acontecimentos históricos: a popularização do feminismo na internet e a diversificação do movimento, que passa a ser pensado por pesquisadoras da área como feminismos - no plural. Na vertente interseccional, esse sujeito “nós”, que enuncia [We can do it!] é plural e heterogêneo. Afirma o poder de si, enuncia a própria capacidade de luta, criando possibilidades de resistência através da estratégia da intersecção: o cruzamento de diferenças em torno de objetivos semelhantes.

Portanto, enunciar a força da mulher, na década de 2010, não mantém os sentidos produzidos nos anos 1980. Na conjuntura digital, ocorre uma atualização dos discursos que instaura novas significações em torno do que é ser mulher forte. Na atualidade, dizer We can do it! tem a ver com empoderamento, identidade e inclusões na posição de sujeito do feminismo, o que perpassa discussões sobre raça, etnia, classe, religião, sexualidade.

Com isso, os discursos passam a situar mulheres diversas como podendo ser representadas pela imagem - e não só a mulher branca, heterossexual, classe média-alta, casada, ocidental. Além disso, colocam em cena outra luta do movimento feminista: o sujeito que pode e deve ter força de representatividade. O verbal e o visual materializam o acontecimento discursivo: diferentes sujeitos podem se identificar com esse “nós” que tem força e capacidade [can do it] de lutar pela condição da mulher.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, mobilizamos abordagem foucaultiana na análise discursiva do enunciado verbo-visual We can do it!. Ao longo das análises, assumimos postura da arqueologia para descrever as condições históricas de emergência dos enunciados (pôsteres, anúncios publicitários, postagens nas redes sociais) e as relações que mantêm entre si (diferenciação, exclusão, transformação). Nesse aspecto, as análises apresentaram diálogo com proposições de Michel Pêcheux (2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X.) acerca do acontecimento discursivo, pois as repetições do enunciado We can do it!, no encontro entre uma atualidade e uma memória, possibilitam a produção de sentidos singulares na e pela opacidade da língua [pronome it/isso].

Por meio das análises, destacamos o aspecto descontínuo da história através dos movimentos de retorno em distintas conjunturas. A descrição do arquivo de diferentes décadas (1940, 1980 e 2010) permitiu constatar transformações, bem como a irrupção de acontecimentos discursivos. Serviu para demonstrar que uma postura arqueológica de análise dos discursos parte das condições de possibilidade históricas para compreender como o sujeito - a mulher - é colocado em discurso. Conforme mostram as análises, a dispersão do enunciado We can do it! acompanhou acontecimentos históricos e teve como efeito transformações nos modos de significar a força da mulher de uma época para outra.

Como materialidade repetível, o enunciado coloca em tensão um domínio de memória e um domínio de atualidade. Há relações entre o que se diz e o que se vê da mulher com eventos históricos distintos: a Segunda Guerra Mundial; a liberação sexual; a eclosão do feminismo nos EUA e na Europa; a globalização; o uso das mídias digitais; a popularização do feminismo na internet, etc. Na relação com os acontecimentos, os enunciados se modificam e novos sujeitos históricos podem ocupar posição-sujeito [we] e enunciar a si como “capazes” e fortes.

Em 1940, os discursos sobre a força da mulher estavam ligados à capacidade de desempenhar tarefas “masculinas” nas fábricas de armamento. Em 1980, a força da mulher passou a significar a possibilidade de lutar por igualdade de direitos. Em 2010, o retorno da imagem We can do it! se dá em contexto digital e global, produzindo sentidos ligados ao empoderamento e às lutas em torno das identidades. Questões como gênero, sexualidade, religião, etnia, classe associam o sentido de força da mulher à identidade e à representação, por isso ocorre a produção da imagem com sujeitos pertencentes a grupos sociais tão diversos.

Na atualidade, as figuras centrais do pôster podem ser mulheres negras, brancas, mulçumanas, católicas, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, infames, célebres, estudantes, artistas, profissionais liberais, entre tantas outras. Apesar das diferenças entre os sujeitos da enunciação, no cartaz, há uma regularidade: o modo de enunciar euforicamente a “força da mulher” e a inclusão de sujeitos. Por isso, atualmente, é possível ver enunciados verbo-visuais que trazem modificações como no caso de [We all can do it!] e [We can do it too!]. São enunciados que materializam novos processos de subjetivação, cujos efeitos são sentidos de “empoderamento” e a pluralidade de sujeitos que se posicionam em lutas pela condição da mulher.

Dessa forma, diversas mulheres - independentemente de classe, raça, gênero, religião, profissão, nacionalidade, orientação sexual - têm possibilidade de afirmar-se como sujeito de força e capacidade. Os discursos produzidos pelo enunciado We can do it! dispersaram e emergem neste momento manifestando a possibilidade de um grupo heterogêneo de mulheres se identificar com algo em comum: o feminismo. Antes, o cartaz foi enunciado e visto segundo regulações e sujeições ao sistema patriarcal e capitalista. Já hoje, We can do it! é enunciado na fluidez global da web, conforme referências identitárias forjadas na afirmação das diferentes possibilidades de ser uma mulher forte.

REFERÊNCIAS

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  • FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 23. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
  • FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégia poder-saber. MOTTA, M. B. (Org.). Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 15. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2000.
  • FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Org.) Michel Foucault, uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-250.
  • FOUGEYROLLAS-SCHEWEBEL, D. Movimentos feministas. In: HIRATA, H.; LABORIE, F.; DOARÉ, H.; SENOTIER, D. (Org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
  • GREGOLIN, M. R. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, C. A.; SANTOS, J. B. C. (Org.). Anális do discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2002, p. 19-42.
  • HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.
  • LÉVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.
  • NICHOLSON, L. The second wave: a reader in feminist theory. London: Routledge, 1996.
  • PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006X.
  • 1
    As pesquisas anteriores em que Foucault mobiliza a metodologia arqueológica para analisar a formação e transformação de objetos de discurso são: Nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico (1963), História da Loucura (2003 [1972]) e As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966).
  • 2
    As expressões utilizadas nos cartazes podem ser traduzidas da seguinte maneira: “A garota que ele deixou para trás ainda está atrás dele”,Ela é uma ‘wow’!”, “Nós não podemos vencer sem elas” e “Meu marido quer que eu faça a minha parte”.
  • 3
    Tradução nossa de trecho da obra de Linda Nicholson (1996, p. 147): “In the early 1970s, second wave feminists began to focus more extensively than prevously on the differences between women and men. I describe this move as an intensivity of focus rather than a complete change of directions, because a focus on the differences between women an men was crucial element of the radical feminism of the late 1960s”.
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    Sororidade é uma noção que surge no feminismo como efeito de movimentos antiautoriários. Consiste em postura que recusa toda organização hierárquica entre mulheres, de modo que “pertencer ao movimento [feminista] representa a realização de uma nova ideologia, a pesquisa de sentido e de valores comuns. A essa nova ideologia denominou-se ‘sororidade’: Sisterhood is Powerful (a sororidade é poderosa)” (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009, p. 146).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2020
  • Aceito
    11 Nov 2020
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