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COMO É QUE A GENTE DIZ? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS TEXTUAL-INTERATIVAS NA NARRATIVA DE UMA PESSOA COM DOENÇA DE ALZHEIMER

HOW DO YOU SAY? AN ANALYSIS OF TEXTUAL-INTERACTIVE STRATEGIES IN THE NARRATIVE OF A PERSON WITH ALZHEIMER'S

¿CÓMO DECIMOS? ANÁLISIS DE ESTRATEGIAS TEXTUAL-INTERACTIVAS EN LA NARRATIVA DE UNA PERSONA CON ENFERMEDAD DE ALZHEIMER

Resumo

A Doença de Alzheimer (DA) é comumente reconhecida pelas perdas cognitivas ocasionadas que resultam em lapsos de memória, prejuízos nas tarefas diárias e dificuldade em interagir por meio da linguagem. Nesse domínio empírico, o presente trabalho analisa as estratégias textual-interativas mobilizadas por uma pessoa com DA para produzir, sustentar e manter a narrativa em uma interação cotidiana. A narrativa analisada é proveniente de um corpus de interações de uma participante acometida pela DA. A análise fundamenta-se em categorias oriundas do campo da análise da narrativa oral e da Linguística Textual. Mobiliza, primordialmente, as dimensões da narrativa de Ochs e Capps (2001) e a noção de referenciação de Mondada e Dubois (2003). A análise demonstra que as estratégias referenciais, a construção, a retomada e a negociação de objetos de discurso são elementos que constituem, do ponto de vista textual e interativo, a performance narrativa de uma pessoa que vive com Alzheimer.

Palavras-chave:
Doença de Alzheimer; Interação; Narrativa; Referenciação

Abstract

Alzheimer's disease (AD) is a pathology usually recognized by cognitive decline that result in memory lapses, impairments in daily tasks, and difficulty in interacting through language. In this empirical domain, the present study analyzes the textual-interactional strategies used in the oral narrative, demonstrating how a person with AD succeeds, despite language deficits, in producing, sustaining and maintaining the narrative in a daily conversation interaction. The narrative analyzed in this study comes from a corpus of interactions of a participant affected by AD. We base our analysis on categories from the field of oral narrative analysis and textual linguistics. We mobilized, primarily, the dimensions of the narrative by Ochs and Capps (2001) and the notion of referencing by Mondada and Dubois (2003). The analyzes demonstrates that referential strategies, construction, retaking and negotiation of discourse objects are elements that constitute, according to a textual and interactive point of view, the narrative performance of a person living with Alzheimer's.

Keywords:
Alzheimer’s disease; Interaction; Narrative; Reference

Resumen

La enfermedad de Alzheimer (EA) es comúnmente reconocida por las pérdidas cognitivas ocasionadas que resultan en fallas de memoria, prejuicios en tareas diarias y dificultad en interactuar por medio del lenguaje. En ese dominio empírico, el presente trabajo analiza las estrategias textual-interactivas movilizadas por una persona con EA para producir, sustentar y mantener la narrativa en una interacción cotidiana. La narrativa analizada pertenece a un corpus de interacciones de una participante acometida por la EA. El análisis se fundamenta en categorías del campo del análisis de la narrativa oral y de Lingüística Textual. Moviliza, primordialmente, las dimensiones de la narrativa de Ochs y Capps (2001), y la noción de referenciación de Mondada y Dubois (2003). El análisis demuestra que las estrategias referenciales, la construcción, la retomada y la negociación de objetos de discurso son elementos que constituyen, del punto de vista textual e interactivo, la performance narrativa de una persona que vive con Alzheimer.

Palabras clave:
Enfermedad de Alzheimer; Interacción; Narrativa; Referenciación

1 INTRODUÇÃO

A Doença de Alzheimer (doravante, DA) é uma patologia comumente reconhecida pelas perdas cognitivas ocasionadas que resultam em lapsos de memória, prejuízos nas tarefas diárias e dificuldade em interagir por meio da linguagem. As perdas deflagradas pela DA não afetam isoladamente as funções cognitivas, mas, sobretudo, a organização simbólica das práticas cotidianas. Segundo Barros et al. (2009BARROS, A. C. et al. Influência genética sobre a doença de Alzheimer de início tardio. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 36, n. 01, p. 16-24, 2009., p.17), a DA consiste em “uma patologia neurodegenerativa progressiva e irreversível, de aparecimento insidioso, que acarreta perda da memória e diversos distúrbios cognitivos”. Dentre esses distúrbios, os autores citam o declínio da memória, do raciocínio, da compreensão, da aprendizagem e da linguagem.

Os déficits na linguagem podem ser percebidos na atividade de nomeação, repetições, circunlóquios, uso expressivo de dêiticos e de estruturas sintáticas consideradas “simples”. Geralmente, a produção da linguagem não apresenta problemas no nível da articulação, sem percepção de alterações da linguagem no nível articulatório, ainda que as pausas e as hesitações sejam consideradas recorrentes (MORATO, 2012MORATO, E. Referenciação metadiscursiva no contexto das afasias e da Doença de Alzheimer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 1, p. 45-54, 2012.). Durante o avanço da doença, há o comprometimento do processamento semântico e sintático e a tendência a parafasias semânticas e lexicais1 1 Basicamente, parafasia consiste na substituição de uma palavra-alvo (aquela pretendida pelo indivíduo) por uma outra com sons ou sentidos semelhantes (HUFF et al., 1988HUFF, F. et al. Semantic impairment and anomia in Alzheimer’s disease. Brain and Language, v. 28, n. 2, p. 235-249, 1988.). No que diz respeito ao processamento sintático, ocorre o aumento da dificuldade de compreender orações simples e complexas. Observa-se também uma crescente tendência à produção de parafasias fonológicas, além de um maior comprometimento da escrita. O estágio mais avançado da DA é caracterizado pela dissolução quase completa da competência linguística e comunicativa, tanto em termos de produção quanto também de compreensão da linguagem (MORATO, 2012).

Os processos cognitivos, mnêmicos, linguísticos, práxicos e gnósicos são progressiva e sensivelmente afetados. Apesar de sua etiologia não ser completamente conhecida e de ser uma doença de causa multifatorial, a DA é caracterizada, do ponto de vista neurológico, pela hipersecreção de uma proteína chamada Beta-Amilóide por neurônios afetados. Essa proteína age como um fator biológico que desencadeia o surgimento de vacúolos de tamanhos maiores, que, ao se juntarem, causam a morte dos neurônios que estão ao seu redor (TEIXEIRA et al., 2015TEIXEIRA, J.B. et al. Doença de Alzheimer: estudo da mortalidade no Brasil 2000-2009. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 4, p. 1-12, abr. 2015.).

O impacto da DA não pode ser aferido somente em termos de comprometimento neurológico ou linguístico. É inegável que o declínio desencadeado pela patologia não pode ser restrito ao que acontece individualmente no cérebro de alguém que vive com a DA. As consequências da patologia afetam sensivelmente o entorno social, tendo impacto “nas formas de recepção social da doença (algo que inclui as práticas diagnósticas e a interação do doente com seus próximos), bem como de seu enfrentamento no plano psicossocial, médico-terapêutico e familiar” (MORATO, 2016MORATO, E. Das relações entre linguagem, cognição e interação - algumas implicações para o campo da saúde. Linguagem em (Dis)curso, v. 16, n. 3, p. 575-690, 2016., p. 584). Considerando que usar a linguagem requer o engajamento em uma ação conjunta, que exige a coordenação de ações individuais (CLARK, 1996CLARK, H. O. Using Language. New York: Cambridge University Press, 1996.), o contexto da DA se constitui como um domínio empírico interessante, por evidenciar as estratégias interacionais que emergem no quadro de dificuldades linguísticas e interacionais que são causados por essa patologia.

Este trabalho pretende analisar as estratégias referenciais utilizadas em uma narrativa produzida por uma pessoa que vive com Alzheimer. Nosso enfoque não será descrever o quadro de perdas cognitivas e linguísticas desencadeado pela patologia. Pelo contrário, pretendemos demonstrar o que uma pessoa com DA consegue, em termos de organização do texto oral, realizar durante uma narrativa situada em uma situação conversacional.

Para demonstrar os recursos linguísticos que marcam interacionalmente o narrador, os personagens e o relato de eventos no contexto da DA, fundamentamos nossa análise em categorias oriundas do campo da análise da narrativa oral e da Linguística Textual. Mobilizamos, primordialmente, no presente trabalho, as dimensões da narrativa de Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.) e a noção de referenciação de Mondada e Dubois (2003MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p.17-52.) para a análise das estratégias textual-interativas envolvidas no ato de contar histórias.

2 AS DIMENSÕES DA NARRATIVA

O ato de contar histórias é, certamente, uma das práticas discursivas em que nos engajamos com maior frequência em nosso cotidiano. É algo recorrente em nossas vidas, pois, ao contarmos histórias, não só relatamos os eventos ocorridos no passado, mas, sobretudo, construímos situações, cenários, personagens que projetam discursos sociais e identidades na interação. Narrar não consiste somente na recapitulação de eventos passados da experiência pessoal, conforme é preconizado no modelo de Labov e Waletzky (1967LABOV, W.; WALETZKY, J. Narrative Analysis: oral versions of personal experience. In: HELM, J. (Org.). Essays on the verbal and visual arts. Seatlle, WA: University of Washington Press, p.12-44, 1967.). O desenvolvimento e o interesse pelas narrativas possibilitaram o entendimento dessa realização discursiva a partir dos processos de construção de sentidos que ocorrem no contexto da interação face a face.

No campo de estudos da linguagem, analisar as narrativas significa investigar os recursos linguísticos e interacionais utilizados tanto na elaboração do enredo da história quanto no desempenho de papéis dos personagens/agentes que são construídos por quem narra e por quem ouve as histórias (De Fina; Georgakopolou, 2012). A mudança da concepção de narrativa promoveu a compreensão de que o ato de contar histórias é uma prática social situada histórica e culturalmente, resultante de um processo de construção da relação do narrador com os outros e com o mundo em que ele vive (OLIVEIRA; BASTOS, 2012OLIVEIRA, L. M.; BASTOS, L.C Aspectos da dinâmica da narração de histórias por pessoas com afasia. Calidoscópio, São Leopoldo, v.10, n. 2, p.194-210, 2012.). Portanto, o ato de narrar ultrapassa o formato determinado por arranjos sintáticos do enunciado e do relato de eventos passados (Labov; Waletzky, 1967LABOV, W.; WALETZKY, J. Narrative Analysis: oral versions of personal experience. In: HELM, J. (Org.). Essays on the verbal and visual arts. Seatlle, WA: University of Washington Press, p.12-44, 1967.), e constitui uma forma de usar a linguagem ou outro sistema simbólico para costurar eventos da vida em uma ordem lógica e temporal, para desmistificá-los e estabelecer coerência, por meio da experiência passada, presente ou ainda não realizada (OCHS; CAPPS, 2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.; Cruz; Bastos, 2015CRUZ, C. A. G.; BASTOS, L. C. Histórias de uma obesa: a teoria dos posicionamentos e a (re)construção discursiva das identidades. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 15, n. 3, p. 367-384, 2015.).

Considerando que as narrativas são construções contextualmente encaixadas, e que suas formas de desenvolvimento são formatadas pelo contexto interacional (NORRICK, 2007NORRICK, N. R. Narrative contexts. In: NORRICK, N. R. (Org.). Conversational narrative: storytelling in everyday talk. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2007. p. 105-134. [Links]), Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.) propõem o estudo da narrativa a partir das características da conversação cotidiana. Ao contrário dos estudos labovianos, que concebem a narrativa como um texto oral monológico gerado por um tópico previamente selecionado no contexto da entrevista sociolinguística, Ochs e Capps (2001) desenvolveram uma abordagem que tem como premissa fundamental o fato de que o discurso narrativo constitui um evento de fala contextualizado interativamente. As autoras concebem a narrativa a partir de dimensões que não são sempre manifestadas em uma sequência exata na interação, pois “cada dimensão narrativa estabelece uma série de possibilidades, que são realizadas em performances narrativas particulares2 2 Each narrative dimension establishes a range of possibilities, which are realized in particular narrative performances .” (OCHS; CAPPS, 2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001., p. 19).

As dimensões da narrativa são constituídas pela narração, historiabilidade, encaixe, linearidade e postura moral. Tais dimensões compreendem o ato de narrar como uma atividade interativa/discursiva que ocorre de modos diferentes numa escala de continuidade. A ideia de histoia na argumentação das autoras deve ser ressaltada em função do fato de que cada dimensão estabelece possibilidades analíticas que variam em nível de intensidade (do maior para o menor) de acordo com as diferentes formas com que os falantes estruturam os eventos narrados durante a conversação cotidiana. O quadro abaixo sintetiza o continuum das dimensões da narrativa:

Quadro 1
Dimensões da narrativa

A dimensão da narração corresponde ao tipo de envolvimento dos falantes durante a narrativa. Ao contar uma história, os falantes podem assumir diferentes níveis de participação ao narrar. Diversas ações podem ser desempenhadas durante uma narrativa. Relatar um evento, expor um ponto de vista, projetar uma identidade ou reforçar valores culturais exemplificam alguns tipos de ações que as narrativas podem desempenhar durante a conversação. Os papéis de narradores e ouvintes das histórias podem variar de acordo com o envolvimento dos interlocutores nas ações. Dentro da ideia de continuum das autoras, a narração pode ser realizada apenas por um narrador e sem a participação dos ouvintes ou por múltiplos conarradores ativos, ou seja, quando o papel de narrador é também desempenhado pelos ouvintes, que podem construir colaborativamente a narrativa por meio de complementos ou detalhamentos da história.

A historiabilidade consiste na “dimensão da narrativa que varia de um foco retórico sobre uma quebra de expectativa altamente reportável e suas notáveis consequências (alta historiabilidade) a relato de eventos relativamente ordinários (baixa historiabilidade).3 3 Tellability is a narrative dimension that varies from a rhetorical focus on a highly reportable breach of expectations and its eventful consequences (high tellability) to reporting relatively ordinary events (low tellability). ” (OCHS; CAPPS, 2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001., p. 76). Desse modo, a historialibidade está mais relacionada ao significado dos eventos relatados aos interlocutores no contexto da interação, ou seja, o motivo relevante que torna a narrativa adequada ou plausível, do que à natureza reportável dos eventos narrados. Os níveis de historiabilidade de uma narrativa variam de acordo com o significado que os eventos narrados têm para os interlocutores e com as habilidades retóricas do narrador para transformar um evento cotidiano em um fato historiável ou não (OLIVEIRA; BASTOS, 2015).

O encaixe demonstra a forma como a narrativa está incorporada ao discurso e à atividade social desempenhada. Uma narrativa destacável, conforme Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.), seria aquela que exige um maior número de turnos, o que não é prototípico da interação cotidiana, além de constituir um tópico que não diz respeito ao que estava sendo tratado. Já a narrativa encaixada não possui um formato pré-definido, pois está incorporada ao tópico em questão e o número de turnos são negociados entre os interactantes. Essa narrativa serve como um exemplo ou uma ilustração daquilo que está sendo abordado no discurso.

Já a linearidade diz respeito à forma como o narrador descreve os eventos narrados, podendo seguir uma ordem linear de eventos - na qual as ações dos personagens resultam em uma consequência futura - ou não linear. O formato linear de descrição pode conduzir a um relato coerente e progressivo, assim como uma ordem não linear pode tornar a narrativa imprevisível ou indeterminada. A linearidade das ações constitui uma estratégia do narrador para conferir espontaneidade e para atribuir sentido às ações narradas, possibilitando reestruturar perspectivas. Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.) demonstraram que as narrativas pessoais das crianças são, na maioria das vezes, exclusivamente lineares. A linearidade é verificável nas narrativas por meio da marcação temporal (verbos no presente ou passado), sequências temporais (como marcadores de tempo), na coerência do enredo e da trajetória linear (culturalmente mais aceita como adequada) e não linear.

Por fim, a postura moral revela os valores sociais vigentes no espaço social do falante. A postura moral traz à tona o que a sociedade considera a respeito das atitudes que devemos ter e que papéis sociais devem ser desempenhados. Essa dimensão se faz presente em histórias contadas por adultos e crianças, visto que a narrativa é um tipo de produção discursiva que serve para compartilhar valores sociais.

A partir desses traços, podemos observar como o sujeito negocia com o interlocutor a ação de narrar, intensifica a historiabilidade de seu relato, conduz a história de forma linear ou não linear, de acordo com seus propósitos ou possibilidades, e realiza avaliações a respeito dos fatos narrados. Compreendida a partir de seu caráter interativo, a narrativa apresenta traços linguísticos que se revelam na interação, como elementos da materialidade linguística da construção do texto oral. Em função disso, mobilizaremos a noção de referenciação como uma categoria teórico-analítica para demonstrar os processos produção de sentidos construídos conjuntamente em uma situação conversacional envolvendo uma pessoa com a Doença de Alzheimer.

3 A REFERENCIAÇÃO: ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO DOS REFERENTES NO DISCURSO

A relação entre língua e mundo constitui o objeto de investigação de vários quadros teóricos que buscam responder à seguinte questão: como usamos a linguagem para fazer referência à realidade do mundo? Muitas teorias respondem a essa pergunta estabelecendo uma relação de correspondência preexistente entre as palavras e as coisas (MONDADA; DUBOIS, 2003MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p.17-52.). Tal relação considera que a construção de referentes no discurso ocorre somente pela seleção de objetos definidos a priori do uso da linguagem (MIRA; CARNIN, 2017MIRA, C.; CARNIN, A. Histórias sobre o convívio com a Doença de Alzheimer: contribuições da noção de referenciação para a análise de narrativas no contexto de interações de um Grupo de Apoio. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 59, n. 1, p.157-174, 2017.).

A noção de referenciação rompe com esse pressuposto ao considerar que a língua não é um retrato da realidade, mas uma construção social e histórica onde a relação linguagem-mundo não é fixa ou dada a priori, mas construída pelos sujeitos “através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas” (MONDADA; DUBOIS, 2003MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p.17-52., p. 17). A referenciação designa um processo discursivo e intersubjetivo, no qual os sujeitos negociam versões do mundo, criando referentes entre as possibilidades que a língua oferece, pois:

a referência não se resolve na epistemologia nem na ontologia e sim na ação interativa. Trata-se de uma questão sociocognitiva em que o processo referencial é melhor caracterizado como interativo. A referência poderia ser tida como aquilo que, na atividade discursiva e no enquadre das relações interpessoais, é construído num comum acordo entre os atores sociais envolvidos numa dada tarefa comunicativa. (MARCUSCHI, 2001MARCUSCHI, L. A. Atos de referenciação na interação face a face. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 41, p. 37-54, 2001., p. 38)

Se a interação, conforme assevera Marchuschi (2001), constitui o locus da construção referencial, é no desenvolvimento da atividade discursiva que emergem os objetos a que o próprio discurso remete. Os referentes não são estanques, eles constituem objetos de discurso que não preexistem naturalmente à atividade cognitiva e interativa dos falantes, mas devem ser concebidos como produtos - fundamentalmente culturais - dessa atividade (APOTHÉLOZ; REICHLER-BÉGUELIN, 1995APOTHÉLOZ, D. Nominalisations, référents clandestins et anaphores atypiques. In: BERRENDONNER, A.; REICHLER-BEGUELIN, M.J. (Org.). Du sintagme nominal aux objects-de-discours. Neuchâtel: Université de Neuchâtel Institute de Linguistique, 1995, p. 143-173.). Os objetos de discurso são constituídos na e pela atividade interativa, sendo dinâmicos e passíveis de serem (re)configurados semântica e discursivamente (MIRA; CARNIN, 2017MIRA, C.; CARNIN, A. Histórias sobre o convívio com a Doença de Alzheimer: contribuições da noção de referenciação para a análise de narrativas no contexto de interações de um Grupo de Apoio. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 59, n. 1, p.157-174, 2017.). Os referentes são gerados no interior do discurso, sendo introduzidos, conduzidos, retomados, identificados no texto, modificando-se à medida que o discurso se desenvolve, por meio de estratégias específicas de referenciação nas ações coordenadas em que os falantes se engajam para usar a linguagem em suas diversas configurações discursivas (CLARK, 1996CLARK, H. O. Using Language. New York: Cambridge University Press, 1996.; JUBRAN, 2006JUBRAN, C. C. A. S. O tópico discursivo. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I.G.V.(Org.). Gramática do português culto falado no Brasil: a construção do texto falado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, v. 1, 2006.).

Mais do que ser uma forma de uso da linguagem ou de outro processo simbólico, as narrativas desmistificam e estabelecem a coerência entre o passado, o presente e os fatos ainda não realizados (OCHS; CAPPS, 2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.). Esse tipo de texto oral constitui uma das atividades humanas mais ubíquas das interações. Um olhar mais preciso ao papel dos elementos textuais pode revelar como a narrativa é construída na dinâmica interacional, mostrando como os referentes são inseridos, ativados e negociados na “tarefa de coconstrução (ou construção reflexiva), influenciando e sendo influenciados pelos elementos contextuais que marcam o evento” (FLANNERY, 2010FLANNERY, M. De “Grandes” a Pequenas Estórias: contribuições de uma nova perspectiva para a análise da narrativa. Revista Investigações, Recife, v. 23, n.2, p.117-142, 2010., p. 199).

4 ASPECTOS METODOLÓGICOS E CONTEXTUALIZAÇÃO DO DADO

Os dados apresentados neste trabalho são provenientes de interação entre um pesquisador e Joana4 4 Nome fictício. , uma senhora de 70 anos diagnosticada com a Doença de Alzheimer há cerca de 5 anos. Ciente do seu diagnóstico, ela tem o apoio de seu círculo familiar mais próximo e de duas cuidadoras para desempenhar a maioria de suas atividades cotidianas. Em termos de linguagem, Joana apresenta as seguintes características em sua produção discursiva: dificuldade de articulação fonológica no início de palavras e de acesso lexical, parafasias semânticas e lexicais e repetição de segmentos vocálicos. Além disso, sua mobilidade se encontra reduzida em função de problemas de visão desencadeados pela DA.

Em sua rotina, ela busca se envolver em diversos tipos de atividades, tais como exercícios físicos, conversas cotidianas, organização de livros, discos musicais, fotografias, recordações de viagens. Além dessas atividades, são frequentes as viagens e visitas à casa de familiares e amigos. De uma maneira geral, Joana se apresenta bem-humorada e disposta a conversar nas ocasiões dos encontros mensais com o pesquisador.

A geração de dados ocorreu por um período de cerca de 12 meses, em encontros mensais entre um pesquisador e Joana. Cada encontro tem a duração aproximada de 1 hora, e o intuito é estabelecer um contexto de conversas cotidianas, sem definição prévia de tópicos abordados ou de um roteiro de atividades pré-definidas. Geralmente, os encontros são iniciados a partir de comentários de sobre fatos do cotidiano, viagens, visitas aos familiares ou da sua antiga rotina de trabalho como professora universitária de língua inglesa. Os encontros foram gravados em meio audiovisual para que fosse garantida uma observação mais detalhada dos dados.

O tempo total de gravação que compõe o corpus do presente estudo é de cerca de 18 horas. O critério de escolha dos dados, para esta análise, foi a recorrência de narrativas durantes os encontros. Priorizamos esse tipo de realização discursiva por ser uma das ações mais frequentes desempenhadas por Joana durante o transcorrer das interações. No corpus dos dados de Joana não são raros os segmentos tópicos iniciados por narrativas introduzidas por ela.

O sistema de notação utilizado na transcrição dos dados tem como base as notações já utilizadas nos estudos do projeto NURC (Norma Urbana Culta) e marcações propostas no trabalho de Marcuschi (1998MARCUSCHI, L. A. Análise da Conversação. São Paulo: Ática, 1998.) e adaptado por Mira (2012MIRA, C. C. C. R. Afasia e interação: uma análise da dinâmica de turnos e da gestão do tópico nas práticas conversacionais de sujeitos afásicos e não-afásicos. 2012. 166 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012., 2016). A identidade e o anonimato da participante foram preservados durante todo o processo de coleta e transcrição de dados, conforme o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa teve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, projeto nº 15/191. Nas transcrições, a participante é identificada pelo nome fictício Joana.

O enfoque textual-interativo é utilizado em nossa análise para evidenciar as dimensões da narrativa de Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.). A escolha dessa perspectiva para abordar as estratégias referenciais envolvidas na narrativa é justificada em função da colaboração entre os interlocutores na interação oral, o partilhar de conhecimento entre ambos e o esforço e a disposição para produzir inferências e negociar os sentidos (KOCH; PENNA, 2006KOCH, I. G. V.; PENNA, M.A.O. Construção e reconstrução de objetos-de-discurso: manutenção tópica e progressão textual. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 48, n.1, p. 23-31, 2006.).

5 ANÁLISE

Os excertos analisados abaixo são de uma narrativa de Joana a respeito das visitas de seu filho acompanhado de sua nora e de suas netas. Poucas semanas antes dessa visita, Joana viajou para outra cidade para participar do velório de Ivan, seu companheiro que havia falecido naquela época. É justamente a partir do relato da visita do filho que o tópico sobre a morte de Ivan emerge na interação e se configura como uma narrativa.

Excerto 1:
como é que a gente diz?

No excerto 1, Joana delimita o relevo informacional do cenário inicial de sua narrativa, cujo tópico é a visita de seu filho, nora e netas. O relevo informacional tem a função de delimitar as informações que são consideradas essenciais ou secundárias no desenvolvimento do tópico discursivo (TRAVAGLIA, 2006TRAVAGLIA, L. C. O relevo no processamento da informação. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. (Org.). Gramática do português culto falado no Brasil. v. 1. Campinas: UNICAMP, 2006. ). Conforme pode ser observado no segmento 2-3, a organização das ações decorrentes da visita dos familiares acontece em torno do almoço. A importância desse evento para a narrativa é salientada pelo uso do diálogo construído (TANNEN, 2007TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue and imagery in conversational discourse. 2nd ed. New York, Cambridge University Press, 2007.). Ao realizar o reporte de fala na narrativa, Joana não reproduz precisamente a voz de outras pessoas no relato, mas reconstrói o diálogo dela de acordo com o contexto interacional da narrativa.

As falas reportadas no segmento 4-8 ilustram pontos importantes do relevo informacional, e, consequentemente, do tópico discursivo. Os preparativos para o almoço em família são evidenciados, como pode ser observado no diálogo construído entre Joana e Elisa, sua cuidadora, nas linhas 5 e 6. Na sequência, após a chegada dos familiares, as falas reportam a escolha feita pelo filho e pela nora a respeito do almoço, a decisão de irem ao restaurante. Na construção do diálogo, Joana utiliza duas formas diferentes para realizar a inserção dessas falas. Os diálogos são construídos, segundo Tannen (2007TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue and imagery in conversational discourse. 2nd ed. New York, Cambridge University Press, 2007.), no formato do indireto para o direto. No primeiro excerto, o uso do verbo dizer marca a passagem do discurso direto para o indireto tanto no reporte da fala de Joana com Elisa, na linha 6, quanto na reprodução da fala do filho e da nora nas linhas 7 e 9.

Além de os diálogos construídos mostrarem o relevo informacional e a centração do tópico discursivo (JUBRAN, 2006JUBRAN, C. C. A. S. O tópico discursivo. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I.G.V.(Org.). Gramática do português culto falado no Brasil: a construção do texto falado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, v. 1, 2006.), o uso desse recurso contribui para a delimitação da historiabilidade (tellability) da narrativa. Do ponto de vista interacional e retórico, é possível considerar que o almoço é o evento relevante a ser narrado no contexto interacional, pois outras ações derivadas desse momento ocorrem na sequência da narrativa. Isso fornece, no âmbito desse excerto, as informações básicas sobre espaço, personagens e cenário da história, a orientação da narrativa nos termos do modelo concebido por Labov e Waletzky (1967LABOV, W.; WALETZKY, J. Narrative Analysis: oral versions of personal experience. In: HELM, J. (Org.). Essays on the verbal and visual arts. Seatlle, WA: University of Washington Press, p.12-44, 1967.).

Em uma perspectiva referencial, a historiabilidade é também construída conjuntamente por meio de uma anáfora indireta que retoma e predica o referente na narrativa. A pergunta como é que a gente diz? especifica o referente a partir de uma relação de antonímia, que no âmbito da construção referencial é realizada pela oposição entre as formas de funcionamento de restaurantes à la carte e buffet. Além disso, esse enunciado mostra o monitoramento de Joana em relação a sua própria fala, um movimento metadiscursivo que é recorrente nos dados do corpus da pesquisa. O monitoramento metadiscursivo de Joana se manifesta em turnos que marcam a atenção à forma dos enunciados no desenvolvimento da história e na compreensão de sua fala. Essas ações reflexivas estão relacionadas a um reconhecimento das demandas interacionais das situações de linguagem e das regularidades linguístico-pragmáticas envolvidas no ato de contar histórias.

Ciente de seu diagnóstico, Joana lança mão de estratégias para se manter no turno e dar continuidade à descrição do cenário da história, apesar da dificuldade de acesso lexical, que é contornada ao longo da interação. A pergunta de Joana nesse segmento funciona como uma estratégia que define o referente diante de uma dificuldade linguística oriunda da perda de memória episódica e da anomia deflagradas pelo desenvolvimento da Doença de Alzheimer.

A categorização referencial é estabelecida colaborativamente no plano narrativo. Esse recurso funciona como uma voz indireta (HYDÉN, 2014HYDÉN, L.C. How to do things with others: Joint Activities Involving persons with Alzheimer’s Disease. In: HYDÉN, L.C.; LINDEMANN, H.; BROCKMEIER, J. (Org.). Beyond Loss. Dementia, Identity, Personhood. Oxford: Oxford University Press, n. 25, p. 137-154, 2014.) que elabora o referente que serve como cenário da história. O referente buffet, a predicação do cenário que constitui a historiabilidade da narrativa (OCHS; CAPPS, 2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.), é inserido a partir de uma estratégia que ocorre na dependência interpretativa do contexto da interação, que está ancorada em frames (enquadres), cenários ou esquemas organizados em nosso conhecimento de mundo (MARCUSCHI, 2005MARCUSCHI, L. A. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In: KOCH, I. G. V.; MORATO, E. M.; BENTES, A. C. (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 53-101.). No excerto 1, a construção conjunta do referente que serve de cenário da história constitui uma estratégia de centração tópica (JUBRAN, 2006JUBRAN, C. C. A. S. O tópico discursivo. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I.G.V.(Org.). Gramática do português culto falado no Brasil: a construção do texto falado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, v. 1, 2006.), que atua na progressão da narrativa, conforme pode ser observado no segundo excerto dessa interação.

Excerto 2:
A catarse

O segundo excerto da narrativa de Joana é marcado pela inserção de um tópico que, no âmbito da interação, se configura pelo relato dos acontecimentos posteriores ao almoço em família. O marcador discursivo então, presente no enunciado da linha 15, estabelece o esvaziamento paulatino do tópico do excerto 1 e o surgimento gradual de um novo tópico que realiza o desdobramento da história. O segmento 15-20 ilustra o fechamento das ações narradas no cenário anterior e introduz uma narrativa encaixada. Segundo Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.), as narrativas pessoais variam de acordo com o nível de integração à atividade discursiva em que os interactantes estão inseridos na interação. O encaixe (embeddedness), na concepção das autoras, consiste no encadeamento temático e retórico dos elementos da atividade discursiva que são negociados tanto no âmbito textual da narrativa quanto na ação desempenhada pelos falantes na interação.

Nos excertos analisados neste trabalho, os traços textual-interativos do encaixamento podem ser observados nas relações de interdependência dos tópicos e nas estratégias referenciais utilizadas por Joana na narrativa. O segundo excerto traz uma narrativa que está encaixada, na sequência interativa, à história do primeiro excerto. Considerando as dimensões da narrativa propostas por Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.), o encaixe acontece no momento em que Joana narra a brincadeira de sua neta mais velha, Paula, que se desdobra na encenação da cerimônia de casamento fictícia da avó com Ivan, que era o companheiro dela e havia falecido recentemente. O segmento 21-38 demonstra o encaixe da narrativa a partir do cenário e dos personagens da história anterior.

O uso do diálogo construído, no segmento 20-24, marca textualmente o encaixe entre as duas narrativas. De acordo com a classificação das formas de reporte de fala de Tannen (2007TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue and imagery in conversational discourse. 2nd ed. New York, Cambridge University Press, 2007.), observamos que Joana, no enunciado da linha 23, realiza o diálogo construído do indireto para o direto. Tal recurso interacional insere a orientação da nova narrativa, que é a cena entre Joana e sua neta que desencadeia uma segunda história. Nessa narrativa encaixada, a brincadeira de Paula recebe uma categorização por meio de um rótulo retrospectivo. A representação da cerimônia de casamento entre Joana e Ivan é referencialmente construída a partir do rótulo a catarse.

A rotulação consiste na utilização de expressões nominais que rotulam uma parte do cotexto e criam um novo referente textual. Assim, essa estratégia promove a recategorização por meio de predicações que exercem uma dupla função: a retomada anafórica e o aporte de novas informações, promovendo a reinterpretação daquilo que já foi dito e também a progressão da cadeia referencial do tópico (JUBRAN, 2006JUBRAN, C. C. A. S. O tópico discursivo. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I.G.V.(Org.). Gramática do português culto falado no Brasil: a construção do texto falado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, v. 1, 2006.; Marcuschi; Koch, 2006MARCUSCHI, L. A.; KOCH, I. G. V. Estratégias de referenciação e progressão referencial na língua falada. In: Gramática do Português Falado. Vol. VIII: Novos Estudos Descritivos. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. p. 381-399.). Os sintagmas nominais, que exercem a função referencial de rótulo, são relevantes na medida em que desempenham funções textuais, “isto é, ao criarem um novo objeto de discurso, todos esses rótulos não só propiciam a progressão textual, como em parte a afetam” (KOCH, 2005KOCH, I. G. V. Referenciação e orientação argumentativa. In: BENTES, A. C.; KOCH, I. G.V.; MORATO, E. M. (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Cortez, 2005. p. 33-52., p. 86).

Na linha 25, é possível observar a hesitação na produção fonológica do item lexical catarse, que constitui o rótulo referencial. De acordo com Marcuschi (2006MARCUSCHI, L. A.; KOCH, I. G. V. Estratégias de referenciação e progressão referencial na língua falada. In: Gramática do Português Falado. Vol. VIII: Novos Estudos Descritivos. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. p. 381-399.), a hesitação é uma marca interacional e comunicativa que se caracteriza como “a manifestação das atividades discursivas na superfície linguística do texto falado” (p. 49). No terceiro excerto, ocorre o desfecho da narrativa encaixada.

Excerto 3:
Está certo o que eu disse?

Durante o desfecho da narrativa encaixada, Joana monitora a construção da história. Isso pode ser observado novamente pela ocorrência de enunciados de caráter metadiscursivo, conforme pode ser observado nas linhas 39 e 40. Nesse segmento, a percepção da pronúncia da forma flexionada do verbo simular (similaram) revela os “procedimentos relacionados à gestão da interação, com alvo na eficácia comunicativa, pela checagem da boa formulação e recepção informacional” (JUBRAN, 2003JUBRAN, C. C. A. S. O discurso como objeto-de-discurso em expressões nominais anafóricas. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 44, p. 93-103, 2003., p. 294). Na linha 40, o pedido de confirmação da pronúncia de simularam demonstra um movimento reflexivo acerca do desenvolvimento do encaixe narrativo, a encenação do casamento feita por Paula. Além disso, o questionamento evidencia os processos de produção e compreensão do texto oral a partir do movimento reflexivo sobre seu enunciado. A dificuldade de articulação fonológica do verbo simular desencadeia mais um movimento metadiscursivo, conforme mostram as linhas 40 e 41. O excerto é marcado pela atenção de Joana ao desenvolvimento de seus enunciados para dar continuidade à história. As estratégias metadiscursivas se configuram, no âmbito dos dados apresentados neste trabalho, como uma característica importante da produção discursiva de Joana na percepção e no reparo de seus enunciados, que são comprometidos pelo declínio cognitivo-linguístico desencadeado pela DA.

Na linha 45, o referente homenagem constitui uma nova recategorização para a narrativa encaixada. Esse objeto discursivo atua no fluxo interacional como um rótulo retrospectivo, que ao mesmo tempo encapsula as informações da narrativa encaixada e promove o fechamento da história, atribuindo um sentido às ações desempenhadas pelas netas. O fechamento e a recategorização desempenhados pelo rótulo homenagem atuam como um marcador do esgotamento do tópico discursivo, que abrangeu uma narrativa encaixada dentro do relato da visita do filho.

Ao examinarmos os três excertos desta interação de Joana, notamos que a historiabilidade da primeira narrativa está relacionada ao desfecho da história encaixada. Do ponto de vista das dimensões da narrativa de Ochs e Capps (2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.), é possível constatar que Joana estabelece e mantém o fluxo da história de acordo com as demandas interacionais, posicionando-se como uma narradora ativa que percebe as reações do interlocutor nas situações de uso da linguagem. Já, em uma perspectiva textual-interativa, as estratégias referenciais de que a narradora lança mão para construir a narrativa demonstram como o sentido é constituído e negociado no contexto das dificuldades de acesso lexical ou de articulação fonológica ocasionadas pela DA.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossa análise, procuramos evidenciar os elementos da constituição do texto oral a partir da noção de referenciação (MONDADA; DUBOIS, 2003MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p.17-52.) e das dimensões da narrativa (OCHS; CAPPS, 2001OCHS, E; CAPPS, L. Living Narrative. Creating lives in everyday storytelling. Cambridge. Harvard University Press, 2001.). Para alcançar tal objetivo, demonstramos como as estratégias referenciais, a construção, a retomada e a negociação de objetos de discurso são elementos que constituem, do ponto de vista textual e interativo, os elementos da narrativa. Ao integrarmos a noção de referenciação a uma abordagem eminentemente interacional da narrativa oral, buscamos desenvolver uma perspectiva analítica que abarque a materialidade linguística envolvida na performance narrativa e nas diferentes formas que os interlocutores moldam o ato de contar histórias. Nesse sentido, a noção de referenciação pode contribuir de uma maneira produtiva para os estudos da narrativa oral no campo de estudos da linguagem.

Os trabalhos desenvolvidos pela Linguística Textual e pela Análise da Conversação de orientação textual-interativa no Brasil oferecem um arcabouço teórico-metodológico profícuo para a análise de narrativas orais. Essa possibilidade de diálogo interdisciplinar abre oportunidades para as investigações dos procedimentos discursivos e de seus efeitos interacionais na prática social do ato de narrar. A narrativa analisada neste trabalho pretende ser uma forma inicial de demonstração empírica para aproximação desses campos em um contexto bastante peculiar que é a DA.

Ao analisarmos as estratégias referenciais no dado, podemos observar que linguagem e cognição, apesar de estarem comprometidas pela DA, estão intrinsecamente ligadas em uma narrativa produzida em uma situação conversacional. A construção referencial empreendida por Joana demonstra os mecanismos textuais e interacionais utilizados para inserir, sustentar e manter uma narrativa. Além disso, a performance narrativa de Joana reflete o papel ativo que as pessoas com DA podem desempenhar ao se instaurarem como narradoras na interação. Os dados analisados podem contribuir para a desconstrução do estigma social que envolve as condições neurodegenerativas, pois revelam que a negociação dos objetos de discurso realizada por Joana se configura de forma bastante similar às possibilidades de construção textual-interativa de narrativas produzidas fora do contexto da DA.

Nesse sentido, defendemos que as estratégias colaborativas e compensatórias das pessoas que vivem com DA são uma mostra dos desafios enfrentados para se manterem como uma voz ativa nas interações em que contam a própria história ou (re)constroem eventos e fatos do cotidiano (HYDÉN, 2017HYDÉN, L. C. Storytelling in dementia: collaboration and commun ground. In: HYDÉN, L. C.; ANTELIUS, E (Org.). Living with demencia. London: Palgrave, p. 116-134, 2017.). Contar histórias sobre eventos passados é uma atividade conjunta em que os interlocutores se envolvem em uma a ação que acontece necessariamente em coordenação com os outros sujeitos (CLARK, 1996CLARK, H. O. Using Language. New York: Cambridge University Press, 1996.; HYDÉN, 2017).

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao CNPq pelo auxílio-pesquisa obtido por meio do Edital MCTI/CNPq Universal nº 01/2016 (Processo n.º 400594/2016-1).

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Basicamente, parafasia consiste na substituição de uma palavra-alvo (aquela pretendida pelo indivíduo) por uma outra com sons ou sentidos semelhantes
  • 2
    Each narrative dimension establishes a range of possibilities, which are realized in particular narrative performances
  • 3
    Tellability is a narrative dimension that varies from a rhetorical focus on a highly reportable breach of expectations and its eventful consequences (high tellability) to reporting relatively ordinary events (low tellability).
  • 4
    Nome fictício.

ANEXO: Convenções de Transcrição

SINAIS OCORRÊNCIAS (SI) Incompreensão de palavras ou segmentos Maiúscula Entonação enfática : Prolongamento de vogal e consoante (podendo aumentar de acordo com a duração) - Silabação ? Interrogação ... Qualquer pausa Comentários do transcritor e designações gestuais ((minúscula)) [ apontando o local onde ocorre a sobreposição] Sobreposição

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2018
  • Aceito
    19 Ago 2019
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