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PAULO PRADO: DESORDEM, DESMESURA E DESCONTROLE NA FORMAÇÃO DO BRASIL

PAULO PRADO: UNREST, EXCESS AND UNRULINESS IN THE FORMATION OF BRAZIL

Resumo

Este artigo propõe uma análise de Retrato do Brasil e Paulítica , de Paulo Prado, tomando como ponto de partida o diagnóstico da formação histórica da sociedade brasileira, marcada pela tríade da desordem, da desmesura e do descontrole, e pelas dificuldades que representa para a constituição de uma ordem social moderna no país. Sugere-se que, nessa interpretação do Brasil, os temas da melancolia e do ethos romântico constituem-se em peças-chave, capazes de organizar a narrativa a partir dos momentos históricos mais remotos, desde o descobrimento até os anos de 1920, época em que esses ensaios foram escritos. Dessa forma, trata-se, segundo a perspectiva de Paulo Prado, do sentido e da utilidade dos estudos históricos para a reflexão sobre uma dada modernidade.

Palavras-chave:
Paulo Prado; Melancolia; Individualismo

Abstract

This article analyzes two of Caio Prado’s essays, Retrato do Brasil and Paulítica, beginning by diagnosing the historical formation of Brazilian society, marked by the triad ‘unrest, excess and unruliness,’ and the difficulties it poses for establishing a modern social order in the country. Within such an interpretation of Brazil, the themes of melancholy and the romantic ethos are key pieces, capable of organizing the narrative from the most remote historical moments, from the invasion to the 1920s, when these essays were written. Hence, according to Paulo Prado, it is about the meaning and usefulness of historical studies for reflecting on a given modernity.

Keywords:
Paulo Prado; Melancholy; Individualism

Evaldo Cabral de Melo considerou os ensaios de interpretação do Brasil, de modo geral, como “o vezo entre o mórbido e narcísico de ajustar contas com o passado nacional” (Melo apudFreitas, 2012FREITAS, Renan Springer. 2012. Mórbido exercício de ajustar contas com o passado. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, 11 ago. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3HjEmzf . Acesso em: 23 fev. 2022.
https://bit.ly/3HjEmzf...
); Springer de Freitas, por sua vez, os tinha como “uma moda peculiar aos países europeus que, no século XIX, padeciam (em razão de sua condição periférica) de uma ‘angústia de identidade’” (Freitas, 2012FREITAS, Renan Springer. 2012. Mórbido exercício de ajustar contas com o passado. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, 11 ago. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3HjEmzf . Acesso em: 23 fev. 2022.
https://bit.ly/3HjEmzf...
). Nesses termos, que vão além das questões sobre a identidade nacional, Retrato do Brasil e Paulística1 1 Publicados, respectivamente, em 1928 e 1932, ambos os livros foram reunidos no volume 152 da Coleção Documentos Brasileiros sob o título Província & nação, em 1972. Conforme noticia Geraldo Ferraz no prefácio “Paulo Prado e duas reedições”, esse sonho de José Olympio só teria sido realizado por Afonso Arinos de Melo Franco, diretor da coleção na época. Arinos também acreditava na “dupla aspiração de Paulo Prado”, ou seja, sua preocupação regional e nacional, “donde, o localismo de Paulística (a província) e a projeção nacional do Retrato (a nação)” (FERRAZ, 1972, P.IX). Embora reconheça a importância da comparação, os livros serão considerados aqui em função do tema proposto e, neste sentido, ao invés dos contrastes, buscou-se sobretudo as afinidades entre eles, ao mesmo tempo em que se afirma a preponderância do nacional sobre o local no pensamento de Prado. , de Paulo Prado, parecem permitir a ampliação do debate, de inspiração nietzscheana, acerca da utilidade da história para a vida, cujas premissas estão enunciadas em Paulística: “Cada povo que pretender ser mais do que uma simples aglomeração humana, deve possuir o seu patrimônio histórico. […] É a explicação e desculpa das preocupações do passado que a muitos parecerá puro luxo intelectual, ou mero narcisismo patrioteiro” (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 3).

A fim de lidar com as várias questões que o debate levanta, este texto segue dividido em três partes. Na primeira, é discutido o significado da noção de natureza humana, implícito na argumentação de Retrato do Brasil, no que diz respeito à constituição de uma ordem social moderna no país. Na segunda parte, são examinadas as implicações do individualismo anárquico brasileiro para a construção de uma ideia de identidade nacional caracterizada pela tristeza e a sua aproximação com o tema da melancolia e da acídia. Por fim, caberá discutir o significado das metáforas da doença para representar os efeitos da natureza e da ordem social caótica, do sujeito melancólico e do ethos romântico.

Nesse último sentido, o artigo propõe uma análise das articulações conceituais - das metáforas morais e biológicas da doença às características da nacionalidade brasileira - em Retrato do Brasil que podem até mesmo trazer sugestões para a interpretação das representações sociais do contexto recente da pandemia que assombra o mundo nos dias que correm, particularmente o Brasil.

Desordem e natureza

“Como é que, 174 anos após a independência, os brasileiros ainda não conseguem encontrar razões para seu orgulho patriótico que tenham a ver com conquistas nacionais e não com fatores sobre os quais não têm controle?”: essa é a pergunta que se faz José Murilo de Carvalho, ao discutir, em 1998, os resultados de pesquisas recentes que demonstravam então a persistência dos motivos edênicos no imaginário popular (Carvalho, 1998CARVALHO. José Murilo de. 1998. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista Brasileira De Ciências Sociais, v. 13, n. 38, pp. 63-79. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300004.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 7).

A partir de Rocha Pita, Afonso Celso e Gonçalves Dias, não é essa persistência, nem mesmo o ufanismo patriótico que são problematizados por Carvalho, mas o fato de ser determinante para a “representação de si” dos brasileiros a ausência de elementos que revelem, explícita e positivamente, a crença na ação humana e em sua capacidade de moldar a realidade na qual vivem.

Parece-me razoável concluir que tal autoimagem contribui para a existência e a persistência do motivo edênico. Quem não se vê como um ser civil e cívico não se pode ver como agente, individual ou coletivo, de mudanças sociais e políticas de que se possa orgulhar e deve buscar alhures razões para a construção de uma identidade nacional. (Carvalho, 1998CARVALHO. José Murilo de. 1998. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista Brasileira De Ciências Sociais, v. 13, n. 38, pp. 63-79. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300004.
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, p. 14).

Essas constatações de 1998 tornaram-se hoje ainda mais pertinentes, sobretudo quando o mundo é desafiado por processos em que a natureza deixa de ser uma paisagem aprazível para mostrar por seus efeitos a sua outra face, terrível, ameaçadora e potencialmente mortífera; quando o cansaço, a tristeza e a melancolia parecem desafiar a própria sociabilidade. Afinal, a conclusão de José Murilo de Carvalho já fazia parte das preocupações de Prado em Paulística: “Já se disse que uma nação é um plebiscito continuado dia a dia. Sem o amor às coisas públicas, os agrupamentos gregários de milhões de cabeças não possuem a vontade de convivência e coesão, que são caracteres fundamentais do Estado nacional” (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 17).

Esse “desamor às coisas públicas” também é afirmado em Retrato do Brasil e resulta, como veremos, de processos inexoráveis que parecem comandar a vida nacional desde as suas origens. José Murilo de Carvalho, com algum exagero admitido, cita Paulo Prado como exemplo de uma linha de interpretação do Brasil em que predomina, por oposição ao otimismo edênico, a “razão satânica”. Essa sua imagem negativa do brasileiro, pode, de algum modo, ter contribuído para firmar uma autoimagem, segundo a qual os motivos para o atraso da sociedade estariam em seu próprio caráter, sem os atenuantes do recurso à natureza.

O enredo da narrativa sobre a formação do brasileiro em Retrato do Brasil2 2 Tal como Ricardo Benzaquen de Araújo (2019b) trata o tema das relações entre narrativa histórica, tempo e enredo, presentes na concepção moderna de história, em “Narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu”, a narrativa de Retrato do Brasil também é comandada, como veremos adiante, por um enredo que molda, padroniza e disciplina o real, no sentido de produzir uma coerência entre seu ponto de partida e o de chegada. é sobejamente conhecido e reproduzido na literatura especializada, podendo, portanto, ser resumido em rápidas pinceladas3 3 Trata-se do próprio método do autor: “Este Retrato foi feito como um quadro impressionista. Dissolveram-se nas cores e no impreciso das tonalidades as linhas nítidas do desenho […]. Desaparecem quase por completo as datas. Restam somente os aspectos, as emoções, a representação mental dos acontecimentos, resultantes estes mais da dedução especulativa do que da sequência concatenada dos fatos. […] Considerar a história não como uma ressurreição romântica, nem como ciência natural, à alemã, mas como conjunto de meras impressões, procurando no fundo misterioso das forças conscientes ou instintivas as influências que dominaram, no correr dos tempos, os indivíduos e a coletividade.” (Prado, 2012, p. 127). Cabe apenas enfatizar que, nessa concepção de história, a noção de enredo ganha ainda mais relevância. : na primeira parte do argumento, o aventureiro português, deixado por sua própria conta e tendo no clima e nos nativos da terra fortes aliados para a sua adaptação, confirma-se, em pouco tempo de permanência nos trópicos, como protótipo de um individualismo anárquico, comandado apenas pelas paixões egoístas da luxúria e da cobiça. A segunda parte da tese, trataria das consequências desse cultivo das paixões, a tristeza e o romantismo.

Paulo Prado elabora sua explicação a partir das teorias do meio e da raça, do final do século XIX, dentre as quais a antropogeografia de Ratzel e a biologia evolucionária de Moritz Wagner. Nesse sentido, o papel do mundo natural (geografia e clima) é o de coadjuvante na argumentação, pois, contribui - ainda que de forma ambivalente, ora acolhendo ora hostilizando - para o processo de adaptação do português, que primeiro se aventura heroicamente e depois coloniza.

Vemos então que Prado começa descrevendo com jogos de palavras a chegada do europeu à zona tropical, seu encontro com a “exuberância de natureza tão nuançada de força e graça”; segue anotando que “o clima constantemente úmido e quente desenvolve uma força e violência de vegetação incomparável”, nas quais

os sentidos imperfeitos do homem mal podem apanhar e fixar a desordem de galhos, folhagens, frutos e flores que o envolve e submerge […]. É o mesmo emaranhado hostil de lianas, trepadeiras e orquídeas, mas na submata as urticáceas, espinhos, samambaias tolhem ainda mais o andar do homem, que só vence a vegetação a golpes de facão. (Prado, 2012, pp. 42-43)

Ou então, em sentido inverso, cita a surpresa dos frades capuchinhos que em começos do século XVII descobriam no Maranhão “uma natureza sorridente e acolhedora”. (Prado, 2012, p. 46). Prado também tem aguda noção do quão histórica é a relação dos homens com a natureza:

Da beleza das paisagens não cuidavam. Não era, nem do tempo nem da raça, o amor à natureza. […]. Além de Vespucci - muito da sua pátria e da sua época - raros são, nesse duro século XVI, os que como Tomé de Souza e Fernão Cardim sentiram o encanto da Guanabara. (Prado, 2012: p. 45).

Pelo visto, a natureza ainda não era plenamente paisagem e era vivida em sua imediatez: “Mas todos sofriam a sedução dos trópicos, vivendo intensamente uma vida animal e bebendo com delícia um ar como que até então irrespirado” (Prado, 2012: p. 45).

Características inatas também configuraram os elementos étnicos presentes no processo de formação.

A mansidão passiva do indígena, o individualismo do conquistador, a sedução de um clima acolhedor e favorável aos primeiros contatos, quando ainda não se revelara a hostilidade sorrateira da natureza - favoreceram a mescla imediata das raças e a adaptação dos costumes à nova ambiência. Quase todo o Brasil futuro se achava em embrião nesses anos rudes: só lhes faltou e não tardou - a contribuição do africano4 4 É importante ressaltar que Paulo Prado distingue, como aspectos, respectivamente positivos e negativos, “a presença do negro, entre nós, […]: como fator étnico, intervindo pelo cruzamento desde os primeiros tempos da Colônia - e como escravo, elemento preponderante na organização social e mental do Brasil.” (Prado, 2012, p. 129). para se fixarem as características do tipo étnico que os séculos iam formar. É o interesse excepcional desse alvorecer. É o que não torna “inatual” o seu estudo, como diria Nietzsche, na turbada fase de hoje de nossa evolução histórica e social. (Prado, 2012: p. 312).

Fazendo coro com o diagnóstico de Capistrano de Abreu, em sua tese de concurso em 1883 à cadeira de história do Brasil do Colégio Pedro II, o artigo de Paulo Prado, publicado em O Jornal de 7 de dezembro de 1929 sob o título “O Descobrimento”, descreve as características do colonizador português, antes e depois da descoberta. Ao mesmo tempo em que constitui no texto uma reiteração das teses de Retrato do Brasil, formula uma espécie de síntese desse livro com as ideias que primeiro apresentara em Paulística.

Nas causas inconscientes e nos motivos ocasionais que fizeram dos aventureiros colonos da nova terra, nenhuma preocupação aparece de ação incorporada e inteligente: nem religiosa, nem artística, nem militar, nem mesmo a impetuosidade e sede aventuras, tão peculiares ao conquistador espanhol. A cruza com o indígena veio ao contrário acentuar o anarquismo individualista dos primeiros habitantes pela ‘volatilização dos instintos sociais”, característica que ainda é um elo da cadeia histórica, racial e econômica, ligando os elementos do povoamento primitivo aos seus descendentes atuais, enfraquecidos pela falta de disciplina, pela ausência de espírito condensador e de sagacidade previdente. É o que aparenta, de certo modo, o bandeirante piratiningano ao fazendeiro paulista. (Prado, 2012, p. 315).

Esses podem ser considerados os principais topoi da argumentação de Prado: o anarquismo individualista e o processo de volatilização dos instintos sociais, de que nos ocuparemos a seguir. Também cabe notar na passagem a presença da figura do narrador e de sua inscrição social como fazendeiro paulista. Isso é de importância inegável para a definição do gênero escolhido por Prado, o ensaio, que contrasta supostamente com a escrita da história segundo as exigências de objetividade da sua concepção moderna.

Passando à característica do anarquismo individualista e ao processo de volatilização dos instintos sociais - elementos muitas vezes corolários - é possível abordar a questão por dois caminhos. No primeiro, trazendo para o debate a questão do individualismo como típico da natureza desse português e que foi transmitido ao longo do tempo. No segundo, pensando a questão da adaptação do aventureiro português ao Novo Mundo.

É possível supor que a explicação do individualismo do português, em Prado, esteja atrelada a uma noção de natureza humana embutida na argumentação, tal como proposta por um dos filósofos do seu repertório, Friedrich Nietzsche, em sua segunda consideração extemporânea, “Da utilidade e desvantagem da história para a vida”, de 1874.

Pois lá onde somos resultado de gerações anteriores, somos também resultado de seus desvios, paixões, erros e até mesmo crimes; não é possível se livrar dessa cadeia. Se condenarmos aqueles desvios e nos tomarmos como libertos deles, isso não elimina o fato de que deles descendemos. No melhor caso, reduzimos isso a uma disputa entre a natureza herdada e atávica e nosso conhecimento, ou bem a uma luta de um novo e duro disciplinamento contra um antigo, impregnado e inato; plantamos um novo hábito, um novo instinto, uma segunda natureza que apodrece a primeira. É uma tentativa, igualmente, de se fornecer um passado a posteriori, do qual se gostaria de descender, em contradição com aquilo do que se descende - sempre uma tentativa perigosa, porque é muito difícil encontrar um limite para a negação do passado e porque as segundas naturezas são, na maioria das vezes, mais fracas que as primeiras. (Nietzsche, 2017NIETZSCHE, Friedrich. 2017. Sobre a utilidade e a desvantagem para a vida. Editora Hedra., pp. 49-50).

Tal como em Nietzsche, para Prado, não haveria como o colonizador constituir uma segunda natureza que o possibilitasse agir sobre seus instintos individualistas e egoístas sem o trabalho imposto pelo “sentido da história”, pelas tradições e pela própria memória. Nessa chave de interpretação, o colonizador desse Novo Mundo - à exceção dos pioneiros norte-americanos - seria moldado apenas pela natureza e pelos instintos, e não pela civilização. Paulo Prado parece operar, nesse ponto, a partir de uma ideia de cultura histórica moderna, em que a memória “precisa ser constantemente ‘refrescada’, senão perderia toda a sua força” (Araújo, 2019ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. 2019a. Esaú e Jacó - Cordialidade e identidade nacional em Mário de Andrade e Paulo Prado. In: Ricardo Benzaquen de Araújo, Zigue-zague, ensaios reunidos (1977-2016). São Paulo: Editora UNIFESP; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rj., p. 197). Assim, os colonizadores, sobretudo os bandeirantes paulistas, teriam perdido, pelo fato do isolamento, o vínculo com seu passado e com o seu propósito de futuro. É nesse sentido que é possível interpretar o comentário que ele faz no prefácio de 1934, em Paulística: “O paulista [do século XVIII], seduzido pelo enriquecimento rápido, alheio às preocupações dos negócios públicos, parecia gente conquistada, submissa na sua ruminação satisfeita e que só um excesso de injustiça pôde acordar e transformar.” (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 6)5 5 Cabe observar que, em Retrato do Brasil, Paulo Prado assume o ponto de vista do escritor que, situado em seu tempo, se vê como resultado dessa geração individualista e contra a qual tenta encontrar os recursos para a produção de uma “segunda natureza”. Esse pode ser considerado o sentido político mais geral do livro que, apesar dos perigos, clama por uma Revolução que impeça a reprodução dos vícios de formação da sociedade brasileira. Por outro lado, em “Caminho do mar”, capítulo de abertura de Paulística, Paulo Prado adota um tom mais analítico, colocando-se na perspectiva desse colono que se expõe ao descontrole do mundo natural e à afirmação de sua própria natureza egoísta. Desde que se tornou comum afirmar que Paulo Prado “antecipou a revolução de 1930”, parece pertinente especular, mas difícil inferir dos textos trabalhados uma resposta plausível, se nos termos do próprio autor, dado que seu falecimento ocorre em 1943, aos 74 anos, essa revolução foi capaz de produzir uma “segunda natureza”. .

Uma outra via interpretativa do anarquismo individualista e do processo de volatilização dos instintos sociais é sustentada pela tese da adaptação. Paulo Prado atribui à natureza plástica, adaptável do português, como parte de sua natureza primitiva, a chance de, como diz Nietzsche, crescer “a partir de si mesma, de transformar e incorporar o passado e o estranho, de curar feridas, de substituir o que se perdeu e reconstituir a partir de si formas arruinadas” (Nietzsche, 2017NIETZSCHE, Friedrich. 2017. Sobre a utilidade e a desvantagem para a vida. Editora Hedra., p. 25). A este propósito, diria Prado:

Eram certamente os que constituíram a estrutura básica racial, os primeiros colonos - degredados, desertores, náufragos - gente da Renascença, que o crime, a ambição ou o espírito aventureiro fizeram abandonar a Europa civilizada. Apresentavam um produto humano fisicamente selecionado, tendo resistido aos perigos, tribulações e sofrimentos da longa e incerta travessia. Ao se instalarem no país virgem tinham conseguido vencer a hostilidade da natureza e adaptar-se às condições de uma nova existência. (Prado, 2012, p. 62).

A questão é que essa força plástica não é uniforme na experiência humana. Nietzsche pensa sobretudo sua ausência, naqueles que sucumbem diante das adversidades ou naqueles “que pouco se abalam pelos mais violentos e tristes infortúnios da vida, e mesmo pelas próprias ações malévolas, de sorte que no momento, ou logo depois, alcançam uma bonança e uma espécie de consciência tranquila” (Nietzsche, 2017NIETZSCHE, Friedrich. 2017. Sobre a utilidade e a desvantagem para a vida. Editora Hedra., p. 25).

Ocorre que, no caso da figura do português de Prado, em uma nítida alteração do argumento nietzscheano, a plasticidade por vezes convive perfeitamente com o egocentrismo e até mesmo o estimula, como é o caso do bandeirante piratiningano que, por tê-la em excesso, integra-se com muita facilidade ao meio, que confirma nele, no mesmo movimento, sua natureza antissocial.

Nesse sentido, o argumento sobre a formação do Brasil é cindido em dois fundamentos, aparentemente diversos, porém complementares, a depender das circunstâncias: o interior e o litoral. Para Prado, ambos concorreram, por sua vez, para que o povoamento ocorresse sob o signo da mais absoluta falta de controle dos habitantes sobre os seus destinos.

No litoral, percebe-se a replicação dos argumentos6 6 Há certamente pontos de divergência como, por exemplo, sobre o papel desempenhado pelos jesuítas, extremamente negativo para Antero de Quental, de pouca importância em Retrato do Brasil. de Antero de Quental e Oliveira Martins sobre o processo inexorável de decadência dos ibéricos, dados os reconhecidos vínculos de Paulo Prado com a dita “geração de 1870”, como veremos. De fato, o tema foi trabalhado em termos muito semelhantes por Antero de Quental em Causas da decadência dos povos peninsulares, discurso pronunciado na noite de 27 de maio de 1871, na sala do Casino Lisbonense.

Nele, as causas dessa decadência seriam a Igreja católica, o absolutismo e as conquistas ultramarinas. Quental expressa de forma contundente suas posições pessimistas:

Como era possível, com as mãos cheias de sangue, e os corações cheios de orgulho, iniciar na civilização aqueles povos atrasados, unir por interesse e sentimentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raças e fundar assim, depois do domínio momentâneo da violência, o domínio duradoiro e justo da superioridade moral e do progresso? (Quental, 2015, p. 84)

Pois, “as causas cessam, mas os efeitos morais persistem: a incerteza, o desânimo, o mal-estar da nossa sociedade contemporânea” (Quental, 2015, p. 86). Caberia, portanto, fazer “o ato de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos podemos emendar e regenerar” (Quental, 2015, p. 37).

Antero de Quental e Paulo Prado aparecem igualmente unidos, para além do pessimismo, num mesmo apelo a uma revolução que expurgasse os vícios desenvolvidos pelos povos peninsulares e assim os regenerasse.

Quanto ao processo adaptativo no interior, ele mostra outro resultado, por exemplo, no altiplano paulista. Ali se instala, como já foi observado, o bandeirante piratiningano, onde, para a sua formação, concorre o fator do isolamento. Contudo, em seus começos, as paixões assumem um sinal positivo, ou seja, o que na totalidade do território eram vícios, ali começaram virtudes, como por exemplo a cobiça, referida como “amor à riqueza”7 7 “Variam as causas econômicas do êxodo do sertanista, diversos são os incentivos desse internamento, que por vezes toma o aspecto de uma pandemia, despovoando as vilas da capitania. Dessas, porém, misérrimas na sua aparência de meros arraiais, partem incessantemente, durante perto de dois séculos, levas e levas de expedicionários, numa tosca organização militar, dominados por duas paixões: o amor à riqueza e o ódio ao espanhol” (Prado, 1972, p. 38). , segundo o argumento, exposto em alguns poucos parágrafos:

Nas predestinações históricas e étnicas do paulista essa função seletiva do Caminho do Mar é incontestável e providencial para a formação do seu caráter e tipo. A população do planalto se conservou afastada dos contágios decadentes da raça descobridora. (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 24)

Quando o país inteiro era apenas uma colônia vivendo no mesmo ritmo transmitido da Metrópole, os Paulistas viviam a sua própria vida em que a iniciativa particular desprezava as ordens e instruções de além-mar para só atender aos seus interesses imediatos e à ânsia de liberdade e ambição de riquezas que os atraíam para os desertos sem leis e sem peias. (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 36)

Porém, essa febre foi pouco a pouco diminuindo, e pela lenta transformação que é a lei implacável da natureza, pelos meados do século XVIII, ou mesmo antes, desaparecera com o seu cunho peculiar o tipo primitivo. (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 38)

Cessava assim o esplêndido isolamento em que se criara a população dos antigos campos de Piratininga, protegida pelo acesso dificílimo do seu Caminho do Mar, e que agora comunicava facilmente com seu próprio país e com o resto do mundo. Já desaparecia o piratiningano; na evolução histórica do Brasil viria substitui-lo o Paulista da decadência e o seu descendente do São Paulo moderno […] ao qual falta a ânsia de liberdade e independência e que o amor e a devoção ao poder completaram a obra de decadência. (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., pp. 39-40)

Revela-se então a radicalidade de Paulo Prado, posto que uma “nova e rigorosa” disciplina - como a mencionada acima, através do texto de Nietzsche - capaz de produzir uma nova natureza deveria vir por meio da violência revolucionária, de um processo criador de consequências imprevisíveis. Sem a intervenção de um movimento de ruptura, de fora para dentro, a natureza brasileira, triste e melancólica, formada a partir do excesso de plasticidade do “português original” e pela prevalência da luxúria e da cobiça - tornada ancestral e hereditária, passando a se expressar sobretudo no “amor ao poder” - tenderia a se perpetuar.

Desse modo, os habitantes dessas terras, por se verem desde o início sem freios em seus desejos materiais ou por serem dotados de uma imaginação igualmente infrene e descolada da realidade, estariam submetidos a processos independentes de sua própria vontade.

“A luxúria”, “A cobiça”, “A tristeza”: os títulos dos capítulos de Retrato de Brasil são substantivos, designam substâncias e, nesse sentido, qualificam ao mesmo tempo que reificam. Fazem parte da natureza humana, não são algo de que se possa escapar ou que se possa sanar facilmente.

Desmesura e melancolia

Em “Intemperança”, Renato Janine Ribeiro aponta para a ironia do fato de que um dos motivos da descoberta do Brasil foi a busca de especiarias com as quais os europeus temperavam os alimentos para lhes realçar o sabor ou para combater a sua putrefação. (Ribeiro, 2009RIBEIRO, Renato Janine. 2009. Intemperança. In: NOVAIS, Adauto. Vida Vício Virtude. São Paulo: Editora Senac São Paulo, Edições Sesc SP., p. 257). Aqui, a palavra “tempero” se associa àquela que se coloca dentre as virtudes cardeais da filosofia clássica: temperantia, junto à iustitia, sapientia e fortitudo. Ironia porque, como também ressalta Paulo Prado, a empreitada da conquista e da colonização se fez sob o signo da intemperança, no caso, os vícios da desmesura, da cobiça e da luxúria.

Contudo, se até aqui a discussão sobre a natureza do colonizador foi agregada ao tema do excesso, trata-se agora de examinarmos os efeitos dessa intemperança, ainda prosseguindo com a noção de falta.

Tendo chegado a um diagnóstico dos problemas de nossa formação nos dois primeiros capítulos, Paulo Prado começa o terceiro capítulo de Retrato, “A tristeza”, em busca da etiologia desses males, ainda que ao final não consiga determinar sua fonte exata, se o corpo ou a alma ou ambas. Para ele, esse ente novo, “ao primeiro contato com o ambiente físico e social do seu exílio”, deixara-se dominar por “dois sentimentos tirânicos; o sensualismo e a paixão do ouro” (Prado, 2012, p. 96). Consequentemente, “na luta entre esses apetites, nem religioso, nem estético, sem nenhuma preocupação política, intelectual ou artística - criava-se no decurso dos séculos uma raça triste” (Prado, 2012, p. 96). Segue dessa constatação a fórmula “cobiça + luxúria = tristeza”, seus efeitos e hipóteses explicativas:

Luxúria, cobiça: melancolia. Nos povos, como nos indivíduos, é a sequência de um quadro de psicopatia: abatimento físico e moral, fadiga, insensibilidade, abulia, tristeza. Por sua vez a tristeza, pelo retardamento das funções vitais, traz o enfraquecimento e altera a oxidação das células, produzindo nova agravação do mal com o seu cortejo de agitações, lamúrias e convulsões violentas. Influência do clima, dos hábitos de vida, da alimentação ou do bom ou mau funcionamento das glândulas endócrinas, que a ciência começa a estudar? (Prado, 2012, p. 98).

Segundo uma longa tradição hermenêutica que inclui os textos da patrologia grega e latina, em Estâncias, Giorgio Agamben (2007AGAMBEN, Giorgio. 2007. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG.) refere-se à acedia, tristitia, taedium vitae ou desídia como “o mais mortal dos vícios, o único para o qual não há nenhum perdão possível”. Uma vez acometido do mal, o melancólico viveria em permanente estado de inquietação e assolado pelas morbidades que a ele se associam, dentre muitos outros a malitia, o rancor, a pusillamitas, o desperatio, o torpor, a evatio mentis. Entretanto, como adverte Agamben, não se trata de um vício, mal ou pecado que acometa apenas aqueles que descuidam da ética capitalista do trabalho. Para ele, o significado da melancolia e da acídia - presentes, por exemplo, nas várias denominações religiosas protestantes que dão origem ao que conhecemos na acepção weberiana como “espírito do capitalismo”8 8 “Há um credo dos mórmons que (segundo citações que conheço) conclui com estas palavras: ‘Mas um preguiçoso ou mandrião não pode ser cristão e ter parte na bem-aventurança. Ele está destinado a ser aferroado de morte e atirado fora da colmeia.’ Essa magnífica disciplina, que observa o justo meio entre o mosteiro e a manufatura e que coloca o indivíduo diante da alternativa: ou o trabalho ou a exclusão - certamente em associação com o entusiasmo religioso e possível apenas por meio dele - foi que permitiu a essa seita realizar as espantosas proezas econômicas que realizou”. (Weber, 2004, pp. 253-254) - é limitado pela psicologia moderna que as aproxima da noção de preguiça.

No sentido da advertência de Agamben, se voltarmos ao terceiro capítulo de Retrato do Brasil, é inegável que o exemplo da presença dos peregrinos ingleses nas colônias da América do Norte estivesse no horizonte de Paulo Prado. Seus comentários recobrem a associação da melancolia, da tristeza do povo brasileiro à ausência das qualidades de temperança, disciplina e ética do trabalho, que participaram da formação dos habitantes do norte do continente.

Na Virgínia, a colonização se fizera, pouco antes, pela London Company, com fins mercantis. O quase lendário John Smith já ensinara aos companheiros, quando primeiro desembarcaram em terras americanas, o segredo do êxito para o colono recém-chegado: ‘Aqui nada se obtém senão pelo trabalho’. E, quando a Companhia lhe pedira de Londres notícias de ouro, o velho pioneiro enviou à Metrópole o que julgava mais útil: um mapa da região, um resumo das coisas mais necessárias, e conselhos sobre a escolha dos emigrantes apropriados à colonização. Estes, ao se instalarem, submetiam-se à rigidez da lei puritana que os forçava, como impunha Samuel Argall sob pena de morte, a aceitar a doutrina da trindade, o respeito à autoridade da Bíblia e o comparecimento obrigatório à igreja. (Prado, 2012, p. 91).

Contudo, como já apontado, o uso do termo melancolia, no sentido que Agamben lhe atribui (no lastro de Freud), é mais abrangente, não implicando necessariamente um julgamento moral da atitude do melancólico, tal como o encontramos no protestantismo e em sua ideologia laica. Conforme assinala, a própria simplificação do termo é sintoma de processos mais fundamentais, pois

o mal-entendido e a minimização de um fenômeno, longe de significar que isso nos é remoto e estranho, pelo contrário, são indícios de uma proximidade tão intolerável a ponto de a devermos camuflar e reprimir. (Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. 2007. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG.: pp. 26-27)

O que se reprime, portanto, ao minimizar a acídia e a melancolia é o desejo pelo que é inatingível; o fenômeno da acedia permitiria o deslocamento da libido para esse objeto ausente do qual a perda é impossível ou, nas palavras do filósofo, “nasceria de uma exacerbação do desejo que torna inacessível o próprio objeto na desesperada tentativa de proteger-se dessa forma em relação à sua perda e de aderir a ele pelo menos na sua ausência” (Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. 2007. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 44).

Ora, o que o vício da acedia, plenamente exposto no capítulo “Tristeza” de Retrato do Brasil, denuncia são justamente os objetos inalcançáveis da nacionalidade: a autenticidade, o engajamento, as virtudes públicas.

Essa chave de interpretação pode ser sugestiva para a análise de Prado acerca do que considera como o processo de decadência da nação brasileira e a melancolia que dele resulta, índice da falta de algo primordial. Nesse sentido, supomos que o objeto desejado e tornado incessível pela luxúria e pela cobiça e do qual a tristeza é o recurso para manter fantasmaticamente presente, como algo nunca possuído, é a própria ideia de ordem social, entendida, nos termos de Prado, como res publica.

Se a libido se comporta como se tivesse acontecido uma perda, embora nada tenha sido de fato perdido, isso acontece porque ela encena uma simulação em cujo âmbito o que não podia ser perdido, porque nunca havia sido possuído, aparece como perdido, e aquilo que não podia ser possuído porque, talvez, nunca tenha sido real, pode ser apropriado enquanto objeto perdido (Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. 2007. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 45).

Essa lógica, tal como aplicada em Retrato do Brasil, pode ser complementada pela explicação durkheimiana clássica da sociedade como fenômeno moral, em que a transgressão permite revelar seus princípios e valores mais caros. No caso brasileiro, a melancolia derivada dos valores individualistas da luxúria e da cobiça estaria apontando para a ausência dos valores coletivos da autonomia, da autenticidade e, no limite, da própria ideia de civilidade.

O corolário desse processo também deriva das teses de Freud em Luto e melancolia e introduz a nossa próxima e última sessão. Na definição de Freud,9 9 Freud publicou Luto e melancolia em 1917 e não é improvável que Paulo Prado o tenha lido. Mas, assinala Diniz (2004), a principal obra que orientou a reflexão de Retrato do Brasil foi A anatomia da melancolia, escrita por Robert Burton em 1652, do qual Prado possuía em sua biblioteca um exemplar da edição inglesa de 1927. a tristeza como sinônimo de melancolia, dirige-se contra o ego. “O melancólico nos mostra ainda algo que falta no luto: um rebaixamento extraordinário do seu sentimento de autoestima, um enorme empobrecimento do ego. No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é o próprio ego” (Freud, 2011FREUD. Sigmund. 2011. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify., p. 53).

Freud e, a seguir, Agamben tornam assim possível responder com Paulo Prado à pergunta de José Murilo de Carvalho: a natureza melancólica do brasileiro, que resulta em sua baixa “autoestima” - e faz com que ele não se reconheça como “agente, individual ou coletivo, de mudanças sociais e políticas de que se possa orgulhar” - teria substituído o seu desejo de ordem pela mera satisfação de viver num paraíso terrestre.

Descontrole e doença

É afirmação recorrente na fortuna crítica de Paulo Prado (Aguiar, 2014AGUIAR, Isabel Cristina Domingues. 2014. Paulo Prado e a Semana de Arte Moderna: ensaios e correspondências. Tese de Doutorado em Letras (Literatura), Assis: UNESP. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3sYBSBv . Acesso em: 23 fev. 2022.
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; Berriel, 2000; Calil, 2009CALIL, Carlos Augusto. 2009. Paulo Prado, entre tradição e modernismo. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Um enigma Chamado Brasil. 29 Intérpretes e um País. São Paulo: Companhia das Letras.; Gaio, 2017GAIO, Henrique Pinheiro Costa. 2017. Entre passado e futuro: pessimismo e ruína em Retrato do Brasil de Paulo Prado. Revista Maracanan. n. 16, pp. 169-187. DOI: https://doi.org/10.12957/revmar.2017.27129.
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; Waldman, 2014WALDMAN, Thaís Chang. 2014. Moderno Bandeirante: Paulo Prado entre espaços e tradições. São Paulo, Alameda.) que sua biografia se situa na interseção entre formas tradicionais e modernas de sociabilidade. Como não poderia deixar de ser, Paulo Prado teria sido afetado pelas contradições de sua época.

Neto de Veridiana e Martinho Prado, filho do Conselheiro Antônio Prado e sobrinho de Martinico, Caio e Eduardo Prado, Paulo Prado nasce em 20 de maio de 1869, em São Paulo. Forma-se em Direito na última turma do Império, na Academia do Largo de São Francisco. Próximo do tio Eduardo, passa com ele longa temporada na Europa, de 1890 a 1897, quando retorna ao Brasil, por insistência da família, para assumir cargos de direção na casa Prado-Chaves de produção e comercialização de café.

Como sugere Darrell E. Levi (1977LEVI, Darrel E. 1977. A família Prado. São Paulo, Cultura 70 - Livraria e Editora.) em estudo de referência sobre os Prado,

a família de elite modernizante surge como conceito alternativo ao do declínio do modelo patriarcal. Pode ser colocada no centro sul do Brasil no período de 1849 a 1930 e suas origens econômicas podem ser atribuídas ao ‘boom’ do café e seu resultado industrial. A urbanização e a cultura europeia, causas do declínio no modelo patriarcal, estimularam o desenvolvimento da família modernizante. (Levi, 1977LEVI, Darrel E. 1977. A família Prado. São Paulo, Cultura 70 - Livraria e Editora., p. 315)

Contudo, adverte, “a experiência dos Prado demonstra, as atitudes, percepções e ações patriarcais interagiam, por vezes com as mais ‘modernas’” (Levi, 1977LEVI, Darrel E. 1977. A família Prado. São Paulo, Cultura 70 - Livraria e Editora., p. 316).

Isto significa que os grupos e indivíduos que compunham a família Prado adotaram estratégias econômicas e políticas que os colocavam em posições contraditórias e, por vezes, antagônicas. Importante na análise e nas conclusões de Levi é o contraste que estabelece entre os Prado e o Matarazzo, apontando para uma maior coesão familiar destes últimos em oposição aos primeiros. Neste sentido, a competição interna que se estabeleceu entre os filhos, genros e netos de Veridiana Prado e o apego às tradições agrícolas dificultaram a adaptação da família à ordem industrial emergente.10 10 Creio ser pertinente especular sobre o modo como, nos seus escritos, questões mais amplas a respeito do tema da adaptação ecoam preocupações biográficas. Entretanto, a investigação sobre essas e outras associações que envolvam a relação vida e obra torna-se inexequível, dados os objetivos e limites deste trabalho.

Do ponto de vista dos costumes, tal como os descreve em minúcias Brito Broca (1960BROCA, Brito. 1960. A vida Literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.), em A vida Literária no Brasil - 1900, se o salão requintado e superfino de Veridiana Prado no final do século proporcionou ao neto, por um lado, um ambiente intelectualmente estimulante, por outro, por ser uma evidente imitação das modas europeias, pode ter exacerbado os antagonismos experimentados por ele, principalmente em seu contato com os grupos modernistas.

Contudo, a chamada “geração de 1870” de Portugal, da qual Eduardo se aproximara, acabou por se constituir, segundo alguns intérpretes, na principal influência de seu sobrinho. Nesse sentido, Carlos Eduardo Berriel é sumário em seu veredito: “Paulo Prado possuía poucas ideias que possamos considerá-las como próprias” (Berriel, 1994BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. 1994. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Campinas: Unicamp. DOI: https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.82108
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, p. 2). Na continuação, afirma que elas são “uma espécie de reelaboração e adaptação das teses de um grupo de intelectuais com os quais conviveu pessoalmente” (Berriel, 1994BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. 1994. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Campinas: Unicamp. DOI: https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.82108
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, p. 2), do qual teria tomado de empréstimo (de modo algo paradoxal, eu diria) o tema da cópia em seus efeitos nocivos para a afirmação de uma nacionalidade autêntica.

Será possível, portanto, inferir que é a partir da hipótese da continuidade entre as ideias de Paulo Prado e as do grupo dos Vencidos da Vida, que Retrato do Brasil foi lido por muitos em sua época como o panfleto, como o libelo de um pessimista.11 11 Estou certa de que várias outras correlações podem ser exploradas a partir do diálogo que Paulo Prado estabeleceu com seus contemporâneos, sobretudo com os modernistas brasileiros, o que, para executá-las, demandaria uma ampliação da investigação para além das obras aqui trabalhadas. Por conseguinte, como diagnóstico dos problemas nacionais, o pessimismo do grupo Vencidos da Vida constitui fonte inegável de inspiração para essa associação que busco demostrar entre mal romântico e descontrole social em Retrato do Brasil.

De acordo com Berriel, dois pressupostos sustentam as teses do grupo português:

o primeiro, o de que a Europa é um mundo velho, doente, talvez esgotado; esta ideia, em grande voga então, faz parte da concepção mais geral da história europeia desenvolvida pela geração de 1970, principalmente sobre a própria história da Península Ibérica, e chegará com extrema força até o Modernismo brasileiro. […] Já o segundo pressuposto é de que a velhice do “Velho Mundo” - ou do “Novo”, tanto faz, já que se trata de matriz e cópia - é um produto da literatura. A literatura seria a causadora da senilidade da civilização europeia. […] uma esclerose, portanto, que o Brasil traz para si, ao importar a literatura e as ideias europeias. (Berriel, 1994BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. 1994. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Campinas: Unicamp. DOI: https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1994.82108
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, pp. 43-44, grifos meus)

Essa citação é suficiente para introduzir o que nos ocupará nesta última seção: o tema da doença como metáfora do caráter e da ordem social,12 12 Segundo Velloso, “[o]utros autores nesta época usaram a doença como metáfora do Brasil. Monteiro Lobato parece ser o mais eloquente. Esta visão ideológica começaria a ser reformulada no final da década de 1910, mais precisamente em 1918. A tese da saúde pública, apontando a doença e o analfabetismo como os fatores responsáveis pelo atraso, viria então isentar a figura do Jeca Tatu dos males do Brasil. Na célebre frase de Monteiro Lobato, ‘Ele [o Jeca] não é assim, mas está assim’, fica explícita esta mudança de mentalidade. O povo deixa de ser equiparado à categoria da negação e se ele apresenta aspectos negativos, isto independe dele. Depende antes de uma boa administração governamental, capaz de sanar os erros e corrigir as deficiências.” (Velloso,1987, p. 71). supondo, com Susan Sontag (2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras .), que as metáforas da doença são recursos poderosos para dar força aos argumentos, muitas vezes produzindo efeitos corporais consideráveis. É importante assinalar que Doença como metáfora opera em pelo menos duas direções sociologicamente distintas. Em uma delas, demonstra como o ethos romântico lançou mão da metáfora da doença para definir e moldar individualidades e comportamentos. Em outra, visa o modo como as doenças foram associadas à própria ordem social.

Para Sontag13 13 Embora Sontag tenha se ocupado da tuberculose e do câncer para compará-los como formas típicas das doenças românticas e modernas, nos ocuparemos aqui apenas da primeira. Claudine Herzlich e Janinne Pierret (1991a, 1991b) também partem do pressuposto da doença como construção social e realizam uma investigação sobre “les représentations collectives qui forment la réalité sociale de la maladie e du malade” (Herlich e Pierret, 1991b, p. 14), utilizando-se para isto de fontes históricas e literárias. Contudo, a diferença central das abordagens está na ênfase das sociólogas francesas nos suportes “materiais” das representações (a doença e os doentes), ao passo que Sontag se fixa nas metáforas e nos seus mecanismos de funcionamento, perspectiva com a qual o presente trabalho procurou se alinhar. ,firmou-se no século XIX a crença entre médicos e leigos de que haveria uma “personalidade típica” da tuberculose e que “era necessária certa predisposição interior para contrair a doença”. Tratava-se de uma doença de indivíduos e, mesmo que pudesse ser atribuída à pobreza e às condições insalubres, pensava-se que o próprio indivíduo seria o principal responsável por ela, posto que a doença se encarregava, então, de expressar o caráter do seu portador.

É um produto da vontade. ‘A vontade se manifesta como um corpo organizado’, escreveu Schopenhauer, ‘e a presença da doença significa que a vontade mesma está doente.’ A recuperação de uma doença depende de a vontade saudável simular ‘um poder ditatorial a fim de subjugar as forças rebeladas’ da vontade doente. (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 36).

Nesse sentido, “[a] tuberculose é desintegração, enfebrecimento, desmaterialização; é uma enfermidade de líquidos - o corpo se transforma em fleuma, em muco, em escarro e, por fim, em sangue - e de ar, da necessidade de um ar melhor”. (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 12).

Essa falência da vontade assumia no léxico romântico um sentido positivo,14 14 Em uma apreciação pré-romântica, Kant afirmava que “As paixões […] são afetos desventurados que se encontram grávidos de muitos males” (Kant, apud Sontag, 2007, p. 36). “Em breve, o sentimento passaria a ser visto de modo muito mais positivo” (Sontag, 2007, p. 37). “como resposta ou denúncia de uma individualidade reprimida contra uma sociedade opressora, corrupta ou injusta” (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 57).

Além disso,

a tuberculose era tida como um modo de se apresentar, e tal aparência tornou-se um elemento básico nos costumes do século XIX. […] Era sofisticado ter um aspecto doentio. ‘Chopin era tuberculoso numa época em que ter boa saúde não era chique’, escreveu Camille Saint-Saëns em 1913. Era estar na moda ser pálido e debilitado. (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 24)

A tristeza tornava a pessoa “interessante”. Ser triste era um sinal de refinamento, de sensibilidade. Ou seja, ser impotente. (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 26)

Ou então,

Os tuberculosos podem ser representados como apaixonados porque são, de maneira mais característica, carentes de vitalidade, de força vital. […] É assim que os irmãos Goncourt, esses dois observadores célebres por sua frieza, explicam a tuberculose de seu amigo Murger (o autor de Scènes de la vie bohème): ele está morrendo “por carência de vitalidade para enfrentar o sofrimento. (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 21)

Mas ainda são heróis - inquietos, amargos, autodestrutivos, atormentados por sua inaptidão para sentir. (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 38)

A outra parte do argumento de Sontag chama a atenção para o fato de que a imagem da doença é usada na grande tradição da filosofia política para exprimir a preocupação com a ordem social e como apelo por uma reação racional. “Maquiavel e Hobbes recorreram a um aspecto da sabedoria médica, a importância de interromper uma doença grave no início, enquanto é relativamente fácil de ser controlada” (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 57).

O leitor de Retrato do Brasil não deve se surpreender com os ecos dessa imagem da doença, muito operante na tradição da filosofia política, mas também com a presença de praticamente todos os signos do romantismo, tal como apresentados por Sontag. Paulo Prado era um escritor erudito, possuía em sua biblioteca, e cita, por exemplo, muitos autores que corroboram essa visão. Assim, em seu quarto capítulo, “O Romantismo”, as associações são explícitas: o sentido cultural positivo da falência da vontade, o excesso das paixões, a influência da moda; em síntese, toda a morbidez ressentida aparece admiravelmente reconstituída, dos desvarios dos poetas à verborragia dos políticos e dos acadêmicos, como os das escolas de direito - focos de infecção romântica - de Olinda e São Paulo. Fenômenos individuais e coletivos distinguidos pela análise, mas fundidos pela tinta da analogia e da metáfora da doença. Senão vejamos: “Neste organismo precocemente depauperado, exposto às mais variadas influências -mesológicas e étnicas, ao começar o século da independência, manifestou-se, como doença, o mal romântico” (Prado, 2012, p. 113).

Ou então,

Quase todos os nossos poetas desse tempo morreram moços e tiveram o pressentimento dessa fatalidade. Morte e amor. Os dois refrãos da poesia brasileira. O desejo de morrer vinha-lhes da desorganização da vontade e da melancolia desiludida dos que sonham com o romanesco na vida de cada dia. E fisicamente fracos pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de vitalidade, procuravam a sobrevivência num erotismo alucinante, quase feminino. Representavam a astenia da raça, o vício das nossas origens mestiças. (Prado, 2012, p. 125)15 15 Como tantos outros escritores da época, Paulo Prado reverbera aqui a associação entre feminilidade e erotismo por oposição àquela entre masculinidade e racionalidade; analogia que hoje caracterizaríamos como misógina, posto que se configura a partir de conceitos antitéticos e assimétricos (Kosellec, 2006).

Quando se atenta para o fato de que a melancolia - na sua associação com o léxico romântico relacionado à doença, especialmente à tuberculose - se torna uma consequência natural do excesso, da paixão que produz desgaste, a tese de Retrato do Brasil se mostra plenamente compreensível. Nesse sentido, a crítica ao romantismo, no quarto capítulo do livro, explicita o que os três primeiros quiseram descrever como o processo de formação do Brasil, com algum anacronismo, a partir dessa lógica, como um longo processo de adoecimento. O tema da melancolia romântica estava, portanto, presente desde o início em Retrato do Brasil e é a chave para o entendimento do livro como um todo. Dessa forma, Paulo Prado dá relevo ao dispositivo do enredo que molda, padroniza e disciplina o real, no sentido de produzir uma coerência entre seu ponto de partida e o de chegada, ou seja, o momento de formação e o momento coevo da sociedade brasileira, como vimos acima. Por outro lado, tanto a adoção quanto a recusa do léxico romântico, expressam de certa forma a própria condição de Paulo Prado: um intelectual situado entre o tradicional e o moderno, ainda que tendesse para o último. “No Brasil, do desvario dos nossos poetas e da altiloquência dos oradores, restou-nos o desequilíbrio que separa o lirismo romântico da positividade da vida moderna e das forças vivas e inteligentes que constituem a realidade social”. (Prado, 2012, p. 124).

A doença como metáfora do caráter individual e coletivo serve tanto para a explicar como para negar o Brasil, um exemplo evidente do que Daniel Pécaut (1989PÉCAUT, Daniel. 1990. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Editora Ática.) designou como “a ambivalência realista” dos intelectuais brasileiros da primeira metade do século XX.

Palavras Finais

Ricardo Benzaquen de Araújo, ao comparar os fundamentos da identidade nacional em Mário de Andrade e Paulo Prado, conclui que Retrato do Brasil denota a ausência daquilo que em Ensaio sobre a música brasileira seria primordial: a noção de cordialidade ou, em sua interpretação, uma versão moderada de cordialidade.

se o Brasil é caracterizado pela luxúria e pela cobiça, torna-se evidente que o futuro desta nação doente, patológica, não envolveria nem uma identidade fundada em bons sentimentos, nem qualquer tipo de fusão, como sugeria Mário de Andrade. Para Paulo, ao contrário, o resultado desses dois elementos seria, inevitavelmente, a criação de uma atmosfera balizada pela mais “apagada e vil tristeza”. (Araújo, 2019ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. 2019a. Esaú e Jacó - Cordialidade e identidade nacional em Mário de Andrade e Paulo Prado. In: Ricardo Benzaquen de Araújo, Zigue-zague, ensaios reunidos (1977-2016). São Paulo: Editora UNIFESP; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rj., p. 370).

Como vimos, o passado colonial surge, então, em Retrato do Brasil, como realidade a ser superada. Essa seria a sua utilidade se o critério fosse, como cremos, aquele pensado por Nietzsche, em Considerações extemporâneas.

Nietzsche argumenta que, se o esquecimento não nos é permitido, pois somos seres históricos, “existe um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, que prejudica o vivente e por fim o destrói, seja um homem, um povo ou uma cultura”. (Nietzsche, 2017NIETZSCHE, Friedrich. 2017. Sobre a utilidade e a desvantagem para a vida. Editora Hedra., p. 24). Cabe aos homens, portanto, fazer um uso apropriado do passado em função de suas necessidades. Nietzsche mostra, como se sabe, que a história como passado, como tradição, pode ser útil ao homem em pelo menos três aspectos: “ela lhe pertence enquanto indivíduo atuante e determinado, enquanto conservador e reverente, e enquanto sofredor e carente de libertação” (Nietzsche, 2017NIETZSCHE, Friedrich. 2017. Sobre a utilidade e a desvantagem para a vida. Editora Hedra., p. 35). A cada um deles corresponderia, aliás, um tipo de história e de uso (ou abuso) do passado: a história monumental, a história antiquária e a história crítica. E assim, revela, contra a ideia de história positivista, neutra, tanto o sentido do trabalho do historiador como a relação dos homens, de um povo, de uma cultura e de uma sociedade com seu passado.

Em Paulo Prado, poderíamos dizer que, se a monumentalização do passado colonial é veementemente rejeitada, se a sua confirmação pelo colecionismo acrítico de dados está ausente da narrativa, a perspectiva crítica, criadora de alternativas de futuro a partir desse passado, parece ser a via perseguida por ele.

Nesse sentido, o texto de Paulo Prado é radical na crítica dos temas caros ao conservadorismo, a começar evidentemente pela idealização do passado. Longe de nos legar exemplos de estabilidade e ordem, o passado aparece nas páginas de Retrato do Brasil como puro caos; longe de representar elemento de oposição, de combate, a Igreja acaba por sucumbir à imoralidade reinante; longe de constituir uma sociedade solidária, o individualismo do português é avesso a qualquer freio e instaura hierarquias fundadas no puro arbítrio. Nesse sentido, individualismo, ordem, estabilidade e hierarquia serão reinterpretados, assumindo valores positivos ou negativos em função da crítica do passado e do presente.

“Viveram tristes, numa terra radiosa”: assim se encerra o quarto capítulo de Retrato do Brasil. O tempo verbal é ambíguo. Pode remeter apenas a um passado que se esperava ser superado, como também constituir o vaticínio de um distópico conto de fadas. Talvez tenha sido por isso que Paulo Prado escreveu um Post-Scriptum para o livro, de modo que pudesse afirmar, finalmente, “a confiança no futuro, que não pode ser pior do que o passado” (Prado, 2012, p. 144).

Bibliografia

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  • 1
    Publicados, respectivamente, em 1928 e 1932, ambos os livros foram reunidos no volume 152 da Coleção Documentos Brasileiros sob o título Província & nação, em 1972. Conforme noticia Geraldo Ferraz no prefácio “Paulo Prado e duas reedições”, esse sonho de José Olympio só teria sido realizado por Afonso Arinos de Melo Franco, diretor da coleção na época. Arinos também acreditava na “dupla aspiração de Paulo Prado”, ou seja, sua preocupação regional e nacional, “donde, o localismo de Paulística (a província) e a projeção nacional do Retrato (a nação)” (FERRAZ, 1972FERRAZ, Geraldo. 1972. Paulo Prado e duas reedições. In: PRADO, Paulo. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., P.IX). Embora reconheça a importância da comparação, os livros serão considerados aqui em função do tema proposto e, neste sentido, ao invés dos contrastes, buscou-se sobretudo as afinidades entre eles, ao mesmo tempo em que se afirma a preponderância do nacional sobre o local no pensamento de Prado.
  • 2
    Tal como Ricardo Benzaquen de Araújo (2019bARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. 2019b. Ronda Noturna. Narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. In: Ricardo Benzaquen de Araújo, Zigue-zague, ensaios reunidos (1977-2016) . São Paulo: Editora UNIFESP ; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rj.) trata o tema das relações entre narrativa histórica, tempo e enredo, presentes na concepção moderna de história, em “Narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu”, a narrativa de Retrato do Brasil também é comandada, como veremos adiante, por um enredo que molda, padroniza e disciplina o real, no sentido de produzir uma coerência entre seu ponto de partida e o de chegada.
  • 3
    Trata-se do próprio método do autor: “Este Retrato foi feito como um quadro impressionista. Dissolveram-se nas cores e no impreciso das tonalidades as linhas nítidas do desenho […]. Desaparecem quase por completo as datas. Restam somente os aspectos, as emoções, a representação mental dos acontecimentos, resultantes estes mais da dedução especulativa do que da sequência concatenada dos fatos. […] Considerar a história não como uma ressurreição romântica, nem como ciência natural, à alemã, mas como conjunto de meras impressões, procurando no fundo misterioso das forças conscientes ou instintivas as influências que dominaram, no correr dos tempos, os indivíduos e a coletividade.” (Prado, 2012, p. 127). Cabe apenas enfatizar que, nessa concepção de história, a noção de enredo ganha ainda mais relevância.
  • 4
    É importante ressaltar que Paulo Prado distingue, como aspectos, respectivamente positivos e negativos, “a presença do negro, entre nós, […]: como fator étnico, intervindo pelo cruzamento desde os primeiros tempos da Colônia - e como escravo, elemento preponderante na organização social e mental do Brasil.” (Prado, 2012, p. 129).
  • 5
    Cabe observar que, em Retrato do Brasil, Paulo Prado assume o ponto de vista do escritor que, situado em seu tempo, se vê como resultado dessa geração individualista e contra a qual tenta encontrar os recursos para a produção de uma “segunda natureza”. Esse pode ser considerado o sentido político mais geral do livro que, apesar dos perigos, clama por uma Revolução que impeça a reprodução dos vícios de formação da sociedade brasileira. Por outro lado, em “Caminho do mar”, capítulo de abertura de Paulística, Paulo Prado adota um tom mais analítico, colocando-se na perspectiva desse colono que se expõe ao descontrole do mundo natural e à afirmação de sua própria natureza egoísta. Desde que se tornou comum afirmar que Paulo Prado “antecipou a revolução de 1930”, parece pertinente especular, mas difícil inferir dos textos trabalhados uma resposta plausível, se nos termos do próprio autor, dado que seu falecimento ocorre em 1943, aos 74 anos, essa revolução foi capaz de produzir uma “segunda natureza”.
  • 6
    Há certamente pontos de divergência como, por exemplo, sobre o papel desempenhado pelos jesuítas, extremamente negativo para Antero de Quental, de pouca importância em Retrato do Brasil.
  • 7
    “Variam as causas econômicas do êxodo do sertanista, diversos são os incentivos desse internamento, que por vezes toma o aspecto de uma pandemia, despovoando as vilas da capitania. Dessas, porém, misérrimas na sua aparência de meros arraiais, partem incessantemente, durante perto de dois séculos, levas e levas de expedicionários, numa tosca organização militar, dominados por duas paixões: o amor à riqueza e o ódio ao espanhol” (Prado, 1972PRADO, Paulo. 1972. Província & Nação. Paulística. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ., p. 38).
  • 8
    “Há um credo dos mórmons que (segundo citações que conheço) conclui com estas palavras: ‘Mas um preguiçoso ou mandrião não pode ser cristão e ter parte na bem-aventurança. Ele está destinado a ser aferroado de morte e atirado fora da colmeia.’ Essa magnífica disciplina, que observa o justo meio entre o mosteiro e a manufatura e que coloca o indivíduo diante da alternativa: ou o trabalho ou a exclusão - certamente em associação com o entusiasmo religioso e possível apenas por meio dele - foi que permitiu a essa seita realizar as espantosas proezas econômicas que realizou”. (Weber, 2004, pp. 253-254)
  • 9
    Freud publicou Luto e melancolia em 1917 e não é improvável que Paulo Prado o tenha lido. Mas, assinala Diniz (2004DINIZ, Claudio Lucio de Carvalho. 2004. Tristeza Tupiniquim: a ideia de tristeza no Retrato do Brasil de Paulo Prado. Paper apresentado no I Encontro Memorial do ICHS, Mariana , 9 a 12 de novembro.), a principal obra que orientou a reflexão de Retrato do Brasil foi A anatomia da melancolia, escrita por Robert Burton em 1652, do qual Prado possuía em sua biblioteca um exemplar da edição inglesa de 1927.
  • 10
    Creio ser pertinente especular sobre o modo como, nos seus escritos, questões mais amplas a respeito do tema da adaptação ecoam preocupações biográficas. Entretanto, a investigação sobre essas e outras associações que envolvam a relação vida e obra torna-se inexequível, dados os objetivos e limites deste trabalho.
  • 11
    Estou certa de que várias outras correlações podem ser exploradas a partir do diálogo que Paulo Prado estabeleceu com seus contemporâneos, sobretudo com os modernistas brasileiros, o que, para executá-las, demandaria uma ampliação da investigação para além das obras aqui trabalhadas. Por conseguinte, como diagnóstico dos problemas nacionais, o pessimismo do grupo Vencidos da Vida constitui fonte inegável de inspiração para essa associação que busco demostrar entre mal romântico e descontrole social em Retrato do Brasil.
  • 12
    Segundo Velloso, “[o]utros autores nesta época usaram a doença como metáfora do Brasil. Monteiro Lobato parece ser o mais eloquente. Esta visão ideológica começaria a ser reformulada no final da década de 1910, mais precisamente em 1918. A tese da saúde pública, apontando a doença e o analfabetismo como os fatores responsáveis pelo atraso, viria então isentar a figura do Jeca Tatu dos males do Brasil. Na célebre frase de Monteiro Lobato, ‘Ele [o Jeca] não é assim, mas está assim’, fica explícita esta mudança de mentalidade. O povo deixa de ser equiparado à categoria da negação e se ele apresenta aspectos negativos, isto independe dele. Depende antes de uma boa administração governamental, capaz de sanar os erros e corrigir as deficiências.” (Velloso,1987VELLOSO, Mônica Pimenta. 1987. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: CPDOC; Fundação Getúlio Vargas., p. 71).
  • 13
    Embora Sontag tenha se ocupado da tuberculose e do câncer para compará-los como formas típicas das doenças românticas e modernas, nos ocuparemos aqui apenas da primeira. Claudine Herzlich e Janinne Pierret (1991aHERZLICH, Claudine; PIERRET, Janine. 1991a. Malades d´hier, malades d’aujourd’hui. Paris: Payot., 1991bHERZLICH, Claudine; PIERRET, Janine.1991b. Illness: from causes to meaning. In: Currer, Caroline; Stacey, Margareth. Concepts of health, illness and disease. New York: Berg Publishers Limited.) também partem do pressuposto da doença como construção social e realizam uma investigação sobre “les représentations collectives qui forment la réalité sociale de la maladie e du malade” (Herlich e Pierret, 1991b, p. 14), utilizando-se para isto de fontes históricas e literárias. Contudo, a diferença central das abordagens está na ênfase das sociólogas francesas nos suportes “materiais” das representações (a doença e os doentes), ao passo que Sontag se fixa nas metáforas e nos seus mecanismos de funcionamento, perspectiva com a qual o presente trabalho procurou se alinhar.
  • 14
    Em uma apreciação pré-romântica, Kant afirmava que “As paixões […] são afetos desventurados que se encontram grávidos de muitos males” (Kant, apud Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 36). “Em breve, o sentimento passaria a ser visto de modo muito mais positivo” (Sontag, 2007SONTAG, Susan. 2007. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 37).
  • 15
    Como tantos outros escritores da época, Paulo Prado reverbera aqui a associação entre feminilidade e erotismo por oposição àquela entre masculinidade e racionalidade; analogia que hoje caracterizaríamos como misógina, posto que se configura a partir de conceitos antitéticos e assimétricos (Kosellec, 2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2021
  • Aceito
    22 Fev 2022
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