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Reconversão industrial e resposta sindical na América Latina

ESPECIAL

Reconversão industrial e resposta sindical na América Latina

Laís W. Abramo

Mestre em Sociologia pela USP e pesquisadora do CEDEC

"Se cada instrumento pudesse executar a sua função própria

sem ser mandado, ou por si mesmo, assim como as obras de

Dédalo se moviam por si sós, ou como os tripós de Vulcano

realizavam espontaneamente o seu trabalho sagrado: se, por

exemplo, as rocas dos fiandeiros fiassem por si sós, o dono da

oficina não precisaria mais de auxiliares, nem o senhor, de

escravos."

(Aristóteles)

"As Três Leis da Robótica:

1. Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por

inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

2. Um robô deve obedecer a qualquer ordem dada por um

ser humano, desde que essa ordem não interfira com

a execução da Primeira Lei.

3. Um robô deve proteger a sua existência, desde que essa

proteção não interfira com a Primeira e a Segunda Leis".

(Isaac Asimov)

Em março de 1987, reuniram-se durante cinco dias no Instituto Cajamar, centro de debate e formação sindical organizado pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) brasileira, quarenta delegados, escolhidos pelos trabalhadores de onze fábricas automobilísticas que empregam 2 milhões de pessoas de países tão diferentes quanto Brasil, México, Chile, Uruguai, Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, Japão, Malásia e Filipinas. Seu objetivo: discutir as formas de estruturar um contra-ataque eficaz à ação das montadoras de automóveis e de controlar as mudanças que estão ocorrendo nas relações entre capital e trabalho e na estrutura de emprego, em função da introdução das novas tecnologias informatizadas. Suas principais decisões: montar uma rede internacional (e informatizada) de comunicação entre os trabalhadores de diferentes fábricas da mesma empresa e intensificar a luta pela redução da jornada de trabalho, pelo fim das horas extras, pela informação antecipada sobre a introdução de novos processos tecnológicos e pela equalização salarial para os empregados que exercem a mesma função nas diversas subsidiárias de cada empresa espalhadas pelo mundo.1 1 . O salário médio dos trabalhadores da indústria automobilística nos EUA, por exemplo, é atualmente 12,4 vezes superior ao do Brasil e 11,0 vezes superior ao da Coréia. ( Jornal do Brasil, 15/3/87, p. 39. )

O que pode ter representado cada iniciativa, caracterizada pelos jornais brasileiros como a criação de uma "multinacional dos trabalhadores", versão moderna e computadorizada da sua tradicional (e muitas vezes esquecida) solidariedade internacional?

O encontro discutiu as diversas experiências de enfrentamento da questão da automação, da qual, sem dúvida, o movimento sindical europeu foi até agora o palco mais rico. (Auto) criticou a estratégia adotada pelo sindicalismo norte-americano, que abriu mão de direitos já conquistados em nome da manutenção do emprego, sem conseguir garanti-lo.2 2 . Com uma jornada oficia) de trabalho de 40 horas semanais, o metalúrgico norte-americano chega hoje a permanecer até 58 horas dentro da fábrica, quando já esteve perto de conquistar a jornada de 32 horas. Apesar disso, houve uma queda de 30% no nível de emprego do setor automobilístico entre 1979 e 1985, contra um aumento de produtividade da ordem de 15%. (Ct. Jornal do Brasil, 15/3/87.) Definiu uma plataforma de lutas e formas concretas de manutenção da relação então iniciada. Sem dúvida é promissora a presença de pelo menos quatro países latino-americanos nessa tentativa de desenvolver uma ação coordenada a nível internacional frente às novas tecnologias, que prevê a estruturação de uma agenda sindical própria.

Novas Tecnologias na América Latina

Os processos de crise econômica e reconversão industrial que atingiram os diversos países da América Latina nos últimos anos, tiveram efeitos destrutivos e modernizantes. Na maioria dos casos, significaram a redução relativa e absoluta do número de trabalhadores assalariados, assim como a sua dispersão social e o enfraquecimento de setores estratégicos da classe (o exemplo mais dramático talvez seja o dos mineiros bolivianos). A crise deteriorou setores, destruiu empregos, abaixou salários. Por outro lado, significou o aprofundamento e a modernização da estrutura industrial de determinados países, ou ainda, a introdução de novas tecnologias e novos processos de trabalho em empresas e setores de ponta (mesmo que a economia do país no seu conjunto tenha sofrido um processo de atraso relativo), que conseguiram sobreviver à crise, modernizar-se e inclusive definir novas formas de integração com a economia mundial.

Essa dimensão modernizante da crise, é um processo significativo na região, embora bastante diferenciado por países e reduzido, se comparado com os EUA, Europa e Japão. Seu palco privilegiado tem sido a grande indústria dos setores vinculados à exportação, e sua motivação básica, o aumento da qualidade dos produtos, tendo em vista a obtenção de padrões de competitividade internacional. Apesar de o número de trabalhadores diretamente atingidos pelo processo ser ainda bastante pequeno, as novas tecnologias tendem a ser, cada vez mais, um fator chave para o aumento da capacidade concorrencial dos setores de ponta da economia de cada país.3 3 . Ver Dláz , Álvaro, 1986. "Crise e Modernização Tecnológica na Indústria Metal-Mecanica Brasileira"in Sindicatos e Automação no Brasil, CEDEC-UnB (no prelo).

Por outro lado, a ponta do processo de inovação tecnológica em alguns casos coincide, em outros não, com a "ponta"do movimento sindical em cada país da região. Esse é um fator que tende a condicionar diferencialmente o ritmo e a dinâmica de introdução das novas tecnologias, seus efeitos positivos ou negativos sobre a classe trabalhadora, assim como a sua capacidade de resposta. No Brasil, por exemplo, há coincidência: nos setores automobilístico, metal-mecânico, financeiro, químico e petroquímico, estão localizados os processos tecnológicos mais modernos, assim como os setores chaves de um movimento sindical que, apesar de suas históricas debilidades, vem desenvolvendo um vigoroso processo de reorganização. No Chile, essa simetria é parcial. Há uma modernização importante no cobre, setor historicamente estratégico na economia e no movimento sindical do país. Em outros setores de ponta da economia, no entanto, como a agroindústria de exportação e a pesca, o movimento sindical é bastante débil.

A introdução das novas tecnologias informatizadas traz consigo alterações que vão além daquelas que podem ser produzidas sobre o emprego e o salário. De alguma maneira, todo o antigo modo de trabalhar é posto em questão, assim como o lugar da classe trabalhadora na sociedade, sua identidade e peso relativo. As novas tecnologias e os novos processos de trabalho produzem alterações nas qualificações, nas condições de saúde e segurança, nas relações de poder dentro das empresas. Por isso, o impacto da experiência é grande, e tende a se propagar para além dos setores diretamente atingidos pelas mudanças.

Por outro lado, não há determinismo: os efeitos das novas tecnologias sobre os vários aspectos parciais das condições de trabalho acima mencionados e sobre a subjetividade dos trabalhadores em um sentido mais amplo, dependem, em grande medida, das condições em que se produz essa introdução, e fundamentalmente, da capacidade que terão os sindicatos (e seus possíveis aliados) para negociá-las, diminuindo os seus efeitos negativos e ampliando os positivos.

A Subjetividade do Trabalhador Frente à Automação

A experiência de tomada de contato com a automação microeletrônica atinge e mobiliza a subjetividade do trabalhador em um sentido mais amplo, colocando novos problemas e contradições, mas também novas possibilidades na relação com a sua atividade vital e no processo de constituição de sua identidade, individual e coletiva.

O que há de específico no trabalho humano, em comparação com as formas instintivas, animais, de trabalho, é a sua capacidade de mentalizar a atividade transformadora da natureza antes de concretizá-la, assim como de criar instrumentos multiplicadores de sua força e habilidades naturais. Todo instrumento de trabalho criado pelo Homem tem assim essa dupla característica: a potencialização das propriedades contidas em seu corpo e sua mente, e portanto, da sua subjetividade, e ao mesmo tempo, a objetivação de sua própria atividade, ou seja, a cristalização, no objeto, como propriedade deste, de algo do qual anteriormente o sujeito era sede exclusiva.

Essa possibilidade simultânea de potencialização e substituição da atividade humana está presente em todos os instrumentos de trabalho criados pelo Homem no decorrer de sua aventura civilizatória, desde os mais primitivos. Não é outra coisa que tornava possível a Aristóteles, já no século IV a.C, fantasiar o dia em que "as rocas dos fiandeiros fiassem por si sós", tornando desnecessário o trabalho dos escravos e dos auxiliadores dos donos da oficina.

Nessa trajetória, o que poderia haver de especial para os trabalhadores na tomada de contato, manuseio e convivência com a tecnologia microeletrônica?

"Eu nunca tinha visto um robô, isto é, uma máquina que trabalha sozinha, e no começo tive muita dificuldade, muito medo. Mas agora considero o trabalho uma brincadeira."4 4 . Operários da linha automatizada de uma empresa automobilística, de São Bernardo do Campo, Brasil. Entrevista realizada em 198.5 no bojo da pesquisa -Impactos Sociais da Tecnologia Microeletrônica na Indústria Brasileira"e "Resposta Sindical à Automação Microeletrônica na Indústria Metalúrgica", convênio IPEA-CNRH-PNUD-CEDEC.

O termo robô vem do tcheco robota, que significa escravo, e foi usado pela primeira vez em uma peça de teatro ("Rossum's Universal Robot's", de Karel Kopeck), popularizando-se rapidamente entre os escritores de ficção científica, empregado para designar seres mecânicos antropomórficos.5 5 . Cf. Campos, Geraldo Lino, "Robótica: Estado da Arte"in Boletim Sobracom, ano II, nº 23, set./out. de 1985.

De Flash Gordon, ao Dr. Spock (herói do seriado televisivo "Jornada nas Estrelas"), passando pelos Jetsons, robôs, computadores e naves espaciais passaram a povoar o imaginário da sociedade, seja como máquinas poderosas e meios de transporte fantásticos, capazes de superar os limites conhecidos do tempo e do espaço, seja como objetos de consumo portadores de uma eficiência nunca vista, simbolizando a potencialização, quase sem limites, do seu controle sobre a natureza e as suas condições materiais de existência.

A utopia da máquina automatizada como possibilidade de uma vida melhor e mais fácil, onde pudessem desaparecer as carências e o trabalho pesado, marcou a sua presença no movimento operário no final do século passado e do começo deste. A frase de Aristóteles, que serve de epígrafe a este trabalho, está citada por Paul Lafargue em seu panfleto "O Direito à Preguiça", que, por volta de 1906, era o texto mais editado, mais traduzido e mais lido em todo o movimento operário europeu depois de "O Manifesto Comunista".6 6 . Cf. Foot Hardman, Francisco: "Trabalho e lazer no movimento operário", prefácio à Lafargue, Paul, O Direito à Preguiça, Ed. Kairós, S.Paulo, 1980. Lafargue, escrevendo em 1883, afirmava que "o sonho de Aristóteles é nossa realidade", e a máquina, "o redentor da humanidade", o "Deus que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que lhe concederá os prazeres e a liberdade".

Por outro lado, a máquina automatizada, principalmente em suas versões antropomórficas, como os robôs (reprodução de braços, mãos e outras partes do corpo humano) e os computadores (reprodução de diferentes formas de "raciocínio"e capacidades intelectuais do ser humano), representam também, nesse imaginário, a possibilidade da radical objetivação e desumanização. Em outras palavras, a possibilidade de que um instrumento de trabalho, criado pelo homem à sua imagem, ou pelo menos à sua semelhança, e para servir-lhe, possa tornar-se mais forte e mais poderoso que o seu criador, libertando-se do seu controle, e, a partir daí, escravizando-o e substituindo-o, ou seja, roubando-lhe o seu lugar único e específico na Natureza.

Essa tensão, permeada de temor e fascínio, está presente, por exemplo, nos livros de Isaac Asimov7 7 . Ver, por exemplo, Asimov, Isaac, Eu, Robô e O Homem Bicentenário, Hemus, São Paulo, 1980. e no filme Blade Runner (ou "O Caçador de Andróides") de Ridley Scott. As "três leis da robótica", com que Asimov inicia todas as suas histórias de robôs, são expressão, justamente, da tentativa dos homens de manter sob controle a sua criação mais ousada, definindo limites que assegurariam para sempre, e estruturalmente, o seu domínio sobre a máquina. Mas as "tres leis"não são suficientes para dissipar o temor que a humanidade sente pelos robôs, que assim, apesar de terem sido os responsáveis pela salvação da vida humana na Terra, evitando o desastre ecológico que sobre ela se abateria no final do século XXI, são exilados do planeta. Leis férreas impedem a sua permanência no mesmo solo habitado pelos homens e eles são banidos para outros mundos não habitados, continuando a servir ao homem nos trabalhos mais perigosos e difíceis da exploração espacial. O mesmo acontece com os superandróides de Blade Runner, criação máxima da engenharia genética, destinados à colonização de outros planetas, onde seriam escravos dos homens que conseguiram emigrar da Terra, tornada praticamente inabitável em conseqüência da guerra atômica.

Se essas imagens, esses símbolos e essa tensão estão presentes há tanto tempo em nossa cultura, apenas uma visão elitista e economicista, que reduz o trabalhador a um homo economicus, movido apenas e basicamente pelo seu estômago e incapaz de formular e partilhar temores, fantasias, projetos, utopias e esperanças referidas a necessidades mais amplas, poderia excluí-lo dessa vivência.

Com efeito, tudo isso aparece nas imagens formuladas pelos operários que foram captadas nas (até agora muito poucas) investigações à respeito realizadas na região.8 8 . Entre elas as citadas na nota 3, cujos resultados finais serão brevemente publicados in Neder, Ricardo et alii, Sindicatos e Automação no Brasil e Peliano et allii. Impactos Sociais da Automação Microeletrônica na Indústria Brasileira e a investigaç ão em curso no CEIL (Centro de Estudios e Investigactones Laboráles de Buenos Aires) que tem como produto parcial o relatório de Neffa, Julio, "Proceso de Trabajo, Nuevas Tecnologias Informatizadas, Condiciones y Meio Ambiente de Trabajo". As reações dos trabalhadores que entram em contato com as novas tecnologias mais além do que eles possam pensar especificamente a respeito do emprego, salário, qualificação, condições de trabalho, etc, vão do temor ao fascínio, da competição com as novas máquinas à vontade de apropriação de seus benefícios.

Em primeiro lugar, os trabalhadores temem a sua substituição pelos novos automatismos. Estranham as máquinas "que fazem tudo sozinhas"e o seu poder, e frente a elas sentem-se pequenos, frágeis, diminuídos.

Mas há também o fascínio: a automação é "um troço bonito", evidencia o "raciocínio do homem", e o trabalho vira "urra brincadeira".9 9 .Operários da linha automatizada de uma empresa automobilística de São Bernardo. Entrevista realizada na pesquisa já citada. Muitos trabalhadores identificam o robô com o futuro e o bem-estar, e "disputam o privilégio"de trabalhar com as novas máquinas.10 10 . Informação fornecida por um membro da Comissão de Fábrica de uma empresa metal-mecânica de São Paulo, no bojo da pesquisa já citada.

Os trabalhadores também competem com os robôs. Surge o desejo, na mais pura inspiração luddista, de preservar o lugar do homem no processo de trabalho, destruindo as novas máquinas. Nas novas condições, incomoda especialmente aos trabalhadores serem controlados pelos robôs e computadores no seu ritmo e modo de trabalhar. Surgem reações de questionamento à propalada superioridade da máquina. Os trabalhadores tentam demonstrar, inclusive a si próprios, que elas não são assim tão eficientes e infalíveis, e que a participação do homem no processo de trabalho continua sendo fundamental, em um ato de reafirmação da própria identidade: "O trabalho com o robô é muito descontínuo, porque ele quebra muito"; "A qualidade da produção seria a mesma, se em vez de robôs, fossem homens trabalhando. A única diferença, é que a linha andaria um pouco mais devagar, o que é até melhor", "Não é a máquina que dá a qualidade. O que a máquina faz, o homem ia gastar mais tempo, mas também fazia", "Para os que estão nas áreas automatizadas, começa a ser um ponto de honra trabalhar mais que o robô: ele pode ser uma máquina, mas de mim ele não ganha".11 11 . Frases contidas nas entrevistas realizadas no bojo da já citada pesquisa.

Finalmente, a vontade de apropriação: "O robô quando passa toca uma musiquinha. Então nós começamos a falar: 'Isso aqui nós vamos usar um dia. Os robôs vão fazer o nosso trabalho'. Quando entrarmos em greve, nós vamos trocar as fitas dos bichos, e eles vão fazer o nosso trabalho. Em vez de tocar música, eles vão falar: 'Olha pessoal, tal dia, tal hora, estamos de greve!'.Claro que não conseguimos isso ainda, mas estamos tentando. Se eles produzem de um lado, vamos tentar, de uma maneira ou de outra, que eles produzam para nós".12 12 . Idem. Depoimento do representante do Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo.

Os depoimentos indicam que o significado da experiência e as suas conseqüências no sentido da constituição da identidade individual e coletiva da classe ainda não estão dados. Pelo contrário, trata-se de um campo em aberto, de luta, e o que irá acontecer depende muito de como essa experiência será elaborada e, nesse sentido, da ação dos sujeitos envolvidos.

"A robotização até agora tem feito o trabalhador se mobilizar mais, pensar mais em uma série de coisas. Como, por exemplo, querer conhecer, saber quantos carros a empresa produz, a qualidade do produto. Eu acho incrível como o trabalhador quer saber para onde a empresa está exportando".13 13 . Idem

O que pode significar o fato de o trabalhador se comparar à máquina , querendo saber quem é o melhor? Por um lado isso pode evidenciar a sua pequenez, a sua fragilidade, a sua reduzida importância no processo de trabalho, a capacidade de o instrumental de trabalho substituí-lo e expulsá-lo, como agente criador, desse processo. Não se trata mais de um sujeito utilizando-se de um objeto (de trabalho) para potencializar a sua própria atividade (e portanto a sua subjetividade). Competindo com a máquina, o trabalhador a ela se equivale, personalizando-a. E provavelmente, nessa equalização, a máquina sairá ganhando: ela é mais rápida, mais sofisticada, mais eficiente.

Mas há outra possibilidade, também presente nas falas acima citadas. Essa mesma comparação pode abrir campo para a revalorização da subjetividade do trabalhador. Através dela pode também ser evidenciado que o trabalhador tem o que a máquina não tem, o que não pode ser substituído, o que não pode ser submetido ao controle e à mensuração. A tomada de contato com as máquinas automatizadas pode estimular e conduzir a um outro plano, fazer reviver a inquietação e a reflexão dos trabalhadores acerca da relação entre o homem e a máquina no processo de trabalho, entre a subjetivação e objetivação da sua atividade e da sua própria vida.

A fantasia de que um dia o robô possa ser utilizado para chamar à greve, que aparece aqui como um sonho, quase uma brincadeira, possui, por sua vez, um importante significado simbólico. Expressão, talvez, do que foi dito anteriormente. A experiência de determinados setores da classe trabalhadora brasileira, de onde se origina essa fala, tem sido, nos últimos anos, sem dúvida, a de ampliar os limites do possível. E certamente não está esgotada. A questão da apropriação dos benefícios das novas tecnologias aparece assim no horizonte desses trabalhores como algo prospectivo e positivo, que, se convenientemente considerado, poderá ter grande importância na elaboração de uma estratégia de resposta.

Até mesmo o fascínio dos trabalhadores em relação às máquinas automatizadas, que tende a ser considerado pelos seus representantes como manifestações de uma "falsa consciência", pode ser pensado também de um outro ponto de vista. Muitas vezes o trabalho nas novas máquinas representa melhorias efetivas para os que passam a operá-las: diminuição do esforço físico, do trabalho insalubre, da periculosidade. Para alguns setores, principalmente os operários qualificados da manutenção, pode significar, também, o aumento da qualificação e da valorização profissional. Assim como o acesso e manuseio de uma série de novos e mais sofisticados conhecimentos, ligados ao exercício do seu trabalho, possibilidades presentes há muito tempo no imaginário desses trabalhadores como algo desejado e do qual sempre estiveram excluídos.

Por tudo isso, o "fascínio"do trabalhador em relação às máquinas automatizadas pode e deve ser visto de outra maneira que algo puramente negativo. Evidentemente, do ponto de vista dos dirigentes sindicais, a questão deve ser pensada em termos coletivos. Mas, inclusive isso, pressupõe a consideração da multiplicidade de interesses e necessidades, que podem ser diversos e até mesmo conflitantes, presentes nos diferentes setores da classe trabalhadora.

A expectativa favorável de alguns grupos dentro das fábricas pode não ser concretizada no momento em que as novas máquinas começam a ser operadas. Em vez de melhoria pode haver piora nas condições de trabalho, como o aumento dos ritmos, da tensão psicológica, desqualificação e surgimento de novos acidentes de trabalho.14 14 Ver Abramo, Laís, 1986. "A Subjetividade do Trabalhador Frente à Automação: Percepção Operária dos seus Efeitos Sociais"in Sindicatos e Automação no Brasil, op. cit. As melhorias introduzidas podem, por outro lado, transformar-se em privilégios de determinados grupos de trabalhadores, acirrando as desigualdades internas. Além disso, podem ser implantadas em detrimento de outras necessidades e interesses dos trabalhadores, como, por exemplo, a manutenção do nível de emprego.

Todos esses aspectos certamente estão no centro das preocupações dos dirigentes sindicais e das críticas por eles formuladas a certas reações ocorridas nas bases. Porém, considerar a fascinação como algo puramente negativo talvez seja uma saída mais fácil e não o melhor caminho para resolver os inúmeros desafios presentes na elaboração de uma estratégia coletiva de enfrentamento da questão da automação. Assim procedendo, os dirigentes sindicais correm o sério risco de se desarmar para enfrentar as mudanças na composição técnica da classe trabalhadora que tendem a ocorrer, e perder para o movimento e a organização coletiva setores cada vez mais importantes, numérica e estrategicamente, como aconteceu em alguns países da Europa Além disso, correm o risco de estreitar a própria estratégia, formulada por muitos deles, de valorização subjetiva e integral do trabalhador no processo de trabalho, descartando, como manifestação de "falsa consciência", carências e necessidades presentes entre os trabalhadores, e que podem ser tão legítimas como um salário condigno ou a garantia de emprego.

Evidentemente, a possibilidade de desenvolver a positividade contida na própria reação espontânea dos trabalhadores frente ao processo de automação dependerá da capacidade efetiva de abrir um espaço de negociação capaz de reduzir os efeitos negativos da introdução das novas tecnologias e ampliar os seus efeitos positivos, do ponto de vista das necessidades sociais. Dependerá da força própria do movimento sindical em cada país da região, da sua capacidade de elaborar estratégias propositivas e de constituir alianças. É de se supor que essas condições serão bastante diferentes nos diversos países latino-americanos, e, no geral, mais precárias do que aquelas que o movimento sindical europeu conseguiu construir.

De qualquer forma, do ponto de vista da possibilidade de abrir caminhos para a atuação sindical frente à crise e aos processos de reconversão industrial, é importante pensar que a questão não está de antemão definida, e que há um espaço aberto, de disputa social e política, em torno do sentido que irá adquirir a modernização tecnológica nos países da região.

Notas:

  • 1 O salário médio dos trabalhadores da indústria automobilística nos EUA, por exemplo, é atualmente 12,4 vezes superior ao do Brasil e 11,0 vezes superior ao da Coréia. (Jornal do Brasil, 15/3/87, p. 39.
  • 3. Ver Dláz , Álvaro, 1986. "Crise e Modernização Tecnológica na Indústria Metal-Mecanica Brasileira"in Sindicatos e Automação no Brasil, CEDEC-UnB (no prelo).
  • 5. Cf. Campos, Geraldo Lino, "Robótica: Estado da Arte"in Boletim Sobracom, ano II, nÂş 23, set./out. de 1985.
  • 6. Cf. Foot Hardman, Francisco: "Trabalho e lazer no movimento operário",
  • prefácio à Lafargue, Paul, O Direito à Preguiça, Ed. Kairós, S.Paulo, 1980.
  • 7. Ver, por exemplo, Asimov, Isaac, Eu, Robô e O Homem Bicentenário, Hemus, São Paulo, 1980.
  • 8. Entre elas as citadas na nota 3, cujos resultados finais serão brevemente publicados in Neder, Ricardo et alii, Sindicatos e Automação no Brasil e Peliano et allii.
  • Impactos Sociais da Automação Microeletrônica na Indústria Brasileira e a investigaç
  • ão em curso no CEIL (Centro de Estudios e Investigactones Laboráles de Buenos Aires) que tem como produto parcial o relatório de Neffa, Julio, "Proceso de Trabajo, Nuevas Tecnologias Informatizadas, Condiciones y Meio Ambiente de Trabajo".
  • 14 Ver Abramo, Laís, 1986. "A Subjetividade do Trabalhador Frente à Automação: Percepção Operária dos seus Efeitos Sociais"in Sindicatos e Automação no Brasil, op. cit.
  • 1
    . O salário médio dos trabalhadores da indústria automobilística nos EUA, por exemplo, é atualmente 12,4 vezes superior ao do Brasil e 11,0 vezes superior ao da Coréia. (
    Jornal do Brasil, 15/3/87, p. 39. )
  • 2
    . Com uma jornada oficia) de trabalho de 40 horas semanais, o metalúrgico norte-americano chega hoje a permanecer até 58 horas dentro da fábrica, quando já esteve perto de conquistar a jornada de 32 horas. Apesar disso, houve uma queda de 30% no nível de emprego do setor automobilístico entre 1979 e 1985, contra um aumento de produtividade da ordem de 15%. (Ct.
    Jornal do Brasil, 15/3/87.)
  • 3
    . Ver Dláz , Álvaro, 1986. "Crise e Modernização Tecnológica na Indústria Metal-Mecanica Brasileira"in
    Sindicatos e Automação no Brasil, CEDEC-UnB (no prelo).
  • 4
    . Operários da linha automatizada de uma empresa automobilística, de São Bernardo do Campo, Brasil. Entrevista realizada em 198.5 no bojo da pesquisa -Impactos Sociais da Tecnologia Microeletrônica na Indústria Brasileira"e "Resposta Sindical à Automação Microeletrônica na Indústria Metalúrgica", convênio IPEA-CNRH-PNUD-CEDEC.
  • 5
    . Cf. Campos, Geraldo Lino, "Robótica: Estado da Arte"in
    Boletim Sobracom, ano II, nº 23, set./out. de 1985.
  • 6
    . Cf. Foot Hardman, Francisco: "Trabalho e lazer no movimento operário", prefácio à Lafargue, Paul,
    O Direito à Preguiça, Ed. Kairós, S.Paulo, 1980.
  • 7
    . Ver, por exemplo, Asimov, Isaac,
    Eu, Robô e
    O Homem Bicentenário, Hemus, São Paulo, 1980.
  • 8
    . Entre elas as citadas na nota 3, cujos resultados finais serão brevemente publicados in Neder, Ricardo et alii,
    Sindicatos e Automação no Brasil e Peliano et allii.
    Impactos Sociais da Automação Microeletrônica na Indústria Brasileira e a investigaç ão em curso no CEIL (Centro de Estudios e Investigactones Laboráles de Buenos Aires) que tem como produto parcial o relatório de Neffa, Julio, "Proceso de Trabajo, Nuevas Tecnologias Informatizadas, Condiciones y Meio Ambiente de Trabajo".
  • 9
    .Operários da linha automatizada de uma empresa automobilística de São Bernardo. Entrevista realizada na pesquisa já citada.
  • 10
    . Informação fornecida por um membro da Comissão de Fábrica de uma empresa metal-mecânica de São Paulo, no bojo da pesquisa já citada.
  • 11
    . Frases contidas nas entrevistas realizadas no bojo da já citada pesquisa.
  • 12
    . Idem. Depoimento do representante do Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo.
  • 13
    . Idem
  • 14
    Ver Abramo, Laís, 1986. "A Subjetividade do Trabalhador Frente à Automação: Percepção Operária dos seus Efeitos Sociais"in
    Sindicatos e Automação no Brasil, op. cit.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 1988
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