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A transição e os atores

A transição e os atores

A palavra transição freqüenta, hoje, a boca dos principais políticos do governo e da oposição. O seu significado e a forma como deve ocorrer, no entanto, nem sempre coincidem para os vários atores do nosso cenário político. Em vista disso, LUA NOVA entrevistou o governador Tancredo Neves, de Minas Gerais e do PMDB, e o presidente Luis Inácio Lula da Silva, do PT.

Tancredo Neves foi entrevistado, em Belo Horizonte, por José Álvaro Moisés, editor de LUA NOVA, e pelo repórter Hamilton Cardoso. Luis Inácio Lula da Silva foi ouvido, em São Paulo, pelo repórter.

A versão Tancredo

PERGUNTA – Como o senhor vê o processo de transição do autoritarismo para a democracia no Brasil?

TANCREDO – Bem, registram-se, entre os povos, diferentes experiências de transição política do autoritarismo à democracia. Estas experiências, embora semelhantes em muitos aspectos, não são necessariamente iguais. Um primeiro exemplo é o que ocorreu no Brasil em 1945, no final do Estado Novo. Os próprios militares viraram-se contra o governo autoritário do qual eles, antes, faziam parte, e promoveram o golpe de 29 de outubro, conduzindo, assim, à transição para a democracia por intervenção dos próprios militares. Outra forma de transição é a planejada, como ocorreu na Espanha, onde após a morte de Franco, o rei tomou em suas mãos o processo de transição e, junto com as forças vivas da Nação, planejou o retorno à democracia, através de acordos amplos celebrados com toda a sociedade, que culminaram nos vários pactos – notadamente o pacto de Moncloa – e nos acordos políticos que permitiram a reorganização da sociedade em bases democráticas. Existem, ainda, processo de transição que ocorrem de forma violenta, como no caso argentino, onde o povo se mobilizou, diante da derrota militar na guerra das Malvinas, e com a galvanização das aspirações populares pelas forças de oposição, os militares foram obrigados a deixar o poder, convocar as eleições diretas para a presidência da República e devolver, de uma só vez, todos os direitos da Nação.

Por fim, existe o exemplo brasileiro atual que é uma experiência inédita de transição. Uma espécie de transição por etapas, onde as conquistas democráticas vão sendo feitas pouco a pouco, a democratização é feita gradativamente. Aqui, ocorreu, em primeiro lugar, a eliminação dos atos de exceção, como o AI-5, seguida da restituição dos poderes do judiciário, como foi o caso do restabelecimento do habeas corpus. Depois, veio a luta contra a repressão, o gradual restabelecimento da autonomia sindical, a liberdade de imprensa, a anistia e as eleições diretas para os governadores de Estado. Estamos, agora, na fase final, onde o que deve ser conquistado são as eleições diretas para a presidência da República e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.

MOISÉS – Como o senhor definiria o programa mínimo para a transição imediata?

TANCREDO – Na ordem institucional, a primeira decisão a tomar seria, realmente, a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte e a fixação da data para as eleições diretas. Segundo, dentro do debate da Constituição, viriam todas as teses controvertidas, a restauração plena da República que, hoje, não existe; a reformulação e a modernização da Federação, através de uma reforma tributária que leve a uma mais justa distribuição de renda nacional; e a questão do parlamentarismo. No plano econômico, a primeira providência é a renegociação da dívida externa que compreende diversos aspectos: primeiro, o da contenção do endividamento. Nós não podemos ficar sujeitos a um sistema de endividamento subordinado às taxas flutuantes de juros. Só no primeiro trimestre de 1984, nós pagamos um bilhão e duzentos milhões de dólares, acrescidos à nossa dívida, apenas com a alteração da taxa de juros, nos Estados Unidos. Não há nação que suporte um sistema que foge a todas as regras da justiça social e da justiça internacional. Em segundo lugar, tem o problema da amortização, que não se resolve a não ser com a moratória de cinco anos, abrangendo juros e capital. E, depois, pra que ter um dispositivo de amortização compatível com o nosso processo de desenvolvimento econômico. Nós não podemos manter a nação permanentemente em recessão. Isto significa reduzir a nação à fome, ao desemprego e à destruição de nosso parque produtivo, apenas para nos submetermos às exigências dos nossos credores, externos. Então, temos que estabelecer um sistema de amortização compatível com a nossa capacidade de amortizar. E essa capacidade de amortização estará sempre em função da nossa capacidade de exportação. A nação então retomaria o processo de desenvolvimento econômico e pagaria depois, acrescentando à dívida o que se deixar de pagar, negociadamente, nesses cinco anos. Seria uma política de retomada do desenvolvimento econômico para vencer o desemprego. Só dessa maneira se pode assegurar à Nação um crescimento mínimo de 5 a 6% do Produto Interno Bruto, porque senão ela estará fatalmente condenada à desagregação. No plano social eu acho que a política tem que ser mais agressiva ainda. O monetarismo ortodoxo, que nos impuseram nestes últimos 20 anos, não gerou nenhuma melhoria nas condições de vida das classes mais injustiçadas. Nós temos uma dívida social que abrange, inclusive, a mortalidade infantil, que é das mais altas do mundo; nós temos o problema do menor abandonado que é um desafio, uma chaga sangrando permanentemente nas costas da sociedade brasileira.

A reforma agrária não pode ser adiada por mais tempo, porque ela vai resolver, em grande parte, o problema do desemprego, vai ampliar o mercado interno do Brasil e vai dar estabilidade a essa massa rural que está sendo expulsa dos campos para empobrecer ainda mais as periferias das grandes cidades.

É evidente que, em crise, com choque, você não resolve os problemas. O que a gente tem que fazer é que não haja um conflito. Você não desloca interesses instalados sem haver realmente um conflito e um atrito de interesses. Há que haver muita inteligência, com imaginação, mas na lei e na ordem.

Parece que nós estamos vivendo no século XVIII, discutindo eleições diretas/indiretas, legitimidade de poder, representatividade, o voto do analfabeto. São coisas de um ridículo total, não é? Não há nação civilizada, no mundo, em que isto não esteja definitivamente resolvido, ninguém admite sequer que qualquer coisa dessa seja levantada. Nós devíamos estar lutando é pela democracia econômica. O que caracteriza a democracia econômica? É a participação equitativa de todos, com justiça social, na renda nacional. É a ascensão da massa a todos os benefícios da civilização: que haja escola gratuita a todos e em todos os lugares, que haja alimentação e que ninguém tenha fome e assim por diante. Mas nós estamos alienados destes problemas, porque existe o problema institucional. Ele tem um grande poder de absorção. A gente tem até a impressão de que este processo é dirigido para tirar a atenção do povo destas suas reivindicações no plano econômico e no plano social.

MOISÉS – O senhor mencionou o pacto de Moncloa, na Espanha, que levou a um entendimento amplo entre as diversas forças políticas. Na verdade foram dois ou três pactos que, quando se realizaram, já tinha havido na Espanha rupturas da estrutura sindical franquista, já tinha havido a recuperação do direito de greve e até os partidos ilegais tinham recuperado a sua legalidade. Chega-se, então, ao pacto com um quadro social e político mais ou menos ordenado com avenidas e vias abertas. Como é que o senhor veria isto?

Atualizar a lei de greve às novas conquistas

TANCREDO – Bem, nossas conquistas sindicais não têm sido pequenas. Ainda falta muito, os nossos sindicatos ainda precisam de fortalecimento, mas eles já têm uma presença ativa. Toda vez que um sindicato, no Brasil, se posiciona em torno de uma reivindicação salarial, ele leva a melhor. Onde o sindicato é, realmente, uma força que não se impõe é nas reivindicações políticas. Quando o sindicato sai das reivindicações sindicais e caminha para as reivindicações políticas, evidentemente, estabelecem-se dentro do próprio sindicato divisões decorrentes das posições políticas de cada um. Mas eu acho que a reforma da Consolidação das Leis de Trabalho se impõe. Ela tem que ser feita com urgência. Outro item de uma reforma social profunda, no Brasil, é o da lei de greve: ela deve ser atualizada às novas conquistas da própria massa operária no Brasil.

MOISÉS – O senhor veria isso como pré-condições para se chegar ao entendimento amplo ou como o seu resultado?

TANCREDO – Eu acho que precisamos disso para chegarmos aos objetivos, porque senão vai ser muito difícil.

MOISÉS – Governador, nós avançamos através de um processo a "conta-gotas", como o senhor o define, na base da supressão dos aspectos mais repressivos do regime, como o AI-5, mas nós ainda, convivemos com a Lei de Segurança Nacional, com as "salvaguardas" do Estado, etc. O senhor veria isto como parte da negociação?

TANCREDO – A Lei de Segurança Nacional já não é a mesma de sua origem, que era uma lei caracterizadamente fascista. Muito embora abrandada, nestes últimos dez anos, com a eliminação de muitos dos delitos que figuravam na lei original, ela ainda precisa sofrer transformações. Uma lei de segurança vale pelo seu espírito; uma coisa é uma legislação elaborada por um regime ditatorial e autoritário, outra coisa é uma lei de segurança elaborada num regime democrático. Todas as nações do mundo possuem as suas leis de segurança, até as nações socialistas. Nós temos uma lei de segurança que ainda é mais uma lei de segurança do Estado que uma lei de segurança da Nação. Nós devemos ter uma lei de segurança que defenda o cidadão contra o Estado. Não tenho dúvida. A Consolidação das Leis de Trabalho, a Lei de Segurança Nacional, a lei de greve... todas devem estar incluídas na agenda de negociações. Você não pode aplicar soluções absolutas em política. Política é a arte do relativo. Você não faz política como quer. Você só faz este tipo de política quando realiza uma revolução, torna a revolução vitoriosa e, então, consegue todos os seus objetivos, mas de revolução, nem se cogita no Brasil.

MOISÉS – O senhor vê isso afastado?

TANCREDO – Muito afastado. No Brasil, não há condições mínimas para isso. Se não tivesse havido um abrandamento nos instrumentos do regime de 64, nós teríamos chegado a uma convulsão social. A mobilização pelas diretas demonstrou isso. Essas massas numerosas não vieram às ruas só pelas diretas. As diretas eram uma idéia-força. O que levou toda essa multidão às ruas foi, justamente, uma manifestação de inconformismo e insatisfação, eu diria mesmo, de revolta contra o custo de vida, havia o protesto contra a corrupção, a violência, o continuismo, contra o retardamento das soluções dos problemas do povo. Foi um grande movimento por transformações e mudanças.

MOISÉS – E parar tudo isso, neste momento, não vai criar uma contradição para as forças de oposição; se elas tiverem de ir à mesa de negociações, estarão enfraquecidas?

TANCREDO – Não. Porque, nesta luta, levando o movimento à radicalização, vamos ter um retrocesso. Não pode ser uma solução emocional e irracional. Veja bem, o divórcio entre o poder e a Nação é muito grande. Mas o poder é muito forte. É mais forte que a Nação. É aí que nós temos que ter senso político suficiente para fazer as conquistas sem traumatismos mutilantes.

HAMILTON – Mas as oposi-ções estarão negociando, então, em situação de fraqueza...

TANCREDO – Não de fraqueza, mas de carência dos instrumentos de força. Nós temos instrumentos de apoio moral, de apoio social, de apoio do povo, mas não temos os instrumentos necessários para impor essa decisão.

O Congresso deve atender às aspirações populares

HAMILTON – Que instrumentos faltam?

TANCREDO – Nós temos que convencer o Congresso de que ele deve atender às aspirações populares. Eu tenho para mim que se, amanhã, nós conseguíssemos tornar vitoriosas as diretas, no Congresso, as Forças Armadas apoiariam e sustentariam a emenda das diretas. Se, porém, o Congresso tiver força para decidir contra as diretas, terá também o apoio das instituições militares, dentro do seu compromisso de defender a Constituição.

HAMILTON – Governador, que cacife a oposição teria para negociar com o governo numa situação em que a luta está centrada dentro do Congresso, as mobilizações de rua não têm mais aquele vigor e um setor do Congresso está sob a influência direta do governo?

TANCREDO – O grande cacife das oposições são, exatamente, as mobilizações da opinião pública que ela comandou e levou a efeito. O governo e o seu partido não são tão insensíveis a ponto de continuar ignorando este grande movimento. Este é o grande cacife que nós temos na mesa de negociação. Em segundo lugar, vem a consciência que o governo tem de que, se não chegar a um entendimento, vai caminhar para o confronto que ele não deseja. Porque ele pode, inclusive, ser soterrado na hora do confronto. Eu acho que hoje é a autodefesa dos seus interesses que leva, realmente, a uma negociação mais ampla, procurando tanto quanto possível aproximar-se o mais rapidamente das aspirações populares. O movimento de mobilização pelas diretas está plenamente vitorioso. Pode não ser pra já, pode ser para daqui a dois anos e meio, pode ser para daqui a quatro anos, mas já é uma vitória. E se não houvesse a mobilização popular, nós só iríamos ter eleições diretas – se tivéssemos – depois de seis anos da posse do sucessor de Figueiredo. Agora, o movimento foi bonito...

MOISÉS – E a hipótese do mandato-tampão?

TANCREDO – Quer saber de uma coisa? O mandato-tampão, com o voto direto, até que eu apoiaria, porque ele é, ao menos, uma solução que atenderia à reivindicação básica e fundamental do povo. Há quem defenda o mandato-tampão através do Colégio Eleitoral para abrir um espaço de transição, mas eu acho que ele deveria se fazer com disputa, com voto direto. Nós iríamos à praça pública pleitear democraticamente a conquista do poder. O mandato-tampão, com voto direto, teria a grande vantagem de aproximar ainda mais o povo das diretas. Se você pensar melhor, ninguém apóia mandato curto, por razões doutrinárias: do ponto de vista da conveniência administrativa, em dois anos e meio, o que se pode fazer?

Mas, se esse mandato vier realmente, para atender a uma conjuntura, e o novo presidente for apenas para preparar as condições para o futuro presidente, aí é diferente. Ele vai, por exemplo, promover a Constituinte, reformular a política econômico-financeira, vai adotar uma política de impacto no campo social, gerar empregos e aliviar a situação de carência em que vive a grande maioria da população mais injustiçada. Se ele buscar, realmente, tudo isso e conduzir à convocação de uma Constituinte, quando da eleição do próximo Congresso, em 86, até que se explica. Mas, só por esse aspecto – que eu chamaria de psicologia social e política – porque permitiria aproximar mais as diretas do povo.

MOISÉS – Agora, qual é a sua convicção pessoal mais profunda? Qual será o próximo passo? Através da emenda, vai se chegar a um entendimento?

TANCREDO – É o que eu acredito. Quer dizer: é a fatalidade, é a inexorabilidade da evolução do processo político.

MOISÉS – O senhor mencionava, no início, que a tese de conciliação não pode ser vista do ponto de vista regressivo, ou seja, apenas uma conciliação das elites contra o povo. Como é que se pode imaginar a hipótese de entendimento, conciliação, que abrigasse a todos os segmentos da sociedade?

TANCREDO – Eu acho a conciliação muito difícil, ela não é fácil. Os partidos se extremaram e os candidatos do PDS não se mostram dispostos a qualquer tipo de renúncia. Aliás, a conciliação para ser efetiva não poderá ser um entendimento entre cúpulas partidárias. Esta seria uma conciliação elitista, uma marginalização do povo e até contra os seus interesses. A conciliação teria que se fazer em torno de um programa mínimo de ação política, em que se contemplassem aquelas reivindicações decorrentes das mais sentidas exigências da nossa gente. Em torno desse programa se aglutinariam todos os segmentos da sociedade. O entendimento se faria de maneira estrutural, isto é, de forma vertical, abrangendo nos seus objetivos os interesses fundamentais das diversas categorias sociais, dando-se ênfase à situação aflitiva e desesperadora das camadas mais sofridas do nosso povo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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