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As agonias do liberalismo

The agonies of liberalism

Resumos

A ideologia liberal foi capaz de criar, a partir da Revolução Francesa, uma geocultura legitimadora da economia-mundo capitalista. O refor-mismo racional apregoado pelos liberais, afinal aceito também pelas forças de contestação à ordem, revelou-se uma defesa eficaz contra as reivindicações das "classes perigosas" desde 1789. Argumenta-se que essa defesa, entretanto, foi destruída pela revolução de 1968, cujo último ato foi o colapso do comunismo em 1989. Discutem-se os desafios que se apresentam à ação política em uma situação em que as desigualdades produzidas pelo capitalismo já não podem ser justificadas como o foram no passado.


The liberal ideology was able to create, from the French Revolution onwards, a legitimating geoculture for the capitalist world-economy. The rational reformism proclaimed by the liberals, and eventually adopted by the anti-system forces as well, have proved to be an efficient defence against the demands of the "dangerous classes" since 1789. Such defence, however, was destroyed by the revolution of 1968, the last act of which being the colapse of communism in 1989. The challanges to political action, presented by a situation in which the inequalities of capitalism can no longer be justified in the way they were in the past, are discussed.


FRONTEIRAS

As agonias do liberalismo* * "The Agonies of Liberalism. What Hope Progress?" New Left Review 204, março - abril de 1994, pp.3-17. Tradução de Simone Rossi Pugin.

The agonies of liberalism

Immanuel Wallerstein

Atualmente na Maison Des Sciences de L'Homme, é presidente da ISA - International Sociological Association

RESUMO

A ideologia liberal foi capaz de criar, a partir da Revolução Francesa, uma geocultura legitimadora da economia-mundo capitalista. O refor-mismo racional apregoado pelos liberais, afinal aceito também pelas forças de contestação à ordem, revelou-se uma defesa eficaz contra as reivindicações das "classes perigosas" desde 1789. Argumenta-se que essa defesa, entretanto, foi destruída pela revolução de 1968, cujo último ato foi o colapso do comunismo em 1989. Discutem-se os desafios que se apresentam à ação política em uma situação em que as desigualdades produzidas pelo capitalismo já não podem ser justificadas como o foram no passado.

ABSTRACT

The liberal ideology was able to create, from the French Revolution onwards, a legitimating geoculture for the capitalist world-economy. The rational reformism proclaimed by the liberals, and eventually adopted by the anti-system forces as well, have proved to be an efficient defence against the demands of the "dangerous classes" since 1789. Such defence, however, was destroyed by the revolution of 1968, the last act of which being the colapse of communism in 1989. The challanges to political action, presented by a situation in which the inequalities of capitalism can no longer be justified in the way they were in the past, are discussed.

Encontramo-nos em um triplo aniversário: o 25º aniversário da fundação da Kyoto Seika University, em 1968, o 25º aniversário da revolução mundial de 1968 e o 52º aniversário do exato dia, ao menos segundo o calendário norte americano, do bombardeio de Pearl Harbor pela esquadra japonesa. Iniciarei apontando o que penso que cada um destes aniversários representa.1 1 Esta palestra foi proferida durante o 25º aniversário da fundação da Kyoto Seika University, em 07 de dezembro de 1993.

A fundação da Kyoto Seika University é um símbolo de um dos mais importantes desenvolvimentos na história do nosso sistema mundial: a extraordinária expansão quantitativa das estruturas universitárias nos anos cinqüenta e sessenta.2 2 Ver Meyer, John W. et alli. "The World Educational Revolution, 1950-1970". in Meyer, J.W. e Hannan, M.T. National Development 1950-1970. Chicago, 1979. Num certo sentido, este período foi o da culmi-nação da promessa iluminista de progresso por meio da educação. Em si mesmo, isto foi algo maravilhoso, e que celebramos hoje, aqui. Mas, como muitas coisas maravilhosas, teve suas complicações e seus custos. Uma das complicações foi a de que a expansão do ensino superior produziu um grande número de graduados que insistiam em empregos e salários condizentes com seu status, e começou a surgir alguma dificuldade em responder a esta demanda, pelo menos tão pronta e completamente quanto foi formulada. O custo foi o custo social de manutenção desta educação superior expandida, o que era apenas uma parte do custo do bem-estar em geral para o significativamente ampliado estrato médio do sistema mundial. Este custo ampliado do bem-estar começaria a pesar para os tesouros estatais e, cm 1993, discute-se no mundo todo a crise fiscal dos Estados.

Isto nos traz ao segundo aniversário, aquele da revolução mundial de 1968. Esta revolução iniciou-se na maior parte dos países, mas não em todos, no interior das universidades. Uma das questões que serviu de catalisador foi sem dúvida a súbita ansiedade destes futuros graduados quanto às suas perspectivas de emprego. É claro que este fator egoísta não foi o foco principal da explosão revolucionária, mas apenas um sintoma a mais do problema genérico, a preocupação com o conteúdo real de todo o conjunto de promessas contidas no cenário iluminista de progresso — promessas que, na sua superfície, pareceram realizadas no período posterior a 1945.

E isto nos traz ao terceiro aniversário, o ataque a Pearl Harbor. Foi este ataque que trouxe os Estados Unidos à Segunda Guerra Mundial como um participante formal. Mas a guerra não foi principalmente entre o Japão e os Estados Unidos; o Japão, se me permitem dizê-lo, foi um jogador de segundo nível neste drama global, e o seu ataque, um evento menor em uma batalha de grande duração. A guerra foi fundamentalmente entre a Alemanha e os Estados Unidos, e vinha sendo, de fato, desde 1914, uma guerra contínua, uma "guerra de trinta anos" entre os dois principais contendores pela sucessão da Grã-Bretanha como poder hegemônico do sistema mundial. Como sabemos, os Estados Unidos venceriam esta guerra, se tornariam hegemônicos e seriam, com isso, os que presidiriam o triunfo mundial das promessas iluministas.

Assim, organizarei minhas observações a partir desse conjunto de temas, caracterizados por meio destes três aniversários. Discutirei primeiramente a era de esperança e luta pelos ideais iluministas, de 1789 a 1945. Em seguida procurarei analisar a era de realização das esperanças iluministas, esperanças que foram, no entanto, falsamente realizadas, entre 1945-1989. Em terceiro lugar, voltarei à era atual, o "Período Negro", iniciado em 1989 e que continuará por possivelmente meio século. Finalmente, tratarei das escolhas que se apresentam diante de nós — agora, e também logo mais.

AS FUNÇÕES DO LIBERALISMO

A primeira grande expressão política do Iluminismo, em todas as suas ambigüidades, foi sem dúvida a Revolução Francesa. O que foi afinal esta Revolução é uma questão que se tornou, em si mesma, uma das grandes ambigüidades da nossa era. O Bicentenário na França em 1989 foi a ocasião de um importante esforço para substituir, por uma nova interpretação deste grande acontecimento, a há muito dominante "interpretação social", tida agora como fora de moda.3 3 Para uma excelente e bastante detalhada descrição dos debates intelectuais sobre o bicentenário na França, ver Kaplan, Steve. Adieu 89. Paris, 1993.

A Revolução Francesa em si mesma foi o ponto final de um longo processo, não apenas na França, mas em toda a economia-mundo capitalista como um sistema histórico. Daí boa parte do globo, em 1789, já se encontrar inserida neste sistema histórico por três séculos, durante os quais a maioria das suas instituições-chave haviam sido estabelecidas e consolidadas: a axial divisão do trabalho, com uma transferência significativa de mais-valia de zonas periféricas para zonas centrais; o primado da recompensa para aqueles operando no interesse de uma interminável acumulação do capital; o sistema interestatal composto pelos chamados Estados soberanos, os quais entretanto eram constrangidos pela estrutura e pelas "regras" deste sistema interestatal; e a crescente polarização deste sistema mundial, não apenas econômica, mas social, e que estava no limite de tornar-se também demográfica.

O que ainda faltava a esse sistema mundial, contudo, era uma geocultura legitimadora. As doutrinas básicas estavam sendo forjadas pelos teóricos do Iluminismo no século XVIII (e ainda antes disso), mas seriam socialmente institucionalizadas apenas com a Revolução Francesa. Assim, o que a Revolução Francesa fez foi desencadear apoio público, e até mesmo clamor, para a aceitação de duas novas visões mundiais: a mudança política entendida como algo normal e não excepcional; e a soberania residindo no "povo" e não em um soberano. Em 1815, Napoleão, herdeiro e protagonista mundial da Revolução Francesa, foi vencido, seguindo-se então uma suposta "restauração" na França e em todos os lugares onde os anciens régimes haviam sido derrubados. Mas a restauração não pôde, e não poderia, desfazer a vasta aceitação dessas visões mundiais, e, a fim de enfrentar a nova situação, foi criada a trindade das ideologias do século XIX — o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo —, que forneceram a linguagem dos debates políticos subseqüentes no interior da economia mundial capitalista.4 4 Para uma análise deste processo, ver o meu "The French Revolution as a World-Historical Event". in Unthinking Social Science: The Limits of Nineteenth-Century Paradigms. Cambridge, 1991.

Das três ideologias, entretanto, foi o liberalismo que emergiu triunfante, e tão cedo quanto o que pode ser entendido como a primeira revolução mundial desse sistema, a revolução de 1848.5 5 O processo pelo qual o liberalismo ocupou o centro do palco e transformou os seus dois concorrentes, conservadorismo e socialismo, em virtuais subordinados, ao invés de oponentes, é discutido no meu "Trois idéologies on une seule? La problématique de la moderni-té" in Genèses 9, 1992. Isto porque o liberalismo foi o mais capaz de fornecer uma geocultura viável para a economia-mundo capitalista, legitimando as outras instituições tanto aos olhos das elites do sistema como, e em um grau significativo, aos olhos da maioria da população, as chamadas pessoas comuns.

Uma vez que o povo passou a entender que a mudança política era normal, e que ele, por princípio consistia no soberano, isto é, no autor da mudança política, tudo o mais era possível. E este, é claro, foi precisamente o problema enfrentado pelos poderosos e privilegiados no interior da estrutura da economia-mundo capitalista. O foco imediato dos seus temores foi cm boa parte o pequeno mas crescente grupo de trabalhadores industriais urbanos. Mas, como a Revolução Francesa demonstrara amplamente, os trabalhadores rurais poderiam ser também bastante problemáticos ou assustadores, na perspectiva dos poderosos e privilegiados. Como essas "classes perigosas" seriam impedidas de levar aquelas normas demasiadamente a sério e, com isso, interferir no processo de acumulação do capital, solapando as estruturas básicas do sistema? Este foi o dilema político que se apresentou agudamente às classes governantes na primeira metade do século XIX.

Uma resposta óbvia era a repressão. E a repressão foi amplamente utilizada. A lição da Revolução de 1848, no entanto, foi a de que a simples repressão não era, no limite, muito eficaz, pois provocou as classes perigosas, irritando-as mais do que acalmando-as. Percebeu-se que a repressão, para que fosse efetiva, deveria ser combinada a concessões. Por outro lado, os supostos revolucionários da primeira metade do século XIX aprenderam também uma lição: levantes espontâneos tampouco eram muito eficazes, uma vez que eram controlados com razoável facilidade. As ameaças de insurreições populares, se é que deveriam acelerar uma mudança significativa, necessitavam ser combinadas à organização política consciente e de longa duração.

O liberalismo ofereceu-se como a solução imediata para as dificuldades políticas de ambos, direita e esquerda. Para a direita, pregou concessões; para a esquerda, organização política. A ambos pregou paciência: a longo prazo todos ganhariam mais tomando-se uma via intermediária. O liberalismo foi o centrismo encarnado e a sua oferta era atraente. Isso porque não pregou um mero centrismo passivo, mas uma estratégia ativa. Os liberais depositaram sua fé em uma premissa-chave do pensamento ilu-minista: a de que a ação e o pensamento racionais consistiam no caminho para a salvação, isto é, para o progresso. Os homens (a inclusão das mulheres raramente surgia como uma questão) eram naturalmente racionais, potencialmente racionais e, no limite, racionais.

Concluía-se que a "mudança política normal" deveria seguir a trilha indicada pelos mais racionais — isto é, os mais educados, mais capacitados c conseqüentemente, os mais sábios. Estes homens poderiam indicar o melhor caminho a ser perseguido, ou seja, poderiam indicar quais as reformas necessárias a serem realizadas e promulgadas. O reformismo ra- , cional foi o conceito organizador do liberalismo e ditou, portanto, a posição aparentemente contraditória dos liberais a respeito da relação entre o indivíduo e o Estado. Os liberais podiam simultaneamente argumentar que o indivíduo não deveria ser constrangido pelos mandatos (coletivos) do Estado e que a ação do Estado era necessária para minimizar as injustiças contra o indivíduo. Eles podiam, então, ser simultaneamente favoráveis ao laissez-faire e às leis de regulamentação do trabalho, pois o que importava aos liberais não era nem o laissez-faire, nem essas leis per se, mas sim o progresso deliberado e estável em direção à boa sociedade, que seria atingida mais facilmente, e talvez somente, por meio do refor-mismo racional.

Essa doutrina do reformismo racional provou-se extraordinariamente atrativa na prática, parecendo responder às necessidades de todos. Àqueles do setor conservador, pareceu ser este o caminho para acalmar os instintos revolucionários. Alguns direitos de sufrágio aqui, um pouco de provisões do Estado de Bem-Estar ali, somados a uma unificação das classes sob urna identidade nacionalista comum — tudo isso resultou, ao final do século XIX, em uma fórmula que apaziguou as classes trabalhadoras, enquanto mantinha os elementos essenciais do sistema capitalista. Os poderosos e privilegiados não perderam nada de importância fundamental c puderam dormir mais tranqüilamente (com menos revolucionários nas suas janelas).

Para aqueles da ala radical, por outro lado, o reformismo racional pareceu oferecer uma guarida a meio caminho, fornecendo algumas mudanças fundamentais no presente, sem nunca eliminar a esperança e as expectativas por futuras mudanças fundamentais. Essa doutrina propiciou a esses homens, acima de tudo, alguma coisa durante suas vidas. E eles, então, puderam dormir mais pacificamente (com menos policiais nas suas janelas).

Não pretendo minimizar cento e cinqüenta anos de lutas políticas contínuas — algumas delas violentas, muitas delas apaixonanadas, a maioria delas conseqüentes e quase todas elas sérias. Mas pretendo, no entanto, colocar essas lutas em perspectiva. Afinal, lutou-se dentro de regras estabelecidas pela ideologia liberal. E quando surgiu um importante grupo rejeitava fundamentalmente aquelas regras, os fascista, eles foram vencidos e eliminados — com dificuldade, sem dúvida, mas foram vencidos.

Há mais uma coisa a ser dita sobre o liberalismo. Afirmamos que ele não era essencialmente anti-estatista, uma vez que sua real prioridade era o reformismo racional. Mas se não anti-estatista, o liberalismo foi essencialmente antidemocrático. O liberalismo foi sempre uma doutrina aristocrática; pregou o "império dos melhores". Certamente os liberais não definiram os "melhores" principalmente segundo a condição de nascimento, mas sobretudo segundo o nível educacional. Os melhores não eram, desse modo, a nobreza, mas os beneficiários da meritocracia. Mas eram, contudo, um grupo minoritário. O liberais pretendiam o governo dos melhores, isto é, a aristocracia, precisamente para não ter o governo de todos, isto é, a democracia. Esta era o objetivo dos radicais, e não dos liberais, ou pelo menos, dos verdadeiramente radicais e verdadeiramente anti-sistêmicos. Foi para evitar que este grupo predominasse que o liberalismo foi oferecido como uma ideologia. E quando se dirigiam aos conservadores, resistentes às reformas propostas, o liberais defendiam sempre que apenas o reformismo racional barraria o advento da democracia, um argumento que ao final seria aceito com simpatia por todos os conservadores inteligentes.

Por fim, devemos destacar uma diferença significativa entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Na segunda metade do século XIX, os principais protagonistas das chamadas classes perigosas eram ainda as classes trabalhadoras urbanas da Europa e da América do Norte. A agenda liberal funcionou esplendidamente com essas classes, pois a elas foi oferecido sufrágio universal (masculino), o início de um Estado de Bem-Estar, uma identidade nacional. Mas identidade nacional contra quem? Contra seus vizinhos, certamente, mas principal e profundamente contra o mundo não-branco. O imperialismo e o racismo eram parte do pacote oferecido pelos liberais às classes trabalhadoras européias e norte americanas sob a aparência do "reformismo racional".

Enquanto isso, entretanto, as "classes perigosas" do mundo não-europeu agitavam-se politicamente — do México ao Afeganistão, do Egito à China, da Pérsia à Índia. A vitória do Japão sobre a Rússia em 1905 foi considerada, em toda esta região, como o começo da retração da expansão européia, e isto foi um forte sinal de aviso para os liberais, que eram sobretudo europeus e norte americanos, de que agora a "mudança política normal" e a "soberania" eram demandas dos povos do mundo todo e não apenas das classes trabalhadoras européias.

Assim, os liberais voltaram sua atenção para a extensão do conceito de reformismo racional ao sistema mundial como um todo. Foi essa a mensagem de Woodrow Wilson, e sua insistência na "autodeterminação das nações", o equivalente global do sufrágio universal. Foi essa a mensagem de Franklin Roosevelt, e as "quatro liberdades" proclamadas como um objetivo de guerra durante a Segunda Guerra Mundial e que seriam mais tarde traduzidas pelo Presidente Truman no "Ponto Quatro", o início do projeto do pós-1945 de "desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos", uma doutrina que foi o equivalente global do Estado de Bem-Estar.6 6 A natureza das promessas do liberalismo global e a ambigüidade da resposta leninista são exploradas no meu "The concept of National Development, 1917-1989: Elegy and Requiem". in Marks, G. e Diamond, L., (orgs.). Reexamining Democracy. Newbury Park, 1992.

Mas os objetivos do liberalismo e os da democracia estavam novamente em conflito. No século XIX, o proclamado universalismo do liberalismo tornara-se compatível ao racismo mediante a "externalização" dos objetos do racismo para fora das fronteiras da nação, enquanto "inter-nalizava-se" de fato os beneficiários dos ideais universais, o conjunto de cidadãos. A questão era a de se o liberalismo global do século XX seria tão bem sucedido em conter as "classes perigosas" localizadas no que passou a ser chamado de Terceiro Mundo, ou Sul, como fora o liberalismo nacional na Europa e América do Norte no controle das suas "classes perigosas" nacionais. O problema, é claro, era o de que, em um nível mundial, não havia lugar para a "externalização" do racismo. Começavam a se mostrar, então, as contradições do liberalismo.

TRIUNFO E DESASTRE

Em 1945, entretanto, isso ainda estava longe de ser evidente. A vitória dos Aliados sobre o Eixo pareceu ser o triunfo do liberalismo global (em aliança com a URSS) sobre a ameaça fascista. O fato de que o último ato da guerra foi o lançamento de duas bombas atômicas pelos Estados Unidos sobre o único poder não-branco do Eixo, o Japão, foi pouco discutido nos Estados Unidos (ou até mesmo na Europa), o que talvez reflita algumas das contradições do liberalismo. A reação, é desnecessário dizer, não foi a mesma no Japão. Mas o Japão perdera a guerra, e a sua voz não foi levada a sério naquele momento.

Os Estados Unidos certamente eram, naquele momento, a força econômica mais poderosa da economia-mundo e, com a bomba atômica, a principal força militar, apesar do tamanho das forças armadas soviéticas. Com isso, seriam capazes de, dentro de cinco anos, organizar politicamente o sistema mundial por meio de um programa de quatro etapas: i) um acordo com a URSS, garantindo-lhe o controle sobre uma parte do mundo em troca dela permanecer no seu canto (não, é claro, retoricamente, mas em termos de uma política real); ii) um sistema de alianças tanto com a Europa Ocidental como com o Japão e que servia a objetivos econômicos, políticos e retóricos, assim como a objetivos militares; iii) um programa modulado e moderado para se atingir a "descolonização" dos impérios coloniais; iv) um programa de integração interna nos Estados Unidos, ampliando as categorias de "cidadania" real, completado por uma ideologia anticomunista unificadora.

Esse programa funcionou consideravelmente bem por cerca de vinte e cinco anos, isto é, precisamente até 1968. Como devemos, então, avaliar estes anos extraordinários, entre 1945 e 1968? Foram eles um período de progresso e triunfo dos valores liberais? Em grande medida, a resposta deve ser sim, mas também em grande medida, não. O indicador mais óbvio de "progresso" foi material. A expansão da economia mundial foi extraordinária, a maior na história do sistema capitalista e pareceu ocorrer em toda parte — Leste, Oeste, Norte e Sul. Mas certamente houve maior benefício para o Norte do que para o Sul, e as diferenças (absolutas e relativas) cresceram na maioria dos casos.7 7 Ver um resumo dos dados em Passé-Smith, John T. "The persistence of the Gap: Taking Stock of Economic Growth in the Post-World War II Era". in Selligson, M.A. e Passé-Smith, J. T., org. Development and Underdevelopment: The Political Economy of Inequality. Boulder, CO, 1993. Uma vez que houve, contudo, crescimento real e alta taxa de emprego na maior parte dos lugares, a era teve um brilho cor de rosa. Este brilho foi ainda maior com o aumento considerável dos gastos com bem-estar que acompanharam tal crescimento, como já mencionei, dos gastos com saúde e educação, particularmente.

Em segundo lugar, houve novamente paz na Europa. Paz na Europa mas não, é claro, na Ásia, onde duas longas e cansativas guerras foram travadas — na Coréia e na Indochina. E tampouco em muitas outra partes do mundo não-europeu. Os conflitos na Coréia e no Vietnã não foram contudo iguais. O conflito coreano deve ser antes comparado ao bloqueio de Berlim, os dois ocorrendo de fato quase em conjunção. Alemanha e Coréia foram as duas grandes partições de 1945. Cada país foi dividido entre as esferas político militares dos Estados Unidos, de um lado, e da URSS, de outro. No espírito de Yalta, as linhas de divisão deveriam permanecer intactas, quaisquer que fossem os sentimentos nacionalistas de alemães e coreanos.

Em 1949-52, a firmeza destas linhas foi testada e, depois de muita tensão (e no caso da Coréia, de enormes perdas de vidas) o resultado foi a manutenção aproximada das fronteiras estabelecidas. Assim, o bloqueio de Berlim e a guerra coreana concluíram o processo de institucionalização de Yalta. O segundo resultado destes dois conflitos foi a adicional integração social de cada campo, institucionalizada pelo estabelecimento de fortes sistemas de aliança: OTAN e o Pacto de Defesa Estados Unidos-Japão de um lado, e o Pacto Varsóvia e os acordos soviético-chineses de outro. Além disso, os dois conflitos serviram como um estímulo direto para uma maior expansão da economia mundial, alimentada fortemente pelos gastos militares. A recuperação européia e o crescimento japonês foram os principais beneficiários imediatos dessa expansão.

A guerra do Vietnã foi de um tipo bastante distinto daquela na Coréia. A primeira foi o locus emblemático (mas certamente não o único) da luta dos movimentos de libertação nacional em todo o mundo não-europeu. Enquanto a guerra coreana e o bloqueio de Berlim foram parte integrante do regime mundial da Guerra Fria, a luta vietnamita (assim como a argelina e muitas outras) foi um protesto contra as restrições e a estrutura desse regime. Ela foi, assim, num sentido elementar e imediato, um produto de movimentos de contestação ao sistema. Trata-se de algo bastante diferente das lutas na Alemanha e Coréia, onde os dois lados nunca estiveram em paz, mas apenas em trégua; isto é, para cada um, a paz era faute de mieux. As guerras de libertação nacional, pelo contrário, só tinham um lado: nenhum dos movimentos de libertação nacional desejava uma guerra contra a Europa/América do Norte; queriam ser deixados em paz para seguir seus próprios caminhos. A Europa e a América do Norte, por sua vez, não desejavam deixá-los em paz, até que finalmente foram forçados a tanto. Os movimentos de libertação nacional estavam, desse modo, protestando contra os poderosos e o faziam em nome do cumprimento da agenda liberal de autodeterminação das nações e de desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos.

Isso nos leva ao terceiro grande feito dos anos extraordinários, 1945-68: o triunfo mundial das forças anti-sistêmicas. E apenas um aparente paradoxo o fato de que o exato momento do apogeu da hegemonia dos Estados Unidos no sistema mundial, e da legitimação global da ideologia liberal, foi também o momento em que todos aqueles movimentos, cujas estruturas e estratégias tinham sido formadas no período de 1848-1945 como movimentos anti-sistêmicos, chegavam ao poder. A chamada velha esquerda, nas suas três variantes históricas — os comunistas, os social-democratas e os movimentos de libertação nacional —, chegou ao poder estatal, com cada uma das suas variantes em zonas geográficas distintas. Os partidos comunistas estavam no poder de Elbe ao Yalu, cobrindo um terço do mundo; os movimentos de libertação nacional, na maior parte da Ásia, da África e do Caribe (c os seus equivalentes em grande parte da América' Latina e do Oriente Médio) e os movimentos social democratas (ou seus equivalentes) haviam chegado ao poder, havendo ao menos alternância de poder, na maioria dos países da Europa Ocidental, América do Norte e Australásia. O Japão foi talvez a única exceção a este triunfo global da velha esquerda.

Foi de fato um paradoxo esse triunfo? Teria sido isso o resultado da força irresistível do progresso social, o triunfo inevitável das forças populares? Ou tratou-se de uma cooptação em larga escala destas forças? Há como distinguir intelectual e politicamente essas duas noções? Tais eram as questões que começavam a causar preocupação nos anos sessenta. Se a expansão econômica, com seu benefício evidente aos padrões de vida em todo o mundo, a paz relativa em grandes áreas do mundo e o aparente triunfo dos movimentos populares, levaram a avaliações positivas e otimistas do desenvolvimento mundial, um olhar mais detido à situação real revelou sobretudo grandes negativas.

O regime da Gueixa Fria não foi de ampliação da liberdade humana, mas de grande repressão interna por parte de todos os Estados, justificada pela suposta gravidade das altamente coreografadas tensões geo-políticas. O mundo comunista teve expulsões, gulags e cortinas de ferro. O Terceiro Mundo teve regimes de um só partido, com dissidentes presos ou exilados. E o macarthismo e seus equivalentes em outros países da OCDE, se menos abertamente brutais, foram quase tão eficazes em forçar a conformidade e em destruir carreiras quando necessário. O discurso público era, em toda parte, permitido somente de acordo com parâmetros claramente delimitados.

Além disso, em termos materiais, o regime da Guerra Fria foi de crescente desigualdade, tanto em âmbito internacional quanto nacionalmente. E enquanto os movimentos anti-sistêmicos lutavam freqüentemente contra as velhas desigualdades, não recearam em criar novas. As nomen-klaturas dos regimes comunistas tiveram seus paralelos no Terceiro Mundo e nos regimes social-democratas dos países da OCDE.

É também bastante claro que as desigualdades não se distribuíram ao acaso: estavam relacionadas aos grupos de status, codificados como raça, religião ou etnia, tanto mundialmente quanto no interior dos Estados. Relacionavam-se também aos grupos de gênero e idade, assim como a várias outras características sociais. Em resumo, havia muitos grupos excluídos, e que juntos representavam mais da metade da população mundial.

Foi conseqüentemente a realização de antigas esperanças, que passaram a ser vistas como falsamente realizadas, que esteve por trás e causou a revolução mundial de 1968. Esta revolução foi dirigida sobretudo contra o sistema histórico como um todo — contra os Estados Unidos como poder hegemônico do sistema e contra as estruturas econômicas e militares que constituíam os pilares do sistema. Mas a revolução foi dirigida também, se não mais, contra os grupos anti-sistêmicos considerados insuficientemente anti-sistêmicos: contra a URSS (em conluio com seu pretenso inimigo ideológico, os Estados Unidos); contra os sindicatos e outras organizações trabalhistas, vistos como limitadamente economicistas e defendendo principalmente os interesses grupos de status específicos.

Enquanto isso, os defensores das estruturas existentes denunciavam aquilo que consideravam o anti-racionalismo dos revolucionários de 1968. Mas, de fato, a ideologia liberal provara do próprio veneno. Tendo insistido por mais de um século em que a função das Ciências Sociais era a de ampliar as fronteiras da análise racional (como pré-requisito necessário para o reformismo racional), os liberais foram, contudo, muito bem sucedidos, como mostra Frederic Jameson:

"Grande parte da teoria ou filosofia contemporâneas (...) têm envolvido uma prodigiosa expansão do que consideramos ser o comportamento racional ou significativo. Minha opinião é a de que particularmente após a difusão da psicanálise, mas também com o gradual desaparecimento da "alteridade" num mundo menor e numa sociedade coberta pela mídia, muito pouco pode ainda ser considerado "irracional" no velho sentido de "incompreensível"(...). Se um conceito de razão tão ampliado tem ainda algum valor normativo (...) em uma situação na qual o seu oposto, o irracional, sucumbiu à virtual inexistência, é uma questão distinta e também interessante."8 8 Jameson, F. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, NC 1991, p.268.

Daí que, se virtualmente tudo tornara-se racional, que legitimidade especial havia ainda nos paradigmas das ciências sociais estabelecidas, que mérito especial havia nos programas políticos específicos das elites dominantes? E, mais devastador do que tudo, que capacidade específicas os especialistas tinham para oferecer que as pessoas comuns não possuíssem? Os revolucionários de 1968 identificaram esta lacuna lógica na armadura defensiva dos ideólogos liberais (e na sua variante não tão distinta, a ideologia marxista oficial), e se aproveitaram disso.

Como um movimento político, a revolução mundial de 1968 não foi mais do que um fogo de palha: inflamou-se ferozmente e então, ao cabo de três anos, foi extinto. Suas brasas, na forma de múltiplas seitas pseudo-maoístas concorrentes, sobreviveram por mais cinco ou dez anos, mas ao final dos anos setenta, todos esses grupos tinham se tornado obscuras notas de rodapé históricas. Não obstante, o impacto geocultural de 1968 foi decisivo, uma vez que marcou o final de uma era, a era da cen-tralidade do liberalismo não apenas como a ideologia mundial dominante, mas como a única que poderia pretender ser persistentemente racional e com isso cientificamente legitimada. A revolução mundial de 1968 devolveu o liberalismo para onde estivera no período de 1815-48, ou seja, como apenas uma estratégia política entre outras. Tanto o conservadorismo quanto o radicalismo/socialismo foram, nesse sentido, liberados do campo de força no qual o liberalismo os mantivera presos entre 1848 e 1968.

O processo de rebaixamento do liberalismo do seu papel de norma geocultural a um mero concorrente no mercado global de idéias completou-se nas duas décadas que se seguiram a 1968. O brilho material do período de 1945-68 desapareceu durante o longo período Kondratieff-B que teve início. Isto não significa que todos sofreram igualmente: os países do Terceiro Mundo foram primeiramente os mais atingidos. Os aumentos do petróleo da OPEP foram as primeiras tentativas de limitar o dano. Uma grande parte do excedente mundial foi canalizado aos bancos da OCDE por meio dos Estados produtores de petróleo. Três grupos foram os beneficiários imediatos: os Estados produtores de petróleo, que auferiram uma renda; os Estados, no Terceiro Mundo e no mundo comunista, que receberam empréstimos dos bancos da OCDE para restaurar suas balanças de pagamento; e os Estados da OCDE que podiam ainda manter as exportações. O segundo modo de tentar limitar o dano foi o keynesianismo militar de Reagan, que alimentou o boom especulativo dos anos oitenta nos Estados Unidos. O colapso veio ao final dos anos oitenta, arrastando a URSS consigo. A terceira tentativa foi aquela do Japão, juntamente com os tigres asiáticos e com alguns Estados vizinhos, de se beneficiar da necessária e inevitável realocação da produção em um período Kondratieff-B. Estamos testemunhando, no início dos anos 90, os limites desse esforço.

O resultado final de vinte e cinco anos de luta econômica foi uma desilusão mundial com a promessa de desenvolvimento, uma idéia básica das ofertas do liberalismo global. Sem dúvida, o Leste e o Sudeste da Ásia têm sido, até agora, poupados deste senso de desilusão, embora isso possa ser apenas uma questão de tempo. Em outros lugares, no entanto, as conseqüências têm sido maiores e particularmente negativas para a velha esquerda - primeiramente para os movimentos de libertação nacional, seguidos pelos partidos comunistas (conduzindo ao colapso dos regimes comunistas do Leste Europeu em 1989) e finalmente para os partidos social-democratas. Esse colapso tem sido celebrado pelos liberais como o seu triunfo, mas significou na verdade o seu túmulo, pois os liberais encontraram-se de volta à situação de uma premente demanda por democracia, como no pré-1848 - mas desta vez por muito mais do que o pacote limitado de instituições parlamentares, sistemas multipartidários e direitos civis elementares; agora, as demandas são por uma genuína divisão igualitária do poder. Esta última demanda foi historicamente o principal motivo de preocupação para o liberalismo, diante do qual oferecera seu pacote de compromissos limitados combinados a um otimismo sedutor acerca do futuro. Na medida em que hoje não há mais uma ampla fé no re-formismo racional por meio da ação do Estado, o liberalismo não tem mais a sua principal defesa politico-cultural contra as classes perigosas.

O COLAPSO DA LEGITIMIDADE

É assim que chegamos à era atual, que vejo já como parte do Período Negro que temos diante de nós, iniciado simbolicamente em 1989 (a continuação de 1968)9 9 Ver Hopkins, T.K. e Wallerstein, I. "The Continuation of 1968". Review, vol. 15, 2, 1992. e que continuará por pelo menos vinte e cinco ou cinqüenta anos.

Enfatizei até aqui a defesa ideológica construída pelas forças dominantes contra as demandas colocadas insistentemente pelas "classes perigosas" desde 1789. Argumentei que esta defesa foi a ideologia liberal e que ela operou tanto diretamente como, e até mais insidiosamente, pela variante socialista/progressista, que trocara a essência das demandas anti-sistêmicas por um substituto de valor limitado. Finalmente, argumentei que esta defesa ideológica foi largamente destruída pela revolução mundial de 1968, cujo ato final foi o colapso dos comunismos em 1989.

Por que, entretanto, tal defesa ideológica ruiu, depois de cento e cinquenta anos de funcionamento tão eficaz? A resposta a esta questão repousa não em algum insight por parte dos oprimidos acerca da falsidade dos apelos ideológicos. A falácia liberal era conhecida desde o princípio, e declarada freqüentemente e com vigor durante todo o século XIX e XX. Apesar disso, os movimentos de tradição socialista não se conduziram por caminhos coerentes com as suas críticas retóricas ao liberalismo; muito pelo contrário, na maior parte deles.

A razão para tanto é clara. A base social destes movimentos, todos eles declarando falar em nome da maioria da humanidade, era de fato um pequena parte da população mundial, o segmento menos favorecido do setor moderno da economia mundial tal corno estava estruturada entre, digamos, 1750 e 1950. Esse segmento incluía as classes trabalhadoras especializadas e semi-especializadas, as inteligentsias mundiais e os grupos mais capacitados e educados naquelas áreas rurais onde o funcionamento da economia capitalista era mais imediatamente visível. O conjunto resultou em um número significativo, mas que certamente não chegava à maioria da população mundial.

A velha esquerda foi um movimento mundial sustentado por uma minoria; uma minoria poderosa, oprimida, mas ainda assim uma minoria numérica em relação à população mundial. Esta realidade demográfica limitou as suas opções políticas reais e sob estas circunstâncias, fez a única coisa que poderia ter feito: optou por ser um estímulo para acelerar o programa liberal de reformismo racional, sendo muito bem sucedida nisso. Os benefícios alcançados pelos seus protagonistas foram reais, ainda que parciais. Mas, como proclamaram os revolucionários de 1968, muita gente ficara fora da equação. A velha esquerda falara uma língua universalista, mas praticara uma política particularista.

A razão pela qual se rompeu com esta cegueira ideológica do falso universalismo foi a de que a realidade social profunda havia mudado. A economia-mundo capitalista havia perseguido a lógica do incessante acúmulo de capital tão continuamente que estava aproximando-se do seu ideal teórico, isto é, a mercantilização de tudo. Isto pode ser percebido através das múltiplas realidades sociológicas novas: a extensão da mecanização da produção; a eliminação de barreiras espaciais na troca de mercadorias e informações; a urbanização do mundo; a quase exaustão do ecossistema; o alto grau de monetarização do processo de trabalho, e o consumismo, isto é, a mercantilização enormemente expandida do consumo.10 10 Estes pontos são elaborados no meu "Peace, Stability, and Legitimacy, 1990-2025/2050", in Lundestad, G., ed. The Fall of Great Powers: Peace, Stability, and Legitimacy. Londres, 1994.

Todos estes desenvolvimentos são bem conhecidos e são até mesmo tema de contínuas discussões nos meios de comunicação mundiais. Mas considerando-se o significado disso do ponto de vista da infinita acumulação do capital, encontra-se sobretudo uma enorme limitação na sua taxa de acumulação, e as razões para tanto são fundamentalmente sócio-políticas. Há três fatores centrais e o primeiro deles é há muito conhecido pelos analistas, mas sua plena realização está sendo atingida apenas agora: a urbanização do mundo e o incremento tanto da educação quanto dos meios de comunicação engendraram um grau de consciência política mundial que tanto facilita a mobilização política como torna difícil obscurecer o grau das disparidades sócio-econômicas e o papel dos governos na manutenção delas. Tal consciência política é reforçada pela deslegitimação de qualquer fonte irracional de autoridade. Ou seja, mais pessoas do que nunca demandam a igualização do ganho e se recusam a tolerar uma condição básica da acumulação do capital, a baixa remuneração pelo trabalho. Isso se manifesta no significativo aumento, em todo o mundo, do nível "histórico" dos salários e da bastante elevada, e ainda crescente, demanda por redistribuição de bem-estar básico, particularmente de saúde e educação, e pela garantia de uma renda estável.

O segundo fator é o grande aumento do custo, para os Estados, do subsídio ao lucro por meio da construção de infra-estrutura e pela exter-nalização dos custos por parte das empresas. É a isso que os jornalistas se referem como sendo a crise ecológica, a crise dos custos crescentes da saúde e da pesquisa científica de ponta, etc. Os Estados não podem continuar a ampliar os subsídios para as empresas privadas e, ao mesmo tempo, ampliar seus compromissos para com o bem-estar para o conjunto de cidadãos. Um dos dois lados terá que ceder em uma considerável medida. Com uma cidadania mais consciente, esta luta essencialmente de classes promete ser monumental.

O terceiro fator resulta do fato de a consciência política ter se tornado mundial. As disparidades nos níveis global e nacional são raciais, étnicas e religiosas. Com isso, o resultado combinado da consciência política e da crise fiscal dos Estados será uma luta de larga escala, que tomará a forma de uma guerra civil em ambos os níveis.

As múltiplas tensões terão como primeira vítima a legitimidade das estruturas estatais e conseqüentemente a capacidade que elas têm de assegurar a manutenção da ordem. Ao perderem essa capacidade, surgem custos econômicos, assim como custos de segurança, os quais tornarão as pressões cada vez mais intensas, o que por sua vez enfraquecerá cada vez mais a legitimidade das estruturas estatais. Isso não é o futuro, mas o presente, e podemos percebê-lo no sentimento de insegurança enormemente intensificado — na preocupação com os crimes, com a violência, com a impossibilidade da garantia de justiça pelos sistemas judiciários, na preocupação com a brutalidade das forcas policiais — e que tem assumido várias formas nos últimos dez ou quinze anos. Não estou afirmando que estes fenômenos são novos, ou até mesmo que sejam muito mais extensos do que anteriormente. Mas são percebidos como novos ou piores pela maioria das pessoas, e certamente são mais extensos. O principal resultado de tais percepções é a deslegitimação das estruturas estatais.

Este tipo de desordem crescente, e que se alimenta a si mesma, não pode continuar indefinidamente, mas pode durar de vinte e cinco a cinqüenta anos. Trata-se de uma forma de caos no sistema, causada pela exaustão das suas válvulas de segurança ou, de outro modo, pelo fato de que as suas contradições chegaram a um ponto no qual nenhum dos mecanismos de restauração do seu funcionamento normal podem ainda funcionar eficazmente.

NOVAS FRENTES DE LUTA

Mas do caos surgirá uma nova ordem, e isso nos traz ao último tema: as escolhas diante de nós - agora e também logo. Sendo este um tempo de caos, isso não significa que durante os próximos vinte e cinco ou cinqüenta anos não veremos em operação os processos básicos da econo-mia-mundo capitalista. As pessoas e as empresas continuarão a buscar o acúmulo de capital de todas as maneiras conhecidas; capitalistas buscarão o apoio das estruturas estatais como fizeram no passado e os Estados competirão entre si para serem os principais centros de acumulação de capital. A economia-mundo capitalista entrará provavelmente em um novo período de expansão, e acabará por mercantilizar os processos econômicos por todo o mundo, polarizando ainda mais a distribuição efetiva do ganho.

O que será diferente nos próximos vinte e cinco ou cinqüenta anos serão, não tanto as operações do mercado mundial, e sim as operações das estruturas políticas e culturais mundiais. Basicamente, os Estados perderão continuamente sua legitimidade, e com isso encontrarão dificuldades para assegurar uma segurança mínima, internamente ou entre si. Na cena geocultural não haverá discurso dominante comum e até mesmo as formas de debate cultural e político estarão sendo debatidas. Haverá pouco acordo em torno do que constitui o comportamento racional ou aceitável. Esta confusão não significa, no entanto, o desaparecimento do comportamento racional. Na verdade, haverá grupos buscando atingir objetivos claros e limitados, mas muitos destes objetivos estarão em conflito direto e intenso. E poderá haver alguns grupos com conceitos de longo prazo para a construção de uma ordem social alternativa, mesmo que sua clareza subjetiva tenha uma forma ainda pobre, com nenhuma probabilidade objetiva de que tais conceitos serão de fato guias heurísticos úteis para a ação. Ou seja, todos estarão agindo algo cegamente, mesmo que não o saibam.

Estamos, no entanto, condenados a agir. Conseqüentemente, a primeira necessidade que temos é a de clareza quanto ao que tem sido deficiente no nosso sistema mundial moderno, e que tem tornado tão grande a porcentagem da população mundial insatisfeita, ou ao menos, ambivalente, quanto aos seus méritos sociais. Parece-me bastante claro que a principal reclamação tem sido em relação à grande desigualdade do sistema, o que significa ausência de democracia. Isto foi sem dúvida verdadeiro para virtualmente todos os principais sistemas históricos conhecidos, mas o que distingue o capitalismo é o fato de que o seu grande sucesso enquanto criador de produção material parece ter eliminado todas as justificativas para as desigualdades, quer se trate de suas manifestações materiais, políticas ou sociais. As desigualdades mostraram-se piores, não porque tivessem isolado apenas um pequeno grupo de todo o resto, mas sim por terem separado do restante tanto quanto um quinto ou um sétimo da população mundial. São estes dois fatos — o crescimento do total da riqueza material e o fato de que não apenas um punhado de pessoas, mas certamente menos do que a maioria delas até agora pôde viver bem — que têm exasperado tanto àqueles que foram deixados de fora.

Não poderemos contribuir com uma solução para esse caos, a menos que tornemos claro que apenas um sistema histórico relativamente igualitário e plenamente democrático é desejável. Concretamente, devemos atuar imediatamente em várias frentes. Uma delas consiste na ativa eliminação das pretensões de eurocentrismo que permearam a geocultura por pelo menos dois séculos. Os europeus fizeram grandes contribuições culturais para a empresa humana comum, mas não é verdade que, durante mais de dez mil anos, suas contribuições foram maiores do que as de outros centros de civilização, e não há razão para supor que os múltiplos centros de sabedoria coletiva serão em menor número no milênio que está por vir. A ativa substituição do corrente viés eurocêntrico em direção a um senso histórico e à avaliações culturais mais sóbrios e equilibrados requererá uma luta política e cultural aguda e constante, que não pede novos fanatismos, mas um intenso trabalho intelectual, coletiva e individualmente.

Necessitamos, além disso, tomar o conceito de direitos humanos e trabalhar duro para torná-lo igualmente aplicável a nós e a eles, ao cidadão e ao estrangeiro. O direito das comunidades de proteção do seu patrimônio cultural não se confunde nunca com o direito de proteção dos seus privilégios. Um dos principais campos de batalha será o dos direitos dos imigrantes. Se, de fato, como antecipo para os próximos vinte cinco a cinqüenta anos, grande parte das minorias residentes na América do Norte, Europa e até mesmo no Japão, será de imigrantes recentes ou filhos de imigrantes (quer essa imigração tenha sido legal ou não), todos nós teremos então de lutar para assegurar a estes imigrantes um acesso verdadeiramente igualitário aos direitos econômicos, sociais e também políticos na região para a qual imigraram.

Eu sei que haverá uma enorme resistência política a isto baseada na pureza cultural e nos direitos de propriedade adquiridos. Os governantes do Norte já estão argumentando que não podem assumir a carga econômica do mundo todo. Bem, por que não? A riqueza do Norte foi em grande parte o resultado de uma transferência de mais-valia do Sul e é justamente este fato que, por centenas de anos, tem nos conduzido à crise do sistema. Não se trata de uma questão de caridade, mas de reconstrução racional.

Essas batalhas serão políticas, mas não se darão necessariamente no plano do Estado. Precisamente em razão do processo de deslegi-timação dos Estados, muitas dessas batalhas (e talvez a maioria delas) prosseguirão em níveis mais locais, entre os grupos por meio dos quais estamos nos reorganizando. E uma vez que as batalhas entre múltiplos grupos serão locais e complexas, será essencial uma estratégia de alianças complexa e flexível, mas que será funcional apenas se mantivermos claros os nossos objetivos igualitários.

Finalmente, a luta será intelectual, na reconceitualização dos nossos cânones científicos, na busca por metodologias mais holistas e sofisticadas, no esforço de nos livrarmos do pio e falacioso discurso sobre a neutralidade valorativa do pensamento científico. A racionalidade é ela mesma um juízo de valor, se ainda é alguma coisa, e nada é ou pode ser racional exceto no mais vasto e mais inclusivo contexto de organização social humana.

Pode-se pensar que o programa que esbocei de ação social e política conseqüente para os próximos vinte e cinco a cinqüenta anos é por demais vago. Mas ele é tão concreto quanto é possível ser no centro de um redemoinho. Em primeiro lugar, tenha claro para que lado você deseja nadar; em seguida, assegure-se de que seus esforços imediatos parecem mover-se nessa direção. Se você desejar precisão maior do que esta, não encontrará, e acabará por se afogar enquanto a procura.

  • * "The Agonies of Liberalism. What Hope Progress?" New Left Review 204, março - abril de 1994, pp.3-17.
  • 2 Ver Meyer, John W. et alli. "The World Educational Revolution, 1950-1970". in Meyer, J.W. e Hannan, M.T. National Development 1950-1970. Chicago, 1979.
  • 3 Para uma excelente e bastante detalhada descrição dos debates intelectuais sobre o bicentenário na França, ver Kaplan, Steve. Adieu 89. Paris, 1993.
  • 4 Para uma análise deste processo, ver o meu "The French Revolution as a World-Historical Event". in Unthinking Social Science: The Limits of Nineteenth-Century Paradigms. Cambridge, 1991.
  • 5 O processo pelo qual o liberalismo ocupou o centro do palco e transformou os seus dois concorrentes, conservadorismo e socialismo, em virtuais subordinados, ao invés de oponentes, é discutido no meu "Trois idéologies on une seule? La problématique de la moderni-té" in Genèses 9, 1992.
  • 6 A natureza das promessas do liberalismo global e a ambigüidade da resposta leninista são exploradas no meu "The concept of National Development, 1917-1989: Elegy and Requiem". in Marks, G. e Diamond, L., (orgs.). Reexamining Democracy. Newbury Park, 1992.
  • 7 Ver um resumo dos dados em Passé-Smith, John T. "The persistence of the Gap: Taking Stock of Economic Growth in the Post-World War II Era". in Selligson, M.A. e Passé-Smith, J. T., org. Development and Underdevelopment: The Political Economy of Inequality. Boulder, CO, 1993.
  • 8 Jameson, F. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, NC 1991, p.268.
  • 9 Ver Hopkins, T.K. e Wallerstein, I. "The Continuation of 1968". Review, vol. 15, 2, 1992.
  • 10 Estes pontos são elaborados no meu "Peace, Stability, and Legitimacy, 1990-2025/2050", in Lundestad, G., ed. The Fall of Great Powers: Peace, Stability, and Legitimacy. Londres, 1994.
  • *
    "The Agonies of Liberalism. What Hope Progress?"
    New Left Review 204, março - abril de 1994, pp.3-17. Tradução de Simone Rossi Pugin.
  • 1
    Esta palestra foi proferida durante o 25º aniversário da fundação da Kyoto Seika University, em 07 de dezembro de 1993.
  • 2
    Ver Meyer, John W.
    et alli. "The World Educational Revolution, 1950-1970". in Meyer, J.W. e Hannan, M.T.
    National Development 1950-1970. Chicago, 1979.
  • 3
    Para uma excelente e bastante detalhada descrição dos debates intelectuais sobre o bicentenário na França, ver Kaplan, Steve.
    Adieu 89. Paris, 1993.
  • 4
    Para uma análise deste processo, ver o meu "The French Revolution as a World-Historical Event". in
    Unthinking Social Science: The Limits of Nineteenth-Century Paradigms. Cambridge, 1991.
  • 5
    O processo pelo qual o liberalismo ocupou o centro do palco e transformou os seus dois concorrentes, conservadorismo e socialismo, em virtuais subordinados, ao invés de oponentes, é discutido no meu "Trois idéologies on une seule? La problématique de la moderni-té" in
    Genèses 9, 1992.
  • 6
    A natureza das promessas do liberalismo global e a ambigüidade da resposta leninista são exploradas no meu "The concept of National Development, 1917-1989: Elegy and Requiem".
    in Marks, G. e Diamond, L., (orgs.).
    Reexamining Democracy. Newbury Park, 1992.
  • 7
    Ver um resumo dos dados em Passé-Smith, John T. "The persistence of the Gap: Taking Stock of Economic Growth in the Post-World War II Era".
    in Selligson, M.A. e Passé-Smith, J. T., org.
    Development and Underdevelopment: The Political Economy of Inequality. Boulder, CO, 1993.
  • 8
    Jameson, F.
    Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, NC 1991, p.268.
  • 9
    Ver Hopkins, T.K. e Wallerstein, I. "The Continuation of 1968".
    Review, vol. 15, 2, 1992.
  • 10
    Estes pontos são elaborados no meu "Peace, Stability, and Legitimacy, 1990-2025/2050", in Lundestad, G., ed.
    The Fall of Great Powers: Peace, Stability, and Legitimacy. Londres, 1994.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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