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A igualdade como norma e o (quase) obsoleto marxismo

Equality as fact and as norm: reflections on the (partial) demise of marxism

Resumos

Porque acreditavam que a igualdade econômica era inevitável, os marxistas clássicos preocuparam-se mais com a questão de como realizá-la do que com o problema da justificação da igualdade enquanto uma norma. As suposições fatuais que fundamentavam a crença nessa inevitabilidade, entretanto, já não se verificam ou revelaram-se equivocadas. Por essa razão a defesa do socialismo hoje requer muito mais argumentação moral do que os marxistas clássicos julgaram necessário.


Because economical equality seemed inevitable to them, classical marxists devoted more of their energies to the problem of how to bring it about than they did to the issue of justifying equality as a norm. However, the factual premises on which this inevitability belief was based either do not obtain anymore or have proved to be erroneous. Therefore, the socialist advocacy today requires much more moral argument than it seemed necessary to classical marxists.


CIDADANIA

A igualdade como norma e o (quase) obsoleto marxismo*

Equality as fact and as norm: reflections on the (partial) demise of marxism

G. A. Cohen

Professor de teoria política do All Souls College, na Universidade de Oxford. Lua Nova já publicou, de sua autoria, "Resposta ao artigo 'Marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos', de Jon Elster", em seu número 20

RESUMO

Porque acreditavam que a igualdade econômica era inevitável, os marxistas clássicos preocuparam-se mais com a questão de como realizá-la do que com o problema da justificação da igualdade enquanto uma norma. As suposições fatuais que fundamentavam a crença nessa inevitabilidade, entretanto, já não se verificam ou revelaram-se equivocadas. Por essa razão a defesa do socialismo hoje requer muito mais argumentação moral do que os marxistas clássicos julgaram necessário.

ABSTRACT

Because economical equality seemed inevitable to them, classical marxists devoted more of their energies to the problem of how to bring it about than they did to the issue of justifying equality as a norm. However, the factual premises on which this inevitability belief was based either do not obtain anymore or have proved to be erroneous. Therefore, the socialist advocacy today requires much more moral argument than it seemed necessary to classical marxists.

Este Colóquio tem por objetivo tratar de fatos duros

Minha ignorância dos fatos embaraça-me, uma vez que não sou apenas um filósofo mas também um tipo de marxista, ou de semi-marxista, ou de semi-ex-marxista. E isso é embaraçoso, ou pelo menos irônico, uma vez que era exatamente por suas suposições fatuais que a clássica estrutura marxista de crenças distinguia-se daquelas que lhe eram próximas. Alguns até diriam, e Marx e Engels por vezes escreveram como se acreditassem estar de acordo com essa avaliação, que o marxismo constituía-se somente de suposições fatuais e que era isso o que o distinguia do chamado socialismo utópico, que não se assentava, este último, em verdades fatuais e sim em um conjunto de sonhos.

Há um exagero nesse julgamento sobre a diferença entre o marxismo e outras formas de socialismo. Pois os valores da igualdade, comunidade e auto-realização eram indiscutivelmente parte integral da clássica estrutura marxista de crenças, entendendo-a como a estrutura de crenças daqueles que classicamente foram identificados como marxistas. Todos os marxistas clássicos acreditaram em algum tipo de igualdade, ainda que muitos deles tenham se recusado a reconhecer que acreditavam nisso, e que bem poucos entre eles teriam sido capazes de dizer em que tipo de igualdade acreditavam. É certamente verdadeiro, no entanto, e é isso o que torna a mencionada avaliação da diferença entre o marxismo e outros socialismos um exagero e não uma clara falsidade, que os marxistas jamais investigaram o valor da igualdade, e aliás nenhum outro valor, in extenso. Em vez disso, devotaram suas mentes à carapaça fatual dura que cercava seus valores maleáveis, a teses sobre a história em geral e sobre o capitalismo em particular — as teses que deram ao marxismo sua particular autoridade, e até mesmo sua autoridade moral.

Mas o marxismo perdeu essa carapaça, aquele casco duro de supostos fatos e, na medida em que ainda sobrevive, tal como se pode afirmar que (algum tipo dele) sobrevive nos trabalhos de John Roemer ou de Philippe Van Parijs, o marxismo apresenta-se como um conjunto de valores e de projetos para realizá-los. O marxismo hoje retorna à condição utópica da qual ele um dia teve tanto orgulho em se distinguir. O ponto que era mais fraco hoje é tudo o que resta.

Esta manhã, quero enfatizar particularmente a perda, sofrida pelo marxismo, da carapaça fatual no que se refere ao valor da igualdade. Ao fazê-lo, farei algumas suposições gerais amadorísticas sobre certos fatos do mundo. Estou ansioso para ser corrigido. Eu penso ser útil arriscar-se a fazer conjeturas fatuais gerais perante uma audiência profissionalmente equipada para corrigi-las ou refutá-las, porque isso a estimula a articular as premissas fatuais altamente gerais que se toma por estabelecidas, e é sempre instrutiva a exposição de premissas gerais não articuladas.

I

Os marxistas clássicos acreditavam que a igualdade econômica era tanto historicamente inevitável quanto moralmente correta. Eles acreditavam de forma totalmente consciente na primeira crença e mais ou menos conscientemente na segunda, mostrando-se também mais ou menos evasivos — o próprio Marx era evasivo sobre isso — quando perguntados se acreditavam nela (na segunda crença). Foi em parte porque acreditavam que a igualdade econômica era historicamente inevitável que os marxistas clássicos não dispenderam muito tempo refletindo sobre sua correção moral, sobre precisamente que princípios normativos fundamentais estabeleciam sua superioridade moral. A igualdade comunista estava a caminho, ela era benvinda, e seria uma perda de tempo teorizar sobre porque ela era benvinda, ao invés de teorizar sobre como fazê-la chegar o mais rapidamente e da forma menos indolor que fosse possível — pois a rapidez e o custo para alcançar a igualdade comunista, diversamente dela própria, não eram inevitáveis.

Duas tendências históricas supostamente inexoráveis estabeleciam a inevitabilidade da igualdade econômica final. Uma delas era o crescimento do movimento organizado da classe trabalhadora, que estava constitutivamente posicionado para se opor à desigualdade, porque os trabalhadores encontravam-se em sua extremidade inferior. Esse movimento cresceria em número e força, até que tivesse o poder de colocar abaixo a sociedade desigual que alimentava seu próprio crescimento. E a outra tendência que garantiria a igualdade era o desenvolvimento das forças produtivas, isto é, o aumento contínuo na capacidade humana de transformar a natureza para o benefício humano. Isso significava que haveria uma abundância futura tão grande que o que quer se necessitasse para uma vida de auto-realização poderia ser retirado do estoque comum sem custo algum para ninguém. Para que todos tivessem o que necessitassem, no sentido mais ambicioso da palavra "necessidade", ninguém seria obrigado a fazer o trabalho que preferiria não fazer. A abundância futura garantida servia como a fonte da refutação de qualquer suspeita de que a desigualdade poderia ressurgir, de uma outra forma, depois da revolução, pacífica ou sangrenta, legal ou ilegal, rápida ou lenta, que o proletariado poderia realizar e viria a fazê-lo. Haveria um período intermediário de desigualdade limitada, na linha do estágio inferior do comunismo tal como descrito por Marx em sua Crítica ao Programa de Gotha, mas quando "todas as fontes da riqueza social fluírem mais livremente" mesmo essa desigualdade limitada desapareceria.

II

Ambas as predições esboçadas na seção 1 mostraram-se falsas. Ao invés de crescer em força, o proletariado perdeu sua unidade devido ao próprios processos de desenvolvimento tecnológico que supostamente iriam fazê-lo expandir em tamanho e aumentar em peso. E o desenvolvimento das forças produtivas viria a se defrontar com uma barreira de recursos. O conhecimento técnico não parou de crescer, mas a capacidade produtiva, que é (pesando-se tudo) a capacidade de transformar a natureza em valor de uso, não cresceu pari passu ao crescimento do conhecimento técnico, porque o planeta Terra rebelou-se: seus recursos não se mostraram ser suficientemente vastos para que o crescimento contínuo de conhecimento técnico pudesse gerar um crescimento contínuo de valor de uso.

A perda de confiança por mim mesmo nas duas grandes suposições fatuais do marxismo contribuiu para que eu redirecionasse minha pesquisa acadêmica. Tendo despendido (o que espero que venha a ser somente) o primeiro terço de minha carreira acadêmica devotando-me a explorar o fundamento e o caráter das duas teses da inevitabilidade da igualdade mencionadas acima, encontro-me, no fim do segundo terço da minha carreira, envolvido em questões fílosófico-morais sobre o fundamento normativo da igualdade que antes eu suporia que, de um ponto de vista prático, não necessitasse de investigação. No passado não era preciso, pelo menos é o que parecia, argumentar em favor da igualdade, e a respeito dela, enquanto uma norma. Hoje, quase não faço outra coisa.

III

Passo agora a explorar algumas das conseqüências políticas da incorreção das duas principais suposições marxistas de inevitabilidade que caracterizei acima.

A primeira suposição é falsa porque o proletariado está em processo de desintegração, em um sentido que tentarei precisar logo a seguir. O resultado disso é que os valores socialistas perderam sua ancoragem na estrutura social capitalista: a luta pelo socialismo e pela igualdade já não é mais um movimento reflexo que faz parte do próprio processo capitalista. Em conseqüência, como agora explicarei, surgem questões para a filosofia moral socialista que não foi preciso enfrentar no passado. E marxistas e ex-marxistas, como Roemer, Van Parijs e eu, se vêem envolvidos em questões de filosofia política e moral que no passado não atraíram a atenção dos marxistas, e que muitas vezes foram por eles vistas com desdém.

O acentuado deslocamento de atenção explica-se pelas profundas mudanças na estrutura de classe das sociedades capitalistas ocidentais, mudanças essas que levantam problemas normativos que não existiam antes, ou que anteriormente tinham pouca importância política. Esses problemas normativos hoje têm uma grande importância política.

Como uma forma de entrar nos problemas normativos, começarei citando a segunda estrofe de "Solidarity Forever", uma antiga canção socialista norte-americana:

It is we who ploughed the prairies, built the cities where they trade,

Dug the mines and built the workshops, endless miles of railroad laid;

Now we stand outcast and starving, 'mid the wonders we have made...

A parte dessa estrofe à qual sugiro dar atenção é o último verso: "Hoje nos vemos párias e famélicos, em meio às maravilhas que fizemos". Essa canção era cantada não somente por comunistas revolucionários mas também por social-democratas cuja aspiração socialista não ia além de uma demanda por benefícios de bem-estar social em um capitalismo que, inicialmente, nada fazia por aqueles que eram atirados fora do trabalho em tempos difíceis. Como "Solidarity Forever" sugere, a campanha pelo welfare state era interpretada como uma luta para garantir os mínimos básicos especialmente para as pessoas que trabalhavam: a provisão pública era vista como uma modesta retificação das injustiças cometidas contra o trabalhador no que diz respeito ao produto de sua própria atividade, as maravilhas que tinha feito. Em "Solidarity Forever", as pessoas famélicas e prescritas que necessitavam do welfare state eram as mesmas pessoas que haviam criado a riqueza da sociedade. Compare com o famoso lamento norte-americano dos anos 30, "Buddy, Can you Spare a Dime" ("Dê-me um níquel, parceiro"). O homem diz "eu que uma vez construí uma estrada de ferro e a fiz funcionar... eu que uma vez construí uma torre, que se erguia até o sol..."

De acordo com essas canções, as pessoas não exigem livrar-se da fome sob a justificativa de que não são capazes de produzir e sim com base em que produziram e por isso não devem passar fome. Duas exigências de recompensa, a necessidade e a titularidade pelo trabalho, de uma forma típica da velha retórica socialista, fundem-se no verso da canção "Solidarity". No tempo em que a canção foi feita, era possível fundir essas exigências porque os socialistas consideravam o conjunto dos produtores explorados como coincidindo aproximadamente com o conjunto daqueles que precisavam dos benefecíos do welfare state. Em conseqüência, eles não perceberam qualquer conflito entre a doutrina da titularidade do produtor, implicada pela segunda parte do verso ("em meio às maravilhas que fizemos"), e a doutrina mais igualitária sugerida na primeira parte ("hoje, nos vemos párias e famélicos"), quando esta é lida separadamente. Pois não é preciso argumentar muito para mostrar que de fato há uma diferença de princípio entre os apelos presentes nas duas partes do verso. As pessoas famélicas não são necessariamente as que produziram os bens de que necessitam as pessos famélicas e, se os bens que as pessoas produziram de direito lhes pertencem, então os famélicos que não os produziram não têm nenhum direito a eles. A velha imagem da classe trabalhadora como um conjunto de pessoas que tanto produzem a riqueza como também não a possuem, ao fundir essas duas características, oculta a verdade problemática e dolorosa de que essas duas exigências de amparo, a saber, "eu fiz isto e por essa razão deveria tê-lo" e "eu necessito disto e se não consegui-lo morrerei ou definharer não são somente diferentes mas potencialmente contraditórias.

Que aqueles que criavam as maravilhas eram os mesmos que encontravam-se proscritos e famélicos, estas eram duas de quatro características que os marxistas viam na classe trabalhadora no auge do movimento socialista. As quatro características nunca pertenceram a qualquer conjunto único de pessoas em parte alguma, mas havia uma convergência suficiente para passar a impressão de que a coincidência dessas características era durável, levando-se em conta uma dose de entusiasmo e uma pitada de auto-engano. A percepção comunista da classe trabalhadora era a de que seus membros:

1. constituíam a maioria da sociedade;

2. produziam a riqueza da sociedade;

3. eram as pessoas exploradas na sociedade e

4. eram as pessoas que sofriam de privações na sociedade.

Além disso, na mesma percepção havia duas outras características que derivavam dessas quatro. Os trabalhadores eram tão necessitados que eles:

5. nada teriam a perder com a revolução, quaisquer que fossem seus resultados e, devido a 1, 2 e 5, estava dentro da capacidade (1,2) e era do interesse (5) da classe trabalhadora mudar a sociedade, de forma que essa classe

6. era capaz de e viria a transformar a sociedade.

Podemos usar os seguintes termos para denotar essas seis características: maioria, produção, exploração, necessidade, nada-a-perder, e revolução.

Muitos dos problemas atuais da teoria socialista, e dos partidos socialistas e comunistas, refletem a crescente ausência de convergência das quatro primeiras características. Particularmente problemática, do ponto de vista de um filósofo político, é a separação das características de exploração e necessidade. Isso força a uma escolha entre o princípio de um direito ao produto do próprio trabalho, que pertence à doutrina da exploração, e um princípio de igualdade de benefícios e de encargos, que nega o direito ao produto do próprio trabalho e que é necessário para defender o apoio às pessoas que sofrem de grave privação que não são produtores e que, a fortiori, não são exploradas. Este é o problema normativo central que os marxistas não tiveram que enfrentar no passado.

Se for possível ser levado a crer que todas essas características mantêm-se coesas, então se disporia de uma visão política muito poderosa. Poder-se-ia dizer aos democratas que eles deveriam realmente ser socialistas, porque os trabalhadores constituem a imensa maioria da população. O mesmo poderia ser dito aos humanitários, porque os trabalhadores estão sujeitos a uma tremenda privação. E, o que é muito importante, enfrenta-se uma pressão menor do que de outro modo seria o caso para se preocupar com os ideais e princípios precisos do socialismo, e isso por duas razões. A primeira é que, quando supõe-se que as seis características estão integradas, vários tipos diferentes de princípio moral justificarão a luta pelo socialismo, e não há urgência prática para identificar que princípio ou princípios são essenciais: de um ponto de vista prático, essa discussão parecerá desnecessária e uma perda de energia política. E a segunda razão para não se preocupar muito com princípios, quando as características estão (ou parecem estar) integradas, é a de que nesse caso não é preciso recrutar pessoas para a causa socialista articulando os princípios que as atrairão a ela: o sucesso da causa é assegurado pelas características de "maioria", "produção" e "nada-a-perder".

É em parte porque patentemente não há hoje nenhum grupo que tenha essas características e, conseqüentemente, que seja portador da característica "revolução", que os marxistas, ou os que eram marxistas, se vêem cada vez mais impelidos a adentrar filosofia política normativa. A desintegração das características produz uma necessidade intelectual de filosofar que relaciona-se à necessidade política de ser tão claro como nunca antes se foi, para defender o socialismo, com respeito a valores e princípios. A advocacia socialista normativa é menos necessária quando as características coincidem. Não é preciso justificar uma transformação socialista como uma questão de princípio quando as pessoas são levadas a fazê-la movidas pelas urgências de sua situação e estão em boa posição para ter êxito.

Cada uma das características 1-4 constitui hoje o motivo fundamental de um certo tipo de política de esquerda ou pós-esquerdista na Grã-Bretanha. Primeiro, há a política de maioria (às vezes chamada de "política de guarda-chuva") adotada pelos socialistas que reconhecem a desintegração e procuram produzir uma maioria para uma mudança social igualitária a partir de elementos heterogêneos: trabalhadores mal pagos, desempregados, grupos raciais oprimidos, pessoas oprimidas devido a seu sexo ou suas preferências sexuais, velhos abandonados, famílias de um só cônjuge, deficientes, e assim por diante. Uma política centrada nos produtores, com reduzida ênfase na exploração, caracterizou a retórica (Harold) wilsoniana de 1964, que prometia derreter as estruturas reacionárias britânicas no "fogo abrasador" de uma transformação tecnológica do país em que uma aliança entre proletários e produtores altamente qualificados venceria o poder da City, dos proprietários rurais e de outros parasitas. A política do produtor projeta uma aliança saint-simoniana de trabalhadores e produtores high-tech, colocando mais ênfase no parasitismo daqueles que não produzem do que na exploração daqueles que produzem (uma vez que alguns dos fortes competidores que estão incluídos na aliança saint-simoniana dificilmente poderiam ser considerados explorados). Uma política da exploração, com alguma pretensão de que as demais características ainda se verificam, é a marca de diferentes formas de trabalhismo scargilliano obsoleto. E, finalmente, há a política centrada em necessidades do ativismo dos direitos de bem-estar social: a política daqueles que acreditam que o sofrimento tem precedência no apelo à energia radical e que se devotam às novas organizações do tipo da Shelter, da Child Poverty Action Group, da Age Concern e de um sem número de grupos que enfrentam as privações, a fome e a injustiça espalhadas pelo mundo todo. Essas organizações não existiam quando a desintegração estava menos avançada e quando a luta dos trabalhadores e o movimento do bem-estar social praticamente coincidiam. (A atividade filantrópica em benefício de crianças necessitadas, dos sem-teto e dos velhos indigentes de há muito precede a fundação das organizações acima mencionadas, mas estas buscam seus objetivos não no espírito antigo de prover caridade e sim em um espírito novo de corrigir a injustiça; uma injustiça que, ademais, não poderia ser incluída no conceito de exploração.)

Enquanto é possível considerar que os que sofrem de necessidades extremas coincidem, ou são um subgrupo dela, com a classe trabalhadora explorada, a doutrina socialista da exploração não apresenta muitas dificuldades para o princípio socialista de distribuição de acordo com a necessidade. Mas uma vez que deixa de haver coincidência entre os que são realmente necessitados e os que são produtores explorados, então a doutrina marxista da exploração torna-se flagrantemente incongruente até mesmo com o princípio mínimo do welfare state. Dessa forma, passam a existir tarefas para a filosofia política socialista que não precisavam ser enfrentadas no passado.

Algmas vezes, quando apresento as reflexões precedentes sobre a desintegração da classe trabalhadora em um seminário, ou para uma audiência mais política, alguém se levanta e tenta me persuadir que se ampliar meu foco verei que as características que arrolei permanecem integradas, só que agora em escala global. Eu estaria sendo cego para o fato de que um proletariado internacional de características clássicas já surgiu ou está surgindo.

Mas isso é instrutivamente falso. É sem dúvida verdade que pelos países em que se encontra a maior parte da população mundial existem produtores, antes isolados do capitalismo, que realizam amplamente as características de exploração e de necessidade, por exemplo nas metalúrgicas indianas ou nas fábricas coreanas de linha de montagem eletrônica. Mas eles dificilmente constituem a maioria seja dentro de cada uma ou no conjunto das sociedades em questão,

A concentração e a unificação do capital historicamente precede a unificação dos trabalhadores, em círculos geo-sociais concêntricos. O capital se coagula em empresas de controle acionário comum antes que essas empresas enfrentem uma força de trabalho sindicalizada. E as empresas se interligam para além do Estado-nação antes que as forças dispersas dos trabalhadores sindicalizados comecem a alcançar uma presença nacional unificada. Ainda que isso possa demorar a ocorrer, os trabalhadores por fim alcançam a unificação em um dado Estado-nação. Mas, por razões tanto culturais quanto econômicas, é muito mais difícil fazer isso em âmbito internacional. O problema não está na dimensão que Marx e Engels teriam focalizado: a do transporte e da comunicação. Hoje a comunicação é fácil e barata. Mas a diversidade cultural entre as nações, e os gigantescos abismos existentes entre elas nos padrões de vida almejados e reais, tornam difícil a identificação mútua de suas classes trabalhadoras.

Em uma das antigas canções socialistas que exprimiam os sentimentos do velho movimento da classe trabalhadora, a última estrofe começa assim:

I see my brothers working

Throughout this mighty land

I pray we'll get together

And together make a stand.

Este unir-se, esta transcendência de diferenças econômicas e culturais, era mais ou menos alcançável, e algumas vezes realizou-se, dentro de um único país. Mas é uma perspectiva implausível em escala global. Como é possível que um técnico da Boeing em Seattle se conceba unindo-se a um trabalhador de uma fazenda de chá na Índia? Se deve haver alguma forma de solidariedade vinculando essas pessoas, ela necessita, uma vez mais, daquela fermentação moral que no passado parecia ser tão desnecessária

IV

Já vimos o bastante sobre as conseqüências do erro da previsão marxista da unificação dos trabalhadores para as perspectivas da igualdade. O velho sujeito (em parte real, em parte imaginado) da transformação socialista se foi, e não há e nem haverá nenhum outro semelhante a ele. Precisamos nos contentar com algo menos do que isso e aceitar a necessidade de mais justificação moral do que era habitual. Mas há um traço da nova situação que coloca a demanda de igualdade no proscênio sob um fundamento inteiramente novo e, como veremos, paradoxal — um fundamento que está vinculado ao equívoco da predição de abundância do marxismo.

O novo fundamento da demanda de igualdade relaciona-se à crise ecológica que, talvez pela primeira vez na história de nossa espécie, é uma crise que afeta a humanidade como um todo. A escala da crise é necessariamente uma questão controversa, assim como o tipo de remédio para ela, se é que já não é tarde demais para se falar em um remédio. Mas apesar de haver questões controversas difíceis, duas proposições parecem-me ser indiscutíveis: a de que a crise é grande e imediata e a de que o remédio exige uma mudança radical de estilo de vida, na direção de muito menos consumo do que hoje é a média nos países industrializados ocidentais. Os padrões de vida ocidentais, medidos em termos de consumo de energia e de recursos naturais, precisam cair e os padrões de vida não-ocidentais jamais alcançarão os níveis ocidentais atuais.

A questão é que quando os padrões de vida em geral estão subindo, é relativamente mais fácil para aqueles que se encontram na parte inferior da onda ascendente tolerar a distância entre eles e os que se encontram no topo. Sob circunstâncias de melhoria geral, as diversas ideologias de aprovação da desigualdade têm a sua hora, mas elas não são necessárias para garantir a aceitação dela. As ideologias não são realmente necessárias porque a alternativa à aceitação da desigualdade é tão custosa em comprometimento, energia e sangue que é uma aposta melhor para os relativamente destituídos, em termos de seus padrões de vida no futuro previsível, aceitar a desigualdade em um contexto de progresso econômico do que interrompê-lo em benefício da igualdade. Mas quando, sob pena de extinção da espécie, o progresso precisa dar lugar ao retrocesso e os padrões materiais de vida precisam cair, então aventuro-me a dizer que não há ideologia que possa reconciliar os indivíduos pobres, e os países pobres, com as gigantescas e permanentes disparidades de riqueza e bem-estar.

Mas se a ideologia não mais servirá para manter a desigualdade junto com a paz social e internacional, então, até onde posso enxergar, somente dois cenários são possíveis. Em um deles, mesmo caindo os padrões de vida populares, a desigualdade é mantida pela força bruta. No segundo cenário, a coerção é menos necessária, ou de todo modo menos coerção é necessária, porque a queda nos padrões de vida em geral ocorre junto com uma atenuação da desigualdade e com uma elevação, mesmo no contexto de queda geral, das condições de vida das pessoas em pior situação. E então o liberalismo, cujo relação com a igualdade sempre foi ambígua, o liberalismo, com seu vasto arsenal de ideologia e de sentimento, precisa se colocar do lado da igualdade, pois a alternativa à igualdade é a coerção que ele condena.

Mas eu disse que esse novo fundamento para a demanda de igualdade tem um aspecto paradoxal, e concluirei explicando o paradoxo.

Lembre-se do slogan caracterizador da consumação do comunismo marxista: de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade. Esta é a fórmula mais igualitária jamais concebida e é de se imaginar como um pensador pragmático como Marx pôde não somente ter depositado esperanças nisso mas também ter acreditado no surgimento de uma sociedade como essa. A resposta encontra-se em sua crença de que o progresso industrial conduziria a sociedade a uma tal condição de abundância que não haveria conflito entre satisfazer as necessidades de uma pessoa e satisfazer as de qualquer outra e, portanto, não haveria lugar para a competição desigual entre indivíduos e grupos.

Já não nos é possível manter o otimismo pré-ecológico de Marx. Temos que abandonar essa visão. Mas se estou certo sobre o estreitamento das escolhas devido à crise ecológica, temos também que abandonar o pessimismo sobre as perspectivas sociais que constituía o pano de fundo do otimismo de Marx sobre as perspectivas materiais. Pois Marx pensava que a abundância material era uma condição não somente suficiente mas também necessária à igualdade. Ele acreditava que qualquer coisa menos do que a abundância, tão completa a ponto de remover todos os principais conflitos de interesse, resultaria em permanente conflagração social, uma "luta pelas necessidades ... e todos os velhos negócios sujos". Era por ser tão inflexivelmente pessimista acerca das conseqüências sociais de qualquer coisa menos do que a abundância ilimitada que Marx precisava ser tão otimista sobre a possibilidade dessa abundância.

Porque não podemos compartilhar do otimismo de Marx com respeito à possibilidade material, também não podemos compartilhar de seu pessimismo em relação às perspectivas sociais, se queremos sustentar uma visão segundo a qual a humanidade pode ter um futuro aceitável diante de si. Não podemos esperar que a tecnologia resolva as coisas para nós: temos que resolvê-las nós mesmos. Assim, o paradoxo é o de que enquanto a forma mais desenvolvida de pensamento socialista, o marxismo, via a igualdade fundada na abundância, nós estamos obrigados a procurar a igualdade no contexto e sob o estímulo da escassez. O reconhecimento disso precisa dirigir os esforços futuros dos economistas e filósofos socialistas.

  • * "Equality as Fact and as Norm: Reflections on the (partial) Demise of Marxism". Texto apresentado no Colóquio "Social Justice and Economic Constraints", realizado na Universidade de Louvain, Bélgica, 3-4 de junho de 1994.
  • 1
    , mais precisamente de fatos que representam obstáculos supostos ou reais à realização de uma maior igualdade. Mas fatos, infelizmente, não são a minha especialidade. Sendo um filósofo político à maneira anglo-saxônica, que lida com argumentos, para mim os fatos pertencem às premissas menores cuja verdade não me cabe julgar.
  • 1*
  • 2*
    , na suposição de que essas criações evidenciassem que ele deveria ter pelo menos um níquel.
  • 2
    que permanecem em larga medida agrárias, e eles não representam os produtores de cujo trabalho o capitalismo depende, da forma como se imaginava isso tradicionalmente. A engrenagem da produção no mundo de hoje é a corporação multinacional, que absorve e se desfaz de grupos de trabalhadores a seu bel-prazer: nenhum grupo de seus trabalhadores tem um poderio substancial, porque há inúmeros outros grupos que formam um tipo de exército industrial de reserva
    vi-à-vis qualquer um dos grupos por ela empregados. Os proletariados potenciais e reais da Índia e da China estão à disposição nos portões das fábricas de Birmingham, Detroit e Lille, e de Manila, São Paulo e Capetown.
  • 3*
  • 3
    à solidariedade proletária. Os que são imensamente mais privilegiados no proletariado do mundo precisam ser sensíveis a um apelo moral para que qualquer progresso nessa direção possa ocorrer.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1994
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