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Dilemas da consolidação democrática no Brasil

TRANSIÇÕES POLÍTICAS NA AMÉRICA LATINA

ARTIGOS

Dilemas da consolidação democrática no Brasil* * A versão original, deste texto foi apresentada em um seminário realizado no CEDEC, a cujos colegas agradeço os comentários. Uma versão revisada foi apresentada também ao 46º Congresso Internacional de Americanistas, realizado em julho de 1988, em Amsterdã, e no 14º Congresso da Associação Internacional de Ciência Política, realizado em setembro de 1988 em Washington DC. Sou extremamente grato ainda, às leituras atentas e cuidadosas que tiveram a gentileza de fazer Guillermo O'Donnell, José Augusto Guilhon Albuquerque, Gabriel Cohn e Luciano Martins. Os seus comentários me ajudaram muito, mas as insuficiências do texto são de minha exclusiva responsabilidade.

José Álvaro Moisés

Cientista político, presidente do CEDEC e professor de Ciência Política na USP

1. INTRODUÇÃO

O primeiro grande dilema dos países que passaram (ou estão passando) por processos de transição política consiste em que, tratando-se primordialmente de tarefas de engenharia institucional, a estratégia de construção da democracia não é uma decorrência natural do fim do autoritarismo. Quaisquer que sejam elas, as sociedades que saíram da ditadura e querem ser democráticas têm de sé transformar em algum ou em vários sentidos para chegarem a ser democracias modernas. E isso não se constitui, propriamente, em uma tarefa simples, por duas razões: seja por causa do peso que a experiência autoritária ainda exerce sobre essas sociedades; seja por causa das dificuldades que as forças políticas relevantes comprometidas com o projeto democrático enfrentam para dar conta das suas tarefas estratégicas, o terreno é essencialmente movediço.

Por mais óbvio que isso possa parecer, é necessário insistir sobre o ponto. Desde Maquiavel, nos primórdios da formação do Estado Moderno, aprendemos que não há nada história dos homens, que seja, propriamente, fruto de uma ordem natural (o mundo dos homens é sempre uma construção dos próprios homens). Mas o caso da criação de normas sociais, regras de procedimento e instituições destinadas a reconhecer a legitimidade e a processar pacificamente os conflitos que, a partir da sua existência social, emergem entre os homens ou entre grupos deles - como é típico da democracia - é um caso especial, certamente mais complicado e de difícil adequação. Em primeiro lugar, como procuro sugerir nas páginas seguintes, porque o processo de criação de instituições expressa sempre o conflito - a disputa de concepções de mundo e de existência social - que caracteriza as sociedades modernas; as instituições são fruto da competição que se trava entre diferentes visões sobre como esse conflito deve se processar. Por outro lado, instituições não são simples criações dos homens; uma vez que elas estejam aí, elas exercem enorme influência sobre eles, sobre a orientação da sua ação e sobre a capacidade de eles encontrarem soluções para os problemas que são publicamente relevantes.

Os processos de consolidação democráticas dos países do Cone Sul e da Europa do Sul1 1 A literatura recente sobre processos de transição política refere-se à Argentina, Brasil, Chile e Uruguai ao falar dos países do Cone Sul; no caso da Europa do Sul, são mencionados Portugal, Espanha, Grécia e Turquia (O'Donnell, Schmitter e Whitehead: 1986; Schmitter: 1985; Weffort: 1988). oferecem um bom exemplo dessa dificuldade. Como no caso recente do Brasil, distintas experiências de transição política indicam que, quando esses processos avançam e chegam perto da sua conclusão, o problema das instituições mais adequadas à democracia torna-se crucial, No entanto, a institucionalidade (a) remanescente do passado remoto; (b) herdada do período autoritário imediatamente anterior; e (c) em fase de elaboração durante o período recente, caracterizado, como no caso brasileiro, por um processo de transição errático, duvidoso de larguíssima duração, não parece corresponder adequadamente as imensas e complexas exigências que se colocam diante desses países. De certa forma é como se boa parte dos que formam essas sociedades não quisessem mais a ditadura, embora ainda não prezem suficientemente as instituições democráticas, nem as defenda como seria necessário que fosse.

Mas a estes fatores associam-se outros: boa parte das novas exigências que pesam na fase de conclusão dos processos de transição política deve-se ao fato de que, embora em graus distintos, várias dessas sociedades são mais modernas e bem mais complexas do que eram quando os regimes autoritários se instalaram. Por isso mesmo, a enorme sobrevivência.do arcaísmo político (clientelismo, prebendalismo, favoritismo etc.) contrasta flagrantemente com a emergência de estruturas-econômicas e sociais relativamente modernizadas, uma vez que enormes e bastante complexas também foram as transformações que ocorreram; durante o período autoritário (assinale-se que, se a diferença que separa o Brasil dos demais países do Cone Sul é grande, quanto ao grau de desenvolvimento econômico recente deste último, Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo, não podem ser inteiramente excluídos da situação que se descreve antes por causa da anterioridade do seu processo de modernização).

No caso da sociedade brasileira, é inegável que o seu cenário de hoje é outro em relação ao período pré-autoritário: trata-se de uma sociedade mais urbana, mais diversificada socialmente e muito mais complexa na expressão das suas reivindicações sociais, econômicas e políticas. Por outras palavras, o período autoritário não foi um mero parênteses histórico que, por exemplo, justificasse repetir formas de organização política e institucional próprias dos períodos históricos anteriores. Estamos diante de uma nova realidade e é em face dela que se definem os dilemas da consolidação democrática.

Ao mesmo tempo, não se trata, somente, de considerar as novas:condições sociais geradas nas últimas décadas: junto com as experiências de mudanças (e, muitas vezes, articuladas com elas) verificaram-se, também, importantes continuidades históricas. Os regimes autoritários agravaram, até quase o paroxismo, velhos problemas estruturais dos países latino-americanos (questão social, questão nacional) e, no período pós-autoritário, esses problemas estão a exigir soluções mais urgentes e, em certo sentido, muito mais complexas. Os exemplos da nova Constituição brasileira - por mais discutíveis que sejam - no terreno da defesa nacional e dos direitos sociais são uma indicação segura do peso que essas questões têm para qualquer estratégia de construção de um regime de democracia política no país.

Qualquer que venha a ser o sentido da sua superação, a crise dos regimes autoritários, impulsionada pelos processos de transição, exige a gestação de novas formas de se conceber e de se praticar a política. Fala-se hoje, nos países do Cone Sul, de uma crise dos partidos políticos, do parlamento e do Estado, enfim, das condições existentes para a persistência ou para o agravamento de uma crise crônica de governabilidade, o que exige uma profunda revisão do sistema democrático de governo. Mas é evidente que o processo não se refere somente às concepções abstratas ou aos modelos paradigmáticos de regime político: ele incide, diretamente, sobre a capacidade que as forças políticas relevantes comprometidas com o projeto democrático revelam para gerar um conjunto de instituições e de práticas políticas capazes de enfrentar os velhos e os novos desafios colocados por essas sociedades.

Nesse contexto, uma das questões mais fundamentais da transição é enfrentar a distancia histórica que quase sempre existiu entre as instituições políticas e os processos sociais - entre os mecanismos e os loci de tomadas de decisões públicas e as experiências e as expectativas populares - em países como o Brasil. Há muitas indicações de que essa distância faz parte da cultura política tradicional da sociedade (amorfismo social, patrimonialismo, ausência de integração partidária etc); mas esse diagnóstico não resolve o problema, pela simples razão que falar de cultura política como referindo-se a fenômenos desarticulados da dinâmica de funcionamento das instituições políticas equivale a fazer uma cisão na realidade que a experiência não autoriza. Em realidade, os valores e os códigos simbólicos que informam a ação política sempre interagem fortemente com o contexto institucional que estimula, autoriza ou impede que certas opções sociais sejam feitas em detrimento de outras. O consenso normativo que fundamenta a cultura política é sempre um consenso sobre normas, regras de procedimento e valores compartilhados pelos diferentes grupos que formam sociedade. Isso equivale a dizer que, em última análise, embora seja evidente que o problema não se esgote nesse domínio, ele começa pela questão das instituições. É evidente que mudanças na cultura política são necessárias, mas, desarticuladas da tarefa de engenharia institucional exigida pelos processos de democratização política, elas têm pouca capacidade de transformar o cenário dos países a que me refiro aqui. Por isso, é mais adequado falar de mudanças institucionais e de mudanças na cultura política operando, simultaneamente, em um processo de mútua influência e de mútuo estímulo à inovação.

Parte-se da hipótese, portanto, de que os processos de transição política são, a uma só vez, processos de desarticulação da velha ordem política e de edificação da nova. Isso implica mudanças concomitantes no mundo das instituições, nas concepções que lhes dão fundamentos e nos códigos simbólicos que se referem a elas. Como o ritmo e a intensidade desses processos é variável, de acordo com a capacidade de ação que revelem as forças políticas relevantes, elas elaboram padrões ad hoc de interação política que, muitas vezes, mal se estabelecem e já servem para abrir ou para fechar a passagem ao.estabelecimento mais duradouro de padrões, não só socialmente reconhecidos, mas legal e formalmente definidos pelos códigos aceitos pelas principais entre aquelas forças.

É por isso que o problema tem de ser posto em termos, de uma estratégia adequada à construção da democracia. Quando essa estratégia falta - como parece ser o caso do Brasil - as consequências para o processo de consolidação democrática são imensas: aumenta a capacidade de resistência dos setores que não querem avançar em direção à democracia, ampliam-se as incertezas dos que ainda não estão inteiramente convencidos das virtudes do jogo democrático ou confunde-se o horizonte daqueles que, definindo-se como democratas, têm imensamente ampliado o cenário de dilemas que passam a ter de enfrentar.

Para efeito de maior clareza, defino, a seguir, o sentido com que se usa aqui alguns dos conceitos mencionados. Fala-se de questões estratégicas, nestas notas, como referindo-se aos. processos de distribuição de poder em sociedades que, por definição, são desiguais, relativamente complexas e essencialmente conflitivas (as pretensões dos diversos atores dando-se em torno de bens materiais, políticos e simbólicos em disponibilidade). As questões estratégicas envolvem diferentes formas de relações de domínio, real ou potencial, de alguns homens ou grupos de homens sobre outros e referem-se tanto à relação da sociedade civil com o Estado e os seus aparatos, quanto aos processos de articulação e distribuição de poder no interior da própria sociedade civil. Neste sentido, admite-se que temos relações de tipo estratégico sempre e onde se tenha relações públicas de qualquer tipo que afetam a distribuição dos bens em disponibilidade.

Por outra parte, por forças políticas relevantes entende-se os atores - quase sempre coletivos, embora possam se expressar, também, em torno de personalidades individuais de grande significado público - que têm interesses e objetivos distintos e; frequentemente conflitivos, em relação aos processos de distribuição de poder. A identidade desses atores tende a definir-se, explicitamente, na dinâmica desses processos; mas pode ocorrer que não se defina de uma vez por todas: trata-se de uma tendência. Finalmente, parte-se de que o quadro em que essas forças políticas relevantes atuam é dado por condições sociais, econômicas e culturais, além das propriamente políticas, que independem (em termos imediatos) da sua ação. Mas, por definição, esse quadro pode ser modificado pela ação destas forças políticas relevantes, o que define a natureza estratégica do terreno onde elas operam. Por isso, assinale-se que para a definição da sua ação importam tanto os seus objetivos, de curto e de longo prazos, como as percepções que esses atores adquirem dos objetivos, da capacidade de ação e das facilidades e/ou dificuldades enfrentadas pelos demais atores para atingirem os seus fins. Ou seja, essa ação é dotada de algum grau de racionalidade (Reis: 1984).

2. O PROBLEMA DA ORDEM POLÍTICA

O que está dito antes sugere que os processos de transição política (que podem ou não ingressar na fase de consolidação democrática) referem-se a velhos dilemas que, como sabemos, estiveram na origem da elaboração clássica do pensamento político moderno: por que e em que condições os homens obedecem? E, quando aceitam fazê-lo, que normas, regras e mecanismos constituem para submeter o poder assim instituído a algum grau de controle social?

Trata-se, aqui, evidentemente, dos problemas da construção da ordem política. A reconstrução (ou, como em alguns casos, a própria construção) do poder político e da autoridade do Estado — que só se justifica em certos casos, mas, quando se justifica, tem de ser aceita para ser eficaz - recoloca, inelutavelmente, a questão relativa aos fundamentos da ordem. É isso que reatualiza o exame de alguns problemas clássicos: as fontes e os limites do poder, a definição de quem manda, o lugar da soberania popular, a definição de quem é o "povo" a que o reconhecimento do princípio da soberania faz referência e as condições que autorizam se, quando e como essas definições podem mudar (questão de constitucionalismo). Por outras palavras, os processos de transição política conduzem (em especial, em sua fase de conclusão) ao estabelecimento dos preceitos que determinam, no quadro de padrões de interação política consensualmente aceitos, as próprias regras que definem se e como esses padrões podem mudar.

Com efeito, embora devesse passar muito tempo até que noções como a de Estado de Direito alcançassem as amplas implicações práticas que tem hoje para distinguir, por exemplo, entre um regime democrático e um regime autoritário, o fato é que as origens dessa noção se confundem com os princípios que deram origem ao pensamento político moderno e para o qual é tão importante o princípio do rule of law. Uma vez questionada, no entanto, a antiga ordem política - que se fundava em uma legitimidade de origem divina — os homens passaram a reivindicar o direito de criarem a sua normatividade a partir de si mesmos e da sua própria experiência. A Revolução Francesa e, ainda que em um contexto histórico distinto, também as Revoluções de Independência da América Latina, marcam essa passagem entre a noção de uma ordem política "herdada" e a noção de uma ordem construída pelos homens.

A partir da emergência de uma ordem pública moderna, a noção de soberania popular tendeu, paulatinamente, a se impor como novo princípio de legimidade da institucionalização do poder público. No entanto, deixou pendente um problema organizativo: a institucionalização que tem por fundamento a categoria central e homogênea de "povo" choca-se com uma realidade social que a subverte. Bastaria lembrar, por exemplo, a situação de várias sociedades de desenvolvimento capitalista originário no começo do século XIX. Sobrevivem, então, resquícios dos privilégios do antigo regime, permanecem as divisões estamentais e o sufrágio - ainda que concebido como norma universal - está bastante limitado. A outra face dessa moeda é a realidade da exclusão social de amplas camadas da população, indicando que, na prática, a "igualdade perante a lei" está limitada pela desigualdade real da vida. Pode-se facilmente acrescentar a essas desigualdades aquelas resultantes dos processos de secularização e de diversificação das estruturas cognitivas, morais, e afetivas dos diferentes setores que formam as sociedades modernas.

Existe, portanto, uma progressiva complexidade nas condições materiais, nos hábitos, nas crenças e nos valores expressos pelo "povo", o que contradiz a relativa homogeneidade implícita no conceito que reivindica a sua centralidade :para pensamento político moderno. Como organizar, então, a partir de toda essa diversidade a "vontade do povo"? A distância existente entre a realidade de sujeitos efetivos capazes de expressar a vontade (ou as vontades) do povo real e as instituições políticas e, mais concretamente, a relação entre a heterogeneidade social e o princípio de unificação político-institucional da sociedade moderna - organiza os eixos centrais em torno dos quais travou-se, desde século passado, a luta pela construção de uma ordem democrática.

Essas questões têm uma imensa atualidade nos tempos em que vivemos pela simples razão de que, sendo as transições políticas situações essencialmente de incerteza, elas colocam-nos diante de distintas alternativas de ação e de possibilidades de desfecho. O controle da situação nunca é absoluto por parte de quaisquer das forças políticas (o que não exclui que algumas, entre elas, ajam em condições mais favoráveis que outras). Por isso, não há nunca só.uma solução para os impasses que se desenham durante o processo. As situações de incerteza, sendo marcadas por caráter essencialmente conflitivo e, por decorrência, competitivo, remetem sempre a um campo contraditório de luta política e, portanto, institucional. Mas esse jogo não se determina ex-ante, só estabelece a natureza do seu processo no próprio movimento da ação.

Por outras palavras, partindo-se do pressuposto de que a sociedade, é um campo de diversidade de projetos e uma pluralidade de vontades (sujeitos), descarta-se a possibilidade de que a concepção de um único entre os atores possa se impor, unilateralmente, aos demais a respeito (a) do funcionamento da sociedade e, portanto, dos seus conflitos fundantes; (b) da forma de processar os conflitos e a competição que decorre de sua existência; e (c);da maneira como os seus resultados transformam-se em decisões públicas capazes de afetar (direta ou indiretamente) o destino de todos os membros, da sociedade.

O que se quer chamar a atenção aqui são os modos pelos quais os diferentes atores interagem socialmente; dadas as condições de desigualdade que preside a sua existência social, eles confrontam-se, lutam e negociam para estabelecer um sentido comum que, por de função, justifica a sua existência coletiva. Mas como a vida social não é um dado da natureza mas, antes, criação dos homens, ela reivindica uma dimensão compartilhada que, uma vez aceita por todos (ou, por quase todos), adquire o sentido de um valor geral. Esse é o problema da ordem política. É esse valor geral que instaura o consenso normativo que, por decorrência, engaja o conjunto (ou a maioria) dos membros de uma dada sociedade (Lechner: 1984).

3. CAPITALISMO E DEMOCRACIA

Estamos agora em condições de formular, de modo mais preciso, o problema que afeta os países que, como o Brasil, ingressaram (ou estão ingressando) em processos de consolidação democrática. É que a constituição de uma ordem democrática, nessas situações, exige uma ênfase nova na questão das instituições. A questão pode ser melhor compreendida a partir da dupla dimensão de que se reveste o problema: (a) em primeiro lugar, trata-se de saber quais são as instituições que, efetivamente, revelam-se mais adequadas à estratégia de construção de um regime que, por definição, baseia-se em padrões de interação política fundados na legitimidade da norma corno requisito da deliberação pública; (b) ao mesmo tempo, trata-se de saber como construir instituições que, assegurando esse sentido às condutas das forças políticas relevantes, garantem a estabilidade desse novo padrão de interação sem impedir, no entanto, a eventual entrada de novas forças políticas no jogo democrático assim definido.

A vantagem dessa maneira de colocar o problema é evidente. Ela aponta, desde logo, para alguns dos dilemas mais importantes enfrentados por todos aqueles que, no interior das sociedades a que estamos nos referindo aqui, autodefinem-se como identificados com a difícil tarefa de construir (ou de contribuir para a construção) de um regime de democracia política, ou seja, os democratas. Esses dilemas podem ser resumidos, a partir das definições anteriores; da seguinte maneira: (1) qual é o consenso, normativo em torno do qual as forças políticas relevantes dispõem-se a processar os seus conflitos que, no caso dos países da América Latina, e em especial no caso do Brasil, referem-se a níveis de desigualdade econômica, social, cultural e política considerados abismais; (2) quais são os mecanismos efetivos mediante os quais pode-se organizar a competição política para a resolução desses conflitos, levando-se em consideração que a tendência histórica tem sido a de não reconhecer a legitimidade dos conflitos, nem colocá-los sob disputa competitiva na esfera pública; e (3) de que forma esse complexo de normas e de mecanismos político-institucionais engaja a participação das forças políticas relevantes e, eventualmente, abre caminho para a entrada de novas forças, com vistas à realização dos seus diferentes interesses.

Partindo do pressuposto de que é.do interesse estratégico das forças que se definem como democratas dar uma resposta eficiente a esses dilemas, proponho iniciar a reflexão - como é natural que seja, fazendo-se referência ao caso do Brasil - pelas sociedades fundadas sobre a desigualdade.

Sabemos hoje, como, no passado, que não há suficiente evidência empírica que leve a descartar, por exemplo, a velha tese do marxismo; segundo a qual a estrutura que; assegura a propriedade privada dos meios de produção constitui forte impedimento a urna alocação mais igualitária dos recursos:socialmente produzidos. Mas também não é nenhuma novidade, pelo menos para.quem se dedica a estudar os regimes políticos nas sociedades capitalistas, com é inadequado postular uma concepção da política e do Estado apoiada em uma explicação reducionista de sua "natureza de classe". Se a interação inter-classes é uma das variáveis importantes para explicar os fenómenos da política, ela não é, entretanto, a variável independente a partir da qual tudo se reduziria a uma; explicação causal e unívoca (Miliband: 1971; Przeworski: 1985).

O dilema real do debate contemporâneo está em que a democracia é vista como o resultado incerto no jogo de conflitos que constitui a sociedade e, por causa dessa natureza? contingente ela implica um processo constante de avanços e recuos dos mecanismos políticos e institucionais programados para dar concreção ao princípio da soberania popular (Przeworski: 1984). Longe de resolver, o problema, no entanto, a tendência de procurar detectar a "natureza de classe" dos fenômenos políticos, em sua singeleza, não serve para explicar, por exemplo, por que uma ação política referenciada uma base "classista" de apoio pode falhar, no interior dó quadro competitivo típico do regime democrático e, assim, deixar de produzir resultados políticos e administrativos capazes de enfrentar os problemas concretos vividos pela base social que pretende representar. (Penso, por exemplo, nas "administrações de esquerda" que, em diferentes níveis e latitudes, falham, muitas vezes, apesar de sua base de apoio na classe trabalhadora, em vincular as suas funções governamentais com seu projeto político de mais longo prazo.)2 2 Objetou-se, algumas vezes, que os problemas de um "governo de esquerda" - que podem ser mais ou menos intensos, a depender de inúmeros fatores que não podem ser tratados aqui - não esgotam nem invalidam a suposta "natureza de classe" do Estado nas sociedades capitalistas, o que é parcialmente verdade. O problema, no entanto, não é esse; o problema continua sendo a natureza dos vínculos causais que se deseje estabelecer entre o processo político real, a forma do Estado e a estrutura das classes. Tudo o que se está dizendo aqui é que essa última não é tudo e, na verdade, explica pouco quando estamos diante dos fenômenos políticos.

O problema real, entretanto, ainda não é este. Como o atestam a vasta e a rica experiência dos países de democracia consolidada, mesmo quando a tradição política e cultural que inclui a existência de regras precisas de procedimento - a chamada "democracia procedural" - está bem estabelecida e alcançou um grau de funcionamento bastante satisfatório, a democracia convive com a miséria, a pobreza, a desigualdade e, mesmo, com distintas formas de opressão (de sexo, de idade e de raça, para falar só das mais evidentes).3 3 Apesar de alguns não gostarem" do vocábulo "procedural", trata-se de um neologismo que deriva da tradição democrática de origem anglo-saxã, em cujos países, não por acaso, primeiro se consolidou o princípio do rule of law, aliás, com uma conotação bem precisa: o estabelecimento de regras de procedimento (procedural rules) com o objetivo de limitar o arbítrio e controlar o exercício do poder pelos governos, colocando-os, dessa forma, sob controle da cidadania (Bobbio: 1986). Isso é visível em países tão diferentes como os Estados Unidos, a Itália, a Inglaterra ou o Brasil - mas, no caso do Brasil; sabemos bem que essa realidade tem uma dimensão dramática. Basta lembrar que milhões de seres humanos vivem simplesmente à margem dos principais benefícios da própria modernização capitalista. Sem nenhuma participação política e, muitas vezes, não reconhecendo nos mecanismos de funcionamento da democracia um meio útil para realizar as mudanças capazes de afetar as suas vidas, podem permanecer indiferentes aos rumos tomados pela competição que afeta a sorte da sociedade ou, mesmo, podem servir de base de apoio para a implementação de políticas francamente conservadoras. Não importa que essas políticas contrariem os seus interesses mais imediatos como o direito ao trabalho ou a participar do consumo de bens materiais e culturais propiciado pelo desenvolvimento, ou que, ademais, elas criem bloqueios de natureza estrutural a que esses setores possam intervir, de alguma forma, para mudar esse quadro. Sem crença nos mecanismos de democracia, ninguém se dispõe a deixar o mundo da vida privada para ocupar o espaço público, cuja dinâmica exige um esforço intenso de informação, de mobilização e de organização.

Pois bem, embora partindo de pressupostos teóricos distintos do que se sustenta aqui, autores como Adam Przeworski têm insistido, correta e seguidamente, sobre esse ponto, sugerindo uma questão de fundo: admitindo que não há nenhuma relação necessária entre democracia e alguma espécie de distribuição igualitária dos recursos disponíveis na sociedade, qual seria a relação adequada entre o edifício institucional da democracia e sua capacidade para gerar eficácia na gestão dos problemas econômicos e sociais? (Przeworski: 1985a; 1985b). Por outras palavras, partindo do pressuposto de que qualquer teoria normativa da distribuição da justiça pressupõe sempre um consenso inalcançável (senão totalmente indesejável), o problema poderia ser traduzido nos seguintes termos: quais são as instituições que se fazem necessárias, nos processos de construção da democracia, para obter a credibilidade e, mais do que isso, a frança adesão ou o consentimento ativo dos setores sociais que constituem a base das sociedades capitalistas?

Sugiro, neste texto, enfrentar a questão a partir de dois ângulos distintos que, ademais, referem-se a dimensões complementares:

(a) quais são as instituições que podem facultar e, se necessário, estimular os diferentes interesses a se expressarem, se agregarem e influírem no processo de decisões que é típico da democracia;

(b) que complexo de instituições, vale dizer, que dinâmica institucional permite e, se necessário, convoca os cidadãos para controlarem a ação do poder público que atua em seu nome, de tal forma que o princípio segundo o qual a sua intervenção é essencial para alterar os rumos das coisas não seja apenas algo abstrato, sem efeito prático?

Evidentemente, trata-se aqui do estatuto político de funcionamento que devem ter as associações voluntárias; as organizações de interesse e os partidos políticos. Mas trata-se, também, da articulação entre essas organizações e as instituições encarregadas de controlar a ação dos governos, como os parlamentos, as suas comissões especiais, os recursos da iniciativa popular e as instâncias de judiciário às quais cabe a função de controle da ação do Executivo. Uma das questões centrais, portanto, é examinar os poderes que passam a ter, após os processos de transição, os parlamentos e qual a efetividade da capacidade de agregação e representação que têm os partidos. Ademais, um sistema democrático plenamente desenvolvido, senão o reconhecimento público da autonomia das organizações de interesse ]o que é parcialmente contestado pela literatura (Schmitter: 1979)[ supõe que o seu funcionamento incida sobre os resultados da ação dos governos. Essa é a questão central: como a democracia permite que as demandas da sociedade transformem-se em policies, cuja implementação pode ser socialmente controlada?

Embora saibamos que a democracia não produz por si só a justiça social, sabemos, no entanto, pela experiência dos países onde esse sistema de governo está consolidado e tem uma longa tradição de continuidade, que a relação entre democracia e justiça social também é objeto de construção política e institucional, o seu grau de eficácia dependendo, em grande parte: (a) da natureza dos mecanismos e das regras de procedimento, cujo funcionamento torna ou não possível que as demandas da sociedade (em particular, as pressões dos pobres e dos não-proprietários) tenham acesso ao sistema de tomada de decisões para ali influir; e (b) de os interessados poderem (e quererem) se organizar e se representar para fazer uso dessa possibilidade, cuja natureza, como sabemos, varia no tempo e no espaço.

A tradição do pensamento político moderno sugere, outra vez, pontos de partida possíveis, pois, desde a contraditória introdução do princípio da soberania popular no texto das cartas constitucionais de muitos países, a possibilidade de que os não-proprietários possam se tornar maioria no interior de seus sistemas políticos, estabelecendo regras que restrinjam os privilégios dos proprietários, está dada. Boa parte do longo debate teórico em torno dessa questão, como sugeri antes, tem-se concentrado no problema de saber como se estabelecem os mecanismos que podem tornar o princípio da soberania popular mais ou menos efetivo; mas boa parte dos analistas concordaria com a afirmação de que, com a democracia, os pobres e os menos privilegiados sempre poderão ser tentados a diminuir privilégios que dão aos ricos uma situação sociológica estruturalmente protegida em relação àquela dos demais membros da sociedade.4 4 O parâmetro dessas possibilidades, segundo tudo indica, está dado pela regra de não-abolição do capitalismo e as análises recentes, que falam de um "compromisso de classe" corno constitutivo da dinâmica do Estado de Bem-Estar (Przeworski: 1985; Offe: 1983), confirmam essa observação. Apesar disso, há experiências históricas que indicam que o sistema democrático abriga a potencialidade de transformações mais profundas: o Chile da Unidade Popular, por um lado, e os países escandinavos, por outro, continuam sendo exemplos importantes.

Um exemplo de abordagem francamente conservadora desse problema, e que reconhece explicitamente a ameaça igualitária representada pelo sistema democrático, encontra-se nos textos elaborados pela Comissão Trilateral em resposta aos avanços representados por quase um século e meio de conquistas democráticas realizadas pelo movimento operário e pela prática do Estado de Bem-Estar, e divulgados em meados dos anos 70 sob a chancela de Huntington, Crozier e Watanaki: "Contrariamente a Adam Smith, que afirmava que 'o remédio para os males da democracia' passa por uma ampliação da democracia, nossa análise sugere que, longe de resolver o que quer que seja, tal remédio acabaria por colocar mais lenha na fogueira" (Crozier, Huntington e Watanaki: 1975). Essa análise sugeriria a formulação do conceito de ingovernabilidade das democracias contemporâneas e, paradoxalmente, convergiu com certas previsões de Marx e de Stuart Mill que pensavam, cada qual à sua moda, que o desenvolvimento da democracia era irrecusavelmente incompatível com o capitalismo (Offe: 1983; Bobbio: 1987, 1988; Przeworski: 1985).

No entanto, os resultados de mais de um século e meio de lutas pela extensão dos direitos de cidadania, em sua tríplice dimensão (Marshall: 1979), discutidos à luz da teoria democrática recente, confirmam que o problema é menos de uma necessária compatibilidade ou incompatibilidade teórica e mais de se definir uma perspectiva - um campo de possibilidades - a partir do qual esses dois conceitos, que referem-se a dimensões históricas distintas, possam ou não se relacionar. Em última análise, a resposta a esse problema só pode ser uma: haverá maior ou menor compatibilidade entre democracia e capitalismo a depender da qualidade da interação entre as forças políticas relevantes, isto é, os partidos políticos, as organizações de interesse e/ou as grandes personalidades públicas. No entanto, menos do que falar de projetos globais ou acabados, que necessariamente resultam na solução do problema, cabe reconhecer que a estratégia de construção de um regime de democracia política, capaz de abrir a possibilidade de uma distribuição mais justa dos recursos sociais (bens materiais e imateriais) disponíveis, é algo que comparece embutido no tempo; ou seja, resulta da continuidade da ação dos atores que têm ou que deveriam ter objetivos estratégicos. Aliás, a história do movimento operário e dos partidos socialistas, desde o século passado, bem como a reação burguesa suscitada por eles, demonstra a correção dessa conclusão.

Por outras palavras, quem quiser reformas ou justiça social articuladas com a democracia terá de propô-las, articulá-las e, provavelmente, realizá-las, porque o sistema democrático não as realiza por si só, embora faça algo imprescindível, isto é, garanta o terreno onde elas podem se realizar. Cabe lembrar que reformas e justiça social é algo que remete para a dimensão projetiva, em sentido forte, como têm lembrado vários autores recentemente, isto é, a expressão de uma utopia que se quer tornar realidade mas que, por isso mesmo, tem de ser proposta explicitamente aos seus contemporâneos (Weffort: 1988). No entanto, é necessário insistir: qualquer projeto político para se realizar supõe um campo institucional de expressão, esse sim, típico de democracia, no sentido de que onde ela não existe, as condições de possibilidade, até para a expressão de propostas dessa natureza, são muito mais difíceis. Os distintos casos da social-democracia européia, neste sentido, são exemplares: a chegada ao poder dos partidos social-democratas, com amplo apoio . das centrais sindicais correspondentes, foi um elemento de grande impulso e vitalidade às políticas de reformas econômicas e sociais levadas a efeito nesse século; no entanto, é inegável que, sem o contexto político-institucional típico do regime democrático, muito dificilmente essa política de reformas teria sido formulada, teria obtido apoio eleitoral e teria tido legitimidade pública para ser implementada. É neste sentido que se afirma aqui: a democracia não é suficiente, por si só, para produzir justiça social, mas ela é, certamente, necessária.5 5 Isso não quer dizer que não possa haver justiça social onde não há democracia. Aqui o exemplo mais evidente é o da União Soviética. No entanto, não é difícil alcançar amplo consenso em torno da afirmação de que, não sendo democrática, no sentido que se discute neste texto, isto é, no sentido da democracia política, a União Soviética não é o melhor exemplo de sociedade onde os conflitos em torno de bens (materiais e imateriais) disponíveis se dê de forma pacífica e com base no reconhecimento da legitimidade das diferentes alternativas existentes para resolver esses conflitos. Devo essa observação a um colega do Instituto da América latina da Academia de Ciências da URSS.

É isso, precisamente, que confere extrema atualidade ao problema das instituições nos países que passaram (ou estão passando) por processos de transição política. Em última análise, como diria Dahl, se a democracia é uma escolha, entre outras, que ganha atualidade quando os riscos da repressão (ou de algum tipo de "guerra de todos contra todos") se tornam intoleráveis, então ela supõe, necessariamente, que os seus protagonistas logrem alcançar algum grau de consenso - não tanto quanto ao que querem e/ou ao que irão efetivamerite fazer - mas sobre os modos como é possível tomar decisões mantendo a adesão das forças políticas relevantes ao sistema democrático (Dahl: 1970a; 1970b).

A posição de Przeworski, por exemplo, sobre esse problema coloca, desde logo, um paradoxo: se é certo, como sugere esse autor, que os atores devem aceitar explicitamente (portanto, no espaço público) a incerteza quanto aos resultados que é típica da democracia para serem efetivamente democratas, não é menos certo que eles necessitam, também, de um mínimo de certezas para aceitar ingressar no jogo democrático. Trata-se, aqui, das certezas que se referem ao campo que qualifica e processa as incertezas decorrentes das diferentes perspectivas que estão em jogo, ou seja, das chamadas garantias de procedimento que qualificam o jogo democrático como algo aceitável para todos. Senão, como imaginar, por exemplo; que os diferentes jogadores tenham interesses em aderir e em permanecer no jogo?

Portanto, aceitar o caráter contingente da democracia exige uma estratégia de construção de um conjunto de regras imanentes a esse sistema de governo - precisamente as chamadas garantias de procedimento - que sirvam, por exemplo, tanto para constranger a possibilidade de arbitrariedades e de comportamento abusivo por parte do Estado (ou da maioria eventual que esteja em funções de governo), como o predomínio e as imposição de grupos privados que, por definição, podem formular as suas possibilidades de ação em função da estrutura e/ou organização privilegiada que tenham no interior da sociedade civil.

Dois exemplos da atualidade brasileira indicam o caráter dramático desse problema no quadro da transição política: a o primeiro refere-se à atual legislação eleitoral que, como se sabe, não prevê mecanismos eficientes de controle dos abusos do poder econômico durante as eleições, o que restringe bastante a "igualdade de condições" definida pela lei para processar a competição entre as diferentes forças políticas. O primeiro governo civil, após o autoritarismo, manteve inalterada essa legislação. O resultado, como se tem verificado nos últimos anos, é o imenso predomínio dos grupos que representam ou que estão apoiados por detentores do poder econômico; e (b) o outro caso refere-se à prerrogativa que, até quando entrou em vigor a nova Constituição do país, autorizava o Executivo a fazer a concessão do direito de exploração de canais de rádio e de televisão. A tendência histórica tem sido a de se conceder esse direito a grupos privados que apóiam as forças que estejam, na ocasião, em função do governo, configurando um favoritismo que denuncia o caráter privatista da administração da questão. O primeiro governo civil exacerbou até quase o paroxismo essa tendência. Ademais, até a data, desconhece-se concessões que tenham sido feitas, por exemplo, a organizações que representam os interesses ou são apoiadas por setores não-dominantes da sociedade. É evidente que circunstâncias como essas afetam a natureza do jogo democrático: elas tendem a negar o caráter aberto do sistema e, em realidade, antecipam quase que por completo os resultados eventuais dos conflitos de interesses processados pela competição democrática. Nessas condições,a possibilidade de que uma parte importante dos jogadores tendam ase sentir trapaceados no jogo democrático é enorme e não é difícil prever que, em algum momento, eles tendam a retirar a sua solidariedade para com o regime democrático.

Os exemplos referem-se a um dos mais graves dilemas enfrentados pelo processo de consolidação democrática no Brasil. A transição política brasileira caracterizou-se por ser um dos casos exemplares de transição por continuidade, isto é, um processo que não apenas manifesta uma enorme influência das Forças Armadas nos rumos da institucionalização da democracia, como, além disso, registra uma ampla, enorme e difusa presença de antigos quadros políticos provenientes do antigo regime em todos os níveis da vida política do país.

Em virtude da modalidade de "pactos de transição" que se registraram no país (e, ao contrário de outros casos, como o da transição espanhola), a Nova República estruturou-se, em grande parte, com base em um "pacto de não-competição" entre as elites políticas, o que diluiu a importância do estabelecimento das chamadas garantias de procedimento. Em conseqüência, mantiveram-se normas e regras de procedimento (legislação eleitoral, adoção do instituto do decreto-lei etc.) que ampliou, imensamente, as chances de sobrevivência e de continuidade de estilos extremamente tradicionais de conceber e de fazer política. '

Por tudo isso, embora estejamos às vésperas do que deveria ser a conclusão da normalização institucional do país - com a promulgação da nova Constituição - e embora os riscos de um novo golpe militar estejam aparentemente afastados do horizonte imediato, não se exclui a possibilidade de que o difícil processo de modernização da vida política brasileira ainda possa conduzir a algo como uma ampla deterioração6 6 Falo de "modernização" da política para referir-me aos processos de secularização que, freqüentemente, acompanham as transições políticas, em particular, a tendência de estabelecer mecanismos públicos de controle da ação dos governos (accountability). . Trata-se do fenômeno que, com tanta agudeza, Guillermo O'Donnell designou, recentemente, como o perigo da "morte lenta" que ronda os incipientes regimes democráticos nascidos de processos de transição política semelhantes ao nosso (O'Donnell: 1988).

Isso justifica que boa parte do esforço de análise se concentre também em um exame mais cuidadoso da fase atual vivida pelo processo de transição. Em função dos problemas enumerados e das definições feitas anteriormente, propõe-se que esse exame coloque ênfase, principalmente, em algumas das dimensões que tem importância estratégica para o processo de construção da democracia: (a) o plano que envolve a agregação e o processamento dos interesses dos distintos atores no sistema político (organizações de interesses, partidos políticos e instituições de representação); e (b) o. plano onde o poder público reconhece legitimidade a essas demandas.

Trata-se, portanto, de examinar o processo de transição para verificar em que medida ocorre inovação no terreno onde funcionam as instituições de representação (parlamentos, partidos, etc); mas, também, onde a distinção republicana entre público e. privado encontra abrigo em mecanismos de controle social. Representação e controle são faces diferentes do mesmo processo, meios necessários para tornar a ação dos governos compatíveis em alguma medida com a vontade popular. Por essa razão, é importante examinar como esses meios constituem-se ou deixam de fazê-lo no processo de mudanças políticas que ocorre no país atualmente.

4. CONSTITUIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA

Catorze anos depois de iniciada a chamada "abertura política", ou seja, cerca de 2/3 do tempo total de duração do regime autoritário, o Brasil promulga uma nova Constituição. Para além do significado estritamente jurídico-formal do que deverá ser a 8ª. Constituição do país (a 7ª. Republicana), a nova Carta representa, mais uma vez na história, a tentativa de se criarem condições políticas e institucionais para que a sociedade possa ter ao alcance das mãos mecanismos efetivos para permitir que os distintos grupos que a compõem possam influir, através da competição eleitoral e das instituições da representação (partidos e parlamentos), na definição dos seus rumos.

Não creio que isso seja pouco, se se tiver em conta que, cem anos após a proclamação da República, os diferentes movimentos políticos que se fizeram portadores das aspirações republicanas ainda não foram capazes de enraizar na cultura política do país uma nítida distinção entre a esfera da vida pública e a esfera da vida privada. No Brasil, quando se fala dos negócios públicos ainda é como se estivéssemos nos referindo a um domínio que só pode ser exercido por alguns e não pelo conjunto da sociedade. O predomínio das oligarquias não é só função de períodos históricos específicos, mas é resultado de um sistema de dominação, cuja dinâmica.procura impedir a estruturação da vida pública no país.

Por tudo isso, é preciso atentar bem para o significado real que tema nova Constituição do país. Apesar de fruto de um processo constituinte conturbado e contestado por diferentes setores do espectro político brasileiro - por mais de uma vez, setores ligados ao governo Sarney tentaram desqualificar os trabalhos constituintes, numa tentativa de propor, senão a sua dissolução, algo como um novo começo da Constituinte que, por exemplo, anulasse muitas das suas conquistas sociais; também parte da esquerda manifestou, algumas vezes, a tendência de desvalorizar o significado da Constituinte por causa do .imenso predomínio dos conservadores na sua composição—, o fato é que o novo texto constitucional abriga alguns avanços democráticos significativos, como nos campos dos direitos individuais e coletivos, no terreno da definição do papel do trabalho, na extensão do conceito de cidadania ou no âmbito das relações entre o Legislativo e o Executivo.

Nada disso exclui, por certo, que se avalie esses avanços como insuficientes em fase das imensas e complexas aspirações populares que se formaram no país desde os últimos anos de governos militares e, em particular, a partir do movimento expresso pela campanha das Diretas-Já em 1984; nem que se reconheça, ademais, o caráter claramente conservador da nova Constituição nos capítulos referentes à definição do papel dos militares na vida política do país e à definição dos mecanismos de representação política da população. Mas seria irrealista negar, mesmo com tudo isso, que ela representa um passo importante em direção a um regime mais democrático ou, quando menos, que ela abre a possibilidade de que a sua construção possa ocorrer no país.

Por outro lado, malgrado o imenso desalento político gerado em muitos setores da sociedade, em última análise, a fixação da duração do mandato do presidente da República em cinco anos, assim como a confimação da data das eleições para 1989, com a possibilidade institucional de que uma efetiva alternância no poder possa ocorrer, marca o início do processo de consolidação democrática no país, estabelecendo, assim, a possibilidade de uma distinção analítica sutil, embora importante, em relação à caracterização do período de duração da transição política propriamente dita.

Falo propositadamente do início do processo de consolidação democrática, e não do seu desenvolvimento nem do seu término, porque os avanços políticos e institucionais alcançados ainda são insuficientes: não tivemos nada parecido a uma efetiva mudança nos processos de tomada de decisões no interior do Estado. Mas, o que mudou não pode ser reduzido às características dos regimes autoritários: os partidos políticos voltaram a propor-se como mediação entre o privado e público; o funcionamento dos legislativo, por limitado que ainda seja, passou a condicionar a ação dos Executivos e os processos eleitorais retornaram à sua função de organizar a competição para a formação de governos. Se a transição política corresponde ao interregno que vai de um regime a outro, não cabem dúvidas quanto ao sentido do momento que vivemos; Com a promulgação da nova Constituição, as regras que, por mais de duas décadas, caracterizaram a forma de recrutamento das elites de poder" (obediência irrestrita aos princípios da hierarquia, disciplina e coesão próprias das instituições militares) ficaram para trás; ao mesmo tempo, novas regras institucionais passam a vigorar no país, abrindo, portanto, a possibilidade de que novas forças políticas venham a se instalar nos loci onde se exercem as funções de governo.

Não se trata, no entanto, de reduzir a análise aos chamados aspectos jurídico-formais do processo, mas de verificar que, junto com a emergência da nova Constituição, começam a criar-se as condições para uma alteração mais de fundo, no sistema político, em relação ao período autoritário. Cria-se a possibilidade de institucionalização de regras básicas pelas quais o recrutamento dos governos e a formação das maiorias possam ocorrer em condições que assegurem o direito de participação a todos aqueles que desejarem se expressar nessa competição. Eleições com sufrágio universal, voto secreto e periodicidade para o exercício das funções de governo passam a ser regras fundamentais embora, evidentemente, o problema não se esgote aí. Mais importante é que, pelo menos em tese, decorridos vários anos de autoritarismo, além de o temor de novas regressões estar relativamente afastado, pode haver lugar para que se restabeleça a confiança popular nos mecanismos democráticos de deliberação, ou seja, na instituição da representação, no voto popular e nos meios de controle social da ação dos governos. Certamente, isso é apenas uma possibilidade, cuja efetivação depende, sempre, da ação dos atores, em particular dos democratas; mas a sua existência remete a questão para o terreno onde podem se estabelecer as condições institucionais pelas quais os cidadãos podem intervir com continuidade na vida política, influindo nas decisões que afetam os seus interesses.

A linha demarcatória entre o fim da transição política e o início da consolidação democrática é, portanto, muito tênue, mas a definição sugerida acima deveria ser suficiente para dar conta do que há de efetivamente novo na situação na qual estamos entrando. Aliás, parece existir bastante consenso entre os analistas em torno de certos mínimos institucionais que, se não são suficientes para levar ao pleno estabelecimento das condições mencionadas, são indispensáveis para se falar da gênese do processo de democratização. Tomando-se os casos das transições mais conhecidas, podemos nos referir a requisitos como: (a) a remoção dos remanescentes do autoritarismo; (b) o início da vigência legal dos direitos políticos; e (c) o estabelecimento de normas mínimas, aceitas pela maioria, para garantir a ampla participação da cidadania nos processos destinados a formar governos.

Naturalmente, se as condições que impedem a realização desse último ponto se prolongam e tendem a se estender ad infinitum, a transição se bloqueia e não se pode falar propriamente do início da consolidação democrática. No caso do Brasil, a recente pressão dos militares (ao lado de vários governadores de Estado) em apoio à tese do governo Sarney pela não-realização de eleições presidenciais em 1988 foi uma ameaça; mas o quadro parece se inclinar, cada vez mais, para um compromisso das forças políticas relevantes (inclusive dos militares) para realização de eleições em 1989. Ou seja, para resumir um argumento que poderia se estender bastante, chegamos a algo no processo de transição política que caracteriza a emergência de um novo regime. É certo que esse processo só se concluirá com a vigência plena dos princípios estabelecidos pela nova Constituição, especialmente, quando um novo governo vier legitimamente a ocupar o comando do país. Mas o fato de essa possibilidade estar dada, de agora em diante, marca o início do processo de consolidação democrática no Brasil.

5. A CRISE DE GOVERNABILIDADE

Se o quadro que decorre dos resultados do Congresso Constituinte apresenta alguns sinais positivos; isso se modifica quando nos voltamos para o lado das mudanças que estão ocorrendo no país. Já se disse que as situações de transição caracterizam-se por uma atmosfera de insegurança, de contradições e de enormes incertezas que, como sabemos, impactam profundamente a performance dos atores, tornando bastante errático o seu comportamento. Mas a essa atmosfera - que deveríamos começar a deixar para trás quando a normalização institucional do país está para se concluir - é preciso acrescentar o clima de enorme desalento que se registra praticamente entre todos os setores da sociedade em decorrência da crise de governabilidade que o país atravessa.

Para efeito de maior clareza, esclareço que o conceito de governabilidade refere-se, aqui, à qualidade do desempenho ao) longo do tempo, das elites políticas que estão em funções governamentais e, de modo particular, à sua capacidade de adequar o atendimento de demandas socialmente sancionadas aos recursos (materiais e simbólicos) disponíveis. Essa definição simples sugere que para se verificar a capacidade de governabilidade de um determinado governo é importante detectar (a) a sua capacidade de resposta a situações ou a estados das coisas que se interpretam socialmente como exigindo ação governamental; (b) a efetividade, isto é, capacidade de vinculação e de acatamento social das decisões adotadas; (c) a aceitação social, em termos de concordância e conformidade, das medidas adotadas; (d) a eficiência, isto é, a capacidade de gerar efeitos significativos; das decisões; e, finalmente, (F) a coerência das mesmas, em termos da ausência, através do tempo, de efeitos contraditórios (Flisfisch, 1988).

Por hipótese, reconhece-se que um déficit crônico no desempenho governamental pode produzir efeitos desestabilizadores de grande envergadura, seja em termos de uma substituição do referido governo, seja gerando o colapso da própria ordem democrática; No entanto, no curso dos processos de consolidação democrática, o problema pode ser ainda mais grave: são imensas as dificuldades iniciais enfrentadas pelos novos governos civis, de modo particular, se se tem em conta que certos recursos políticos que poderiam ter o efeito de neutralizar os déficits iniciais de governabilidade não existem. É o caso, por exemplo, de uma forte cultura política democrática, cujos valores podem sugerir que o atendimento das demandas sociais se inscreve na pauta normal de funcionamento do novo regime e, portanto, tem chances de ocorrer no futuro. Se dá o contrário quando essa cultura política inexiste e, ademais, quando o desempenho governamental tende a superdimensionar as expectativas sociais em torno da sua própria capacidade de atendimento às demandas.

No caso do Brasil, revelaram-se, desde o início do governo civil, as enormes pressões decorrentes de um quadro clássico de crise económica herdada dos governos militares: uma dívida externa catastrófica, um processo inflacionário que, pela segunda vez em pouco mais de doze meses, ameaça ultrapassar, de muito, o alarmante índice de 1% ao dia, um enorme déficit público que dá mostras de ser estrutural e imensas dificuldades para uma efetiva retomada do processo de crescimento econômico. São pressões intoleráveis que, além de exacerbarem as tensões sociais, deslocam o foco da atenção e da ação das forças políticas relevantes dos seus interesses de médio e longo prazo, fixando-as, exclusivamente, nos problemas do dia-a-dia, desqualificando, dessa maneira, por inadequados e por fora da urgência imediata, os esforços de reconstrução da sociedade e as discussões sobre o resgate da chamada "dívida social", dimensões essenciais para que o processo de democratização pudesse ganhar uma qualidade nova.

O governo civil, no entanto, tem respondido a essa espécie de quadro geral de "desfunções" com uma estratégia contraditória, além de extremamente disruptiva, para a gestão da crise econômico-financeira: (a) exacerba a manipulação eleitoral da administração econômica, como ficou evidente nos casos do chamado Plano Cruzado I, da decretação da moratória e Plano Macro (Bresser), aplicando, muitas vezes, políticas conflitantes, substituídas antes mesmo de apresentarem quaisquer resultados palpáveis e tão logo se manifestem efeitos identificados com o solapamento das bases eleitorais do governo; (b) polariza toda a ação governamental - inclusive aquela de conteúdo econômico-social mais nítido - em torno de questões como a do tempo de duração do mandato do atual presidente e dos poderes do Executivo, no novo quadro político, em detrimento visível da eficácia e da agilidade governamental necessárias para enfrentar os desdobramentos da crise e à necessidade de se definir uma nova estratégia de retomada do desenvolvimento; (c) insiste, finalmente, em modalidades extremamante tradicionais de administração da política, fazendo ampliar-se assustadoramente o grau de descontrole governamental sobre o uso dos recursos públicos.

Ademais, independentemente da avaliação que se faça do discutível papel jogado pelos meios de comunicação de massa na divulgação e na avaliação desses problemas, uma quantidade cada vez maior de acontecimentos e de denúncias em torno de casos de corrupção e de malversação de fundos públicos em meios governamentais tende a acentuar, enormemente, o descrédito da população no próprio governo, retirando a confiança popular que porventura exista nos políticos e solapando gravemente a credibilidade das instituições democráticas, inclusive aquelas que, no período constituinte, estiveram, por definição, em fase de recuperação e/ou de institucionalização.

Uma vez que o primeiro governo civil após o autoritarismo representarem tese, as forças políticas que, até então, somavam ao lado da "resistência democrática", parte da expectativa pública a seu respeito refere-se à possibilidade de uma ampla renovação dos costumes políticos. Como, ao contrário, o governo logo passou a adotar abertamente procedimentos que tenderam a acentuar o caráter patrimonial e clientelista do sistema político, o resultado é uma espécie de hiperinflacionamento da crise de governabilidade. A corrupção, associada ao favoritismo, tende a crescer ainda mais na medida em que a "administração eleitoral da economia", ao invés de fortalecer a relação dos partidos com a sociedade, privatiza a prática política ao acentuar o "clientelismo estatal" (Santos: 1987; Campello de Souza: 1988).

Ora, por funcional que esse estilo de fazer política possa ser para a articulação política das oligarquias regionais com o sistema político global, é irrecusável reconhecer que um dos seus resultados mais importantes é a exacerbação das dificuldades da governabilidade: pouca gente tende a manter o seu apoio, senão o seu crédito de confiança, a um governo que, segundo as próprias expectativas que ele projeta, deveria conduzir o país à democracia, mas, no entanto, não só não controla os abusos administrativos dentro do seu próprio campo como desqualifica o espaço público como a esfera onde as decisões cruciais da sociedade devem ser tomadas. Os resultados não poderiam ser piores, seja por causa da visível e gradativa perda de apoio popular por parte do governo encarregado de levar a cabo a transição, seja porque, como é bem conhecido, no Brasil as denúncias sobre o chamado "mar de lama" têm uma tradição bem estabelecida de derrubar governos.

6. A DESCONFIANÇA POPULAR DIANTE DA DEMOCRACIA

Pois bem, esses fatores agravam o descrédito de amplos setores da população (a) com relação aos políticos; (b) com relação às instituições da representação, em particular, os legislativos; e (c) com relação às próprias atividades do Congresso Constituinte. Esse descrédito tem origem tanto no desgoverno do país, como na campanha mais ou menos ostensiva, levada a efeito pelos setores conservadores, por parte da mídia e pelo próprio governo, mas é irrecusável reconhecer que ele acaba atingindo a imagem dos partidos políticos, como instituições de intermediação entre as demandas da população e o Estado,e o próprio sistema político. Por decorrência, gera uma crise de representatividade que não afeta apenas o prestígio político dos líderes partidários e das suas personalidades, mas as próprias expectativas que boa parte da população.parece ter formulado em relação ao que deveria ser a nova carta constitucional .do país e a conclusão da transição política.

O fenômeno da desconfiança popular em face da política não é algo recente no Brasil. Entretanto, verificado a partir da experiência da Constituinte, parece se apresentar como uma reversão de expectativas. A análise dos resultados de pesquisas publicados na imprensa, em 1987 e 1988, em que pese revelar uma expectativa inicial relativamente equilibrada em relação à nova Constituição (com uma proporção semelhante de respostas negativas e positivas) (DATAFOLHA: 1987), indicam que parte importante da população está parcialmente decepcionada com os resultados dos trabalhos constituintes.

Nada menos que 70.5%, por exemplo, dos entrevistados do Instituto Gallup na região metropolitana de São Paulo responderam, na primeira semana de novembro de 1987, que "não se sentiam representados na Constituinte" contra, apenas 21.1% que se declaravam contemplados. Esses resultados, aliás, obtiveram confirmação em outra pesquisa, realizada na segunda quinzena de janeiro del988 pelo jornal "O Estado de São Paulo", quando 66% dos entrevistados consideraram "INCOMPETENTE/MUITO INCOMPETENTE" os políticos que elaboravam a nova Constituição, enquanto as preferências pela opção "COMPETENTE/MUITO COMPETENTE" alcançaram menos de 1/3 dos entrevistados, ou seja, 30% (Gallup: 1987; O Estado de São Paulo": 1988).

Pode-se questionar a validade desses resultados, uma vez que à época, em que as entrevistas foram feitas, os trabalhos do Congresso Constituinte ainda não tinham começado a produzir os seus resultados mais importantes (referentes, por exemplo, aos direitos sociais e individuais, ao papel do Estado na economia e aos mecanismos de participação direta da população nos negócios pú6licos). No entanto, chama a atenção a confluência com resultados semelhantes obtidos nas pesquisas realizadas imediatamente após o fim dos trabalhos da Constituinte, às vésperas da promulgação da nova Constituição. Os dados apresentados no Quadro I mostram que, em duas pesquisas semelhantes, realizadas pára números quase igual de entrevistados, o percentual dos que acreditam que a situação do país (ou a sua) irá melhorar com a nova Constituição está em torno de 1/3.


Agregando-se alguns dados, os que consideram que a situação vai PERMANECER IGUAL/PIORAR alcança 54 e 60%, respectivamente, em cada pesquisa, o que não deixa de ser preocupante, embora, como se pode ver, os dados indiquem que os percentuais mais elevados de aprovação da nova Constituição se encontram entre as faixas inferiores de renda familiar. Isso significará que os mais pobres estão mais satisfeitos com as novas regras do jogo estabelecidas com a nova Constituição? Se essas informações projetam expectativas mais otimistas precisamente entre os setores que formam a base da pirâmide social, outros dados obtidos na mesma pesquisa realizada pelo DATAFOLHA mostram, no entanto, que os índices gerais de desinformação da população em relação à Constituição também são muito elevados. Isso pode indicar que exatamente os mais desinformados estão, também, entre os que expressam índices mais elevados de aprovação da Constituição, como indica o Quadro II.


Mesmo tomando-se como base para interpretação o fato de que cerca de 44% da população consultada se considerou MUITO/MEDIANAMENTE informada (em contraste com 53%quese considerou POUCO/NADA informada) sobre a nova Constituição, parece prudente observar que isso indica que quase metade da população brasileira manifestou-se, de alguma forma, interessada nos resultados dos trabalhos do Congresso Constituinte, o que pode explicar que, menos por causa da sua desinformação, a sua opinião negativa quanto aos trabalhos constituintes e quanto aos próprios resultados finais se devia, ao contrário, à sua informação.

Ademais, não deixa de ser significativo que mais de 70% das preferências de todas as pesquisas de opinião pública tenham se manifestado favoráveis à realização de eleições presidenciais em 1988 ou à tese de um mandato de 4 anos.para o atual presidente da República, em aberto contraste com o que foi decidido pelos constituintes, ampliando, assim, o processo de reversão de expectativas a respeito dos resultados do Congresso Constituinte em uma área estratégica para a redefinição do sistema político que vigorará no país daqui para a frente (IBOPE: 1987).

Isso significa que, apesar do que se disse antes a respeito do significado da nova Constituição, existem riscos ponderáveis de que o sistema político e os mecanismos institucionais nela previsto venham a alcançar uma escassa adesão popular na fase inicial da sua vigência, ou seja, precisamente quando será necessário que eles logrem contar com um razoável grau de consentimento popular para alargar a sua eficácia em face de problemas que tenderão a agravar a crise de governabilidade (como a pressão inflacionária crescente e as suas consequências sócio-econômicas). Se é menos grave que a Constituição - como norma escrita ainda por adquirir credibilidade - seja atingida por essa desafeição popular, não se pode dizer o mesmo das implicações que isso tem para a consolidação de um regime de democracia política no país. Sem a confiança popular, as instituições continuam a funcionar desligadas da realidade social e, o que é mais importante, funcionam mal.

Insisto porém, na reincidência representada por esses vários sinais. A mesma pesquisa que detectou a percepção da população quanto à nova Constituição também mostrou que, do total de entrevistados, nada menos que 28% consideram "RUIM/PÉSSIMO" o desempenho dos constituintes, índice que se eleva para 68% quando agregamos aos dados anteriores àqueles referentes à opção "REGULAR", em contraposição a apenas 19% que consideravam como "ÓTIMO/BOM" o desempenho dos representantes do povo. Acrescente-se que, no mesmo levantamento, 64% dos entrevistados vs. 29% declararam não confiar no presidente Sarney (VEJA: 28.09.88).

Como interpretar esses sinais que, paradoxalmente, contrastam fortemente como amplo apoio que o processo de transição vem obtendo no Brasil? Uma primeira linha de interpretação sugere que estamos em face dos efeitos de um processo de "system blame", cujo sentido, em última análise, seria justificar a ineficácia do incipiente regime democrático que está nascendo no Brasil através da culpabilização do próprio sistema democrático. Essa interpretação foi sugerida, recentemente, por Campello de Souza, tomando como ponto de partida as hipóteses de Zimmerman que explicam a degenerescência por que passaram as democracias europeias no entre-guerras (Campello de Souza: 1987; Zimmerman: 1986).

Zimmerman fez um trabalho extremamente sugestivo para mostrar que, mais do que a crise econômica de 1929, o que levou ao colapso do sistema democrático em países como a Alemanha e a Áustria naquela conjuntura foi o processo de avaliação negativa do funcionamento da democracia, "tão disseminado que, quando alguns setores vieram em sua defesa, os apoiadores das virtudes democráticas já se encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura do regime". Ao mesmo tempo, suas pesquisas mostramque, no caso de países como a Holanda, a Suécia e a Bélgica, cujos regimes democráticos sobreviveram bem ao enorme impacto da depressão econômica do final dos anos 20, ocorreu exatamente o oposto: uma intensa atividade política destinada a encontrar novas saídas institucionais para processar as demandas sócio-econômicas da população, associada ao desenvolvimento de urna política de alianças e de coalizões governamentais, serviram para gerar soluções que reforçaram o regime democrático ao invés de enfraquecê-lo, ampliando, dessa forma, o grau de credibilidade pública nas suas virtudes para resolver os problemas concretos da população.

No caso do Brasil, Campello de Souza sugere que vários dos fatores mencionados têm se conjugado para criar as condições a partir das quais se justificaria o "system blame": (a) a ausência de qualquer política consistente de reformas sócio-econômicas a partir do advento da Nova República; (b) a manutenção do forte papel do Estado na economia fazendo com que quase todas as expectativas de mudanças sócio-econômicas dependam de iniciativas nesse terreno; e (c) a dificuldade existente para se distinguir claramente entre o desempenho do governo e o funcionamento do próprio sistema político. Ela sugere que as avaliações negativas do funcionamento do novo regime democrático - por pouco consolidado que ele estivesse - senão induzidas diretamente pelos meios de comunicação de massa, têm sido operadas para se espraiar amplamente no interior da sociedade; ademais, certas condições específicas do processo de transição política intensificaram esse processo: Sarney só chegou à chefia do Estado por uma circunstância acidental; essa circunstância, associada à dinâmica de formação da Aliança Democrática, impediu que o governo civil lograsse uma base consistente de apoio parlamentar; Isso sem falar que os insucessos governamentais diante da crise econômico-financeira agravaram imensamente a avaliação do governo, levando, portanto, a população a perder as suas esperanças de que a chegada de um governo, por definição, "antiautoritário" pudesse ser um caminho eficaz para a obtenção de mudanças sócio-econômicas do seu interesse. Ademais, a administração eleitoral do Plano Cruzado, ao lado dos efeitos da crônica fragilidade do sistema partidário, teria se encarregado de solapar as bases da eventual crença popular nos mecanismos democráticos.

Porem, mesmo acompanhando-se, em parte, a análise Campello de Souza, a explicação não parece inteiramente plausível. Isso por duas razões principais:

1 - Em primeiro lugar, seria difícil imaginar que o incipiente regime de democracia política que começou a nascer no Brasil, a partir da "retirada" dos militares, pudesse alcançar índices muito elevados de aprovação popular pelo menos até que ele mostrasse ser capaz, senão de iniciar, de favorecer a adoção de uma política minimamente persistente de reformas sócio-econômicas. Nesse sentido, o diagnóstico de Campello de Souza junta-se às inúmeras críticas provenientes de diferentes forças de oposição à Nova República (PT, PDT etc), segundo as quais, o fracasso da reforma agrária, por exemplo, para não mencionar a enorme frustração provocada pelo bloqueio ao distributivismo implícito no Plano Cruzado, foi uma espécie de pá de cal jogada sobre as esperanças populares quanto à possibilidade de a Nova República poder significar mudanças efetivas na economia e na sociedade. No entanto,,se isso é verdade; não explica, inteiramente, as causas de desafeição à democracia: por que isso geraria atitudes típicas do "system blame", e não, por exemplo, oposição mais intensa e mais ampla ao governo Sarney? Por outro lado, levando-se em consideração que muitas pesquisas de opinião realizadas no país, nas últimas décadas, têm revelado um alto grau de envolvimento popular com as eleições (Cardoso e Lamounier: 1978; Reis: 1978) e, mesmo, um índice bastante alto de identificação partidária, como explicar que os insucessos do governo civil pudessem se transferir para o terreno do próprio regime democrático? Não seria mais razoável esperar que as desilusões geradas pela atuação do governo da Nova República, mais do que solapar as bases do regime democrático, levasse a se ampliarem as margens da ilegitimidade e de desconfiança popular em face do governo Sarney?

2 - Mas, além disso, mais do que a eventual incapacidade que tenham tido os partidos políticos - especialmente, os que serviram de base para a formação da Aliança Democrática (PMDB e PFL) - para universalizar a convicção de que a democracia, se não realiza, cria as condições necessárias para as mudanças, parece ter ocorrido outra coisa. Os atores democráticos (ou que se diziam sê-lo), a quem estava confiada a tarefa de dirigir a transição do autoritarismo para a democracia, tendo optado pela desmobilização do movimento das Diretas-Já (em que se apoiaram os primeiros passos da transição pactada), criaram a imagem simplista - e as correspondentes expectativas populares - de que, uma vez encerrado o, ciclo autoritário, automaticamente, inaugurava-se uma era de mudanças profundas na sociedade e no Estado. Amplamente sustentada pelas forças que compunham a Aliança Democrática, inclusive, pelo setores progressistas do PMDB, a tendência que se denominou "mudancismo" reforçou essa interpretação. Era como se tudo pudesse começar a se transformar, no campo econômico-social, com a simples chegada da coalizão civil que fundou a Nova República ao governo.

Embora tenha havido, de fato, uma agenda de mudanças político-institucionais ao nível do sistema político global (fim da censura, reconhecimento tácito das centrais sindicais, fim da Lei de Segurança Nacional, início da revisão da legislação eleitoral etc); essa agenda foi aberta e, logo em seguida, fechada devido às próprias características da Aliança Democrática que, como se sabe; nasceu de um "pacto de não-competição" entre as elites tradicionais do país. Além disso, ela nunca incluiu, claramente, quaisquer mudanças no terreno sócio-econômico: fazer isso teria representado, naquela fase do processo de transição política, correr o risco de jogar os setores conservadores na oposição ao regime, o que os "moderados" não desejavam. Ademais, deve-se mencionar que a antecipação da corrida sucessória para o cargo de presidente da República retirou qualquer possibilidade de os partidos formadores da coalizão governista enfrentarem unidos a situação representada por um possível ciclo de mudanças mais de fundo. Os partidos da Aliança Democrática já estavam divididos, embora, por sua própria escolha, não existisse clima nem canais institucionais para assegurar a legítima competição eleitoral entre eles. Fora isso, embora seja evidente que as responsabilidades se distribuem de forma diferenciada; pode-se dizer que todos os partidos políticos, e não só os que formavam a Aliança Democrática, colaboraram para essa situação: é raro encontrar-se, para esse período, algum exemplo de força política relevante ou de partido que tenha se preocupado em trabalhar as implicações, para o futuro arranjo institucional a vigorar no país, da formidável experiência de participação popular representada pelo movimento expresso pela campanha das Diretas-Já. A mobilização anti-autoritária dispersou-se sem que o seu impulso tivesse servido; em algum sentido, para institucionalizar formas permanentes de participação popular no regime que estava nascendo.7 7 O PT, por exemplo, só passou a defender a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte após o fim da campanha das Diretas, não, tendo incluído na agenda de temas que orientou a sua participação naquela campanha qualquer discussão sobre o caráter do regime democrático que desejava conquistar.

Por todas essas razões, acredito que a hipótese do "system blame" não se aplica à situação do Brasil: ao contrário dos países mencionados por Zimmerman, os quais, na segunda década deste século, já tinham perto de 50 anos de avanços democráticos, a tradição democrática brasileira sempre foi muito frágil, existindo poucos traços de confiança popular na capacidade dos mecanismos democráticos para resolver os problemas concretos da população. Por isso, quando se torna evidente que o desempenho govenamental no campo sócio-econômico é sofrível, senão desastroso como atualmente, mais do que defender as instituições democráticas do ataque que elas possa vir a sofrer, trata-se de criar as condições efetivas para que essas instituições venham a existir, o que implica que os atores democratas logrem obter algum grau de participação da população no processo da sua construção.

Por exemplo, é certo que, quando os partidos políticos são culpabilizados pelos males do país - como tem feito insistentemente o presidente Sarney - a democracia perde. Mal ela perde muito mais (a) quando esses mesmos partidos são incapazes de distinguir-se pela inexistência de projetos diferentes em torno de questões de fundo da construção da democracia no país, como a questão do sistema de governo mais adequado para enfrentar os aspectos negativos da tradição brasileira de hipercentralização do poder (caso do PT); e (b) quando os partidos mais identificados com a tarefa de dirigir a transição não conseguem distinguir-se da performance do governo civil, mesmo quando essa performance contrapõe-se, frontalmente, à continuidade da transição e os principais pontos do programa partidário (caso do PMDB).

Sem minimizar os fatores já mencionados, a minha própria hipótese explicativa sobre a desconfiança popular em relação à democracia é de que, embora a "resistência democrática" tenha generalizado a luta contra a autoritarismo no país, por um lado, e ampliado bastante a valorização societária do regime democrático, por outro, ela não foi suficiente, no entanto, para definir uma estratégia adequada de construção institucional da democracia em um país com as tradições políticas do Brasil8 8 Luciano Martins também insistiu sobre esse ponto em seminários realizados no CEDEC e na USP (Martins: 1987a; 1987b). . Nas condições da tradição.política brasileira, uma tarefa dessa natureza implica enfrentar, pelo menos duas questões estratégicas: (a) em primeiro lugar, é preciso considerar que a cultura política tradicional brasileira implica um componente fortemente antipolítico a população não participa (a não ser em raras ocasiões, como o momento eleitoral); não se sente representada e tem um acentuado sentimento de que a política é uma atividade própria das elites, distantes, portanto, dó seu alcance; e (b) além disso, a própria tradição político-institucional reconhece a distância histórica que quase sempre existiu, de fato, entre o funcionamento das instituições políticas e as experiências e expectativas populares, dotando-as de um pesado componente de artificialismo; A distinção entre o "país real" e o "país formal" não é só uma fórmula de efeito, mas evidencia uma disjuntiva que nunca foi enfrentada pelas elites e pelos partidos políticos. Portanto, qualquer estratégia que se propusesse a enfrentar os problemas colocados à construção da democracia no país deveria, de alguma forma, começar por aí.

A hipótese apresentada aqui implica um duplo diagnóstico para o caso do Brasil: por um lado, trata-se de distinguir entre o imenso apoio obtido pela própria ideia de transição, no país; em contraste com o enorme desalento que se verifica, hoje, em distintos setores da sociedade em face da gestão que o governo Sarney faz dessa transição e; principalmente, das soluções que apresenta para a crise econômico-financeira. Como no caso da Espanha a idéia de mudanças políticas pacíficas, isto é, sem ônus para a "tranquilidade pública", obteve uma imensa confiança popular no Brasil, o que explica o enorme apoio obtido pela transição em seus passos iniciais. Outra coisa no entanto, é o desalento popular em face do governo Sarney ou;, se quiser, do imenso desgaste alcançado pelo governo civil em face das tarefas que ele mesmo se atribuiu na fase final da transição (com ênfase especial para aquelas no campo econômico e social.

Esse diagnóstico reconhece que as virtudes mais importantes, do ponto de vista popular, que constituem o regime democrático (como o direito de mudar os governos quando eles não correspondem mais aos anseios da população) ainda não foram assimiladas nem experimentadas pela população brasileira que, ao que tudo indica, nem sequer superou os preconceitos aritidemocráticos que permanecem como herança da cultura política tradicional Embora seja evidente que as situações de transição implicam um fenómeno de crise global, que não se refere apenas à crise de esgotamento do regime autoritário, mas também a um penoso processo de reconstituição das identidades dos atores políticos, processo não é linear. Ele preserva sempre áreas onde a inovação ainda não chegou e que, portanto, ainda exigem transformação.

7. CONCLUSÕES

O quadro que se descreve nas páginas anteriores faz lembrar uma observação clássica de Antonio Gramsci a respeito de situações de desagregação e/ou de reconstituição social e política. "A crise consiste; precisamente, em que morre o velho sem que possa nascer o novo e, nesse interregno, podem ocorrer os mais diversos fenômenos de morbidez" (Gramsci: 1970). Qual é a avaliação que se pode fazer desse conjunto de "fenômenos de morbidez"?

Parece evidente, para começar, que são efeitos cuja incidência tem se intensificado na medida em que um processo de transição; errático e de larguíssima duração tende a ampliar, dramaticamente, as incertezas que são próprias dessas situações. Prolongando-se o período de indefinições que é próprio da fase em que ainda não existe um consenso normativo no país, a tendência das forças, políticas relevantes parece ser a de "adaptarem-se" à herança da cultura política tradicional, inclusive daquela deixada" pelo período autoritário.

Dessa forma, embora parte desses atores estejam comprometidos com mudanças que poderão instaurar novas condições para a expressão do conflito político (e portanto, mudanças na própria cultura política), ainda assim eles tendem a agir reforçando padrões de comportamento e, mesmo, estilos políticos, que são incongruentes com as inovações que se deseja introduzir. Esse é o caso típico dos partidos políticos que, na fase da "resistência democrática", procuraram articular a sua identidade em torno de temas da modernização política do país (caso do PMDB) mas, uma vez instaurada a Nova República, com a reedição de uma série de práticas tradicionais, aceitaram um padrão de práticas políticas que, em última análise, prefere os benefícios do "clientelismo estatal", do favoritismo e do prebendalismo, ao invés da aceitação da competição tipicamente democrática, quando os resultados são, por definição, incertos.

É certo que essa tendência recobre uma larga tradição política apoiada sobre a dominação oligárquica das elites e a proeminência do Estado sobre a sociedade civil. Recentemente retomou-se essa questão para argumentar que o que preserva o arcaísmo das instituições políticas no Brasil é a privatização do espaço público (Castro Andrade: 1988). Trata-se de um complexo de cultura política, procedimentos institucionais e mecanismos políticos que preservam a existência de um sistema oligárquico de dominação. Esse sistema consagra e reproduz o governo de grupos minoritários que, utilizando-se privilegiadamente do aparelho do Estado, usam os recursos públicos essencialmente para o seu beneficio.

Assinale-se que, assim, reduz-se a possibilidade de intervenção do poder público para administrar democraticamente os conflitos básicos da sociedade, pois os recursos socialmente produzidos são utilizados para gerar solidariedade e apoio político-eleitoral de grupos que estão fora do círculo do poder, mas não se dispõem a competir com as elites que dirigem o Estado. Nessas condições, como enfatiza Castro Andrade, mesmo quando o sistema político esteja regulado por regras jurídico-formais assentadas em eleições livres, pode ocorrer que se impeça a integração e a consolidação do espaço público capaz de gerar uma efetiva administração democrática das demandas sociais e econômicas da população.

Por outra parte, a modernização conservadora que foi levada a efeito por mais de duas décadas de autoritarismo excludente não alterou esse quadro, embora tenha gerado as condições de possibilidade para uma inovação política que, agora, tende a exigir a sua resolução. Como já se disse, um desenvolvimento capitalista complexo, impulsionado por décadas de taxas de crescimento significativas, acabou por refletir-se na composição da sociedade constituindo e ampliando imensas forças sociais que, no presente, tendem a cobrar as implicações da sua inserção na sociedade. Essas mudanças ocorreram em toda parte e em todas as dimensões da sociedade, mas elas são mais visíveis em alguns setores onde geraram modernidade, acumulação e pobreza (Santos: 1985).

No campo, por exemplo, a modernização da agricultura foi acompanhada de um intenso processo de sindicalização rural e de um crescimento significativo das lutas pela posse da terra; nas cidades, a ampliação dos diversos sistemas de produção que ante cedeu a atual fase de estancamento relativo permitiu um crescimento significativo de diferentes segmentos sociais que, não só ingressaram na luta por modernos direitos sociais, mas passaram a reivindicar uma presença política mais sensível. Os trabalhadores, as mulheres e os assalariados de classe média, por exemplo, constituem hoje uma força significativa no cenário político dos nossos grandes centros urbanos.

A possibilidade de inovação política a que me referi antes é representada, precisamente, pela incongruência entre a crescente presença dessa nova sociedade civil - mais complexa, em sua organização, e mais agressiva, em suas reivindicações e em sua capacidade de confronto com o Estado - e uma. administração oligárquica e privatizada das demandas sociais e econômicas. Ocorre que a simples reivindicação social, mesmo quando impetuosa, não gera, por si só, força ou inovação política; nem um projeto capaz de construir as alternativas institucionais necessárias para se enfrentar esse privatismo político que funciona como uma espécie de "estrutura sólida". Por isso, o fato de as imensas pressões dessa nova sociedade civil gerarem um vigoroso impulso participacionista e reivindicatório, mas não necessariamente uma adesão explícita e ativa aos métodos democráticos, acaba por assumir a feição de um dilema político.

Além disso, chama a atenção, o caráter disruptivo, para o processo de democratização, de tendências como o movimentismo e o corporativismo que, embora muitas vezes sejam portadores de uma justa aspiração de reforma social, como recentemente chamou a atenção Francisco Weffort, acabam por conduzir os seus protagonistas, não a contribuírem para definir o espaço público onde as exigências de deliberação democrática em torno das demandas coletivas possa se realizar, mas a uma orientação do tipo "Salve-se quem puder" que, em última análise, desqualifica a atividade política como meio de gerar soluções legítimas para os conflitos da sociedade (Weffort: 1988b).

A atuação de alguns movimentos sociais, na transição política, remete para essa questão, embora isso nem de longe questione a justeza das suas reivindicações. É o caso, como lembrou Weffort; de movimentos de greve em certas áreas do serviço público: quando os movimentos sociais não conseguem distinguir entre os seus interesses imediatos e o efetivo interesse público, frequentemente, eles perdem a legitimidade, e, quase sempre, o apoio e a solidariedade da população.

Cabe mencionar, ainda, um exemplo mais dramático: trata-se dos casos quando a ação reivindicatória desborda do terreno da legalidade e da legitimidade do conflito democrático para o campo de um confronto que pode adquirir o sentido da negação do direito dos outros. Penso, em especial, nos casos de greves que começam com uma intensa reivindicação de direitos sociais e; no final, concluem com a ocupação das empresas e, em algumas situações, com a prática de "fazer reféns" entre o pessoal administrativo e/ou gerencial. No fundo, esses movimentos é que terminam reféns da sua incapacidade de conviverem com um mundo de diferentes, onde a disputa em torno dos conflitos políticos obedece a uma lógica que passa, necessariamente, pela convivência com a pluralidade de concepções e de alternativas.

Mas o problema tende a permanecer sem solução quando os partidos políticos - e, em especial, as suas lideranças - ao invés de se credenciarem como canais de intermediação entre esses movimentos e o sistema político, escolhem uma modalidade de atuação que, em última análise, desqualifica a sua função de representação: silenciam a avaliação que fazem sobre acontecimentos como os mencionados, preferindo uma forma de participação que, em última análise, deixa aos protagonistas desses movimentos a tarefa de gerar alternativas para essas formas de ação. Ao não assumirem publicamente a crítica que eventualmente façam a formas anti-democráticas de ação, desqualificam-se, também, como defensores de uma concepção da política que legitimamente reivindica canais institucionais para que os conflitos a que se referem esses movimentos possam se processar na sociedade.

Ao mesmo tempo, do outro lado do espectro político, a prática do "clientelismo estatal", associada com as sobrevivências do populismo, serve para viabilizar a captura de apoio de setores sociais não-privilegiados à apropriação de partes do aparato do Estado por elites partidárias solidárias com os grupos dominantes na sociedade. O resultado não é alentador: implica o enfraquecimento do sistema partidário, a fragilização das instituições de representação e a debilidade da sociedade civil em face de um Estado privatizado e insensível às demandas sócio-econômicas da maioria da população.

Por outras palavras, a imensa crise aberta com o esgotamento dos regimes autoritários ainda não se resolveu por completo e, em certo sentido, até se poderia dizer que os seus desdobramentos" revelaram dimensões que, durante todo o período de luta de "resistência democrática", não tinham sido suficientemente percebidos pelas forças que se definem como democratas. Penso, por exemplo, nas dificuldades enfrentadas, nessa fase final da transição, pelas forças políticas que, dirigindo-se aos setores populares, não conseguem obter o apoio necessário deles para fazer avançar o processo de construção de um regime de democracia política. Isso explica, em certo sentido, que tanto os partidos políticos como as instituições de representação (parlamentos) permaneçam, na fase atual do processo, como instituições distanciadas das experiências e das expectativas populares em torno da política. E deixa sem solução um dos mais graves dilemas da época atual: sem canais efetivos de intermediação da sociedade em face do Estado, a democracia não se consolida e a política permanece como algo distante da vida dos homens comuns.

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  • *
    A versão original, deste texto foi apresentada em um seminário realizado no CEDEC, a cujos colegas agradeço os comentários. Uma versão revisada foi apresentada também ao 46º Congresso Internacional de Americanistas, realizado em julho de 1988, em Amsterdã, e no 14º Congresso da Associação Internacional de Ciência Política, realizado em setembro de 1988 em Washington DC. Sou extremamente grato ainda, às leituras atentas e cuidadosas que tiveram a gentileza de fazer Guillermo O'Donnell, José Augusto Guilhon Albuquerque, Gabriel Cohn e Luciano Martins. Os seus comentários me ajudaram muito, mas as insuficiências do texto são de minha exclusiva responsabilidade.
  • 1
    A literatura recente sobre processos de transição política refere-se à Argentina, Brasil, Chile e Uruguai ao falar dos países do Cone Sul; no caso da Europa do Sul, são mencionados Portugal, Espanha, Grécia e Turquia (O'Donnell, Schmitter e Whitehead: 1986; Schmitter: 1985; Weffort: 1988).
  • 2
    Objetou-se, algumas vezes, que os problemas de um "governo de esquerda" - que podem ser mais ou menos intensos, a depender de inúmeros fatores que não podem ser tratados aqui - não esgotam nem invalidam a suposta "natureza de classe" do Estado nas sociedades capitalistas, o que é parcialmente verdade. O problema, no entanto, não é esse; o problema continua sendo a natureza dos vínculos causais que se deseje estabelecer entre o processo político real, a forma do Estado e a estrutura das classes. Tudo o que se está dizendo aqui é que essa última não é tudo e, na verdade, explica pouco quando estamos diante dos fenômenos políticos.
  • 3
    Apesar de alguns não gostarem" do vocábulo "procedural", trata-se de um neologismo que deriva da tradição democrática de origem anglo-saxã, em cujos países, não por acaso, primeiro se consolidou o princípio do
    rule of law, aliás, com uma conotação bem precisa: o estabelecimento de regras de procedimento
    (procedural rules) com o objetivo de limitar o arbítrio e controlar o exercício do poder pelos governos, colocando-os, dessa forma, sob controle da cidadania (Bobbio: 1986).
  • 4
    O parâmetro dessas possibilidades, segundo tudo indica, está dado pela regra de não-abolição do capitalismo e as análises recentes, que falam de um "compromisso de classe" corno constitutivo da dinâmica do Estado de Bem-Estar (Przeworski: 1985; Offe: 1983), confirmam essa observação. Apesar disso, há experiências históricas que indicam que o sistema democrático abriga a potencialidade de transformações mais profundas: o Chile da Unidade Popular, por um lado, e os países escandinavos, por outro, continuam sendo exemplos importantes.
  • 5
    Isso não quer dizer que não possa haver justiça social onde não há democracia. Aqui o exemplo mais evidente é o da União Soviética. No entanto, não é difícil alcançar amplo consenso em torno da afirmação de que, não sendo democrática, no sentido que se discute neste texto, isto é, no sentido da democracia política, a União Soviética não é o melhor exemplo de sociedade onde os conflitos em torno de bens (materiais e imateriais) disponíveis se dê de forma pacífica e com base no reconhecimento da legitimidade das diferentes alternativas existentes para resolver esses conflitos. Devo essa observação a um colega do Instituto da América latina da Academia de Ciências da URSS.
  • 6
    Falo de "modernização" da política para referir-me aos processos de secularização que, freqüentemente, acompanham as transições políticas, em particular, a tendência de estabelecer mecanismos públicos de controle da ação dos governos (accountability).
  • 7
    O PT, por exemplo, só passou a defender a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte após o fim da campanha das Diretas, não, tendo incluído na agenda de temas que orientou a sua participação naquela campanha qualquer discussão sobre o caráter do regime democrático que desejava conquistar.
  • 8
    Luciano Martins também insistiu sobre esse ponto em seminários realizados no CEDEC e na USP (Martins: 1987a; 1987b).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 1989
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