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II - Para compreender a questão nuclear

A QUESTÃO NUCLEAR NO BRASIL

II - Para compreender a questão nuclear

Luiz Carlos de Menezes

Professor de Física da USP, doutor pela Universidade Regensburg e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Física

A controvérsia que se estabeleceu em torno da questão nuclear teve o mérito de chamar atenção para o uso irresponsável e autoritário de enormes recursos públicos para usinas nucleoelétricas de fissão. No Brasil, elas são realmente desnecessárias a curto e médio prazos e, além de perigosas, são insustentáveis como solução de longo prazo, pela limitação de seu combustível não-renovável.

No fogo cruzado da disputa "nuclear, sim ou não", muita coisa imprópria foi dita e escrita e por isso vale a pena nos determos numa análise desapaixonada da questão para podermos compreender que aspectos da tecnologia nuclear devem ser resgatados e estimulados e que iniciativas devem ser impedidas, seja pelos equívocos em que se baseiam seja pela intenção bélica que as motivam.

O núcleo atômico é milhares de vezes mais massivo que o exterior do átomo e as energias de interação das partículas que compõem o núcleo são milhões de vezes maiores que as energias da camada eletrônica, responsáveis pelas reações químicas. É por esta razão que uma bomba nuclear de alguns quilos pode ter o efeito destrutivo de milhões de toneladas de dinamite (megatons).

A energia é liberada nas reações nucleares na forma de radiação eletromagnética (raios gama) ou de projéteis submicroscópicos (nêutrons, elétrons, partículas alfa ou outros fragmentos nucleares). A tecnologia nuclear procura produzir reações nucleares sob controle e fazer uso prático delas.

É um fato histórico marcante que o primeiro uso prático destas reações tenham sido as bombas nucleares. Neste caso, trata-se de produzir uma reação em cadeia que desintegre numa mínima fração de segundo o maior número possível de núcleos (de urânio ou plutônio). Esta é a chamada bomba atômica (de fissão), que produz temperaturas de milhões de graus e que, além da destruição termomecânica, deixa resíduos que emitem radiação capaz de, mesmo a longo prazo, provocar danos biológicos, destruindo células ou alterando seu inventário genético.

Anos depois se concebeu outra bomba (a de hidrogênio) que se baseia no uso da alta temperatura da bomba de fissão (usada como "espoleta") para fundir núcleos leves, formando núcleos mais pesados e liberando ainda mais energia.

As chamadas usinas nucleares possuem reatores que também se baseiam na fissão de núcleos radiativos (geralmente urânio), só que neste caso se procura dosar a taxa de desintegração de forma a se conseguir a liberação contínua e controlada de calor. Este calor é usado numa caldeira especial para produzir vapor que, conduzido a uma turbina, faz girar um gerador produzindo eletricidade.

Reatores também são projetados para uso técnico-científico (produção de radioisótopos artificiais, que são átomos radiativos, para os mais variados usos) ou para fim militar (produção de plutônio para fabricação de bombas).

Não é sempre fácil (e nem sempre possível) distinguir a tecnologia nuclear com objetivos pacíficos daquela com fins militares. Muitas instalações podem servir para uma coisa e outra de tal forma que o controle por militares de instalações nucleares (como ocorre em várias instituições no Brasil) é, para dizer pouco, preocupante, independentemente das declarações de intenções. Deve haver, é claro, alguns desvairados que queiram que o Brasil possua tais bombas, mas é preferível deixar que se apresentem antes de iniciar o debate "bomba H, sim ou não".

As usinas nucleares para produção de eletricidade deveriam ser sempre consideradas como recurso extremo, que não deve ser adotado no Brasil, onde não são sequer necessárias, já que o potencial hidrelétrico ainda disponível é muito maior do que o já utilizado. Além disso, há muitas outras razões para evitar usinas nucleoelétricas: os custos são várias vezes maiores que os da hidreletricidade, os riscos incomparavelmente mais graves, sua confiabilidade técnica e sua vida útil constatadamente menores, e é limitada a quantidade de urânio utilizável como combustível em seus reatores.

Essas usinas de fissão não podem "explodir como uma bomba", mas elas possuem um montante radiativo equivalente a centenas de bombas e, no caso de um acidente que leve ao derretimento do reator, esta radiatividade contaminará letal e duradouramente toda a região circundante, com conseqüências incalculavelmente trágicas. Os fabricantes de usinas têm subestimado as probabilidades destes acidentes e as autoridades responsáveis no setor geralmente têm se aliado àqueles, ao propalar a "segurança" das instalações nucleares. Os folhetos da Nuclebrás (aprovados pela Comissão Nacional de Energia Nuclear), quando do lançamento do Acordo Nuclear, só faltavam dizer que radiação faz bem para a saúde... Por esta razão, em todo o mundo, tem sido fundamental o papel de grupos de cidadãos que se têm engajado na vigilância cívica contra a perigosa aliança entre governantes, fabricantes de reatores e fornecedores de energia. Pode-se imaginar que, não fossem estes grupos (nem sempre cientificamente assessorados, mas com forte intuição na defesa da vida), os acidentes já teriam ultrapassado os assustadores "ensaios" de Three Mile Island e Chernobyl.

Será que por isso tudo devemos considerar que o demônio reside no núcleo atômico e condenar de urna vez para sempre todos os campos de investigação e aplicação da tecnologia nuclear? Seguramente não. Muitas de suas aplicações apontam no sentido da vida e do bem-estar e, se também incluem riscos, estes são comparáveis aos riscos de outras tecnologías e incomparavelmente menores que os perigos das aplicações bélicas e energéticas da tecnologia nuclear. Vale a pena exemplificai" para permitir melhor julgamento.

Em geral o que está em jogo nesta tecnologia, desde um ponto de vista físico, é a produção de radiação nuclear (raios gama ou partículas) e sua utilização. Normalmente o emissor desta radiação é um radioisótopo produzido num reator. Algumas vezes pode-se conseguir efeito equivalente usando-se aceleradores de partículas, que têm a desvantagem de serem instalações grandes, e assim, diferentemente dos radioisótopos, não são portáteis. Um acelerador de partículas utiliza processos eletromagnéticos (não-nucleares) para acelerar elétrons ou outras partículas eletricamente carregadas até atingirem energia que os "projéteis" nucleares teriam. Investigações científicas usam aceleradores com quilômetros de extensão, ao passo que os hospitais possuem pequenos aceleradores para terapia do câncer.

Vindas de radioisótopos ou aceleradores, o essencial é a capacidade de penetração das partículas ou da radiação produzida. Os raios gama são um meio insubstituível para radiografar chapas e estruturas de aço. De outra forma, não se poderia saber se as soldas de um grande tanque para armazenamento de combustível contém ou não bolhas de ar que, se não corrigidas, podem lhe diminuir a resistência e permitir graves acidentes.

Assim como a radiação atravessa o aço para realizar a radiografia, pode-se também produzir alterações na estrutura interna de materiais pela incidência da radiação adequada. Isto abriu novas perspectivas na pesquisa de materiais, particularmente na indústria de semicondutores, que são a base física para a informática.

Os usos clínico e terapêutico da tecnologia nuclear, assim como seus usos nas pesquisas biológicas, são ainda mais numerosos que as aplicações industriais. A aplicação terapêutica é geralmente baseada no uso de projéteis nucleares para matar células cancerosas concentradas em tumores. É claro que as células saudáveis são também atingidas, mas estas, em geral, se recompõem mais facilmente. Já o uso clínico-diagnóstico é geralmente baseado na injeção ou ingestão de uma solução diluída de um isótopo radiativo de uma substância química que participa do metabolismo humano. Detectando-se externamente a radiação emitida pelo isótopo ingerido, pode-se perceber seu trajeto no organismo, seu processamento em certos órgãos, revelando anomalias funcionais, se houver. Certos procedimentos industriais (testes de vazamento, medidas de fluxo) também fazem uso desta técnica.

Na agricultura moderna, que depende da seleção genética de espécimes, a pesquisa de variedades mais produtivas pode ser bastante acelerada pela indução de mutação por meio de radiações. Trata-se aqui de reproduzir de forma mais veloz a mutação natural provocada por raios cósmicos.

Assim como o uso dos raios X ou de substâncias químicas tóxicas, as utilizações práticas da radiatividade exigem um treinamento especial, particularmente quanto à segurança dos operadores, já que, sendo invisível, a radiação atinge com mais facilidade quem a usa sem conhecê-la. Nenhum destes riscos é, nem de longe, comparável ao de uma usina de grande potência.

O conhecimento desta tecnologia também não depende de se construírem reatores de potência (como os do Acordo Nuclear), nem precisa do suspeito segredo de misteriosas instalações sob controle militar (como do IEAv, no Centro Tecnológico da Aeronáutica). O domínio da tecnologia nuclear que nos interessa depende, isto sim, de universidades bem equipadas para a pesquisa pura e aplicada; depende de hospitais e indústrias apoiados por institutos de pesquisa e por um intercâmbio internacional justo; pode ainda acontecer que dependa, no momento adequado, de defesa de mercado que proteja o produto tecnológico nacional contra a competição predatória.

O país já possui algumas das condições iniciais necessárias para conduzir uma política industrial que inclua a capacitação nestas aplicações da tecnologia nuclear. A primeira delas é um parque produtivo diversificado, a segunda, um certo número de especialistas em condições de empreenderem pesquisas e estabelecer intercâmbio científico-tecnológico. Faltam ao país também algumas condições: a primeira delas é uma política consistente de incentivo à pesquisa pura e aplicada, que começa por fornecer-lhe recursos e por passar ao controle civil pesquisas que, ao menos alegadamente, não têm objetivos militares.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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