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A "grande coalizão": as mudanças na Hungria

SOCIALISMO, SOCIALISMOS

A "grande coalizão" (as mudanças na Hungria)* * Este é o capítulo 9 do livro East European Alternatives: Are There Any?, de E. Hankiss, a ser publicado brevemente pela Oxford University Press.

Elemer Hankiss** * Este é o capítulo 9 do livro East European Alternatives: Are There Any?, de E. Hankiss, a ser publicado brevemente pela Oxford University Press.

Professor do Instituto de Sociologia da Academia Húngara de Ciências

CENÁRIOS DE COALIZÃO

Na presente crise, a elite dirigente parecia inclinada a consolidar sua posição e superar a crise política e econômica mediante e extensão de sua base de poder. Ela já fez isso antes, mas o potencial do antigo método da cooptação provavelmente esgotou-se. Nos anos 60, integrou dessa maneira camadas superiores da burocracia e partes de intelligentsia; nos anos 70, tentou seriamente "cooptar" a sociedade toda através do seu programa e retórica de "consenso nacional". A crise dos anos 80 fez desaparecer esse consenso, alienando a intelligentsia e também parte da burocracia estatal. Mas há outra maneira de ampliar a base política, que pode ser menos custosa em termos materiais e mais proveitosa politicamente: trata-se de formação de coalizões.

Cooptação e formação de coalizão são duas estratégias políticas internamente diferentes. Pela cooptação a elite dirigente convida certas pessoas, ou certos grupos sociais, a tomar parte nos processos decisórios e no goveno do país, normalmente como assessores, como altos executivos ou, freqüentemente, como marionetes muito enfeitadas e bem recompensadas. Na realidade, eles serão bem pagos mas não terão autonomia. Alguns poderão ter influencia nas decisões, mas não terão direitos de participação garantidos. Eles serão forçados a conformar-se à linha oficial e a renunciar a suas identidades e lealdades sociais.

As coalizões, por outro lado, se são reais, supõem a existência de pelo menos dois parceiros independentes ou semi-independentes que se põem de acordo sobre os termos da sua cooperação e definem mais ou menos claramente os direitos e obrigações que tem um com respeito ao outro. Criar uma coalizão dirigente é um meio bem conhecido de ampliar a base de poder e o apoio político de que dispõe a liderança. É um método praticado rotineiramente nas democracias ocidentais. A questão é saber se seria viável também na Europa do Leste.

O primeiro problema e como encontrar, ou criar, um parceiro autônomo ou semi-autônomo. As elites do Leste Europeu conhecem esse problema há muito tempo, mas não conseguiram resolvê-lo. Suas tentativas, nessa direção, não muito sinceras, falharam de diversas maneiras. Nos anos 60 e 70, por exemplo, os líderes húngaros lançaram sucessivas campanhas para "descentralizar" o sistema; mas ao invés de criar para si próprios parceiros sócio-econômicos autônomos, criaram uma oligarquia forte e unida. Seus fúteis esforços no sentido de criar "a sua própria oposição" sequer merecem menção. Estarão eles, em 1989, mais dispostos a permitir a emergência de atores autônomos, e melhor preparados para com eles formar coalizões? Ou tais atores terão sido criados por outros fatores? Mais abaixo voltarei a essas questões.

A Polônia esteve em melhor posição, a esse respeito, que a Hungria. Ali, a Igreja Católica manteve-se como um ator semi-autônomo depois da ascensão dos comunistas ao poder e tornou-se ainda mais importante política e culturalmente nos últimos anos. Nos anos 80, um terceiro ator, o Solidariedade, também ingressou na cena política. No final dessa década já era óbvio que o país era ingovernável sem a sua colaboração ativa ou passiva.

A ALIANÇA DO PARTIDO-ESTADO COM A IGREJA (E O SOLIDARIEDADE)

Esse é um cenário polonês, e tem menos relevância para outros países do Leste europeu. Os contornos de uma cooperação não amistosa, mas ordenada, e uma competição limitada entre o partido-Estado e a Igreja surgiram no início da década de 80. O diálogo entre eles tem-se mantido, e desde então a influência da Igreja tem crescido. O partido-Estado deu-se conta, já em meados da década, de que não poderia governar contra a vontade da Igreja. Ele foi forçado a buscar um modus Vivendi com ela. Disso resultou uma espécie de sistema político e social dual ou dualista, que emergiu durante aqueles anos, comportando dois ou mais atores autoritários e conservadores, embora esses atores fossem conservadores de maneiras diversas; havia tendências reformistas em ambos, mas essas tendências apontavam para direções diferentes. Aos cientistas políticos parecia naqueles anos que havia dois desfechos possíveis: (a) os dois parceiros poderiam reforçar-se mutuamente no seu conservadorismo e afundar o país num impasse perverso e num subdesenvolvimento crônico; (b) eles poderiam reforçar e mitigar ao mesmo tempo as tendências reformistas existentes em cada um, daí resultando um desenvolvimento mais ou menos equilibrado (Smolar, 1987).

Em 1988 a crescente crise econômica e social minou até certo ponto essa cooperação e preparou o caminho para a emergência, ou reemergência de um terceiro parceiro: o Solidariedade. A decisão do Solidariedade de Varsóvia, no início de 1988, de apoiar candidatos independentes nas eleições municipais que se aproximavam, foi interpretado por alguns especialistas como um dos primeiros sinais da reemergência desse terceiro ator. Depois de meses de cabo-de-guerra entre o Solidariedade e o partido-Estado, conversações em igualdade de condições tiveram início em fevereiro de 1989. O acordo, ou compromisso, concluído em 5 de abril, legalizou o Solidariedade e estabeleceu as regras para as próximas eleições parlamentares. Em 4 de junho, as urnas deram ao Solidariedade uma avassaladora vitória e levaram à formação de um governo não-comunista. No início de 1990 o Partido Comunista foi dissolvido: a Igreja e o Solidariedade enquanto um movimento político apoiam o governo Mazowiecki. Como sindicato, o Solidariedade está em busca de seu papel e de sua identidade.

Na Hungria, a correlação de forças não foi tão clara e articulada até 1988. Além do partido-Estado não havia outros atores sócio-econômicos suficientemente fortes e autônomos para formar com ele uma coalizão viável. Em 1988, contudo, a situação mudou dramaticamente. Num processo explosivo de auto-organização social, emergiram vários atores sociais e políticos lutando por poder e autonomia, a tal ponto que se colocou a questão de saber se o partido-Estado estaria disposto, ou capacitado a aceitar uma cooperação reciprocamente auto-limitante e bem codificada com eles. No final de 1988 e no começo de 1989 as declarações oficiais davam repetidas garantias de que os governantes estavam prontos a formar uma coalizão com todas as forças sociais "bem intencionadas". Mas ainda não estava claro de que forças se tratavam, nem que tipo de coalizão estariam eles dispostos a formar. Provavelmente, os conservadores entre eles pensavam em formar uma coalizão ou quase-coalizão "obreirista", "tecnocrática" ou liberal-elitista. Mas a ala reformista já pesava os prós e contras de uma coalizão genuína com os novos movimentos sociais e partidos emergentes.

A COALIZÃO "OBREIRISTA"

Essa seria a coalizão (ou quase-coalizão baseada em retórica e na concessão de alguns privilégios) da elite dirigente com um importante seguimento do operariado industrial, e em particular com os trabalhadores em empresas estatais médias e grandes, que não lucrariam com a emergência da economia de mercado. Na Hungria, essa estratégia foi formulada várias vezes por importantes facções da elite dirigente, e principalmente por altos dirigentes sindicais da velha guarda. A inversão do processo de reformas econômicas em 1972 deveu-se à vitória temporária desse setor da direção partidária. Esse cenário perdeu o interesse desde então, mas pode vir a repetir-se se as reformas atuais fracassarem. Grupos ortodoxos e centristas do Partido Comunista deixam em aberto essa possibilidade, e esperam para ver ver o que se passa1 1 As possibilidades de sucesso e as implicações desse cenário foram discutidas por Szego 1983 a, b; Szelényi 1986-7. .

A COALIZÃO "TECNOCRÁTICA"

Na Hungria, essa seria uma aliança entre a alta hierarquia do partido, os tecnocratas da burocracia do Estado e os administradores das companhias estatais (organizadas, essas últimas, na Câmara de Economia). As palavras de ordem dessa coalizão seriam eficiência, desenvolvimento econômico dinâmico, planejamento combinado com alguns mecanismos de mercado, organização moderna, pragmatismo e, last but not least, lei e ordem. A evolução dos acontecimentos em 1989 extravasaram esse cenário.

A COALIZÃO LIBERAL-ELITISTA

Esse é um cenário soviético, mas tem também alguma relevância para o exame do caso húngaro. Ele foi descrito por Breslauer, baseado numa classificação de Yanov, como uma aliança dos intelectuais liberal-elitistas, os elementos altamente qualificados, dinâmicos e empresariais da classe empresarial e a "elite aristocratizante", expressão pela qual Yanov designa os membros mais poderosos da nomemklatura, desejosos de preservar seus privilégios e de transmiti-los a seus filhos. Tal elite seria altamente consciente de seus intereses e dominadora, portadora de uma ideologia meritocrática, elitista e não-democrática, como foco na eficiência econômica, ordem social e disciplina. Administradores e intelectuais contribuiriam para essa coalizão por sua eficiência e pelo fato de assegurarem à elite política (e, em menor grau, a uma parte considerável da população) um nível de vida relativamente alto e em elevação. Em troca, a elite política garantiria um grau relativamente alto de liberdade e de participação aos administradores e intelectuais, protegendo-os das interferências e arbitrariedades dos pequenos quadros partidários e do complexo industrial-militar (Yanov 1977: 1-41; Breslauer 1978: 62-73)2 2 Ver também Ludz 1969; Pintner e Rowney 1980; Voslenskii 1984. .

A COALIZÃO DO "PLURALISMO LIMITADO"

No outono de 1988 os elementos conservadores e centristas da liderança partidária estavam cada vez mais assustados com o processo acelerado de pluralização; eles começaram a denunciar a "anarquia" e a evocar o risco de uma "contra-revolução" ou mesmo de um "terror branco". A ala reformista, de outro lado, buscava uma estratégia mais flexível e prometedora. Ela também estava convencida de que uma radicalização muito rápida do processo político poderia levar a uma explosão política, que poderia deflagrar, por sua vez, uma retaliação conservadora e despótica. Para evitar isso, os reformistas iniciaram um lobby para a formação de uma coalizão das forças progressivas dentro e fora do partido. Vários experts independentes e movimentos alternativos também propuseram a formação de tal coalizão como um passo em direção a um pluralismo genuíno. Refletindo o estado de espírito da época, as edições natalinas dos principais periódicos veiculavam amplamente a idéia de uma coalizão possível e desejável3 3 Na edição do Mayar Nemzet, de 24 de dezembro, os dois conceitos mais freqüentemente mencionados foram os de "coalizão" e "acordo social". Ver as entrevistas e artigos dos quadros partidários e líderes dos principais movimentos alternativos tais como Imre Pozsgay e Rezsö Nyers, Ministros de Estado; István Huszár, Secretário geral do Partido da Frente Patriótica do Povo (HNF); Jenö Andis, chefe do departamento de ideologia do Comitê Central do Partido Comunista; Zoltán Biró, membro do presidium do Fórum Democrático Húngaro (MDF); Károly Vigh, presidente da Sociedade Bajcsy - Zsilinszky; Lásló Lengyel, dirigente de um grupo de economistas reformistas radicais; etc... . Esse estado de espírito festivo, entretanto, ocultava profundos conflitos subjacentes. Com a formação rápida e habilidosa de uma (quase) coalizão, a liderança do Partido Comunista pode ter tido a intenção de domesticar e satelitizar os movimentos alternativos, proto-partidos e partidos que, na passagem de 1988 a 1989, ainda eram muito fracos. Esses últimos conheciam também a sua própria fraqueza e sabiam que antes de entrar numa coalizão com os detentores do poder, teriam de construir suas articulações nacionais, fundar seus jornais nacionais, ganhar visibilidade nacional.

Quando, depois de meses de hesitação e lutas internas, os líderes do Partido Comunista aceitaram, na reunião do Comitê Central de 10 e 11 de fevereiro de 1989 - o pluripartidarismo como o novo parâmetro político do país, e quando foram iniciadas negociações entre eles e a "mesa redonda da oposição", tais conversações versaram exclusivamente sobre as condições básicas e as regras do jogo da transição possivelmente pacífica à democracia. Planos para formar uma coalizão ou coalizões, foram adiados até para o fim de 1989 ou 1990, quando o país estaria se preparando para as eleições gerais.

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Há uma outra coalizão que, na minha opinião, é especialmente relevante no caso da Hungria, e pode determinar, em grande medida, o curso desse país nos próximos anos ou décadas. A próxima seção é dedicada à análise detalhada desse tipo de coalizão.

A GRANDE COALIZÃO

No fim de 1987, quando eu trabalhava na primeira versão deste capítulo e previa a formação de uma grande coalizão e a emergência de uma nova classe dirigente, esse processo ainda estava latente e em seu estágio inicial. Desde então, ele veio à superfície e tornou-se uma das tendências mais importantes deste país. Hoje já não há,dúvidas de que uma nova classe dirigente, uma espécie de grande bourgeoisie está emergindo na Hungria. Ela consiste, ou muito provavelmente consistirá, na aliança de quatro grupos: primeiro, os elementos mais dinâmicos das novas gerações da oligarquia do Partido Comunista; segundo, o mesmo tipo de gente, proveniente dos níveis alto e médio da burocracia estatal; terceiro, a classe empresarial, isto é, os administradores das grandes companhias estatais e cooperativas agrícolas (os chamados "barões vermelhos" e "barões verdes"); quarto, os membros e famílias mais bem-sucedidos da classe empresarial emergente. Esse cenário não descreve tanto uma estratégia consciente de formação de coalizão como um processo histórico ao longo do qual tal coalizão pode gradualmente emergir, sem a intenção dos participantes ou mesmo a despeito das suas intenções. Ela pode surgir gradualmente, sem ser percebida, devido ao trabalho de tendência e forças históricas latentes. Com isso, voltamos ao papel da história, que já examinamos brevemente quando vistoriamos alguns dos "cenários históricos" no capítulo 5.

Convém enfatizar outra vez que, subjacentes à proliferação de programas reformistas e anti-reformistas ou a lutas econômicas e políticas, processos históricos podem desempenhar um papel de grande importância na determinação do curso e do destino da Hungria. Esses processos não são inteiramente independentes, é claro, das intenções das pessoas, mas tampouco as pessoas podem controlá-los inteiramente. A história teve muitas surpresas boas e más para a humanidade, principalmente para os que foram muito conscientes de si e seguros de que sabiam exatamente o que se passaria. Skocpol pode ter razão quando afirma que as antecipações, previsões e profecias dos revolucionários comprovadamente não se cumpriram. (1979: 18)

Creio que no estado de espírito confuso, entusiástico ou desesperado que prevalece hoje em dia no Leste Europeu, ou pelo menos na Hungria, onde cientistas políticos e sociais estão produzindo grande quantidade de cenários de reforma, as pessoas estão se esquecendo de um importante fator: a história. Não que não haja cenários que não a levem em consideração; mas tais cenários são uma minoria e não têm o impacto que deveriam ter no pensamento político desse país. Cenários de reforma e de anti-reforma são montados, estratégias políticas conservadoras ou progressistas são formuladas sem considerar as tendências e fatores históricos com seriedade, ou simplesmente sem considerá-los. No entanto, problemas aparentemente insolúveis podem ser resolvidos pela história; por outro lado, problemas novos e imprevistos podem ser, e certamente serão, criados por ela. A grande coalizão pode ser formada, e uma nova classe dirigente pode emergir como resultados de processos sócio-econômicos total ou parcialmente despercebidos e incontroláveis pela elite e pelos outros parceiros nessa aliança nascente.

Isso não quer dizer que eles não têm parte ativa nesse processo; apenas seu desenlace será algo que não planejaram e que não esperavam. Eles tomarão parte no processo histórico como atores conscientes e inconscientes ao mesmo tempo. Assim foi ao longo da história da humanidade. Os santos de Cromwell, os jacobinos de Robespierre ou os burocratas de Bismark sabiam e não sabiam o que estavam fazendo, e a que tipo de desenvolvimento histórico estavam servindo e impulsionando. A formação do que proponho designar pela expressão a grande coalizão e a emergência de uma nova classe dirigente são processos que parecem ter esse caráter ambíguo, semi-consciente e semi-inconsciente dos processos históricos. A formação dessa grande coalizão, dessa nova classe dirigente pode, é claro, tomar décadas. Eu pretendo mostrar, contudo, que esse processo já está a caminho, e que os interesses dessa classe dirigente que emerge são uma das forças promotoras da transição para o novo sistema sócio-econômico.

Não sou o primeiro a prever a emergência de uma espécie de grande bourgeoisie na Europa do Leste. Já mencionei o cenário montado por Breslauer relativo à provável emergência de uma coalizão; "liberal-elitista", que seria de alguma forma a contraparte soviética da nossa grande coalizão (Breslauer, 1978). Nos anos 60 e 70, Gouldner (1979) e Konrád e Szelényi (1979) sustentaram que a intelligentsia do Leste europeu estava a caminho do poder de classe. Recentemente, Szelényi reviu sua hipótese anterior e considerou diversos outros desenvolvimentos (Szelényi, 1986-7: 132-41): Sua segunda alternativa, a coalizão "da elite de quadros reformistas, da tecnocracia e da nova pequena burguesia" aproxima-se da grande coalizão esboçada neste capítulo. Mas há entre os dois cenários significativas diferenças. Eu não creio, por exemplo, que a elite de quadros deveria necessariamente favorecer reformas para entrar nessa coalizão com outros grupos de elite. Ela poderia ser forçada a entrar para manter sua posição privilegiada; pode optar pela coalizão para impedir um perigoso desdobramento das forças populares; devido aos seus interesses, ela pode ser atraída por essa coalizão a despeito de suas intenções e programas explícitos. Além da elite de quadros e da tecnocracia, Szelényi menciona a "pequena burguesia" como o terceiro parceiro na coalizão. Penso que seria melhor distinguir entre a pequena burguesia emergente (os dois milhões de famílias que conseguiram uma certa independência e uma modesta prosperidade baseada em sua economia de pequena propriedade) e o setor, compreendendo de cem a ,duzentas mil pessoas, que iniciaram empreendimentos de mercado, maximizadores de lucros, e que poderão se tornar o principal componente da grande bourgeoisie emergente. Por outro lado, concordo inteiramente com Szelényi:.que a sociedade em seu conjunto não lucraria necessariamente com a emergência dessa nova elite, que poderia se tornar uma classe dirigente explorando as classes sociais menos bem-sucedidas.4 4 Ver a seção sobre "A. grande coalizão: ganhos e riscos", abaixo.

O PANO DE FUNDO ECONÔMICO DOS PARCEIROS

O fracasso e a inadequação da propriedade estatal já eram óbvios no fim dos anos 60, No capítulo 5, já falei dos esforços da elite dirigente para fazer o sistema funcionar a despeito da ineficiência crônica da sua instituição econômica básica.:Campanhas, incentivos materiais, consumismo, a organização de uma segunda economia, as ondas subseqüentes de reformas- tudo isso foi tentado para simular os mecanismos mais eficientes da propriedade privada e para introduzir algum dinamismo num sistema combalido. Todos esses esforços: fracassaram, mais ou menos. Nos últimos anos, o fracasso e a inadequação da propriedade estatal tornaram-se óbvios e passaram, a ser tema: de um debate público.

No fim da década de 80, a crescente crise econômica preparou o caminho para a implementação de um novo programa de reformas, incluindo uma reforma radical das relações da propriedade. Desde janeiro de 1988, a nova legislação: permite uma competição mais ou menos livre de vários tipos de propriedade5 5 Ver, por exemplo, a nova Lei das Companhias (Estatuto 1988:6), votada na sessão de novembro de 1988 do parlamento, e também a nova Lei da Transformação, votada pelo Parlamento na sessão de junho de 1989 (Estatuto 1989: 13), etc. . Propriedade estatal, cooperativa e corporativa, companhias autogeridas, propriedade pública e comunitária essas várias formas competem hoje por recursos, investimentos e consumidores. Esse conjunto heterogêneo de várias formas de propriedade pode tornar-se a base econômica da grande coalizão.

A burocracia do Estado pode encontrar e criar sua base econômica na parcela de propriedade estatal que permanece sujeita a mecanismos centralizados de distribuição e redistribuição. Mas é provável que tente garantir suas posições nos bancos, holdings, fundos de pensão, fundações, etc... que, segundo a reforma econômica, terão papel importante na administração da propriedade social e na organização do fluxo de capital. Nessa esfera, terá de competir com a classe empresarial e com as companhias autogeridas.

Os administradores de empresas parecem constituir, até o momento; os principais beneficiários do processo de transição. Nos últimos meses eles vêm transformando febrilmente suas companhias estatais em companhias por ações. Dessa maneira, adquiriram um alto grau de independência, pois não são mais controlados, pelo partido e pela burocracia estatal, além do fato de que até a criação da Bolsa de Valores não serão sequer controlados por seus acionistas. Nesse período intermediário eles agem como quase-donos, ganham vantagens exorbitantes, compram ações de suas companhias a preços baixos e podem criar as bases dos seus próprios negócios privados.

Os empresários se basearão na propriedade privada, na propriedade de grupo e em várias tipos de propriedade mista.

Os membros da burocracia do partido que se agarraram ao seu poder burocrático ficaram em má situação, pois o partido perdeu sua posição hegemônica e está perdendo a propriedade estatal como sua' principal base de poder. Os que foram flexíveis e dinâmicos o bastante para converter seu poder burocrático em ativos de mercado ficarão em boa posição na economia de mercado emergente.6 6 Ver a seção sobre "Conversão do poder", abaixo.

De qualquer forma, essa rica configuração de várias formas de propriedade poderá constituir uma força propulsora' muito mais eficiente que a propriedade estatal jamais foi. Ademais, ao fortalecer a autonomia de cada parceiro, pode fortalecer também a aliança. A criação planejada de um mercado de ações - um proto-mercado de ações já está funcionando7 7 Ver capítulo, 1 nº 22. - facilitará o fluxo de capitais entre eles e pode cimentar ainda mais fortemente a sua coalizão.

LEIS E REGULAMENTOS EM FAVOR DOS RICOS

Recentemente foram aprovadas leis e regulamentos que, assim como outros em preparação, parecem-se notadamente com a legislação liberal do século XIX. Em princípio, essa legislação agrega novas liberdades a cada cidadão, mas na verdade as cama das sociais superiores são muito mais capazes de beneficiar-se, delas que o resto da sociedade.

A nova Lei das Companhias, promulgada na;,seção de novembro de 1988 do Parlamento; deu, luz verde às empresas, privadas e de grupo;, essa atividade .empresarial atraiu milhares de pessoas provenientes das famílias oligárquicas. A lei também permite; a criação de companhias mistas com a participação de capital estatal, cooperativo, comunitário, de grupo e privado. Dessa forma, foi, criada a moldura jurídica: de uma cooperação econômica estreita e possivelmente em grande escala entre os parceiros da grande coalizão.

A lei de Conversão, promulgada em 30 de maio de 1989, permite a transformação de companhias estatais em sociedades anônimas e outras formas de organização empresarial, e vice-versa. Esse também é um passo importante para a frente, pois dará mais flexibilidade à economia de mercado nascente; mas ao mesmo tempo, e de forma especial, aumentará o poder e a riqueza dos membros da grande coalizão, principalmente da classe empresarial. Quando uma empresa estatal é transformada numa sociedade anônima, as ações são compradas por outras firmas e banco. Ao mesmo tempo, a empresa em questão compra ações de outras companhias. Isso tem, o nome de "propriedade cruzada", e a ideologia que a justifica é a de que, por essa via, os atores econômicos;são separados do partido Estado e escapam ao controle da burocracia estatal. Isso pode ser verdade, mas ao mesmo tempo a classe empresarial adquire um poder quase incontrolável, detendo a propriedade cruzada e os mecanismos de proteção cruzada. O fato de que os administradores de empresas começaram a investir sua crescente riqueza em negócios privados (através de canais familiares) pode fortalecer sua aliança com a classe empresarial.

A importação de capital estrangeiro serve ao mesmo objetivo. Esse capital financiou o regime de Kadar e prolongou sua existência por pelo menos uma década; agora ele pode financiar o, poder da nova elite dirigente. Administradores de companhias estatais que geriram suas, unidades de modo burocrático e ineficiente por quarenta anos podem agora proteger seu poder associando-se a um parceiro estrangeiro; assim eles podem furtar-se a praticamente todo controle estatal ou social e multiplicar seus rendimentos pessoais.

A emenda da Lei de Terras de 1º de junho de 1989, que liberalizou o mercado fundiário, pode mobilizar importantes recursos e tornar a agricultura Húngara mais competitiva. Mas, ao mesmo tempo, os dirigentes de cooperativas e fazendas estatais, os técnicos que os rodeiam, os fazendeiros ricos e os empresários que já acumularam o necessário capital partirão de um ponto inicial extremamente vantajoso com respeito a todos os demais pára comprar ou arrendar terras, levantar créditos e iniciar novos empreendimentos; Esse processo de recapitalização desbalançado poderia ser limitado e contrabalançado apenas através da emergência de uma rede de cooperativas de tipo escandinavo. A questão de terra será uma das primeiras e mais difíceis questões a serem debatidas pelo Novo Parlamento, que terá sua primeira sessão em 2 de maio de 1990.

Antes da Lei de Imóveis de Moradia de 1986, cada família húngara ocupando um imóvel poderia ser proprietária de no máximo um apartamento, ou casa, e urna casa de campo. De acordo com a nova legislação, cada membro da família, de catorze anos ou mais, pode ser proprietário de um apartamento. Dados os preços exorbitantes dos imóveis na Hungria (o preço de um apartamento de dois dormitórios, de baixo padrão de construção, equivale a 20 anos de aluguel médio), essa nova legislação favorece quase exclusivamente as famílias muito ricas e as famílias da nomenklatura que, vivendo em apartamentos estatais, pagando aluguéis baixos ou sem pagá-los, desejam adquirir um segundo ou um terceiro apartamento para si ou para seus filhos. Tal desregulação do mercado imobiliário possibilitou, no pânico comprador do final de 1987, que famílias ricas e/ou influentes comprassem todos os imóveis disponíveis, daí resultando uma alta de preços da ordem, de 40 a 50% num par de meses e uma deterioração ainda maior da situação dos pobres.

De acordo com o novo Decreto sobre Passaportes, vigente desde 1º de janeiro de 1988, cada cidadão húngaro pode viajar aos países ocidentais quantas vezes quiser. A única condição para obter o visto de saída é que ele (ou ela) possua uma certa quantidade de moeda estrangeira. Mas dado que os cidadãos ordinários só podem comprar 350 dólares a cada três anos, os principais beneficiários desse decreto são os grupos sociais privilegiados (diplomatas, os que têm negócios com o exterior, jornalistas, artistas, empresários privados, burocratas de alto escalão) que dispõem de meios legais, semi-legais ou ilegais de, obter moeda estrangeira. Isso não significa que a lei em si, seja má. Em princípio, amplia a esfera de direitos de todos os cidadãos, Mas não se, pode deixar de pensar, em paralelos do século XIX, quando havia muitos direitos formais dos quais os mais pobres não podiam usufruir, mesmo admitindo-se que eles tinham mais direitos que o famoso "direito de dormir debaixo, da ponte". Para a maioria dos húngaros, a nova lei significará, apenas que em lugar de serem forçados a permanecer em casa, eles, terão o direito de ficar em casa.8 8 Até outubro de 1989 a quota de divisas era maior: US$ 350 a cada três anos. Isso possibilitou a saída de milhões de húngaros cm viagem de compra a Viena ou Munique, na euforia dessa nova liberdade, em 1988 e no início de 1989, gastando sua quota de US$ 300 a. cada três anos em .um ou dois dias. Com o rápido empobrecimento do país, muito menos pessoas poderiam repetir a aventura, mesmo que a quota não tivesse sido reduzida.

Vários programas de reforma do sistema de seguridade social propõem um teto relativamente modesto, .abaixo., do qual cada cidadão é segurado e acima do qual as pessoas que podem pagar têm a possibilidade de fazer um seguro privado. Num país pobre, esse sistema dual tende a deteriorar a qualidade dos serviços cm geral e - em nome da igualdade de oportunidade aumentar a distância entre os pobres e os ricos.

Depois de quatro décadas de resistência, ideológica, novos regulamentos permitiram a,criação de, escolas de elite. Se os mecanismos de controle social não forem, desenvolvidos com suficiente rapidez, isso significará) a criação de escolas, principalmente para as crianças da elite.

A nova Lei do Imposto de Renda atingiu principalmente as classes médias e baixas e em particular famílias com crianças cujo orçamento não era mais flexível. Funcionários muito bem pagos do Estado e do partido, que em geral não tinham um, segundo emprego, foram compensados pelos impostos que pagaram. Os rendimentos dos administradores de empresa cresceram em 1988 a despeito dos novos impostos. Os empresários privados foram prejudicados em ,1988, devido ao novo sistema fiscal, mas se recompuseram mediante aumentos de preços,. Np início de 1989 a Câmara de Economia e Associação de. Empresários (VOSZ) pleiteavam a redução dos impostos sobre a, renda, de pessoas jurídicas e a introdução de um sistema de, imposto de renda sobre a pessoa física, menos progressivo9 9 Ver, por exemplo, o relatório da reunião do Conselho Diretor da Câmara de Economia de 7 de junho de 1989, publicado no Magyar Nemzet de 8 de junho de 1989, p. 3. . Seus esforços foram coroados por um sucesso parcial, já que na sua sessão de novembro de; 19.89 o Parlamento reduziu o imposto sobre.empresas privadas e também a progressividade do imposto pessoal.

TRANSFORMAÇÕES DA IDEOLOGIA

Com algum exagero e alguma pimenta, pode-se dizer que o marxismo do século XIX da Hungria atual está sendo substituído pelo liberalismo conservador do século XIX.

O igualitarismo do marxismo ortodoxo está sendo substituído por. uma ideologia da desigualdade que, entre outras funções,: serve para legitimar o espetacular e, para muitos, escandaloso-enriquecimento da classe empresarial ascendente.

O igualitarismo substantivo do marxismo ortodoxo, que tentou manter as diferenças de condições de vida dentro de estreitos limites, está sendo substituído pelo conceito de igualdade de oportunidades10 10 Seria desnecessário dizer que, tal como estão as coisas na Hungria, a propagação da idéia de igualdade de oportunidades favorece muito mais a legitimação dos privilégios c as oportunidades maiores para a elite do que a criação eventual de oportunidades iguais para todos. . Esse foi um dos conceitos básicos do liberalismo do século XIX, e foi um dos mais veementemente atacados pelos críticos do liberalismo, ao longo dos séculos XIX e XX. Assim, estamos diante de uma estranha anomalia quando se menciona a igualdade de oportunidades como uma das proposições e valores básicos remanescentes do socialismo.

O dogma sagrado do pleno emprego está sendo abandonado e a necessidade, no mínimo temporária, do desemprego é reconhecida e justificada em termos talmúdicos. "Sempre falamos do direito ao trabalho, e não do direito ao posto de trabalho" - isso e coisas semelhantes é o que ouvimos. O conceito do trabalhador ocioso e preguiçoso que é o culpado exclusivo da sua demissão foi tomado de empréstimo do vocabulário dos ousados empreendedores do século XIX.

O conceito marxista do Estado provedor que cuida das necessidades de todos está sendo substituído pelo conceito de Estado auto-redutor, que abandona um número cada Vez maior de suas responsabilidades sociais (sem desistir do poder que tem). Para reduzir o custo da política social, por exemplo, alguns especialistas estão reinventando os conceitos de pobres "merecedores" e "não merecedores", do século passado, e ponderam as possibilidades de ajudar apenas, ou sobretudo, os primeiros.

A legitimação de novas formas de propriedade pela nova Lei das Companhias não só foi um radical passo no caminho das reformas econômicas, mas também uma enorme brecha na muralha da ideologia comunista. Velhos ideocratas tentam minimizar o fato e sublinhar que a propriedade estatal continuará a ter forte maioria, de maneira a não ser desafiada por ninguém. Novos ideólogos, de outro lado, já descobriram o argumento bem conhecido e convincente da social-democracia ocidental segundo o qual a forma da propriedade é de secundária importância; o que conta é o objetivo que ela serve e o beneficio social que dela decorre.

A hierarquia da realização pessoal está sendo radicalmente modificada. No sistema de valores bolchevique o trabalho físico, do. colarinho azul, era o; tipo mais precioso e sagrado de realização pessoal (embora tivesse de conviver desconfortavelmente com o "papel de direção" e a "função de vanguarda" do Partido Comunista como outra atividade que permitia uma realização máxima). A erosão desse sistema de valores já havia começado no fim dos anos 60 e início dos anos 70, mas a verdadeira mudança ocorreu no fim dos anos 80, quando o vácuo do mito já há muito esquecido do metalúrgico stakhanovista foi subitamente preenchido pelo mito do empresário shumpetériano capaz de salvar o país do transe por que hoje passa11 11 É interessante comparar essa busca de uma nova ideologia pela nova elite dirigente em processo de formação, por um lado, e por outro a teimosa adesão à velha e anacrônica ideologia pelo establishment no início da década de 70. Os chamados Novos Mecanismos Econômicos de 1968 introduziram um certo número de reformas radicais: encerrou, o planejamento compulsório que era a base da economia socialista de Estado; Introduziu mecanismos de mercado; reconheceu a importância da moeda, e do capital, e a legitimidade das formas alternativas de propriedade; questionou e tentou limitar o controle estatal da, economia etc... Não obstante,, essas, reformas foram disfarçadas, por uma retórica de "continuidade": os velhos princípios ideológicos foram reconfirmados e tentativas de reajustar a ideologia à nova realidade foram estritamente proibidas. Naquele tempo, a elite dirigente ainda pensava que seria capaz de preservar suas posições de poder intocadas (Szamucly, 1988:39). . A capacidade empresarial de repente tornou-se o critério máximo de virtude social. Todos os que desejam ser bem aceitos segundo os padrões atuais têm de empreender nos seus campos de atividade, e não apenas os administradores e empresários. Já ouvimos falar de "sindicatos empreendedores", do "Estado empreendedor" e até de 'partidos empreendedores". A capacidade empresarial tornou-se, ou está se tornando, uma senha e um cartão de visitas nos círculos de elite. Torna-se também a justificação de privilégios. Aqueles que são incapazes de obter sucesso de acordo com esse tipo de critério podem ser relegados à categoria de cidadãos de segunda velasse12 12 Esse deslocamento de ênfase, passando das classes trabalhadoras de colarinho azul e .suas conquistas para . uma concepção elitista da classe dirigente e suas conquistas "intelectuais", pode ser percebido também em outros campos. Num discurso na Academia Política em Budapeste, a 5 de setembro: de 1988 Grósz, Primeiro Secretário do Partido Comunista, esboçou um novo "enfoque de classe": "se não confundimos o conceito filosófico de classe operária com suas peculiaridades sociológicas, isto é, se não a consideramos a simples, totalidade da classe operária, então é fácil entender que não há razão para abandonar nossa fé na sua missão histórica". Referindo-se ao Partido Comunista, ele declarou que "no seu caráter, é um partido operário revolucionário; no seu papel social, é uma instituição atual, desempenhando, uma, função social global. No seu modo de existência, é uma formação de intelectuais. Hoje, nossa tarefa principal é devolver ao Partido seu, caráter intelectual". ( Népszabadság, 6 de setembro de 1988, p.3, col 4). Na mesma linha, Sándor Balogh,, ex-diretor do Instituto de História do Partido, escreveu, em 1989 que "o Partido dos Trabalhadores Socialistas deve ser intelectualizado; isso diz respeito não apenas aos intelectuais, mas também aos trabalhadores de colarinho azul que adquiriram um certo grau de cultura política" (Balogh, 1989). .

A CRESCENTE AUTONOMIA DOS PARCEIROS

Esse é um sintoma, bem como um pré-requisito, da formação da grande, coalizão. Vejamos os atores um por um.

A elite partidária. Em 1988 o partido iniciava sua lenta e cautelosa; retirada da economia. Ao mesmo tempo, a rápida pluralização da sociedade e da política, com a emergência: de uma ampla variedade de movimentos alternativos, proto-partidos e :partidos, forçaram-no a desistir da. sua pretensão de, representar um interesse social comum (fictício). A idéia de que. o partido tinha de defender abertamente o interesse dos seus próprios membros (e deixar que a representação de interesse de outros grupos, sociais fosse assumida por outras organizações) fortaleceu-se cada vez mais. A 30 de setembro de 1988 a facção dos representantes comunistas foi informalmente fundada no Parlamento; com isso, o partido reconheceu, quisesse ele fazê-lo ou não, que seus parlamentares não representavam a população em seu conjunto13 13 A facção dos representantes que não pertencem ao partido e a facção agrária foram fundadas em janeiro de 1989 . A aceitação do princípio e da prática do multipartidarismo na sessão de 10 e 11 de fevereiro do Comitê Central confirmou essa nova situação e esse novo papel do Partido Comunista como um dos atores autônomos num campo político pluralizado. A dissolução do Partido Comunista e a fundação do Partido Socialista Húngaro, a 7 de outubro de 1989, reduziu ainda mais o poder desse novo ator e ajudou a equilibrar as relações de poder entre os vários elementos da nova classe dirigente emergente14 14 Similarmente, em 1988, a Associação da Juventude Comunista (KISZ) desistiu de sua pretenção, tão tradicional quanto espúria, de representar toda a população de menos de trinta anos; desde então, está à procura de uma nova identidade entre os novos movimentos de jovens na Hungria. No fim de 1988, já havia vários desses movimentos: a Associação dos Jovens Democratas (FIDESZ), a Associação dos jovens Social Democratas, a Associação dos Escoteiros Húngaros, á Associação Luterana de Jovens etc... Em 27 de novembro de 1988, foi fundado o Conselho Nacional das Associações de Jovens Húngaros (MISZOT), compreendendo 27 Associações com direito a voto e 17 outras afiliadas, e adotando o rodízio da presidência entre elas. Em abril de 1989 a Associação ,dos jovens Comunistas (KISZ) foi transformada na Federação Democrática da Juventude (KEMISZ), que rompeu sua ligação formal com o Partido Comunista. Em meados de junho, a KEMISZ esteve a ponto de cindir-se em duas ou mais associações de jovens. .

A burocracia estatal. A separação do Estado e do partido está na agenda desde meados da década de 60, mas de fato nada aconteceu de importante nessa área nas duas décadas subseqüentes. Nos dois últimos anos, porém; o processo de separação foi acelerado por diversos fatores. A crescente crise econômica convenceu os líderes partidários de que seria mais prudente se retirarem do campo de batalha econômica e deixar a confusão e a tarefa de recuperar economicamente o país para a burocracia estatal. A saída de, Grósz, o primeiro-seicretário do Partido Comunista, do posto de primeiro ministro, no outono de 1988,. pode ter resultado desse tipo de considerações. O novo papel, e a tarefa de encontrar soluções numa situação de emergência deu ao governo e ao alto escalão da burocracia do Estado um senso de sua importância um poder de barganha que pode transformá-los em parceiros autônomos ou semi-autônomos da coalizão. Com o novo primeiro-ministro, Miklos Nemeth, e na atmosfera febril de ter de transformar em um par de anos uma economia socialista estatal numa economia de mercado e um Estado autoritário numa democracia constitucional, o governo tornou-se, pela primeira vez desde 1948, um importante ator na arena política. A 10 de maio de 1989 o Parlamento confirmou a nomeação de seis novos ministros que, quebrando uma tradição de quarenta anos, foram propostos pelo primeiro-ministro e não pelo Comitê Central do Partido Comunista. Nemeth enfatizou, no seu discurso e em várias entrevistas, que seu governo seria independente, respondendo apenas perante o Parlamento e o povo húngaro. Um novo e importante passo nesse processo foi dado, em 8 de junho, quando o Comitê Central do Partido Comunista anunciou que renunciava ao seu monopólio e prerrogativas, exercidos por quatro décadas, de nomear candidatos a todos os postos importantes na burocracia do Estado e nos setores econômico, social e cultural do país. As decisões corajosas de Nemeth de suspender as obras da barragem do Danúbio e de abrir as fronteiras do país antes que o êxodo da Alemanha Oriental crescesse aumentaram ainda mais a independência do governo. A difícil tarefa de administrar a crise e auxiliar na atividade legislativa febril do Parlamento ampliou o prestígio e a autoconfiança dos servidores públicos. Depois da dissolução do Partido Comunista o governo tornou-se o último fator de estabilidade do país. Reconhecendo esse fato, os partidos da oposição manifestaram ao governo sua disposição de cooperar com ele até as eleições de março de 1990. Depois das eleições gerais a situação mudou. A independência transitória do governo em relação a um partido dirigente acabou, mas, com toda certeza, a independência dos funcionários públicos civis crescerá substancialmente nos próximos meses e anos.

OS ADMINISTRADORES DE EMPRESAS

Os administradores das companhias estatais e de grandes cooperativas já se constituíram em importante lobby, e têm sua própria associação, a Câmara Húngara de Economia (chamada Câmara de Comércio até 1988). Eles sofreram uma derrota em 1986, quando uma nova lei de reforma atribuiu o direito de eleger diretores de companhias aos conselhos de diretores, recém-criados. Mas em um ano eles recuperaram o controle da situação, e desde então seu poder vem crescendo. A nova Lei das Companhias, e a nova Lei de Conversões (promulgadas em novembro de 1988 e maio de 1989, respectivamente) abriu para eles novas oportunidades para ganharem autonomia e tornarem-se poderosos parceiros na grande coalizão emergente.

Os empresários. Esse é um outro poderoso grupo ascendente cujo peso econômico cresceu espetacularmente nos últimos dois anos. As duas leis acima mencionadas criaram condições propícias ao seu desenvolvimento nos próximos anos. No fim de 1988 a direção do partido fixou em aproximadamente 30% a participação máxima do setor privado na economia como um todo. Isso, supunha-se, ainda não "ameaçaria a causa do socialismo", mas já no fim de 1989 ninguém mais falava de tais limites. Vários partidos independentes e movimentos alternativos (como por exemplo a Aliança dos Democratas Livres, SZDSZ, ou o Partido Independente dos Pequenos Proprietários, FKgP) já fazem campanha pela privatização integral da propriedade do Estado burocrático. Empresários privados já fundaram a Organização Nacional dos Empresários (VOSZ), que reivindica reduções fiscais e outras medidas destinadas a fomentar os negócios privados.

A ARTICULAÇÃO DOS PARCEIROS

Ocorrendo paralelamente à autonomização dos parceiros, a coalizão só se consolidará se, contrabalançando o processo de autonomização, fortalecer os interesses e objetivos comuns. No passado, os conflitos entre eles prevaleciam. O partido e a burocracia estatal fustigavam e oprimiam os empresários, que tentavam afirmar-se; os administradores também procuravam obstruir sua expansão. Em 1988 e 1989, essa situação mudou substancialmente. Um dos denominadores comuns a todos eles agora é o mercado. As lideranças do partido e do Estado já perceberam que somente uma economia de mercado eficiente pode tirar o país da crise; a maioria dos administradores também se declara a favor do mercado (embora preferissem manter ao mesmo tempo seus atuais privilégios e subvenções). Os empresários podem perder parte dos lucros que obtêm no quase-mercado especulativo que existe atualmente, mas eles sabem que se beneficiarão a longo prazo com o desenvolvimento de um verdadeiro mercado.

A aliança pode ser fortalecida também pela crescente militância dos sindicatos. As empreiteiras privadas trabalhando na controvertida barragem do Danúbio, assim como os burocratas do partido ou administradores tecnocráticos, não morrem de amores pelos movimentos ecológicos15 15 Depois que o governo suspendeu, em 13 de maio, a construção de parte da represa, empreiteiros privados foram à capital protestar no Parlamento. . Todos sentem-se ameaçados por uma sociedade em processo de empobrecimento e por crescentes tensões sociais. Há, porém, um outro fator, e provavelmente mais importante, que pode consolidar a coalizão. Trata-se da necessidade e vontade que têm as oligarquias do Partido e do Estado de preservar o seu poder num período de radical transformação social e econômica. Examinemos esse problema.

A CONVERSÃO DO PODER

As elites dirigentes, como é sabido, não se inclinam a abrir mão do seu poder num gesto de desprendimento, em nome da justiça ou do interesse no desenvolvimento social. Mesmo nos casos em que uma crise ameaça atingi-los como aos demais, anciens regimes normalmente agarram-se ao navio, afundando, ao invés de correr o risco de atirar-se a um mar revolto e desconhecido. Há algumas exceções a essa regra na história; mas são exceções. Se a elite dirigente de um sistema sócio-econômico não vê a possibilidade de preservar o seu poder e de transferi-lo para um sistema emergente, fincará pé e fará todos os esforços para preservar o velho, obstruindo o novo. Fará isso mesmo que, com isso, mantenha a sociedade em crise prolongada ou provoque a sua destruição. Nesse caso, a sociedade tem duas opções. Ela pode aceitar a situação com resignação, tomando-a como imutável. Ou pode revoltar-se contra ela e trabalhar na criação das estruturas básicas de um novo sistema. A história contém exemplos dessas duas opções.

Eu expressei a minha convicção de que a elite dirigente na Hungria desistiu dos seus poderes burocráticos e coercitivos sem muita resistência e assumiu o risco de uma transformação radical do sistema político por que se deu conta que tinha boas possibilidades de converter o seu antigo poder num novo tipo de poder, que seria relevante e viável no novo sistema. Quero ressaltar que falo aqui da conversão do poder, e não em mera transferência. Em condições favoráveis, o poder original da elite dirigente, que era destrutivo e socialmente nocivo no ancien regime, pode ser convertido num poder menos nocivo e até mesmo útil no novo regime.

A conversão do poder é uma operação extremamente difícil, constituindo-se num processo histórico longo e complexo. No fim do século XIX, as elites dirigentes do Japão e da Alemanha, auxiliadas por burocracias estatais altamente eficientes, foram bem-sucedidas nessa conversão; algumas décadas mais tarde, as elites russa e chinesa fracassaram no mesmo empreendimento e foram destruídas por revoluções (Skocpol, 1979). Na Hungria, o compromisso histórico de 1867 criou uma boa oportunidade para uma conversão similar de poder. A aristocracia desejava ao mesmo tempo transferir seu poder feudal tradicional, sem alterações e sem contestação, para o novo sistema, e adquirir novo poder econômico e político no novo sistema parlamentar baseado no mercado. Isso levou à distorção do novo sistema a um feudo-capitalismo de baixa eficiência e a um regime político semi-democrático e semi-autoritário.

Se as reformas efetuadas um tanto a contragosto na Hungria, nas décadas de 1960 e 1970, tiveram alguma significação histórica, foi a de preparar o caminho para uma transição mais ou menos pacífica, no final dos anos 80, de um socialismo estatal de tipo soviético para um novo sistema sócio-econômico. Elas tiveram esse efeito ao criar as condições que poderiam ajudar a elite dirigente a converter seu poder num novo tipo de poder, num novo sistema; e poderiam ajudar a sociedade a controlar esse poder e a participar dele no novo sistema.

Com respeito à conversão econômica do poder, a emergência da grande coalizão e a expansão da economia de mercado abriram caminho para muitos burocratas do Partido e do Estado ingressarem nas esferas administrativa e empresarial, trocando suas posições na hierarquia burocrática por oportunidades no mercado. A migração da burocracia para as instituições da eco nomia de mercado emergente já começou. Os principais objetivos são os novos bancos comerciais, holdings, companhias de seguros, conselhos diretores de novas sociedades anônimas, fundações, etc...

Uma outra maneira de converter o poder burocrático em posições de mercado é ligar as classes administrativa e empresarial por meio de vínculos informais cada vez mais numerosos: por meio de relações de família, de redes clientelísticas e de nepotismo. Dessa maneira, o fluxo de poder e de lucros entre as várias esferas pôde ser estabelecido e as tensões entre os parceiros da coalizão puderam ser reduzidas. Se a filha de um alto apparatchik do Partido é gerente de uma boutique elegante do centro da cidade, se o seu filho e o representante húngaro de uma companhia do ocidente, se o seu genro é o presidente de uma holding, sua neta estuda em Oxford e sua sogra tem um pequeno hotel no lago Balaton, então a grande coalizão pode encontrar-se em torno da mesa na véspera de Natal. Dessa maneira, o que o pai pode ter perdido em termos de poder burocrático pode ser fartamente compensado em poder econômico e riqueza através da família. Há casos em que quatro parceiros da coalizão estão unidos numa pessoa. O sr. Mieczyslaw Wilczek na Polônia pode servir como um exemplo óbvio. Ele primeiro ocupou importantes postos administrativos na indústria estatal; depois, fundou uma joint-venture polonesa-canadense no ramo de peles; em 1987, foi nomeado ministro da indústria; ele é membro do Partido, e é milionário. Poderia ter saído de um romance de Balzac, o que não seria uma coincidência, pois Balzac foi o cronista da formação da grande burgeoisie francesa e da sua ascensão ao poder.

Sabe-se pouco sobre até que ponto essas redes intra-elites já se desenvolveram. Eu poderia citar exemplos característicos, muito mais que estatísticas exatas. Mas há alguns fatos preciosos. Houve várias tentativas, por exemplo, de estudar a origem de boutiques de luxo no shopping center de Budapeste. A despeito do segredo, protegido pelas altas hierarquias, em torno desses empreendimentos, há abundante evidência de que burocratas de alto nível ou seus familiares têm parte em quase todos eles. Seus filhos, noras e genros, sogros e sogras, outros parentes ou amigos estão envolvidos na gerência dessas boutiques16 16 Nós detectamos esse tipo de ligações em sete boutiques entre dez pesquisadas. Numa pesquisa nacional realizada em março de 1989, László Bruszt descobriu que mais de 50% dos altos burocratas do Partido tinham estreitas ligações familiares com os negócios privados (O relatório de pesquisa será publicado no início de 1990 pelo Instituto de Pesquisa Social de Budapeste). . Sem esses vínculos familiares, de nepotismo ou clientelísticos seria muito mais difícil, ou impossível, abrir e gerir essas casas. À pergunda humorística: "para onde deveria se dirigir, neste inverno, a primeira marcha de fome dos operários: para a sede do Partido à beira do Danúbio ou para o shopping center no centro?" A resposta correta em fins de 1988 em Budapeste era esta: "a caminho da sede do Partido, eles marchariam primeiro em direção às boutiques, e poderiam muito bem parar ali, porque, depois de desvencilhar-se dos empregados subalternos, descobririam, nos fundos das lojas, os altos apparatchiks que eles desejavam encontrar na sede". Piadas à parte, uma emergência e um confronto desse tipo poderia eventualmente consolidar a aliança emergente das elites empresariais e burocráticas (da mesma maneira como o conflito de 1870 e 1871 consolidou a unidade da grande bourgeoisie francesa).

O inter-relacionamento e amálgama das elites burocrática, administrativa e empresarial são ainda mais óbvios nas áreas rurais, onde burocratas locais de alto nível e empresários recentemente enriquecidos, incluindo os administradores empreendedores de cooperativas locais mostram-se definitivamente dispostos a formar uma classe alta local informal. O processo começou muitos anos atrás e foi reforçado por casamentos unindo pessoas dos diversos setores, pela multiplicação das relações sociais, filiação aos mesmos clubes, etc...17 17 Em associações de caça, por exemplo. . A Emenda à Lei da Terra (promulgada em 1º de junho de 1989) melhorou ainda mais a situação e as oportunidades dessa classe alta rural. Resta ver até que ponto as eleições locais marcadas para setembro de 1990 afetarão sua constituição social e futuro desenvolvimento.18 18 As oligarquias do Partido e do Estado começaram a estabelecer vínculos com o mercado ou proto-mercado e a tirar lucros dessa vinculação - bem antes da crise atual. Quero referir-me apenas aos negócios corruptos do clã de Brezhnev e das oligarquias de Gierek e de Honecker. Mas é preciso assinalar uma diferença. Nos anos 60 e 70 a oligarquia do partido era a principal beneficiária dessas relações entre as várias esferas. Na grande coalizão emergente, os lucros terão de circular entre quatro parceiros.

A emergência da Grande Coalizão pode resolver outro problema da elite dirigente. Já me referi ao fato de que as oligarquias do Partido e do Estado tinham completo controle sobre a propriedade estatal, isto é, sobre quase toda a riqueza nacional19 19 Ver seção sobre "A ausência de um impulso motivacional", no capítulo 6 acima. . Eles tinham o poder de tomar todas as decisões com respeito a essa propriedade; poderiam aumentá-la ou gastá-la como lhes aprouvesse. Mas a despeito de seus privilégios e dos seus canais de corrupção, eles poderiam transferir apenas uma parte relativamente pequena dessa riqueza para si e suas famílias (Fehér, Heller e Márkus, 1983). A emergência da Grande Coalizão e o mercado não apenas permitirão que eles convertam seu poder burocrático em posições econômicas lucrativas mas também o convertam em ativos econômicos que já são transmissíveis por herança.

No início de 1989, a velha elite dirigente fez várias tentativas, também no plano corporativo, de converter o seu poder antigo em poder econômico no novo regime. Um bom exemplo disso é o escândalo em torno da Associação da Juventude Comunista (KIZS) em fevereiro de 1989. Seguindo uma pista, um jornalista descobriu que a Federação tinha comprado nas semanas anteriores, por somas nominais de 1 ou 100 forints, centros de conferências, complexos culturais e de férias que tinham sido construídos pelo Estado ou por conselhos municipais ou provinciais, isto é, propriedades públicas que apenas haviam sido emprestadas à Associação. Esse é um exemplo esclarecedor e modelar. Ao mesmo tempo em que proclamavam aos quatro ventos que a Associação era inteiramente favorável à pluralização da vida política e que cooperaria com os novos movimentos emergentes de jovens, tratando-os como iguais, os líderes da entidade rápida e subrepticiamente acumularam uma fortuna em bens imóveis, obtendo assim uma enorme vantagem sobre seus rivais políticos. No velho regime, eles não necessitavam direitos formais de propriedade porque, sob a proteção do Partido Comunista, tinham a posse incontrastável dos bens. Mais tarde, quando se alarmaram com a possibilidade de perder seu poder político, converteram-no em ativos econômicos que, por sua vez, tornar-se-iam fontes de poder político legítimo no novo sistema. Essa é a maneira socialista de lavar, se não dinheiro sujo, pelo menos poder ilegítimo, tranformando-o em poder legítimo.

Da mesma forma, o Partido Comunista começou apressadamente a transferir seus imóveis, no valor de bilhões de forints, para companhias privadas recentemente criadas, até que no início de 1990 começaram a crescer as pressões para que prestasse contas do montante e da origem de seus recursos. Ficou então estabelecido que o Partido linha sido apenas o fiel depositário da propriedade estatal. O seu sucessor, o Partido Socialista Húngaro (MSZP) comprometeu-se, em novembro de 1989, a divulgar a relação dos imóveis em seu poder e a transferir parte deles ao Estado, aos municípios e a outros partidos. A tentativa de converter poder político em bens de mercado falhou, pelo menos em parte.

A conversão política do poder tem suas próprias dificuldades e possibilidades. Os canhões são a ultima ratio regum: a força bruta e a coerção. São as fontes últimas de todo o poder. Mas elites politicamente maduras procuram evitar o uso direto da força e da coerção. Elas investem e ocultam seu poder em várias instituições e de preferência usam-no apenas de maneira indireta. A elite dirigente húngara fez a mesma coisa quando investiu seu poder em propriedades estatais, isto é, quando nacionalizou praticamente o país todo: a economia, as instituições sociais e políticas, tudo. O regime de Kadar governou com sucesso e controlou o país principalmente através desse sistema nacionalizado. No final da década de 80, essa herança tornou extremamente difícil, para a oligarquia do Partido e do Estado, acertar a transição para um novo sistema onde ela perderia a propriedade estatal como uma de suas principais bases de poder. Com que opções contava ela nessa nova situação?

Uma das opções possíveis teria sido reativar suas estratégias de imposição direta do poder20 20 No final de 1988 havia sinais evidentes de que vários grupos da liderança partidária consideravam essa opção uma real possibilidade. Os quadros partidários da linha dura fundaram a Associação Münnich Ferenc, que declarou sua disposição de proteger as "conquistas socialistas" de todas as maneiras possíveis. Um novo Decreto-Lei emanado do Conselho Presidencial, no início de Novembro de 1988, autorizou o fornecimento de pequenas armas a todos os líderes em importantes funções econômicas, sociais e políticas. Grózs, Primeiro Secretário do Partido Comunista, evocou o espectro da "luta de classes", "contra-revolução", "terror branco" e "ditadura militar" em vários discursos feitos, em novembro e dezembro do mesmo ano. A 4 de junho de 1989 um grupo de membros ortodoxos do Partido fundaram a Plataforma Marxista Unida que passou a atacar energicamente os reformistas, a exigir a demissão de Poszgay, a pedir a proteção da propriedade estatal e assim por diante. Os acontecimentos na China, no início de junho de 1989, podem ter encorajado as forças conservadoras na Hungria, ao passo que a vitória do Solidariedade nas eleições gerais na Polônia pode ter alarmado não apenas essas forças, mas também parte dos apparatchiks moderados. . Isso poderia levar a um cenário sul-coreano, ou seja, a oligarquia do Partido poderia tentar preservar seu poder político liberando ao mesmo tempo as forças de mercado na economia. Mas a liderança partidária escolheu outro cenário. No fim de 1988 eles começaram a transformar seu poder totalitário e coercitivo em poder político. Esforçaram-se em construir uma base eleitoral e a transformar o partido totalitário bolchevique, que era o seu, num genuíno partido político. Eles pagaram um alto preço por essa aventura. Em outubro de 1989 o Partido Comunista desintegrou-se e dividiu-se no Partido Socialista Húngaro (MSZP) e no Partido Socialista Húngaro dos Trabalhadores (MSZMP). No fim de 1989, defrontavam-se com sérias dificuldades em definir suas identidades e lugares no novo espectro político do país. Segundo, com pesquisas de opinião realizadas em novembro de 1989, o Partido Socialista obteria 16%, e o Partido Socialista dos Trabalhadores não obteria mais do que 6% nas próximas eleições.

Nas eleições de março e abril de 1990, o Partido Socialista obteve apenas 9% (33 deputados) e o Partido Socialista dos Trabalhadores obteve menos de 4% (nenhum deputado). Isso significa que a elite dirigente comunista não conseguiu preservar sua antiga base de poder, nem criar uma nova base. Seus antigos membros são forçados a procurar apoio político e aliados no novo campo político pluralizado. As pesquisas de opinião mostraram, a uma semana das eleições, que eles iriam votar principalmente em três partidos: o Fórum Democrático Húngaro (MDF), 22,8%, a Aliança dos Democratas Livres (SZDSZ), 18,5%, e o Partido Socialista Húngaro (MSZP), 18,5% (Gallup - Budapeste, 20 de março de 1990). Os que, entre eles, pertencerão a grande bourgeoisie emergente mais cedo ou mais tarde retirarão seu apoio ao MSZP, pois esse partido é uma coalizão de comunistas reformistas e pessoas com idéias social-democratas. Se a situação econômica do país deteriorar-se ainda mais nos próximos meses e anos, ele pode tornar-se um importante partido da esquerda, em luta contra as reformas econômicas liberais radicais propostas pela grande bourgeoisie.

A elite administrativa, que pertenceu à oligarquia comunista, pode ter desempenhado um papel importante no colapso do Partido Comunista. Ela deve ter reconhecido, já em 1988, as oportunidades que se ofereciam de converter suas posições, conexões e qualificação profissional em valioso patrimônio vendável na economia de mercado em expansão. Ela também deve ter percebido que, conduzindo-se com habilidade, ela se beneficiaria das mudanças e da transição, não mais necessitando o Partido Comunista como base de poder, Pelo contrário: a filiação ao Partido tornara-se um perigoso handicap. Juntamente com os empresários independentes, em ascensão, ela apoiará os partidos que propõem um programa radical de ampliação do mercado e privatização21 21 O FKgP, por exemplo, enfatizou em vários documentos que um dos seus objetivos era tornar-se o partido dos empresários independentes ( Magyar Nemzel 19 de dezembro de 1988. Ver também o programa desse partido publicado em Hitel, 2/3 de fevereiro de 1989, pp. 40-1). .

A GRANDE COALIZÃO: BENEFÍCIOS E RISCOS

O que a sociedade ganha ou perde com a emergência dessa grande coalizão, com essa grande bourgeoisie?

Resolveria ela os problemas, analisados nos capítulos 6 e 7, que a elite dirigente foi incapaz de resolver por quatro décadas? A respota é: sim. A emergência dessa coalizão poderia resolver a maior parte daqueles problemas e remover a maioria dos obstáculos às reformas. As novas formas de propriedade e a interação entre elas poderiam tornar-se uma força motora da economia e da vida social em geral. Elas poriam em marcha mecanismos de mercado e outros mecanismos capazes de rotinas perversas de super-regulamentação hiper-racional, acumulação desnecessária de poder e a dominação política da economia e do sistema social. A nova elite poderia ter melhores oportunidades de construir uma base eleitoral limitada, mas sólida. Seria mais qualificada para mobilizar recursos humanos e sociais, para dinamizar a economia, para fazer o sistema funcionar. Poderia encontrar, definir e legitimar seu próprio papel histórico; poderia desenvolver uma poderosa ideologia, e lançar-se à implementação de um programa de reformas radicais sem preocupar-se exageradamente com o próprio poder.

A sociedade como um todo poderia também beneficiar-se desses desenvolvimentos. A existência de uma elite dinâmica, eficiente, competente e orientada com respeito a metas é uma das pré-condições do desenvolvimento econômico e social. Na história européia, grandes transformações sócio-econômicas vincularam-se à emergência de uma nova elite como essa. No presente, de resto, não vejo nenhum outro candidato a esse papel histórico. Esse mesmo processo, contudo, contém sérios riscos e perigos para a sociedade. Novas elites dirigentes e classes dirigentes também podem ser mais eficientes na exploração e opressão das suas sociedades. Segue-se que a sociedade tem de criar instituições que as protejam dessas elites.

A esse respeito, Ivan Szelényi escreveu o seguinte:

"Se eu fosse um ideólogo do movimento operário do Leste Europeu, recomendaria uma estratégia política na qual os trabalhadores tentassem jogar uma contra a outra, a elite de quadros, a tecnocracia com suas aspirações da Nova Classe e uma pequena burguesia com aspirações capitalistas. Inclino-me a pensar que ficaríamos melhor, no Leste Europeu, se nenhuma das 'elites' fosse eliminada pelas outras e se algum tipo de equilíbrio se estabelecesse entre elas" (Szelényi 1986-7:139).

Kolosi refere-se, a propósito, à possibilidade de uma dupla exploração a que podem estar sujeitos os segmentos da população que ocupam as camadas inferiores tanto da hierarquia oficial, burocrática, quanto da hierarquia empresarial (Kolosi 1986; 1987).

Atualmente, os húngaros estão face a duas opções. De um lado, eles podem assistir passivamente à emergência de uma elite dirigente, da nova grande bourgeoisie, e aceitá-la. Nesse caso, todavia, terão de admitir também que sua posição não é defensável e que no novo sistema eles serão explorados. De outro lado, eles poderão organizar suas próprias linhas de defesa e suas instituições protetoras enquanto a grande coalizão está em formação. As características do atual período não são desfavoráveis para a auto-organização e automobilização da sociedade para aquela finalidade. A formação de uma nova elite dirigente é um processo difícil, e pode ser caótico, é um período de transição em que o controle político está enfraquecido. Também a crise econômica tem uns efeitos desestabilizados. As pessoas, e vários grupos e classes, podem fazer bom uso dessa fase de incerteza, desse interregno. Eles podem fortalecer suas autonomias pessoal e comunitária, social e econômica; podem desenvolver suas micro e macro-redes de relações, suas instituições de intermediação de interesses; podem trabalhar para a emergência de uma sociedade civil cada vez mais independente; podem atar as mãos da nova elite ou classe dirigente por meio de reformas constitucionais nesse período de incertezas; podem criar seus próprios sentidos e a sua própria elite política; podem construir suas próprias coalizões, elaborar seus próprios programas de reconstrução nacional22 22 Que eu saiba, a primeira proposta concreta de formar urna coalizão foi feita pelo Partido do Povo Húngaro cm 10 de junho de 1989; foi dirigida ao Partido dos Pequenos Proprietários Independentes (FKgP), ao Fórum Democrático Húngaro (MDF), e ao Partido Democrata Cristão do Povo (KDNP) (Ver Magyar Nemzel de 1/2 de junho de 1989, p. 3). Uma aliança informal foi concluída pela Federação dos Democratas Livres (SZDSZ), a Associação dos Jovens Democratas (FIDESZ), o Partido Social Democrata da Hungria (MSZDP) e pelo FKgP nas semanas que antecederam o referendo de 26 de novembro de 1989. . Em 1988 e 1989 esse processo de auto-organização social já se desenvolvia a pleno vapor na Hungria.

A emergência paralela de uma nova elite eficiente e dinâmica e de uma sociedade bem articulada e autônoma que poderia controlar essa elite seria um cenário relativamente propício para a Hungria. A interação dessas duas forças teria boas probabilidades de pôr em marcha um processo de desenvolvimento de estilo europeu. Tal equilíbrio, porém, seria precário. Na ausência de instituições políticas adequadas, a interação entre a nova burguesia e a sociedade automobilizada poderia resultar numa luta feroz e destrutiva entre a direita e a esquerda.

A NOVA CLASSE POLÍTICA

A ascensão da nova classe empresarial, de uma nova grande bourgeoisie, foi acompanhada, e no futuro pode ser contrabalançada pela ascensão de uma nova elite política, de uma nova classe política. Nos últimos dois anos, um punhado de novos políticos entraram em cena, ostentando as cores dos vários partidos récem-criados. Sua influência cresceu com espantosa rapidez em 1989. Depois das eleições gerais no início de 1990 eles ocuparão os principais postos políticos na Hungria e com o tempo poderão amalgamar-se numa nova classe política.

Os primeiros proto-partidos apareceram em 1987 e 1988. O Fórum Democrático Húngaro (MDF) foi fundado em 27 de setembro de 1987 e desde então tornou-se um dos mais importantes pólos políticos do país, possuindo uma boa organização nacional; é uma aliança de forças democráticas populistas, liberais e cristãs. A Rede de Livres Iniciativas foi fundada em 17 de março de 1988 e tornar-se-ia uma organização guarda-chuva por um vasto arco de grupos reformistas e de oposição. A Aliança dos Jovens Democratas (FIDESZ), fundada em 30 de maio, logo se tornaria uma das organizações alternativas mais militantes, adotando um programa radical de democratização. A Nova Frente de Março (UMF) que começou a operar em setembro de 1988 depois de um ano de negociações, assumiu a tarefa de fazer a mediação entre a elite governante e os vários movimentos alternativos. A Aliança dos Democratas Livres (SZDSZ) foi fundada em 13 de novembro de 1988, combinando, em seu programa, idéias liberais e social-democratas. Em 18 de novembro de 1988, o Partido dos Pequenos Proprietários Independentes (FKgP) reiniciou suas atividades (esse Partido ganhou as eleições de 1945, foi dissolvido pelos comunistas em 1948 e ressurgiu por algumas semanas em 1956. C) Partido Social Democrata Húngaro (MSZDP) foi criado em 10 de janeiro de 1989 e a ele seguiu-se, poucas semanas depois, o Partido do Povo Húngaro (MNP), com um programa agrário radical. O Fórum Independente dos Juristas, fundado em 14 de janeiro, desempenhou um papel crucial em abril de 1989, quando organizou a Mesa Redonda de Oposição. Essa última é uma frouxa coalizão de oito movimentos e partidos alternativos. O Partido Húngaro de Independência (MFP) foi fundado em 18 de março de 1989. Em 17 de março de 1989, teve início a organização do Partido Democrata Cristão do Povo (KDNP), e assim por diante23 23 No campo das organizações de massa e agências não-governamentais, a recuperação parece ser muito mais lenta. Os velhos oligarcas entrincheiraram-se no Conselho Nacional dos Sindicatos (SZOT), no Conselho Nacional das Cooperativas Agrícolas (TOT) no Conselho Nacional das Cooperativas de Consumo (SZOVOSZ), na Organização Nacional dos Comerciantes do Varejo (K1SOSZ), na Organização Nacional de Artesãos (KIOSZ), etc... Em 1987 e 1988 eles começaram a reorganizar ostensivamente suas agências no sentido de torná-las instituições "democráticas", mas de fato obstruíram qualquer mudança real e o ascenso de novas lideranças. .

A influência desses partidos e movimentos foi multiplicada quando formaram a ampla aliança chamada Mesa Redonda de Oposição, em abril de 1989. As chamadas Conversações Trilaterais entre a Mesa Redonda, o Partido Comunista e outros movimentos e organizações levou à assinatura de um acordo em 18 de setembro de 1989 que, depois de aprovado pelo Parlamento em outubro e novembro, aboliu as prerrogativas do Partido Comunista, definiu a Hungria como uma república independente dotada de um sistema parlamentar pluripartidário e lançou as bases das eleições livres do início de 1990.

A assinatura do acordo, porém, assinalou o fim da lua-de-mel da oposição unida. Dois dos oito partidos da Mesa Redonda (a Aliança dos Democratas Livres (SZDSZ) e a Aliança dos Jovens Democratas (FIDESZ) não assinaram o acordo e convocaram um referendo a respeito de algumas cláusulas. A campanha pré-referendo tornou-se uma prova de força entre os partidos do chamado centro nacional e quatro partidos do campo liberal e social-democrata, exacerbada por acusações e ofensas imaturas. A principal linha de clivagem política, que dividia o Partido Comunista e a oposição, passou a dividir duas grandes coalizões informais no campo da oposição. As lutas políticas tornaram-se mais complexas do que antes.

No final da década de 40 e início dos anos 50, era fácil identificar o inimigo: lutar contra o aparato do poder bolchevique era um inequívoco imperativo moral e político-. A tarefa tornou-se mais difícil sob a ditadura suave, esclarecida e paternalista - o "despotismo órfico" - de Kadar; nesse período, centenas de milhares de acordos privados e a retórica encantatória consensual borravam as diferenças sociais e os conflitos de interesses. Em meados dos anos 80, quando o regime de Kadar entrou em crise irreversível, os objetivos de oposição tornaram-se outra vez claros e sem ambigüidade: tratava-se de lutar pelo estabelecimento de uma economia eficiente de mercado e pela criação de uma democracia constitucional. Depois da euforia inicial, no entanto, ficou claro que seria difícil conciliar os dois objetivos. Vários grupos e classes sociais provavelmente lutariam por mais mercado e menos democracia, enquanto outros fariam o oposto. A privatização em larga escala seria bem-vinda por um grupo social e rejeitada por outro. Numa democracia real, a dicotomia simples da sociedade versus poder seria substituída por uma variedade de conflitos sociais, econômicos e políticos.

As linhas de força complicaram-se ainda mais com o aparecimento da nova classe empresarial. Alguns dos partidos da oposição já se haviam dado conta, em meados de 1989, que sua luta estava se tornando uma luta contra sombras; enquanto atacavam a velha elite dirigente aqui, uma nova elite dirigente surgia ali24 24 Ver, por exemplo, o relatório sobre as conversações entre o governo e vários grupos de oposição e partidos em 2 de junho de 1989, quando os representantes do Partido do Povo Húngaro (MNP), da Sociedade Bajcsy-Zsilinsky e da Associação da Alternativa de Esquerda protestaram contra tentativas por parte da velha elite dirigente de converter "seu poder político em poder econômico" ( Magyar Nemzel, 3 de junho de 1989, p. 5. Ver também uma entrevista com J. Moczáry em Magyar Nemzel de 10 de junho de 1989, p. 7). Desde o outono de 1989, a conversão do poder e a ascensão de urna nova classe dirigentes tornaram-se questões candentes e passaram a ser discutidas intensamente na grande mídia. . Nos próximos meses e anos, o conflito de interesses entre a nova classe dirigente e vários grupos sociais e partidos pode explodir num conflito aberto e tornar-se uma das questões políticas cruciais do período.

A cisão ocorrida antes do referendo de 26 de novembro de 1989 entre as duas alianças dentro da oposição não é má em si. A articulação e rearticulação, a conclusão e dissolução de alianças tudo isso é parte necessária e natural da política democrática. A questão está apenas em saber se a presente articulação de partidos reflete diferenças sociais reais e conflitos reais de interesses ou se, pelo contrário, ela obscurece essas diferenças e dificulta a administração desses conflitos. Na Hungria, a segunda hipótese parece prevalecer.

A melhor moldura política para uma evolução relativamente pacífica seria o modelo europeu ocidental, isto é, o rodízio do poder político entre dois grandes partidos ou coalizões, uma à direita e outra à esquerda do centro. Os contornos desse modelo, contudo, não são ainda perceptíveis na Hungria.

Das eleições de 25 de março e 8 de abril surgiu um Parlamento politicamente desequilibrado. Há cinco partidos no centro ou um pouco à direita do centro, c apenas o convalescente Partido Socialista, ainda incapacitado por sua herança comunista, poderia ocupar o vazio na esquerda. Tanto o Fórum Democrático Húngaro, que liderará a coalizão governante, como a Aliança dos Democratas Livres, o mais forte partido de oposição, são partidos "burgueses" no sentido de que suas bases eleitorais encontram-se sobretudo nas camadas ou classes média e média-alta da sociedade (Relatório do Gallup-Rudapeste de 20 de março de 1990). Ambos têm um programa econômico de drástica expansão do mercado e de privatização, do qual as camadas média e média-alta inevitavelmente se beneficiarão mais que as camadas baixas. No momento, não há partidos no Parlamento que assumam a tarefa de representar e proteger os interesses da metade inferior de sociedade, incluindo não apenas os pobres mas também a maioria dos operários e outras categoriais de assalariados. Esse vácuo político, essa falta de um parceiro à esquerda, a ausência de um partido social-democrata ou trabalhista no Parlamento, bem como a ausência de uma rede de sindicatos autênticos e organizações de intermediações de interesses fora do Parlamento, pode causar sérios problemas de funcionamento do novo sistema político Húngaro, c pode forçar a nova elite política a buscar novas soluções.

As atuais alianças parecem frágeis. Elas podem romper-se nos próximos meses ou anos; diferenças políticas podem ficar confusas, novas coalizões podem surgir, programas partidários podem cristalizar-se em orientações conservadoras e liberais, democratas cristãs e social democratas. A nova classe política, bem como a sociedade em seu conjunto, tem que aprender como construir e gerir um sistema democrático. Será uma experiência nova, e envolverá um longo aprendizado. Todos terão de convencer-se de que a luta por uma sociedade livre e próspera é uma tarefa muito mais difícil e complexa do que se imaginava durante os anos de desespero e servidão. A idade de ouro da inocência e da simplicidade passou.

  • * Este é o capítulo 9 do livro East European Alternatives: Are There Any?, de E. Hankiss, a ser publicado brevemente pela Oxford University Press.
  • 9 Ver, por exemplo, o relatório da reunião do Conselho Diretor da Câmara de Economia de 7 de junho de 1989, publicado no Magyar Nemzet de 8 de junho de 1989, p. 3.
  • 12 Esse deslocamento de ênfase, passando das classes trabalhadoras de colarinho azul e .suas conquistas para . uma concepção elitista da classe dirigente e suas conquistas "intelectuais", pode ser percebido também em outros campos. Num discurso na Academia Política em Budapeste, a 5 de setembro: de 1988 Grósz, Primeiro Secretário do Partido Comunista, esboçou um novo "enfoque de classe": "se não confundimos o conceito filosófico de classe operária com suas peculiaridades sociológicas, isto é, se não a consideramos a simples, totalidade da classe operária, então é fácil entender que não há razão para abandonar nossa fé na sua missão histórica". Referindo-se ao Partido Comunista, ele declarou que "no seu caráter, é um partido operário revolucionário; no seu papel social, é uma instituição atual, desempenhando, uma, função social global. No seu modo de existência, é uma formação de intelectuais. Hoje, nossa tarefa principal é devolver ao Partido seu, caráter intelectual". (Népszabadság, 6 de setembro de 1988, p.3, col 4).
  • 21 O FKgP, por exemplo, enfatizou em vários documentos que um dos seus objetivos era tornar-se o partido dos empresários independentes (Magyar Nemzel 19 de dezembro de 1988.
  • Ver também o programa desse partido publicado em Hitel, 2/3 de fevereiro de 1989, pp. 40-1).
  • 22 Que eu saiba, a primeira proposta concreta de formar urna coalizão foi feita pelo Partido do Povo Húngaro cm 10 de junho de 1989; foi dirigida ao Partido dos Pequenos Proprietários Independentes (FKgP), ao Fórum Democrático Húngaro (MDF), e ao Partido Democrata Cristão do Povo (KDNP) (Ver Magyar Nemzel de 1/2 de junho de 1989, p. 3).
  • 24 Ver, por exemplo, o relatório sobre as conversações entre o governo e vários grupos de oposição e partidos em 2 de junho de 1989, quando os representantes do Partido do Povo Húngaro (MNP), da Sociedade Bajcsy-Zsilinsky e da Associação da Alternativa de Esquerda protestaram contra tentativas por parte da velha elite dirigente de converter "seu poder político em poder econômico" (Magyar Nemzel, 3 de junho de 1989, p. 5.
  • Ver também uma entrevista com J. Moczáry em Magyar Nemzel de 10 de junho de 1989, p. 7).
  • *
    Este é o capítulo 9 do livro
    East European Alternatives: Are There Any?, de E. Hankiss, a ser publicado brevemente pela Oxford University Press.
  • **
    Tradução de Regis de Castro Andrade.
  • 1
    As possibilidades de sucesso e as implicações desse cenário foram discutidas por Szego 1983 a, b; Szelényi 1986-7.
  • 2
    Ver também Ludz 1969; Pintner e Rowney 1980; Voslenskii 1984.
  • 3
    Na edição do
    Mayar Nemzet, de 24 de dezembro, os dois conceitos mais freqüentemente mencionados foram os de "coalizão" e "acordo social". Ver as entrevistas e artigos dos quadros partidários e líderes dos principais movimentos alternativos tais como Imre Pozsgay e Rezsö Nyers, Ministros de Estado; István Huszár, Secretário geral do Partido da Frente Patriótica do Povo (HNF); Jenö Andis, chefe do departamento de ideologia do Comitê Central do Partido Comunista; Zoltán Biró, membro do
    presidium do Fórum Democrático Húngaro (MDF); Károly Vigh, presidente da Sociedade Bajcsy - Zsilinszky; Lásló Lengyel, dirigente de um grupo de economistas reformistas radicais; etc...
  • 4
    Ver a seção sobre "A. grande coalizão: ganhos e riscos", abaixo.
  • 5
    Ver, por exemplo, a nova Lei das Companhias (Estatuto 1988:6), votada na sessão de novembro de 1988 do parlamento, e também a nova Lei da Transformação, votada pelo Parlamento na sessão de junho de 1989 (Estatuto 1989: 13), etc.
  • 6
    Ver a seção sobre "Conversão do poder", abaixo.
  • 7
    Ver capítulo, 1 nº 22.
  • 8
    Até outubro de 1989 a quota de divisas era maior: US$ 350 a cada três anos. Isso possibilitou a saída de milhões de húngaros cm viagem de compra a Viena ou Munique, na euforia dessa nova liberdade, em 1988 e no início de 1989, gastando sua quota de US$ 300 a. cada três anos em .um ou dois dias. Com o rápido empobrecimento do país, muito menos pessoas poderiam repetir a aventura, mesmo que a quota não tivesse sido reduzida.
  • 9
    Ver, por exemplo, o relatório da reunião do Conselho Diretor da Câmara de Economia de 7 de junho de 1989, publicado no
    Magyar Nemzet de 8
    de junho de 1989, p. 3.
  • 10
    Seria desnecessário dizer que, tal como estão as coisas na Hungria, a propagação da idéia de igualdade de oportunidades favorece muito mais a legitimação dos privilégios c as oportunidades maiores para a elite do que a criação eventual de oportunidades iguais para todos.
  • 11
    É interessante comparar essa busca de uma nova ideologia pela nova elite dirigente em processo de formação, por um lado, e por outro a teimosa adesão à velha e anacrônica ideologia pelo
    establishment no início da década de 70. Os chamados Novos Mecanismos Econômicos de 1968 introduziram um certo número de reformas radicais: encerrou, o planejamento compulsório que era a base da economia socialista de Estado; Introduziu mecanismos de mercado; reconheceu a importância da moeda, e do capital, e a legitimidade das formas alternativas de propriedade; questionou e tentou limitar o controle estatal da, economia etc... Não obstante,, essas, reformas foram disfarçadas, por uma retórica de "continuidade": os velhos princípios ideológicos foram reconfirmados e tentativas de reajustar a ideologia à nova realidade foram estritamente proibidas. Naquele tempo, a elite dirigente ainda pensava que seria capaz de preservar suas posições de poder intocadas (Szamucly, 1988:39).
  • 12
    Esse deslocamento de ênfase, passando das classes trabalhadoras de colarinho azul e .suas conquistas para . uma concepção elitista da classe dirigente e suas conquistas "intelectuais", pode ser percebido também em outros campos. Num discurso na Academia Política em Budapeste, a 5 de setembro: de 1988 Grósz, Primeiro Secretário do Partido Comunista, esboçou um novo "enfoque de classe": "se não confundimos o conceito filosófico de classe operária com suas peculiaridades sociológicas, isto é, se não a consideramos a simples, totalidade da classe operária, então é fácil entender que não há razão para abandonar nossa fé na sua missão histórica". Referindo-se ao Partido Comunista, ele declarou que "no seu caráter, é um partido operário revolucionário; no seu papel social, é uma instituição atual, desempenhando, uma, função social global. No seu modo de existência, é uma formação de intelectuais. Hoje, nossa tarefa principal é devolver ao Partido seu, caráter intelectual". (
    Népszabadság, 6 de setembro de 1988, p.3, col 4). Na mesma linha, Sándor Balogh,, ex-diretor do Instituto de História do Partido, escreveu, em 1989 que "o Partido dos Trabalhadores Socialistas deve ser intelectualizado; isso diz respeito não apenas aos intelectuais, mas também aos trabalhadores de colarinho azul que adquiriram um certo grau de cultura política" (Balogh, 1989).
  • 13
    A facção dos representantes que não pertencem ao partido e a facção agrária foram fundadas em janeiro de 1989
  • 14
    Similarmente, em 1988, a Associação da Juventude Comunista (KISZ) desistiu de sua pretenção, tão tradicional quanto espúria, de representar toda a população de menos de trinta anos; desde então, está à procura de uma nova identidade entre os novos movimentos de jovens na Hungria. No fim de 1988, já havia vários desses movimentos: a Associação dos Jovens Democratas (FIDESZ), a Associação dos jovens Social Democratas, a Associação dos Escoteiros Húngaros, á Associação Luterana de Jovens etc... Em 27 de novembro de 1988, foi fundado o Conselho Nacional das Associações de Jovens Húngaros (MISZOT), compreendendo 27 Associações com direito a voto e 17 outras afiliadas, e adotando o rodízio da presidência entre elas. Em abril de 1989 a Associação ,dos jovens Comunistas (KISZ) foi transformada na Federação Democrática da Juventude (KEMISZ), que rompeu sua ligação formal com o Partido Comunista. Em meados de junho, a KEMISZ esteve a ponto de cindir-se em duas ou mais associações de jovens.
  • 15
    Depois que o governo suspendeu, em 13 de maio, a construção de parte da represa, empreiteiros privados foram à capital protestar no Parlamento.
  • 16
    Nós detectamos esse tipo de ligações em sete
    boutiques entre dez pesquisadas. Numa pesquisa nacional realizada em março de 1989, László Bruszt descobriu que mais de 50% dos altos burocratas do Partido tinham estreitas ligações familiares com os negócios privados (O relatório de pesquisa será publicado no início de 1990 pelo Instituto de Pesquisa Social de Budapeste).
  • 17
    Em associações de caça, por exemplo.
  • 18
    As oligarquias do Partido e do Estado começaram a estabelecer vínculos com o mercado ou proto-mercado e a tirar lucros dessa vinculação - bem antes da crise atual. Quero referir-me apenas aos negócios corruptos do clã de Brezhnev e das oligarquias de Gierek e de Honecker. Mas é preciso assinalar uma diferença. Nos anos 60 e 70 a oligarquia do partido era a principal beneficiária dessas relações entre as várias esferas. Na grande coalizão emergente, os lucros terão de circular entre quatro parceiros.
  • 19
    Ver seção sobre "A ausência de um impulso motivacional", no capítulo 6 acima.
  • 20
    No final de 1988 havia sinais evidentes de que vários grupos da liderança partidária consideravam essa opção uma real possibilidade. Os quadros partidários da linha dura fundaram a Associação Münnich Ferenc, que declarou sua disposição de proteger as "conquistas socialistas" de todas as maneiras possíveis. Um novo Decreto-Lei emanado do Conselho Presidencial, no início de Novembro de 1988, autorizou o fornecimento de pequenas armas a todos os líderes em importantes funções econômicas, sociais e políticas. Grózs, Primeiro Secretário do Partido Comunista, evocou o espectro da "luta de classes", "contra-revolução", "terror branco" e "ditadura militar" em vários discursos feitos, em novembro e dezembro do mesmo ano. A 4 de junho de 1989 um grupo de membros ortodoxos do Partido fundaram a Plataforma Marxista Unida que passou a atacar energicamente os reformistas, a exigir a demissão de Poszgay, a pedir a proteção da propriedade estatal e assim por diante. Os acontecimentos na China, no início de junho de 1989, podem ter encorajado as forças conservadoras na Hungria, ao passo que a vitória do Solidariedade nas eleições gerais na Polônia pode ter alarmado não apenas essas forças, mas também parte dos
    apparatchiks moderados.
  • 21
    O FKgP, por exemplo, enfatizou em vários documentos que um dos seus objetivos era tornar-se o partido dos empresários independentes (
    Magyar Nemzel 19 de dezembro de 1988. Ver também o programa desse partido publicado em
    Hitel, 2/3 de fevereiro de 1989, pp. 40-1).
  • 22
    Que eu saiba, a primeira proposta concreta de formar urna coalizão foi feita pelo Partido do Povo Húngaro cm 10 de junho de 1989; foi dirigida ao Partido dos Pequenos Proprietários Independentes (FKgP), ao Fórum Democrático Húngaro (MDF), e ao Partido Democrata Cristão do Povo (KDNP) (Ver
    Magyar Nemzel de 1/2 de junho de 1989, p. 3). Uma aliança informal foi concluída pela Federação dos Democratas Livres (SZDSZ), a Associação dos Jovens Democratas (FIDESZ), o Partido Social Democrata da Hungria (MSZDP) e pelo FKgP nas semanas que antecederam o referendo de 26 de novembro de 1989.
  • 23
    No campo das organizações de massa e agências não-governamentais, a recuperação parece ser muito mais lenta. Os velhos oligarcas entrincheiraram-se no Conselho Nacional dos Sindicatos (SZOT), no Conselho Nacional das Cooperativas Agrícolas (TOT) no Conselho Nacional das Cooperativas de Consumo (SZOVOSZ), na Organização Nacional dos Comerciantes do Varejo (K1SOSZ), na Organização Nacional de Artesãos (KIOSZ), etc... Em 1987 e 1988 eles começaram a reorganizar ostensivamente suas agências no sentido de torná-las instituições "democráticas", mas de fato obstruíram qualquer mudança real e o ascenso de novas lideranças.
  • 24
    Ver, por exemplo, o relatório sobre as conversações entre o governo e vários grupos de oposição e partidos em 2 de junho de 1989, quando os representantes do Partido do Povo Húngaro (MNP), da Sociedade Bajcsy-Zsilinsky e da Associação da Alternativa de Esquerda protestaram contra tentativas por parte da velha elite dirigente de converter "seu poder político em poder econômico" (
    Magyar Nemzel, 3 de junho de 1989, p. 5. Ver também uma entrevista com J. Moczáry em
    Magyar Nemzel de 10 de junho de 1989, p. 7). Desde o outono de 1989, a conversão do poder e a ascensão de urna nova classe dirigentes tornaram-se questões candentes e passaram a ser discutidas intensamente na grande mídia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1990
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