Acessibilidade / Reportar erro

Liberalismo internacional e justiça distributiva

International liberalism and distributive justice

Resumos

Três enfoques de justiça distributiva internacional (que exprimem diferentes pressupostos da tradição liberal) representadas na literatura recente são descritos. Examina-se o tema com relação à questão dos direitos humanos.


Three approaches to international distributive justice (which express distinct assumptions of the liberal tradition) represented in recent literature are described. The theme is examined with regard to the question of human rights.


EQÜIDADE COSMOPOLITA

Liberalismo internacional e justiça distributiva* * "International Liberalism and Distributive Justice: a Survey of Recent Thought". World Politics, vol. 51, 1999, n° 2. Tradução de Gabriel Cohn. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada nuna conferência co-promovida pelo Instituto Humphrey da Universidade de Minnesota e pelo Carnegie Council on Ethics and International Affairs.

International liberalism and distributive justice

Charles R. Beitz

Decano para assuntos acadêmicos e professor de Ciência Política no Bowdoin College, EUA

RESUMO

Três enfoques de justiça distributiva internacional (que exprimem diferentes pressupostos da tradição liberal) representadas na literatura recente são descritos. Examina-se o tema com relação à questão dos direitos humanos.

ABSTRACT

Three approaches to international distributive justice (which express distinct assumptions of the liberal tradition) represented in recent literature are described. The theme is examined with regard to the question of human rights.

Registrou-se em anos recentes uma renovação do interesse na tradição liberal do pensamento internacional. Suas fontes são diversas, com especial relevo para a dúvida sobre a adequação do realismo político ao explicar a colaboração internacional e para o exame da idéia neo-kantiana de uma "paz democrática". Manifesta-se ela na formulação de paradigmas analíticos gerais para relações internacionais que são vistos como alternativas para outras construções prevalecentes.1 1 A literatura é vasta e bem conhecida na sua maior parte. Sobre a controvérsia sobre o realismo veja-se David A. Baldwin (ed), Neorealism and Neoliberalism: the Contemporary Debate. New York, Columbia University Press, 1993. Sobre a paz democrática, veja-se o importante artigo em duas partes de Michael W. Doyle, "Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs", Philosophy and Public Affairs, 12, 1983. Para um esforço recente de formulação de uma perspectiva analítica liberal sobre relações internacionais veja-se Andrew Moravcsik, "Taking Preferences Seriously: a Liberal Theory of International Politics", International Organization, 51, 1997.

As diversas formas de liberalismo analítico compartilham a ênfase na estrutura e na cultura política internas dos estados como as determinantes primárias da política externa. Esses paradigmas talvez sejam melhor vistos como tentativas de generalizar as teorias as teorias second-image das causas da guerra estabelecidas por Keneth Waltz há muitos anos.2 2 Keneth N. Waltz, Man, the State, and War: a Theoretical Analysis. New York, Columbia University Press, 1959. O exame das teorias liberais está no capítulo 4. Diversamente, contudo, das teorias liberais anteriores consideradas por Waltz, os autores contemporâneos tenderam a limitar sua atenção à análise e explicação do comportamento internacional; relativamente pouco tiveram a dizer sobre como os princípios e ideais da tradição liberal poderiam guiar a prática internacional, se é que o podem.3 3 Moravcsik (ver nota 1) é claro a respeito disso (p. 548). Isso não significa dizer que a literatura analítica careça de motivação normativa. Veja-se, por exemplo, Robert O. Kehoane, After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy Princeton University Press, 1984, cap. 11; e também "International Liberalism Reconsidered" in John Dunn (ed) The Economic Limits to Modern Politics. Cambridge University Press, 1990. Ver também Michael Doyle, Ways of War and Peace New York, W.W. Norton, 1997.

Isto não é uma crítica. O analítico e o normativo, embora relacionados, são domínios diferentes, e constitui virtude mais do que defeito observar a distinção. O ponto é que a articulação de uma forma defensável de liberalismo que possa guiar a conduta internacional (doravante denominada "liberalismo internacional") é tarefa distinta, com sua própria história e literatura.

Toda forma defensável de liberalismo internacional deveria ter pelo menos quatro elementos: (1) uma concepção dos fundamentos morais de princípios de conduta internacional; (2) consideração pela justiça internacional política, incluindo as prerrogativas do Estado, a autoridade do direito e das instituições internacionais, e os requisitos mínimos para uma participação eqüitativa na governança internacional; (3) consideração pela justiça distributiva, incluindo as responsabilidades distributivas dos estados e a extensão, se for o caso, da busca pela estrutura institucional da ordem internacional de influência sobre a distribuição global de recursos e riqueza. Em conjunto esses elementos deveriam, por sua vez, formar a base de (4) uma doutrina de direitos humanos, entendidos como critérios universais mínimos de legitimidade para instituições sociais.

Nesse ensaio concentro-me no terceiro desses elementos — o da justiça distributiva internacional — e nas suas conseqüências para a quarta — a doutrina dos direitos humanos. O objetivo principal é descrever três enfoques diferentes da justiça distributiva internacional representados na literatura recente de filosofia política. Cada um deles vale-se de uma diferente idéia subjacente característica da tradição liberal. O ensaio conclui com reflexões sobre o que pode ser aprendido sobre justiça distributiva internacional a partir de uma revisão crítica desses enfoques.

O OBJETO DA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA INTERNACIONAL

Por que precisamos de uma concepção de justiça distributiva internacional? A resposta está na necessidade que temos de orientação ao fazer uma diversidade de escolhas cujos resultados afetam o bem-estar de indivíduos localizados em outras sociedades que não as nossas. Incluem elas, por exemplo, escolhas relativas à conduta individual (se é o caso de uma doação, por exemplo); a políticas do nosso próprio governo (sobre ajuda externa ou imigração, por exemplo); às políticas de instituições e regimes internacionais (regras de comércio internacional, política monetária internacional, controles ambientais, padrões trabalhistas, condições relativas à ajuda multilateral e à assistência estrutural); às constituições das instituições internacionais em si próprias e não nas suas políticas; e às políticas de organizações não-governamentais (como a Fundação Ford e a Cruz Vermelha Internacional). Tendo em vista as conseqüências potenciais dessas escolhas é natural que se pergunte pelas considerações morais que deveriam guiar nosso julgamento.

Como sugerem essas ilustrações, seria um equívoco pensar que a justiça distributiva apenas diz respeito a políticas que envolvam transferências diretas de renda. Isso não é menos verdadeiro no domínio internacional do que no interior do Estado. Neste segundo contexto, como sustentou John Rawls, a justiça distributiva refere-se à "estrutura básica" da sociedade: ao modo como as principais instituições sociais — por exemplo, os mercados de capital e trabalho e os direitos transferíveis à propriedade privada — determinam a divisão de vantagens na sociedade.4 4 John Rawls, A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, p. 7. Por um raciocínio análogo poderíamos dizer que uma teoria da justiça distributiva internacional deveria referir-se à estrutura básica da sociedade internacional, vale dizer, às instituições que determinam a distribuição internacional de vantagens. Transferências internacionais (programas de ajuda externa, por exemplo) certamente têm alguma influência, mas conforme qualquer critério isso é insignificante em comparação com outras forças que estão potencialmente abertas à manipulação política, como os fluxos de capital privado, as regras do regime de comércio, ou o sistema de direitos de propriedade internacionalmente reconhecidos. Para ser consistente com a analogia nacional, tudo isso deveria ser considerado parte da "estrutura básica" internacional à qual se aplicam concepções de justiça distributiva internacional.

Sustentam alguns que é preciso optar entre as concepções de justiça internacional que se aplicam a estados e as que se aplicam a pessoas individuais.5 5 Veja-se, por exemplo, a distinção por Bull entre concepções "internacionais", "individuais," e "cosmopolitas", de justiça internacional em The Anarchical Society. London, Macmillan, 2.a ed, 1995. Mas deve-se resistir a essa tentação. Não há inconsistência em sustentar que o que finalmente importa de um ponto de vista moral é o bem-estar de indivíduos mas que princípios de justiça também impõem obrigações e direitos a estados e outros atores institucionais. Pode ser, com efeito, que entidades coletivas tenham os deveres primários de satisfazer direitos de indivíduos e que estes somente (ou principalmente) tenham deveres na sua condição de membros de sociedades. Não há razão conceituai para ter que escolher entre uma teoria cujas unidades sejam unicamente individuais e uma cujas unidades sejam estados.

JUSTIÇA DISTRIBUTIVA INTERNACIONAL: TRÊS PERSPECTIVAS

Há quinze anos ainda se poderia dizer que a justiça distributiva internacional era uma preocupação meramente marginal na teoria política. Hoje o tema constitui um foco significativo de atenção teórica. Para propósitos de exposição (e sem pretender ser exaustivo) podemos distinguir na literatura recente três visões, ou, mais precisamente, três famílias de visões sobre justiça distributiva internacional, todas elas com fontes na tradição liberal. Distinguem-se entre si nos fundamentos que reconhecem para a atenção às características distributivas da estrutura básica da sociedade internacional (e, implicitamente, nos fundamentos que excluem de consideração). Por conveniência denominarei as alternativas "liberalismo social", "liberalismo de laissez faire" e "liberalismo cosmopolita", com a advertência de que esses nomes somente servem como rótulos e não têm peso teórico.

LIBERALISMO SOCIAL

O liberalismo social é movido por uma concepção em dois níveis da sociedade internacional, na qual há uma divisão de trabalho moral entre o nível nacional e o internacional: as sociedades no nível nacional têm responsabilidade primária pelo bem-estar do seu povo, enquanto a comunidade internacional serve principalmente para estabelecer e manter sustentação para que possam desenvolver-se e florescer as sociedades nacionais. Os agentes da justiça internacional são estados ou sociedades, não pessoas individuais (por um lado) ou atores transnacionais (pelo outro).

David Miller, John Rawls, and John Vincent, entre outros, formularam concepções desse tipo6 6 David Miller, On Nationality. Oxford , Clarendon Press, 1995; John Rawls, "The Law of Peoples" em Stephen Shute and Susan Hurley (eds) On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures 1993. New York, Basic Books, 1993; John Vincent, Human Rights and International Relations. Cambridge University Press, 1986. Embora somente se refira de passagem à justiça distributiva internacional, Yael Tamir oferece comentários interessantes em Liberal Nationalism Princeton University Press, 1993 Embora se distingam em aspectos importantes essas concepções têm em comum dois elementos centrais. Em primeiro lugar, elas sustentam que todas as sociedades deveriam respeitar direitos humanos básicos, concebidos como padrões universais mínimos para instituições sociais nacionais que se aplicam para além de variações quanto às culturas e as concepções de justiça social. (Há contudo alguma divergência no tocante a que direitos contam como direitos "humanos".) Em segundo lugar, elas sustentam que a responsabilidade primária para satisfazer esses direitos repousa no próprio povo e no governo de uma sociedade. Somente circunstâncias especiais justificam a responsabilidade de contribuições externas. No exemplo dado por Miller isso ocorre quando há níveis extremos de deprivação que o governo local não tem como aliviar e quando governos estrangeiros ou outros atores institucionais podem fazê-lo eficazmente sem um sacrifício moralmente significativo.7 7 Miller (ver nota 6 ), pp. 75-77, 107-108. Todas as formas de liberalismo precisam especificar algum limiar desse tipo, mas as visões divergem quanto ao seu caráter e sua severidade. Compare-se, por exemplo, as passagens citadas de Miller com Vincent, p. 143-150; and Rawls, p. 76-77.

Concentro-me aqui na forma de liberalismo social proposta por John Rawls no seu ensaio "The Law of Peoples", porque este é o exemplo mais cuidadosamente elaborado de liberalismo social disponível. Representa uma elaboração fascinante, original e talvez surpreendente das breves observações sobre justiça internacional nos escritos anteriores de Rawls, e ilustra com especial clareza a convicção, comum no liberalismo social, de que o Estado tem uma importância especial da qual não é possível dar conta apenas em termos instrumentais.8 8 Deixo de lado outras partes de "The Law of Peoples". Noto também que Rawls também formulou sua teoria com mais minúcias numa monografia com o mesmo título (em vias de publicação). Cumpre acrescentar, no entanto, que a visão de Rawls tem fundamentos diferentes dos das versões do liberalismo social defendidas por autores como David Miller e Michael Walzer, que caracterizam suas teorias como "particularista" ou "pluralista". Muito poderia ser dito das questões filosóficas envolvidas nessas caracterizações — tanto que parece melhor deixar isso para outra ocasião.

Sumário de "The Law of Peoples" de John Rawls

A visão de Rawls é mais complicada do que poderia sugerir a modesta extensão do seu ensaio, e desafia um sumário simples. Os pontos principais para os presentes propósitos concernem ao caráter e à derivação do direito das gentes e ao sentido em que ele respeita o pluralismo das culturas (item l); ao seu conteúdo, em particular no tocante às responsabilidades distributivas dos estados (item 2); e à natureza e ao conteúdo dos direitos humanos (item 3).

Uma sociedade liberal requer princípios para guiar a condução da sua política externa, incluindo suas relações com outros estados, suas contribuições na elaboração e na interpretação do direito internacional, e suas visões quanto à estrutura e as políticas de organizações internacionais. O direito das gentes oferece esses princípios, que tanto orientam como limitam uma concepção do seu interesse nacional por uma sociedade liberal. O direito das gentes está para os negócios exteriores de uma sociedade desse tipo como uma concepção de justiça social está para a sua vida interna. Rawls trata a derivação do direito das gentes como uma extensão da doutrina do contrato social que empregou em obras anteriores para determinar princípios de justiça para a sociedade nacional, com os "povos" agora ocupando o lugar de pessoas. Princípios de um direito das gentes resultam de um acordo hipotético entre representantes de vários povos que se encontram naquilo que Rawls caracteriza como "posição original"** ** Na teoria de Rawls a "posição original" designa uma situação em que indivíduos racionais escolhem princípios básicos de justiça que regeriam a sociedade em que iriam viver, e o fazem cobertos por um "véu de ignorância", sem nada conhecer acerca das qualidades e recursos pessoais que lhes facultariam ocupar posições nessa sociedade. (Nota do tradutor) . O problema central do direito das gentes é análogo ao problema central da justiça interna. O fator de controle em ambos os casos é o pluralismo: de crenças sobre o bem individual na sociedade nacional e de concepções culturais e religiosas sobre a boa sociedade no domínio internacional. Rawls modela o tipo de pluralismo presente em relações internacionais mediante a inclusão na posição original de representantes tanto de sociedades liberais quanto de "hierárquicas", desde que em cada caso sejam "bem ordenadas".9 9 Em Rawls a idéia de uma sociedade hierárquica bem ordenada visa representar sociedades baseadas em doutrinas "abrangentes" (vale dizer, religiosas). Uma sociedade desse tipo, embora não liberal nem democrática, busca o bem comum do seu povo e respeita direitos humanos básicos. Uma doutrina liberal do direito das gentes que respeite o fato do pluralismo consistiria em princípios aceitáveis tanto do ponto de vista de sociedades liberais quanto de sociedades hierárquicas decentes (bem ordenadas), como estão representadas na posição original.

O direito das gentes divide-se em teoria ideal e não-ideal. A teoria ideal consiste em princípios que se aplicam a uma sociedade política mundial idealizada constituída por sociedades nacionais bem ordenadas, na qual os princípios são inteiramente obedecidos e na qual todas as sociedades operam em condições de fundo que favorecem instituições justas (ou hierárquicas decentes). Rawls argumenta que os representantes de uma posição original internacional concordariam com uma lista de princípios familiar para constituir o direito das gentes. Esses princípios cuidariam, por exemplo, da igualdade legal dos estados, de um direito qualificado contra intervenção, do direito de ir à guerra em defesa própria, e da obrigação de respeitar tratados. Incluiriam também um princípio de respeito pelos direitos humanos — que definem um padrão mínimo de legitimidade para todos os regimes10 10 Para Rawls o direito das gentes é prioritário em relação à justiça interna na medida em que limita a autoridade de estados individuais, não apenas nas suas relações externas mas também, pela exigência de direitos humanos, no tocante ao seu próprio povo. Os direitos humanos, portanto, estabelecem os limites do pluralismo aceitável na sociedade internacional. — e "critérios de eqüidade para o comércio", "provisões para assistência mútua em períodos de fome e seca" e "provisões que assegurem que em todas as sociedades razoavelmente desenvolvidas as necessidades básicas dos povos sejam atendidas"11 11 Essa passagem no texto de Rawls refere-se explicitamente aos princípios que seriam aceitos pelos representantes de sociedades liberais. Mais adiante ele sustenta que os mesmos princípios seriam aceitos por representantes de sociedades bem ordenadas não-liberais (pp. 64-65). . Esses princípios da teoria ideal aplicam-se à conduta no mundo não-ideal de duas maneiras: pela regulação das relações entre sociedades liberais e hierárquicas bem ordenadas (os "membros grados de uma sociedade dos povos razoável") e pelo estabelecimento de metas a serem perseguidas por essas sociedades nas suas relações com sociedades que não são bem ordenadas.12 12 Destas há duas espécies não exclusivas mutuamente: estados "fora da lei", que não respeitam o direito das gentes (por exemplo, ao não respeitarem a integridade de outros estados ou os direitos humanos de seus próprios povos) e sociedades sujeitas a condições econômicas e sociais desfavoráveis, que por essa razão são incapazes de sustentar instituições bem ordenadas. Dessas metas a mais geral embora nem sempre a mais urgente consiste em "levar todas as sociedades a, dado o caso, honrar o direito das gentes e a serem membros integrais e auto-suficientes da sociedade de povos bem ordenados, assegurando assim os direitos humanos em toda parte". Em particular, "cada sociedade atualmente afetada por condições desfavoráveis deveria ser elevada a, ou ajudada a, condições que tornam possível uma sociedade bem ordenada. Esse requisito é a fonte das obrigações distributivas internacionais de sociedades ricas: elas devem fazer o possível para ajudar sociedades sujeitas a condições desfavoráveis a desenvolver instituições capazes de satisfazer os direitos humanos de seus próprios povos e de satisfazer suas necessidades básicas.

A visão de Rawls diverge em pelo menos três maneiras daquilo que poderia ser considerada a visão padrão dos direitos humanos.13 13 Para um exemplo recente da visão padrão, veja-se Alan Gewirth, The Community of Rights. Chicago, University of Chicago Press, 1996. Em primeiro lugar, Rawls não sustenta que se possa atribuir direitos humanos aos seres humanos "como tais" ou em virtude de características que todos os seres humanos têm em comum. Em contraste com isso eles exprimem "um padrão mínimo de instituições políticas bem ordenadas" necessário para a admissão de uma sociedade como "membro grado de uma sociedade política de povos justa". Em segundo lugar, à diferença de direitos morais comuns, os direitos humanos não justificam por si mesmos reivindicações individuais recíprocas. Ao invés disso, constituem uma classe especial de direitos, concebidos para o propósito especial de especificar condições necessárias para a legitimidade internacional de cada regime. Sua satisfação é "suficiente para excluir a intervenção justificada e pela força por outros povos".14 14 Rawls sustenta neste ponto que pode haver um direito de intervenção pela força, por exemplo, quando é nescessária para defender regimes bem ordenados de regimes "fora da lei" ou ("em casos graves") para defender indivíduos sujeitos a regimes fora da lei que ameaçam seus direitos humanos (p.73). Finalmente, Rawls não considera todos os direitos enunciados na Declaração Universal de 1948 como "propriamente direitos humanos". Ele inclui o que é geralmente denominado direitos da pessoa (por exemplo, os direitos à vida, à liberdade e à segurança, e aqueles necessários para implementar esses direitos — basicamente aqueles reco nhecidos nos artigos 13-18 da Declaração e os diretos derivados contra o genocídio e o apartheid). Mas ele exclui direitos econômicos e políticos como a liberdade de expressão distinguida da liberdade de pensamento (artigo 19), o governo democrático (artigo 21) e — importante para os presentes propósitos — o direito a um padrão de vida adequado (artigo 25).15 15 Mas Rawls também sustenta que todos os regimes bem ordenados deveriam visar satisfazer as necessidades básicas dos seus povos e que portanto os direitos à liberdade e à segurança implicam direitos à subsistência. Embora isso pareça correto como um questão de teoria política, há uma certa tensão relativamente à linguagem da Declaração, que claramente pressupõe uma distinção entre liberdade e bem-estar. Sobre a Declaração de 1948 veja-se Ian Brownlie (ed) Basic Documents in International Law. Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 255-261. Enquanto os "direitos humanos propriamente ditos" seriam respeitados por qualquer sociedade decente, os outros direitos somente enunciam "aspirações liberais", e portanto não podem ser tidas por direitos humanos genuínos.16 16 Veja-se Fernando R. Teson, "The Rawlsian Theory of International Law" , Ethics and International Affairs 9, 1995; e Peter Jones, "International Human Rights: Philosophical or Political?" m Simon Caney, David George and Peter Jones (eds.), National Rights, international Obligations. Boulder, Westview, 1996.

Deveres de assistência ou deveres de justiça?

A teoria de Rawls do direito das gentes representa um importante avanço em relação às suas breves observações sobre justiça internacional em A Theory of Justice, em particular no seu reconhecimento de deveres de assistência que requerem um nível de transferências internacionais significativamente mais elevado do que os que se dão atualmente. Entretanto, esses deveres não são conseqüências de qualquer princípio de justiça. Rawls sustenta que a concepção relativamente igualitária de justiça distributiva que caracteriza a teoria política liberal — e encontrada em uma forma (o "princípio da diferença", segundo o qual as desigualdades econômicas e sociais devem beneficiar mais os que se encontram nas posições mais desvantajosas) em suas outras obras — não tem paralelo internacional: embora ele pense que o dever de assistência permitiria alcançar muitos dos mesmos resultados, não há requisito geral no sentido da redução de desigualdades entre indivíduos que vivam em sociedades com acesso diferente a recursos naturais17 17 Rawls sugere numa nota de rodapé que a justiça internacional poderia exigir a redistriuição de benefícios derivados da presença desigual de recursos. Este ponto não é desenvolvido no texto e não há fundamentação clara para esse requisito na teoria. ou humanos, que têm histórias diferentes ou culturas diferentes. A rigor, não existem deveres internacionais de justiça distributiva.18 18 Essa idéia é compartilhada por outros liberais sociais. Nesses termos escreve Michael Walzer: "Estou inclinado a pensar que, pelo menos por enquanto, princípios morais comuns sobre tratamento humano e ajuda mútua são mais eficientes do que qualquer formulação específica de justiça distributiva internacional". Ver "Response", em David Miller and Michael Walzer, Pluralism, Justice and Equality. Oxford University Press, 1995. É do maior interesse ver por que isso ocorre.

Há pelo menos três pontos diferentes. Em primeiro lugar, as circunstâncias das relações internacionais distinguem-se daquelas que são típicas das sociedades para as quais foi formulado o princípio da diferença, e não temos razão para pensar que o principio que seria apropriado num conjunto de circunstâncias também seria apropriado em outro.19 19 Isso é assinalado várias vezes por Rawls em "The Law of Peoples" (por exemplo, pp. 46-47, 48, 65-66 e especialmente 75-76, Em segundo lugar, nem todas as sociedades bem ordenadas aceitariam qualquer princípio distributivo especificamente liberal para o caso internacional; com efeito, por hipótese as sociedades hierárquicas decentes, bem ordenadas, rejeitam quaisquer princípios desse tipo20 20 Como observa Rawls no mesmo ensaio (p. 75). . Finalmente, os principais empecilhos para o desenvolvimento econômico e social de uma sociedade mais provavelmente se encontrarão na cultura pública e nas tradições religiosas do que no seu fundo de recursos ou na sua posição na economia política internacional;21 21 Embora essa observação seja feita por Rawls no ensaio citado no contexto de uma discussão dirigida para demostrar porque não há análogo internacional para o princípio da diferença, ela possivelmente não vise explicar porque isso deveria ser assim. Discuto a relevância da observação mais abaixo. as responsabilidades distributivas de estranhos para com membros de sociedades menos favorecidas devem portanto ser complementares às responsabilidades dos membros daquelas sociedades mesmas para alcançar seu próprio aperfeiçoamento.

Cada ponto requer elaboração. Começando com o primeiro: em grandes linhas, o argumento a favor de um princípio de justiça distributiva global é que a sociedade internacional atual assemelha-se à sua análoga doméstica naqueles traços que são relevantes para a justificação de princípios igualitários de justiça distributiva.22 22 Argumentos a favor de um princípio da diferença global são desenvolvidos em Charles Beitz, Political Theory and International Relations. Princeton University Press, 1979, pp. 143-153 e em Thomas Pogge, Realizing Rawls. Ithaca, NY, Cornell University Press, 1989, capítulos 5 e 6. Entre eles os mais importantes são a crescente integração econômica, que se reflete em mercados globais de bens, capital e trabalho; instituições e regimes internacionais e regionais cujas políticas e atividades têm conseqüências para o bem-estar humano em escala mundial; e uma emergente cultura e sociedade civil que se sobrepõem mas não suplantam culturas locais e que geram comunidades multinacionais de interesse, lealdade e valor. Na visão de Rawls, contudo, as características essenciais da sociedade nacional ("um sistema eqüitativo de cooperação")23 23 John Rawls, Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 15 estendem-se para além da idéia de uma divisão de trabalho inscrita numa estrutura legal e social. Dois traços adicionais são essenciais: as instituições sociais incorporam uma norma de reciprocidade, tornando razoável a distribuição dos benefícios da cooperação considerando-se as contribuições e necessidades dos participantes; e a cooperação social é regulada por regras publicamente reconhecidas e aceitas por todos, promovendo a estabilização das instituições e da legislação mediante uma aceitação compartilhada dos seus princípios fundamentais (existe, num certo sentido, uma vontade geral). De acordo com Rawls nenhum desses traços encontra-se nas relações internacionais.

Quem estiver familiarizado com a literatura filosófica reconhecerá que essas posições suscitam grandes questões. Comentemos brevemente cada ponto. Em primeiro lugar, a questão da reciprocidade é complicada. A questão não é se a reciprocidade existe no status quo mas se uma reciprocidade razoável poderia existir; se a resposta é afirmativa no caso nacional, fica difícil ver porque não seria a mesma no caso internacional. Em segundo lugar, no tocante à estabilidade, deve-se considerar por que parece menos provável no caso global do que no caso nacional que uma aceitação compartilhada de princípios básicos possa sustentar políticas distributivas justas. Poderia parecer que a capacidade de manter instituições justas diminua com a distância. Mas, por que ver nisso uma condição limite da natureza humana e não dimensão historicamente variável do comportamento social humano — que é o que a experiência no interior do Estado sugere?24 24 Recorde-se a advertência de Rousseau no Contrato Social: Os limites do possível em questões morais são menos apertados do que pensamos. É nossa fraqueza, são nossos vícios e nossos preconceitos que os estreitam".

O segundo argumento de Rawls é que não haveria concordância com qualquer princípio especificamente liberal de justiça distributiva inter nacional entre povos bem ordenados. Ele não oferece explicação além da observação de que sociedades hierárquicas decentes não aceitariam qualquer princípio liberal de justiça distributiva doméstica. Mas por que diferenças sobre justiça distributiva doméstica ou diferenças nas concepções subjacentes de legitimidade política ou do bem social deveriam restringir o acordo no caso internacional?25 25 Rawls admite que em outras questões as partes poderiam aplicar um princípio diferente no caso internacional do que fariam no caso doméstico. Por exemplo, ao explicar porque sociedades hierárquicas insistiriam em um tratamento eqüitativo na posição original internacional embora no plano interno tenham instituições não igualitárias, ele escreve: "Embora uma sociedade careça de igualdade básica, não é insensato para essa sociedade a insistência na igualdade ao fazer reivindicações contra outras sociedades" (p. 65). Quando consideramos o assunto da perspectiva da posição original internacional — na qual as partes cuidam do bem-estar dos seus povos e ignoram a riqueza econômica das suas sociedades — parece que as partes têm boa razão para aceitar um princípio distributivo igualitário, que se aplica a povos e não a indivíduos, sejam quais forem as suas diferenças no tocante à justiça no plano interno.

Em terceiro lugar, há a questão dos empecilhos ao desenvolvimento de instituições justas ou decentes em sociedades pobres. Escreve Rawls:

Muitas sociedades com condições desfavoráveis não carecem de recursos [naturais]. Sociedades bem ordenadas podem subsistir com muito pouco (...) Os grandes males sociais nas sociedades mais pobres costumam ser governo opressivo e elites corruptas; a sujeição das mulheres encorajada por religião não razoável, com a resultante superpopulação relativamente ao que a economia da sociedade pode decentemente sustentar. Talvez não haja em lugar algum do mundo uma sociedade cujo povo, desde que governado de modo razoável e racional e seu número fosse sensatamente ajustado à sua economia e aos seus recursos, não pudesse ter uma vida decente e digna de ser vivida.26 26 John Rawls, "The Law of Peoples", p. 77. De modo análogo, John Stuart Mill sustentava que um povo somente podia esperar sustentar instituições livres se lutasse por alcançar essas instituições para si próprio. Veja-se J.S. Mill, "A Few Words on Non-intervention", em Dissertations and Discussions: Political, Philosophical, and Historical. Londres, Longmans, Green, Reader, and Dyer, 1867.

Rawls não diz que essas considerações depõem contra um princípio distributivo global ou em favor de um dever de assistência. Ao invés disso a inferência é que "a obrigação das sociedades mais ricas de ajudar no esforço para retificar as coisas de modo algum fica diminuída, mas apenas se torna mais difícil".

Entretanto, é fácil ver como esse quadro poderia influenciar o pensamento sobre justiça distributiva global: se "os grandes males sociais" que impedem o progresso social são basicamente internos e não-econômicos, então um princípio de justiça internacional seria supérfluo.

A questão empírica sobre a importância da dotação de recursos naturais para o bem-estar social permanece não resolvida; discuto-a brevemente mais adiante. Neste ponto é importante ver que "condições desfavoráveis" podem não ser uma questão puramente interna mesmo numa sociedade que não carece de recursos. Desde logo, o envolvimento de uma sociedade na economia política mundial, incluindo suas relações financeiras e comerciais, pode, pelos seus efeitos sociais, políticos e econômicos internos agravar mais do que aliviar as condições que impedem o aperfeiçoamento da sociedade. Se a integração na economia mundial conduz à redução da corrupção ou à mitigação da pobreza depende de cada caso.27 27 Veja-se Andrew Hurrell and Ngaire Woods, "Globalization and Inequality", Millenium 24, 1995; e Stephen Haggard and Sylvia Maxfield, "The Political Economy of Financial Internationalization in the Developing World" in Robert O. Kehoane and Helen V. Milner (eds.) Internationalization and Domestic Politics. Cambridge University Press, 1996. Em segundo lugar, é preciso reconhecer a importância da emergente rede de instituições internacionais que organiza e regula a economia política mundial — por exemplo, o regime de comércio internacional, a estrutura financeira e bancária internacional, e a perspectiva de um regime climático mundial. Essas instituições não são adequadamente compreendidas quando vistas como esquemas voluntários de benefício mútuo; suas políticas têm conseqüências para a distribuição global de benefícios e encargos e, particularmente da perspectiva de sociedades pobres, a participação nos únicos termos disponíveis pode ser praticamente inescapável. Rawls reconhece que a teoria ideal do direito das gentes deveria incluir "padrões de eqüidade para o comércio e outros arranjos cooperativos", mas essas observações sugerem que padrões para a estrutura global poderiam ser compreendidas de modo mais preciso como princípios de justiça.

A teoria de Rawls ilustra com especial clareza o modo como o liberalismo social incorpora uma concepção em dois níveis da sociedade internacional. Há uma divisão de trabalho entre os níveis interno e internacional, ficando com os estados a responsabilidade primária pelo bem-estar do seu povo, com a comunidade internacional mantendo as condições de fundo que permitem a sociedades justas ou decentes desenvolverem-se e florescerem. A responsabilidade internacional consiste em encorajar o florescimento de sociedades, não de indivíduos. Embora a idéia de direitos humanos conduza a padrões mínimos transculturais para instituições nacionais, mesmo num mundo ideal provavelmente haveria marcadas variações entre sociedades nos níveis efetivos de bem-estar e na extensão da desigualdade interna. Desde que essas desigualdades sejam consistentes com respeito aos direitos humanos o liberalismo social não terá objeção. A igualdade a que aspira no nível global é uma igualdade política de povos (justos ou decentes) organizados em estados; não é em sentido algum uma igualdade de pessoas.28 28 Há esclarecedoras discussões da teoria internacional de Rawls em Stanley Hoffmann, "Dreams of a Just World Order", uma resenha de On Human Rights: the Oxford Amnesty Lectures 1993 em New York Review of Books, 42, November 2, 1995, e em Darrel Moellendorf, "Constrcting the Law of Peoples", Pacific Philosophical Quarterly, 77, 1996.

LIBERALISMO DE LAISSEZ-FAIRE

O liberalismo de laissez-faire, às vezes identificado com o libertarianismo, sustenta que a distribuição é justa quando se chegou a ela a partir de uma distribuição anterior que também foi justa, mediante uma série de transações que não violaram os direitos de ninguém. Robert Nozick caracteriza visões desse tipo como teorias "históricas", porque seu argumento é que a justiça de uma distribuição depende de como ela surgiu.29 29 Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia. New York, Basic Books, 1974. Teorias desse tipo tipicamente sustentam que considerações de liberdade depõem contra a maioria das formas de intervenção política nos processos de mercado, exceto quando necessárias para remediar os efeitos de violações prévias da liberdade. As teorias que passarei a considerar aplicam esse princípio ao mundo em seu conjunto. Seu potencial redistributivo deriva da expectativa de que a intervenção em mercados possa ser necessária para retificar injustiças na repartição global prévia do benefício auferido dos recursos da Terra.

A estrutura das teorias de laissez-faire

Grande parte da disputa no interior do liberalismo de laissez faire e sobre ele envolve a definição e justificação dos direitos que as transações de mercado deveriam respeitar. Se ocorreu ou não que uma distribuição se originou num processo que respeitou os direitos de todos é contudo apenas um dos fatores que determinam se a distribuição é justa. O outro fator é a justiça da distribuição precedente.E evidentemente o mesmo pode ser dito daquela distribuição, e da que a precedeu, e assim por diante, pelo caminho todo até o início, quando coisas não possuídas — vale dizer, recursos ocorrendo na natureza — foram inicialmente apropriadas para uso privado.

Os liberais laissez-faire estão divididos na questão de se a injustiça na apropriação inicial justifica intervenção corretora subseqüente pelo Estado. Teóricos do status quo sustentam que quaisquer injustiças que possam ter ocorrido na primeira apropriação terão sido corrigidas subseqüentemente, talvez como resultado de muitas gerações de crescimento e inovação. Não há portanto argumento a favor da redistribuição para retificar desigualdades quanto a benefícios derivados de recursos.30 30 Nozick é o mais conhecido defensor contemporâneo dessa visão. Em contraste, os redistributivistas laissez-faire argumentam que poderá ser necessária a intervenção do Estado para retificar os efeitos de injustiças na anterior apropriação de coisas não possuídas, seja mediante a redistribuição do controle sobre recursos ou pela compensação daqueles que têm menos com transferências daqueles que têm mais.

A seguir considerarei a variante redistributivista, por várias razões. Em primeiro lugar, ela me parece a forma mais plausível de teoria laissez-faire.31 31 Abro mão de uma explicação. Há uma boa discussão em G. A. Cohen, Self-ownership, Freedom, and Equality. Cambridge University Press, 1995, capítulos 3 e 4. Em segundo lugar, ela está representada de modo interessante na literatura recente ssobre justiça internacional, principalmente na obra de Hillel Steiner.32 32 Hillel Steiner, An Essay on Rights. Oxford, Blackwell, 1994. Também "Territorial Justice", em Caney, George, and Jones, cit. Finalmente, o redistributivismo laissez-faire parece especialmente pertinente a questões de justiça ambiental global que surgiram recentemente perante a comunidade internacional.33 33 Veja-se, por exemplo. Stephen Luper-Foy, "Justice and Natural Resources". Environmental Values, 1, 1992

Quando é cometida uma injustiça (se é que isso ocorre) na apropriação de coisa não possuída? A maioria dos teóricos sustenta que a apropriação inicial deveria ser limitada por algum tipo de princípio de igualdade.34 34 Isto é matéria de controvérsia. É relevante a restrição lockeana de que a apropriação de coisas não possuídas deveria deixar "o suficiente, e tão bom (...) em comum para outros". Veja-se Locke, Two Treatises of Government, edição de Peter Lasslet, Cambridge University Press, 2.a edição, 1967, II, seção 27. Para um comentário, veja-se A. John Simmons, The Lockean Theory of Rights, Princeton University Press, 1992, pp. 288-298 e as referências ali citadas. Steiner argumenta, por exemplo, que pessoas que se apropriam de mais do que uma parcela igual "impõem uma distribuição injusta a alguns ou a todos aqueles que se apropriaram de menos do que uma porção igual". Há, portanto, uma exigência de compensação. Isso se transfere para um mundo em que não haja mais coisas não possuídas: num "mundo inteiramente apropriado, o direito original de cada pessoa a uma porção igual de coisas inicialmente não possuídas representa um direito a uma parcela igual do valor total dessas coisas", afirma Steiner. Claro que qualquer indivíduo que se apropria de mais do que uma parcela eqüitativa não tem contrapartida exata num indivíduo pessoalmente identificável que sofre a desvantagem resultante. Em vista disso Steiner sugere que se imagine um "fundo de compensação", que funcionaria com pagamentos por sobre-apropriadores e retiradas apor sub-apropriadores, com as somas devidas e pagáveis calculadas em relação ao valor de uma parcela igual.

Vários traços da visão de Steiner são notáveis. Em primeiro lugar, dado que cada adulto em vida tem direito a uma parcela igual de recursos em qualquer momento, o valor de uma parcela igual flutua com o tamanho da população. Há portanto uma necessidade mais ou menos contínua de redistribuição compensatória. Em segundo lugar, conforme essa visão não existe direito à herança; quando uma pessoa morre suas posses tornam-se não possuídas e revertem ao fundo de compensação. Finalmente, "informação genética por linha germinativa" é tratada como um recurso natural que também é não possuído (incluindo não somente informação genética sobre outras espécies mas também a "informação por linha germinativa de nossos pais" que foi usada "para nos produzir").35 35 A informação genética por linha germinativa humana não deve ser confundida com habilidade como usualmente a entendemos, porque a habilidade depende, não apenas do fundo genético mas também do que poderia ser chamado, em termos amplos, "criação". Assim como ocorre com qualquer outro recurso natural, a apropriação (ou uso) da coisa não possuída gera um débito no fundo de compensação.

Liberalismo de laissez-faire em perspectiva global

Deveria uma teoria distributiva histórica da justiça distributiva reconhecer as fronteiras do Estado (ou quaisquer outras fronteiras políticas) como tendo significação básica? Não parece ser o caso. Se os direitos iniciais pertencem igualmente a todos os seres humanos e se aplicam a todos os recursos naturais, fica difícil ver por que as fronteiras políticas deveriam afetar a validade ou a força das reivindicações de uma pessoa. Fronteiras podem ter alguma significação, claro. Podem, por exemplo, ser entendidas como delimitando agregados territoriais compostos de pedaços de território (e recursos naturais pertinentes) inicialmente adquiridos por vias legítimas por indivíduos e juntadas por acordo.36 36 Locke pode ter mantido uma concepção desse tipo (II, seções 117, 120-121) Essa seria uma maneira de justificar a autoridade do Estado sobre seu território. Mas a autoridade do Estado não se estenderia além dos direitos dos seus fundadores originais. Desse modo, se houvesse uma injustiça no estágio da apropriação inicial, a injustiça lançaria sua sombra sobre os direitos do Estado. Pelo menos nesse ponto, portanto, a significação das fronteiras do Estado seria derivada mais do que básica. E os direitos do Estado sobre um território seriam limitados do mesmo modo que os direitos dos seus membros.

As conseqüências gerais para a justiça internacional são diretas, pelo menos em princípio: se o direito igual a coisas previamente não possuídas se aplica globalmente, então o "fundo de compensação" deveria ser concebido como um fundo global, obtendo seus rendimentos e efetuando pagamentos de e para indivíduos onde quer que estejam, e apoiando-se em estados - caso o faça - somente como agentes do seu povo. Mas, se as conseqüências são diretas em princípio, não é fácil conceber sua implementação. Há dois problemas centrais: como estabelecer o valor de uma parcela igual de recursos naturais e como administrar o sistema de transferências necessário para compensar desigualdades. Steiner não diz muito sobre esses pontos, exceto sugerir que "os estados devem pagar quotas". A idéia parece ser que uma autoridade global estabeleceria e coletaria uma taxa sobre os recursos de estados que consumissem mais do que sua parcela eqüitativa (concebida como o total das parcelas individuais de seus povos) e pagaria os rendimentos aos estados que consumissem menos.

Finalmente, uma nota sobre direitos humanos nessa teoria. A visão de Steiner é mais ortodoxa do que a de Rawls em pelo menos dois aspectos. Para Steiner, os direitos humanos pertencem aos seres humanos "como tais", e eles dão sustentação a reivindicações contra outros cidadãos e instituições nacionais, assim como contra indivíduos e grupos além das fronteiras do Estado. Segue-se isso da idéia de que os direitos representam titulações naturais mais do que convencionais. Entretanto, o escopo dos direitos humanos teria que ser consideravelmente restringido; por exemplo, como Steiner diz muito pouco sobre estruturas constitucionais ou políticas, inexiste base clara na sua teoria para direitos à participação política. Com mais peso para os nossos propósitos, não há direito humano à subsistência ou a qualquer nível mínimo específico de bem-estar, embora, é claro, o direito a uma parcela igual dos recursos mundiais possa tornar supérfluo esse direito. Parece portanto que os direitos humanos reconhecidos pelo liberalismo de laissez-faire constituem apenas um pequeno subconjunto dos direitos da Declaração.

Reflexões criticas

Todas as teorias idealizam. Um tipo de idealização em visões laissez-faire é o pressuposto de que a apropriação inicial satisfazia os princípios de justiça aplicáveis. Mas certamente está na natureza da idealização que pressupostos como esse podem não revelar-se verdadeiros. Como vimos, essa possibilidade é reconhecida na teoria de Steiner pelo estabelecimento de uma redistribuição compensatória. Mas há também outros tipos de idealização, talvez menos óbvias, nas teorias de laissez-faire; por exemplo, de que condições de concorrência leal prevalecerão nos mercados de capital e trabalho, de que as escolhas individuais no domínio econômico não serão objeto de coerção, e de que os custos de transação para estabelecer esquemas de benefício mútuo não serão excessivos. O debate sobre as teorias de laissez-faire com freqüência refletem divergência sobre as medidas que se fariam necessárias se pressupostos como aquelas se revelarem falsas. Creio que as objeções filosóficas mais comuns ao laissez-faire podem ser compreendidas como refletindo dúvidas sobre se o seu compromisso com um muito amplo escopo de liberdade individual pode ser reconciliado com as acomodações necessárias para levar a cabo essas medidas. É outra questão saber se esses desafios são bem sucedidos, que em todo caso não tem como ser resolvida aqui. O argumento é simplesmente que essas objeções à visão geral aplicam-se com mais forte razão à sua variante globalizada.

É uma questão interessante, não muito discutida por Steiner, como os pedidos de retiradas do fundo global deveriam ser calibrados. Se os pedidos são realmente para compensação, então presumivelmente elas deveriam ter por base o mesmo princípio que as contribuições: deveriam ser pedidos referentes à diferença entre o valor dos recursos efetivos disponíveis para alguém e a média global. É importante reconhecer a diferença entre isso e concepções de justiça distributiva que distribuem conforme alguma medida abrangente de necessidade ou deprivação. Para os distributivistas de recursos o fluxo vai do rico em recursos para o pobre em recursos. Para outros tipos de redistributivistas o fluxo meramente vai do rico para o necessitado. Não há necessariamente coincidência, porque acesso a recursos e riqueza social não andam juntos — uma sociedade pode ser pobre em recursos mas rica. O princípio do laissez-faire poderia exigir redistribuição em favor de uma sociedade pobre em recursos que é rica o suficiente para cuidar adequadamente do seu povo mais do que uma sociedade rica em recursos que por alguma razão é menos rica no conjunto. Isto pode parecer estranho, mas para o liberal laissez-faire é também inevitável: é simplesmente um reflexo da indiferença da teoria a considerações de necessidade.37 37 Claro que nada em ambas as versões do liberalismo de laissez-faire impede transferências caridosas para ajudar a evitar ou para aliviar privações de direitos humanos.

Mesmo se o laissez-faire fosse rejeitado como uma teoria geral da justiça distributiva, o princípio da igualdade de recursos pode parecer particularmente adequado para certas questões de justiça ambiental que envolvam a repartição de recursos naturais que estejam fora da jurisdição interna de estados individuais e portanto não são possuídos privadamente — por exemplo, bancos de pesca oceânicos, minerais no fundo do mar, ou a capacidade de absorção da atmosfera. Poderia parecer que as considerações que dão base ao princípio da igualdade de recursos também apresentam razões para uma alocação igual desses recursos comuns. Mas isso ignora um passo. Recordemos que o princípio da igualdade de recursos estabelece que cada pessoa tem o direto a uma parcela igual do valor total de todos os recursos naturais. Para ser consistente com os fundamentos do laissez-faire, não há alternativa para a aplicação do princípio ao conjunto integral dos recursos, tanto possuídos como não possuídos, e a retroceder até uma visão sobre a repartição de direitos a aqueles recursos que ainda não são possuídos. Mas nessa perspectiva não há razão para pensar que aplicar o princípio apenas à classe dos recursos não possuídos produziria uma distribuição aceitável por todos.

A plausibilidade do redistributivismo de laissez-faire no nível global pode derivar, não da plausibilidade do próprio princípio de laissez-faire mas sim da idéia diferente de que não é justo que certas pessoas (ou sociedades) se saiam melhor que outras simplesmente porque encontram-se melhor equipados com recursos naturais. Afinal, diferenças em dotaçãos de recursos no sentido amplo (incluindo, por exemplo, diferenças em clima e geografia assim como recursos naturais na acepção convencional) parecem tão arbitrárias como seria possível a qualquer coisa ser.38 38 Apresentei um argumento desse tipo em Political Theory and International Relations, pp. 136-143. Para uma visão similar, veja-se Brian Barry, "Humanity and Justice in Global Perspective" em B.Barry, Democracy, Power and Justice. Oxford, Clarendon Press, 1989, pp. 448-452. Está longe de ser pacífico, contudo, que dotaçãos de recursos relativamente generosas sejam de fato uma vantagem. Por um lado, as sociedades em desenvolvimento como grupo parecem ser menos aquinhoados de recursos naturais do que eram as sociedades industrializadas atuais num estágio similar de desenvolvimento. Além disso, sociedades tropicais (tomando-se a localização como recurso) tendem a ter taxas de crescimento econômico e níveis de bem-estar (medidos, por exemplo, pela capacidade de compra per capita ou pela expectativa de vida) mais baixos do que as de zonas temperadas. Em contraste, sociedades em desenvolvimento ricas em recursos tendem a ter taxas de crescimento econômico mais baixas do que sociedades pobres em recursos, talvez porque a fácil disponibilidade de recursos naturais exportáveis reduz os incentivos ao estabelecimento de uma estrutura industrial e de relações comerciais necessários para um crescimento econômico sustentado. A importância da dotação de recursos para o crescimento econômico é uma das grandes questões abertas no estudo do desenvolvimento de sociedades. Apesar disso parece plausível dizer, como Gustav Ranis conclui de uma comparação entre os casos do Leste asiático e da América Latina, que "o problema não é que mais recursos naturais (assim como mais capital externo) não possa ser bom para você — mas sim que ao invés de serem usados para aliviar a dor da mudança o mais notável é que sejam usados para adiar a mudança."39 39 Gustav Ranis, "Toward a Model of Development" in Lawrence B.Krause and Kim Kihwan (eds) liberalization in the Process of Economic Development. Berkeley, University of California Press, 1991; e Jeffrey D. Sachs and Andrew M. Warner, Natural Resources Abundance and Economic Growth. NBER Working Paper n. 5398. Cambridge, Mass., National Bureau of Economic Research, 1995.

Que resulta disso para a questão da justiça distributiva? Não, penso eu, que não haja iniqüidade em dotaçãos de recursos desiguais, pois nada sobre fairness resulta de observações empíricas sobre como sociedades ricas em recursos tendem a dilapidar sua boa fortuna. Se compartilhamos a visão de que os indivíduos estão qualificados para beneficiar-se igualmente dos recursos do mundo, então a conclusão correta é que desigualdades de recursos deveriam ser compensadas, mas de maneiras que encorajem ou pelo menos não obstruam os processos de transformação econômica e social pelos quais uma sociedade precisa passar para desenvolver sua capacidade de satisfazer as necessidades materiais do seu povo. Como isso poderia ocorrer é evidentemente uma questão complicada de política de desenvolvimento.

LIBERALISMO COSMOPOLITA

Quer a tradição que o filósofo Diógenes, perguntado sobre de onde vinha, replicou: "Sou um cidadão do mundo"40 40 Diogenes Laertius, "Diogenes", em: Lives of Eminent Philosophers, Loeb Classical Library, vol.2, 6:63. Baseio-me aqui e no próximo parágrafo no meu artigo "Cosmopolitan Liberalism and the States System", em Chris Brown (ed.) Political Reestructuring in Europe. London/NY, Routledge, 1994. Ver também Martha Nussbann em Joshua Cohen (ed.) For Love of Country: Debating the Limits of Patriotism. Boston, Beacon Press, 1996 O ponto de vista sugerido por essa observação busca olhar o mundo inteiro como uma única entidade e a ver cada parte do todo na sua verdadeira proporção relativa. Se o ponto de vista local pode ser descrito como parcial, então o de Diógenes é imparcial.

Essa idéia abstrata ocorre no pensamento internacional em pelo menos dois sentidos, que podem ser denominados cosmopolitismo institucional e moral. O primeiro refere-se ao modo como as instituições políticas do mundo devem ser construídas. Sustenta que a estrutura política do mundo deveria ser reformulada para submeter os estados e outras unidades políticas à autoridade de agências supranacionais de algum tipo — um "governo mundial", por exemplo, ou talvez uma rede de entidades regionais frouxamente associadas. O segundo tipo de cosmopolitanismo diz respeito não às próprias instituições mas às bases segundo as quais as instituições deveriam ser justificadas ou criticadas. Na frase de Thomas Pogge, o cosmopolitismo moral é a noção "de que cada ser humano tem uma estatura global como a unidade última de cuidado moral".41 41 Thomas Pogge, "Cosmopolitanism and Sovereignty". Ethics, 103, 1992, p. 49. Essa modalidade de cosmopolitismo é o resultado natural do igualitarismo moral individualista freqüentemente associado ao liberalismo da Ilustração. Aplica ao mundo todo a máxima de que escolhas sobre o que deveríamos fazer ou sobre que instituições deveríamos estabelecer deveria ter como base uma consideração imparcial dos direitos de cada pessoa que seria afetada.

Cosmopolitismo e instituições

O cosmopolitismo sobre ética não implica necessariamente cosmopolitismo sobre instituições. É consistente com o cosmopolitismo moral sustentar que algo como o sistema de estados é melhor do que qualquer coisa como um governo mundial — talvez porque os interesses humanos sejam melhor servidos num mundo repartido em sociedades separadas cujos membros reconhecem responsabilidades especiais pelo bem-estar mútuo. (O cosmopolitismo de Kant era desse tipo). Mais do que por uma visão particular da organização política do mundo o cosmopolitismo moral distingue-se por uma visão sobre a base moral sobre a qual essa questão deveria ser decidida.42 42 Onora O'Neill, Towards Justice and Virtue. Cambridge University Press 1996, p. 172

Isso aplica-se igualmente à questão da justiça distributiva internacional: o cosmopolitismo não impõe visão particular alguma, mas enuncia uma condição a ser satisfeita pela justificação de qualquer visão aceitável. Desse modo não deveria surpreender a existência de numerosas visão cosmopolitas sobre a justiça distributiva internacional — teorias dos direitos humanos, utilitarismo globalizado e teorias pluralistas de escopo global. Também merecem menção, embora mal representadas na literatura filosófica recente, são concepções da ordem mundial na tradição do direito natural, que tomam como referência mais ampla a comunidade humana.43 43 A aplicação dessa concepção é clara na encíclica papal Populorum Progressio do Papa Paulo VI.

Se houver um eixo principal de separação entre essas teorias será a medida em que uma visão trata a comunidade estatal ou nacional (ou outra) como um enclave de responsabilidades distributivas especiais que se distinguem de responsabilidades gerais ou globais e são justificadas separadamente. Algumas visões tratam as responsabilidades especiais, na medida em que se possa dizer que existam, maramente como "dispositivos administrativos para o cumprimento mais eficiente dos nossos deveres gerais"44 44 Robert E. Goodin, "What Is So Special about Our Fellow Countrymen?". Ethics, 98, 1988, p. 685. Para a aplicação à justiça distributiva internacional, veja-se Goodin, Protecting the Vulnerable. Chicago University Press, 1985, pp. 154-169. Essas visões sustentam que a justiça distributiva no nível interno tem continuidade com a justiça distributiva no nível global: uma vez estabelecidos os requisitos para a justiça distributiva internacional, não há mais questão separada adicional sobre a justiça interna. Duas visões desse tipo seriam uma teoria contratualista ou Rawlsiana com um princípio da diferença global e uma teoria global da renda mínima como a proposta por Philippe van Parijs.45 45 Sobre a visão Rawlsiana globalizada veja-se Beitz, parte 3 e Pogge, cap. 5 e 6 (ambos na nota 22). Sobre a renda mínima global veja-se Philippe van Parijs, Real Freedom for All: What (if Anything) Can Justify Capitalism?. Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 223-228.

Outras visões sustentam que responsabilidades especiais podem advir de outras fontes do que deveres gerais — por exemplo, de relações dotadas de valor para seus participantes (incluindo a inclusão em grupos sociais) — mas que essas responsabilidades são submetidas a restrições por considerações distributivas globais. Teorias desses tipo são descontínuas, no sentido de que permitem requisitos distributivos no interior de unidades seccionais que são diferentes dos que se aplicam no nível global, e possivelmente mais severos do que aqueles. Por exemplo, uma teoria pode estabelecer um limiar distributivo global, eventualmente em termos de direitos de subsistência ou de necessidades básicas, e permitir variações no nível seccional consistentes com esse limiar. Tanto Henry Shue como Thomas Pogge propuseram teorias desse tipo.46 46 Henry Shue, Basic Rights. Princeton University Press, 1996; Pogge, "Cosmopolitanism and Sovereignty, citado, e "How Should Human Rights Be Conceived?". Jahrbuch für Recht und Ethik, 3, 1995; e "Standards of Living within a Global Discourse about Justice: Moral Philosophy and Social Systems". Zeitschrift fur Philosophische Forschung ,51, 1997. Sendo as visões descontínuas semelhantes ao liberalismo social de Rawls caberia perguntar se são realmente formas de cosmopolitismo. A resposta é que são, porque explicam a descontinuidade em termos consistentes com a imparcialidade cosmopolita.

Na sua maioria os teóricos cosmopolitas sustentam que um conjunto mais ou menos amplo dos direitos humanos da Declaração de 1948 fornece um sucedâneo razoável para padrões de justiça global. O subconjunto inclui no mínimo direitos básicos à segurança e à subsistência; alguns autores incluiriam também outros direitos.47 47 Por exemplo, Jeremy Waldron inclui "férias periódicas remuneradas" (Declaração Universal, art. 24) entre os direitos humanos; Waldron, Liberal Rights: Collected Papers, 1981-1991. Cambridge University Press, 1993, pp. 12-13. Tanto Shue quanto Pogge argumentam que há um direito humano à participação política. Há desacordo, no entanto, acerca do caráter dos requisitos que se seguem. Pogge distingue entre concepções "interacionais" e "institucionais". De acordo com as concepções interacionais, os direitos humanos obrigam indivíduos e grupos, enquanto de acordo com as concepções institucionais os direitos humanos obrigam diretamente somente as instituições e as práticas compartilhadas. Assim, por exemplo, de uma perspectiva interacional um direito humano à subsistência poderia justificar uma exigência para qualquer um em condição de satisfazer o direito. De uma perspectiva institucional, em contraste, um direito desse tipo somente justifica exigências dirigidas àquelas instituições e práticas compartilhadas das quais o interessado é parte (se o direito justifica uma exigência dirigida a instâncias externas, a teoria defende a não-interferência em esforços para reformar as práticas no sentido da observação do direito).

Pogge associa-se ao entendimento institucional e atribui um entendimento interacional a Shue. Mas isso pode ser enganoso, e vale a pena ver porque. Há na realidade duas distinções, uma concernente aos agentes de uma teoria e a outra concernente a sua justificação. Essas distinções são ortogonais uma à outra. A primeira é entre (1) teorias que impõem requisitos basicamente a instituições e práticas e (2) teorias que impõem requisitos basicamente a indivíduos e grupos. A segunda é entre (a) teorias que justificam seus requisitos em aspectos eticamente significativos dos relacionamentos e associações dos povos (incluindo a participação em práticas compartilhadas) e (b) teorias que justificam seus requisitos de outras maneiras. A noção de Pogge de uma concepção institucional dos direitos humanos combina (1) e (a). Ele corretamente intepreta Shue como sustentando uma versão de (b) e infere que Shue deve também sustentar (2). Mas (2) e (b) não andam necessariamente juntas, e penso que a combinação não representa adequadamente a posição de Shue.

Seja como for, qualquer teoria dos direitos humanos com a pretensão à relevância política certamente deve ser institucional no sentido 1: isto é, seus requisitos deveriam aplicar-se principalmente a instituições e práticas mais do que a indivíduos. A questão real envolve a alocação desses requisitos entre níveis de instituições. É aqui que a segunda distinção se torna relevante. Teorias que sustentam (a) presumivelmente alocariam deveres em alguma relação com a estrutura subjacente de instituições e práticas: sendo significativa a contribuição causal de uma instituição para uma privação, a extensão da responsabilidade global para corrigir a privação, como escreve Pogge, "depende da extensão da responsabilidade causal do nosso esquema institucional global por privações correntes". Teorias que sustentam (b) não precisam associar deveres com contribuição causal; por exemplo, Shue argumenta que deveres deveriam ser alocados conforme considerações de viabilidade e urgência relativa. A diferença importa: outras coisas sendo iguais, teorias do tipo 1b provavelmente exigirão mais das instituições internacionais e das sociedades ricas do que teorias do tipo 1a.

Isso ilustra o problema filosófico central sobre direitos humanos, que ganha particular relevo em conexão com direitos econômicos, que é o de formular seus fundamentos de modo a poder explicar não somente porque os direitos têm tamanha importância em si mesmos mas também como e porque eles obrigam outros (sejam indivíduos ou instituições). Teorias como a de Pogge, que derivam seus direitos de uma concepção subjacente de justiça global, têm vantagem aqui, porque o dispositivo que explica porque certas pessoas têm direitos também explica porque instituições e/ou outras pessoas têm deveres correspondentes. Teorias como a de Shue, que derivam seus direitos diretamente de considerações sobre interesses humanos individuais, precisam buscar em outro lugar recursos filosóficos para explicar porque os portadores de deveres deveriam contribuir para a satisfação dos direitos de outras pessoas.

Dúvidas sobre teorias cosmopolitas

As teorias cosmopolitas tipicamente evocam dúvidas. Uma delas é que essas teorias são irrealistas em um de dois sentidos (ou em ambos): ou elas requerem uma reforma internacional mais ampla do que parece politicamente provável ou então elas requerem o estabelecimento de instituições internacionais com um grau de poder coercitivo que os estados dificilmente concederão. Os cosmopolitas podem replicar que qualquer teoria razoável tem que ser restringida pelo que é possível. Ela poderia portanto estabelecer metas incrementais ou reformistas capazes de realização sob as condições vigentes e buscar meios para mudar essas condições com vistas a alcançar novos aperfeiçoamentos incrementais.

Claro que — e aqui temos um segundo tipo de dúvida — poderia ser argumentado que o real problema com o cosmopolitismo não é que seja irrealista num sentido empírico mas sim de que é irrealista num sentido moral. Poderia ser dito, em particular, que o cosmopolitismo não compreende adequadamente as filiações locais das pessoas — isto é, os vínculos com diferentes comunidades que tipicamente são experimentadas como impondo responsabilidades que são diferentes em tipo e grau daquelas impostas a nós pela nossa humanidade comum. De fato, creio que a fraqueza filosófica mais característica das teorias cosmopolitas — embora não igualmente presente em todas elas — é que deixam de levar suficientemente a sério os relacionamentos associativos que os indivíduos desenvolvem, e certamente precisam desenvolver, para viver vidas bem sucedidas e gratificantes. Entretanto, isso não significa dizer que a fraqueza não possa ser superada, e está longe de ser claro que um cosmopolitismo sofisticado não possa explicar como as filiações locais possam dar origem a responsabilidades especiais. Uma visão desse tipo reconheceria o valor que a associação com comunidades nacionais ou locais tem para os indivíduos e argumentaria que propriedades eticamente significativas dessas associações justificam arranjos distributivos internos que são diferentes do que é exigido por princípios globais, embora não sejam inconsistentes com eles.48 48 Uma exploração sutil e complexa dessa idéia pode ser encontrada numa série de artigos por Samuel Scheffler: "Families, Nations, and Strangers". The Lindley Lecture, Dept. of Philosophy, University of Kansas, 1995; "Individual Responsibility in a Global Age". Social Philosophy and Policy, 12, 1995; "Liberalism, Nationalism, and Egalitarianism", em R. McKim and J. McMahan (eds.) The Morality of Nationalism. New York, Oxford University Press, 1997; e "Relationships and Responsibilities". Philosophy and Public Affairs, 26, 1997. Existe uma extensa literatura sobre a questão das responsabilidades sociais. Ver Andrew Mason, "Special Obligations to Compatriots", Ethics 107, 1997, para referências.

Um terceiro tipo de dúvida acerca das teorias distributivas cosmopolitas emerge do contraste com o liberalismo social no tocante à repartição de responsabilidades pelo aperfeiçoamento de padrões de vida materiais no interior de uma sociedade. Vimos que o liberalismo social sustenta que as próprias sociedades devem assumir a responsabilidade básica de satisfazer as necessidades de seu povo, com a comunidade internacional funcionando principalmente para manter a paz, manter condições ordenadas de comércio e talvez para aliviar sofrimento em situações de emergência. Uma maneira importante pela qual as sociedades nacionais provêm seu próprio desenvolvimento é mediante poupanças e investimentos prudentes em capital físico e humano. Em contraste, uma visão cosmopolita pareceria redundar em responsabilidades globalmente compartilhadas, que, na ausência de uma cultura global forte o bastante para oferecer estabilidade e motivar a contribuição, poderia gerar uma série interminável de transferências de sociedades prudentes o suficiente para investir ao invés de consumir para aqueles imprudentes o suficiente para fazer o oposto. Dificilmente isso parecerá justo.

Essa é sem dúvida uma preocupação séria. No entanto, ela não deveria ser demasiado enfatizada. Essa preocupação é um análogo preciso daquela que se ouve com freqüência em controvérsias sobre justiça distributiva no interior do Estado (no mais das vezes vinda dos libertarianos), quando se diz que a redistribuição penaliza deslealmente aqueles que trabalharam duro em benefício daqueles que não se esforçaram o suficiente. A réplica no caso nacional é conhecida e não a recitarei aqui, pois a questão não é se uma resposta é possível mas sim por que se essa resposta fosse persuasiva no caso interno, ela não deveria ser igualmente persuasiva no caso internacional.

PERSPECTIVA

A teoria política distingue-se das disciplinas teóricas mais sistemáticas pela ausência de qualquer fundamentação axiomática amplamente aceita. O progresso que fazemos não se deve tanto ao traçado das conseqüências de axiomas compartilhados quanto à elaboração de concepções alternativas e à avaliação da precisão com que seus pressupostos representam o mundo empírico, da consistência das suas conclusões e da sua capacidade de explicar (ou de desafiar) nossas crenças pré-reflexivas.

O liberalismo internacional encontra-se num estágio inicial se comparado com o liberalismo mais familiar do Estado territorial. Mas, como espero que este artigo demonstre, há sinais de progresso tanto na riqueza quanto na diversidade do pensamento liberal recente sobre os aspectos distributivos das relações internacionais. O tema é bem reconhecido e o escopo das diferentes perspectivas teóricas é discernível. Ao mesmo tempo, não surpreende que haja muitas questões abertas. Para concluir, comento brevemente quatro dessas questões.

A extensão e o tipo de redistribuição internacional que a justiça requer. Somente liberais de laissez-faire orientados para o status quo negariam que haja no mundo que conhecemos uma persistente presunção em favor de algum tipo de redistribuição internacional. Mas as posições divergem quanto à extensão das transferências internacionais requeridas, quanto aos princípios que deveriam guiar a alocação de custos e benefícios, e quanto ao papel apropriado do Estado na sua coleta e distribuição. Por exemplo, a teoria de Rawls demanda "ajuda econômica e tecnológica" visando auxiliar certas sociedades a tornarem-se capazes de sustentar internamente instituições justas, enquanto deixa tanto a iniciativa de buscar ajuda e a autoridade para a sua alocação no interior dessas sociedades. Mas é provável que qualquer teoria cosmopolita depositasse uma parcela maior de responsabilidade nas instâncias externas e teria menos deferência como questão de princípio pelas instituições no nível interno no estabelecimento de prioridades para o uso interno da ajuda externa.49 49 A imposição de condições políticas tanto quanto econômicas à assistência ao desenvolvimento são comuns atualmente. As questões éticas são sérias, como observam Joan M. Nelson e Stephanie J. Eglington no seu livro Global Goals. E é claro que redistributivistas laissez-faire e aqueles particularmente impressionados pela injustiça da distribuição global de recursos naturais atribuiriam tanto os deveres como os titulações numa base diferente do que o faria cada uma dessas outras concepções. Essas questões são significativas e é pouco provável que sejam resolvidas sem teorias mais substanciais do que as que temos à mão. Mas não deveríamos exagerar a margem de desacordo no nível das políticas. Pois esse é o domínio da teoria não-ideal, que, embora formada de acordo com a concepção de justiça ideal de uma teoria está também sob o efeito das capacidades institucionais disponíveis no mundo tal como é. Parece uma conjectura plausível que essas restrições produzissem uma convergência de medidas para aumentar o fluxo de recursos através de agências de desenvolvimento bilaterais e multilaterais de países ricos para países pobres, segundo a qual os investimentos em capital físico e humano provavelmente produzirão melhoras sustentáveis em padrões de vida mínimos. A proposta de Pogge de um imposto global sobre recursos é um dos focos possíveis dessa convergência, que em todo caso seria interessante examinar melhor.50 50 De Pogge, além do texto citado na nota 22, veja-se "A Global Resources Dividend", em David A. Crocker and Toby Linden (eds.) Ethics of Consumption: the Good Life, Justice, and Global Stewardship. Rowmann and Littlefield, 1997. Este artigo encontra-se traduzido em Lua Nova 34/1994: Thomas Pogge, "Uma proposta de reforma: um dividendo global de recursos".

Princípios para instituições internacionais. Não é mais provável na esfera internacional do que na sociedade nacional que mudanças duradouras na distribuição de oportunidades de vida fossem produzidas por uma série de transferências, ou que fazer isso seria a melhor maneira de desincumbir-se dos requisitos da justiça distributiva internacional, sejam eles quais forem. A estrutura institucional é fundamental. Entretanto, poucas das teorias e dos teóricos que viemos considerando interessam-se pelas exigências que a justiça distributiva internacional impõe a instituições institucionais algo distinto da política externa dos estados. Isto talvez se deva a que, contrastando com o caso interno, não é claro como a estrutura internacional influencia a distribuição global de bem-estar.51 51 Poucos estudiosos de instituições e regimes internacionais exploraram sistematicamente seus efeitos distributivos. Não há como superestimar a importância do trabalho empírico nessa área. Um exemplo relativo ao regime de comércio internacional pode ser sugestivo. Trata-se do recente acordo internacional que estabelece padrões internacionais mínimos para a proteção da propriedade intelectual (o Trade-Related Aspects of Intellectual Property Agreement, ou TRIPS). Como a maior parte da propriedade intelectual pertence aos países ricos, alguns analistas predizem que o novo acordo, que fortalece proteções à propriedade intelectual e a capacidade internacional de cumprimento obrigatório na área, irá resultar em perda de bem-estar para os países pobres.52 52 J.H. Reichman, Implications of the Draft TRIPS Agreement for Developing Countries as Competitors in na Integrated World Market. UNCTAD Discussion Papers n. 73 (UNC-TAD/OSG/DP/&#, November 1993); A. Samuel Oddi, "TRIPS: Natural Rights and a 'Polite Form of Economic Imperialism"'. Vanderbilt Journal of Transnational Law, 29, 1996. Sem envolver a questão empírica, o exemplo certamente mostra como regimes internacionais podem ter um significado normativo similar ao das instituições básicas da sociedade interna. Uma teoria da justiça distributiva internacional que procure efeito prático deveria tornar claro como essas exigências se aplicam a esses regimes.

Justiça intergeracional e recursos ambientais. Toda teoria da justiça distributiva internacional tem que levar em conta também a justiça intergeracional. Quando Rawls escreveu A Theory of Justice ele concebeu esta última como um problema de determinação de uma taxa de poupança justa, presumindo que cada geração iria fazer acréscimos ao estoque total de capital, levando a uma melhora contínua dos padrões de vida, pelo menos até um ponto em que instituições justas pudessem ser finalmente realizadas. Uma percepção mais aguda das conseqüências ambientais do crescimento permite-nos ver que as coisas são mais complicadas. A presente geração está em condições de reduzir o estoque de capital disponível para sustentar o consumo futuro (e daí o padrão de vida) não necessariamente por esgotar capital produzido pelo homem mas sim por esgotar recursos naturais não-renováveis, incluindo aqueles que permite à biosfera absorver e dissipar os subprodutos nocivos do crescimento. Desse modo, o problema da justiça intergeracional somente pode ser formulado como um problema de fixação de uma taxa de poupança justa quando essa idéia é levada a um nível de abstração mais elevado do que tem na discussão de Rawls: precisamos pensar na taxa de poupança como uma restrição do consumo corrente expressa em termos de um agregado complexo de capital acumulado, da desistência do uso de recursos, e de tecnologia desenvolvida para conservar e regenerar a capacidade absorvente da biosfera.53 53 A tarefa é complicada pela controvérsia quanto à medida em que se pode esperar da tecnologia que ofereça substitutos para recursos naturais não-renováveis. Ver David I. Stern, "The Capital Theory Approach to Sustainability: A Critical Appraisal". (Journal of Economic Issues) 31, 1997. No mundo não-ideal poderá ser especialmente difícil distinguir entre justiça distributiva internacional e intergeracional: dado que o desenvolvimento econômico e social se estende por várias gerações, poderá ser necessária a ação internacional, seja para corrigir as injustiças de gerações passadas em sociedades ricas seja para satisfazer as exigências da justiça intergeracional nas sociedades pobres atuais. Como sugerem essas possibilidades, a interação de considerações internacionais e intergeracionais na teoria não-ideal provavelmente será muito complexa, e merece um exame mais detido do que tem recebido.

Direitos humanos. Afirmei no início que toda forma plausível de liberalismo internacional deveria incluir uma interpretação da doutrina dos direitos humanos. Atualmente os direitos humanos servem como termos de referência para a política externa em muitas democracias; como padrões normativos para políticas em instituições financeiras e de desenvolvimento internacionais; e como uma base de apelo para interferência internacional ou supranacional em casos de conflitos internos não solúveis de outro modo. Em todos esses casos os direitos humanos desempenham o que se poderia denominar um papel institucional; isto é, operam como padrões a serem aplicados tanto por e a instituições internas e internacionais. Além disso, e de modo importante, os direitos humanos também desempenham um outro tipo de papel na vida internacional. Eles servem como base para a crítica e a ação política pelo conjunto de organizações não-governamentais que constituem uma emergente sociedade civil global e cujo impacto principal, significativamente e talvez inesperadamente, pode ser sentido numa lenta transformação de culturas políticas nacionais.54 54 Há uma discussão eloqüente em Geoffrey Best, "Justice, International Relations, and Human Rights". International Affairs, 71, 1995, pp. 794-798. Apesar de toda a sua centralidade na vida internacional contemporânea a doutrina dos direitos humanos ainda carece de uma teoria amplamente aceita. Numa certa medida como resultado isso ela está aber ta a dois tipos de dúvida, primeiro no tocante á sua neutralidade entre as culturas do mundo e segundo quanto ao seu escopo. A discussão de Rawls em "The Law of Peoples" visa principalmente o primeiro problema, buscando mostrar que pelo menos alguns direitos humanos têm condições para servir como padrões mínimos para as instituições de todas as sociedades decentes, liberais ou não. Não há dúvida sobre o significado — tanto filosófico quanto político — desse esforço. Mas o segundo problema — sobre o alcance dos direitos humanos — é igualmente importante, em particular na medida em que envolve questões sobre o mínimo material que deveria ser mantido por toda sociedade decente e sobre quanto as sociedades ricas, independemente da sua localização, têm responsabilidade de contribuir para esse fim. Ademais, como esses dilemas não são matéria de desacordo intercultural, sua solução não precisa ficar presa como refém da dúvida sobre a neutralidade da doutrina.55 55 Vincent (ver nota 6) argumentou há mais de uma década a favor do que denominava "prioridade dos direitos de subsistência nas políticas internacionais contemporâneas".

OS TRÊS TIPOS REVISTOS

Eu não poderia concluir sem um comentário final sobre o sentido em que esses três tipo de liberalismo deveriam ser considerados posições distintas. Afirmei no início que as três concepções se distinguem nos fundamentos que reconhecem para o cuidado com as características distributivas da sociedade internacional, e em conseqüência nos princípios distributivos que recomendam. Assim, o liberalismo social é motivado por um desejo de elevar sociedades individuais até o ponto em que possam sustentar suas próprias instituições justas ou decentes e só indiretamente por um cuidado com o bem-estar material de indivíduos. Seu ideal é um mundo de sociedades pacíficas e decentes; num mundo como esse, desigualdades entre pessoas de países diferentes, seja qual for sua magnitude, não sucitariam preocupações de justiça. O liberalismo de laissez-faire na sua variante reduistributivista é motivado por uma percepção do potencial para injustiça que decorre da apropriação desigual de coisas não possuídas; evitar-se ou retificar-se tal desigualdade é o preço a ser pago para as amplas liberdades individuais, incluindo liberdades de mercado, defendidas pela teoria. Não há preocupação direta com a capacidade de uma sociedade de sustentar instituições justas ou decentes ou com desigualdades entre pessoas ou sociedades que tenham origem fora da repartição do benefício de recursos naturais. Em contraste com ambas essas posições, o liberalismo cosmopolita toma os interesses de indivíduos como fundamentais e fazendo jus a igual atenção em escala global, e sustenta que as instituições básicas da sociedade, tanto no nível global quanto no seccional, deveriam ser justificadas de maneira consistente com esse compromisso fundamental.

Essas ditinções podem parecer demasiado simples, pois tanto o liberalismo social quanto o liberalismo de laissez-faire podem parecer não serem mais do que casos especiais da concepção cosmopolita. Afinal, ambas as visões abraçam doutrinas de direitos humanos, e é muito provável que ambas gerassem princípios fortemente redistributivos para a ação política no mundo não-ideal. Mas dificilmente resulta disso que as visões social e de laissez-faire sejam simples variações sobre um tema cosmopolita. Isso depende de como se dá conta das diferenças — como, por exemplo, o liberalismo social pode dar conta da posição especial atribuída ao Estado ou como o liberalismo de laissez-faire pode explicar porque não deveríamos perturbar-nos com desigualdades que tenham origem em outras fontes do que desigualdades na apropriação inicial. Talvez se possa dar conta dessas diferenças de modo consistente com a posição moral igual de cada pessoa, e talvez não. Portanto é algo ainda a ser visto se existem três formas de liberalismo internacional ou somente uma.

  • * "International Liberalism and Distributive Justice: a Survey of Recent Thought". World Politics, vol. 51, 1999, n° 2.
  • 1 A literatura é vasta e bem conhecida na sua maior parte. Sobre a controvérsia sobre o realismo veja-se David A. Baldwin (ed), Neorealism and Neoliberalism: the Contemporary Debate. New York, Columbia University Press, 1993.
  • Sobre a paz democrática, veja-se o importante artigo em duas partes de Michael W. Doyle, "Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs", Philosophy and Public Affairs, 12, 1983.
  • Para um esforço recente de formulaçăo de uma perspectiva analítica liberal sobre relaçőes internacionais veja-se Andrew Moravcsik, "Taking Preferences Seriously: a Liberal Theory of International Politics", International Organization, 51, 1997.
  • 2 Keneth N. Waltz, Man, the State, and War: a Theoretical Analysis. New York, Columbia University Press, 1959.
  • 3 Moravcsik (ver nota 1) é claro a respeito disso (p. 548). Isso năo significa dizer que a literatura analítica careça de motivaçăo normativa. Veja-se, por exemplo, Robert O. Kehoane, After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy Princeton University Press, 1984, cap. 11;
  • e também "International Liberalism Reconsidered" in John Dunn (ed) The Economic Limits to Modern Politics Cambridge University Press, 1990.
  • Ver também Michael Doyle, Ways of War and Peace New York, W.W. Norton, 1997.
  • 4 John Rawls, A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, p. 7.
  • 5Veja-se, por exemplo, a distinçăo por Bull entre concepçőes "internacionais", "individuais," e "cosmopolitas", de justiça internacional em The Anarchical Society. London, Macmillan, 2.a ed, 1995.
  • 6 David Miller, On Nationality. Oxford , Clarendon Press, 1995;
  • John Rawls, "The Law of Peoples" em Stephen Shute and Susan Hurley (eds) On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures 1993. New York, Basic Books, 1993;
  • John Vincent, Human Rights and International Relations. Cambridge University Press, 1986.
  • Embora somente se refira de passagem ŕ justiça distributiva internacional, Yael Tamir oferece comentários interessantes em Liberal Nationalism Princeton University Press, 1993
  • 13 Para um exemplo recente da visăo padrăo, veja-se Alan Gewirth, The Community of Rights. Chicago, University of Chicago Press, 1996.
  • 15 Mas Rawls também sustenta que todos os regimes bem ordenados deveriam visar satisfazer as necessidades básicas dos seus povos e que portanto os direitos ŕ liberdade e ŕ segurança implicam direitos ŕ subsistęncia. Embora isso pareça correto como um questăo de teoria política, há uma certa tensăo relativamente ŕ linguagem da Declaraçăo, que claramente pressupőe uma distinçăo entre liberdade e bem-estar. Sobre a Declaraçăo de 1948 veja-se Ian Brownlie (ed) Basic Documents in International Law. Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 255-261.
  • 16 Veja-se Fernando R. Teson, "The Rawlsian Theory of International Law" , Ethics and International Affairs 9, 1995;
  • e Peter Jones, "International Human Rights: Philosophical or Political?" m Simon Caney, David George and Peter Jones (eds.), National Rights, international Obligations. Boulder, Westview, 1996.
  • 18 Essa idéia é compartilhada por outros liberais sociais. Nesses termos escreve Michael Walzer: "Estou inclinado a pensar que, pelo menos por enquanto, princípios morais comuns sobre tratamento humano e ajuda mútua săo mais eficientes do que qualquer formulaçăo específica de justiça distributiva internacional". Ver "Response", em David Miller and Michael Walzer, Pluralism, Justice and Equality. Oxford University Press, 1995.
  • 22 Argumentos a favor de um princípio da diferença global săo desenvolvidos em Charles Beitz, Political Theory and International Relations. Princeton University Press, 1979, pp. 143-153 e em Thomas Pogge,
  • Realizing Rawls. Ithaca, NY, Cornell University Press, 1989, capítulos 5 e 6.
  • 23 John Rawls, Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 15
  • 26 John Rawls, "The Law of Peoples", p. 77.
  • De modo análogo, John Stuart Mill sustentava que um povo somente podia esperar sustentar instituiçőes livres se lutasse por alcançar essas instituiçőes para si próprio. Veja-se J.S. Mill, "A Few Words on Non-intervention", em Dissertations and Discussions: Political, Philosophical, and Historical. Londres, Longmans, Green, Reader, and Dyer, 1867.
  • 27 Veja-se Andrew Hurrell and Ngaire Woods, "Globalization and Inequality", Millenium 24, 1995;
  • e Stephen Haggard and Sylvia Maxfield, "The Political Economy of Financial Internationalization in the Developing World" in Robert O. Kehoane and Helen V. Milner (eds.) Internationalization and Domestic Politics. Cambridge University Press, 1996.
  • 28 Há esclarecedoras discussőes da teoria internacional de Rawls em Stanley Hoffmann, "Dreams of a Just World Order", uma resenha de On Human Rights: the Oxford Amnesty Lectures 1993 em New York Review of Books, 42, November 2, 1995,
  • e em Darrel Moellendorf, "Constrcting the Law of Peoples", Pacific Philosophical Quarterly, 77, 1996.
  • 29 Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia. New York, Basic Books, 1974.
  • 31 Abro măo de uma explicaçăo. Há uma boa discussăo em G. A. Cohen, Self-ownership, Freedom, and Equality. Cambridge University Press, 1995, capítulos 3 e 4.
  • 32 Hillel Steiner, An Essay on Rights. Oxford, Blackwell, 1994.
  • 33 Veja-se, por exemplo. Stephen Luper-Foy, "Justice and Natural Resources". Environmental Values, 1, 1992
  • 34 Isto é matéria de controvérsia. É relevante a restriçăo lockeana de que a apropriaçăo de coisas năo possuídas deveria deixar "o suficiente, e tăo bom (...) em comum para outros". Veja-se Locke, Two Treatises of Government, ediçăo de Peter Lasslet, Cambridge University Press, 2.a ediçăo, 1967, II, seçăo 27.
  • Para um comentário, veja-se A. John Simmons, The Lockean Theory of Rights, Princeton University Press, 1992, pp. 288-298 e as referęncias ali citadas.
  • 38 Apresentei um argumento desse tipo em Political Theory and International Relations, pp. 136-143.
  • Para uma visăo similar, veja-se Brian Barry, "Humanity and Justice in Global Perspective" em B.Barry, Democracy, Power and Justice. Oxford, Clarendon Press, 1989, pp. 448-452.
  • 39 Gustav Ranis, "Toward a Model of Development" in Lawrence B.Krause and Kim Kihwan (eds) liberalization in the Process of Economic Development. Berkeley, University of California Press, 1991;
  • e Jeffrey D. Sachs and Andrew M. Warner, Natural Resources Abundance and Economic Growth. NBER Working Paper n. 5398. Cambridge, Mass., National Bureau of Economic Research, 1995.
  • 40 Diogenes Laertius, "Diogenes", em: Lives of Eminent Philosophers, Loeb Classical Library, vol.2, 6:63.
  • Baseio-me aqui e no próximo parágrafo no meu artigo "Cosmopolitan Liberalism and the States System", em Chris Brown (ed.) Political Reestructuring in Europe. London/NY, Routledge, 1994.
  • Ver também Martha Nussbann em Joshua Cohen (ed.) For Love of Country: Debating the Limits of Patriotism. Boston, Beacon Press, 1996
  • 41 Thomas Pogge, "Cosmopolitanism and Sovereignty". Ethics, 103, 1992, p. 49.
  • 42 Onora O'Neill, Towards Justice and Virtue. Cambridge University Press 1996, p. 172
  • 44 Robert E. Goodin, "What Is So Special about Our Fellow Countrymen?". Ethics, 98, 1988, p. 685.
  • Para a aplicaçăo ŕ justiça distributiva internacional, veja-se Goodin, Protecting the Vulnerable. Chicago University Press, 1985, pp. 154-169.
  • 45 Sobre a visăo Rawlsiana globalizada veja-se Beitz, parte 3 e Pogge, cap. 5 e 6 (ambos na nota 22). Sobre a renda mínima global veja-se Philippe van Parijs, Real Freedom for All: What (if Anything) Can Justify Capitalism?. Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 223-228.
  • 46 Henry Shue, Basic Rights. Princeton University Press, 1996;
  • Pogge, "Cosmopolitanism and Sovereignty, citado, e "How Should Human Rights Be Conceived?". Jahrbuch für Recht und Ethik, 3, 1995;
  • e "Standards of Living within a Global Discourse about Justice: Moral Philosophy and Social Systems". Zeitschrift fur Philosophische Forschung ,51, 1997.
  • 47 Por exemplo, Jeremy Waldron inclui "férias periódicas remuneradas" (Declaraçăo Universal, art. 24) entre os direitos humanos; Waldron, Liberal Rights: Collected Papers, 1981-1991. Cambridge University Press, 1993, pp. 12-13.
  • 48 Uma exploraçăo sutil e complexa dessa idéia pode ser encontrada numa série de artigos por Samuel Scheffler: "Families, Nations, and Strangers". The Lindley Lecture, Dept. of Philosophy, University of Kansas, 1995;
  • "Individual Responsibility in a Global Age". Social Philosophy and Policy, 12, 1995;
  • "Liberalism, Nationalism, and Egalitarianism", em R. McKim and J. McMahan (eds.) The Morality of Nationalism. New York, Oxford University Press, 1997;
  • e "Relationships and Responsibilities". Philosophy and Public Affairs, 26, 1997.
  • Existe uma extensa literatura sobre a questăo das responsabilidades sociais. Ver Andrew Mason, "Special Obligations to Compatriots", Ethics 107, 1997,
  • 50 De Pogge, além do texto citado na nota 22, veja-se "A Global Resources Dividend", em David A. Crocker and Toby Linden (eds.) Ethics of Consumption: the Good Life, Justice, and Global Stewardship. Rowmann and Littlefield, 1997.
  • 52 J.H. Reichman, Implications of the Draft TRIPS Agreement for Developing Countries as Competitors in na Integrated World Market. UNCTAD Discussion Papers n. 73 (UNC-TAD/OSG/DP/, November 1993);
  • A. Samuel Oddi, "TRIPS: Natural Rights and a 'Polite Form of Economic Imperialism"'. Vanderbilt Journal of Transnational Law, 29, 1996.
  • 53 A tarefa é complicada pela controvérsia quanto ŕ medida em que se pode esperar da tecnologia que ofereça substitutos para recursos naturais năo-renováveis. Ver David I. Stern, "The Capital Theory Approach to Sustainability: A Critical Appraisal". (Journal of Economic Issues) 31, 1997.
  • 54 Há uma discussăo eloqüente em Geoffrey Best, "Justice, International Relations, and Human Rights". International Affairs, 71, 1995, pp. 794-798.
  • *
    "International Liberalism and Distributive Justice: a Survey of Recent Thought".
    World Politics, vol. 51, 1999, n° 2. Tradução de Gabriel Cohn. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada nuna conferência co-promovida pelo Instituto Humphrey da Universidade de Minnesota e pelo Carnegie Council on Ethics and International Affairs.
  • **
    Na teoria de Rawls a "posição original" designa uma situação em que indivíduos racionais escolhem princípios básicos de justiça que regeriam a sociedade em que iriam viver, e o fazem cobertos por um "véu de ignorância", sem nada conhecer acerca das qualidades e recursos pessoais que lhes facultariam ocupar posições nessa sociedade. (Nota do tradutor)
  • 1
    A literatura é vasta e bem conhecida na sua maior parte. Sobre a controvérsia sobre o realismo veja-se David A. Baldwin (ed),
    Neorealism and Neoliberalism: the Contemporary Debate. New York, Columbia University Press, 1993. Sobre a paz democrática, veja-se o importante artigo em duas partes de Michael W. Doyle, "Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs",
    Philosophy and Public Affairs, 12, 1983. Para um esforço recente de formulação de uma perspectiva analítica liberal sobre relações internacionais veja-se Andrew Moravcsik, "Taking Preferences Seriously: a Liberal Theory of International Politics",
    International Organization, 51, 1997.
  • 2
    Keneth N. Waltz,
    Man, the State, and War: a Theoretical Analysis. New York, Columbia University Press, 1959. O exame das teorias liberais está no capítulo 4.
  • 3
    Moravcsik (ver nota
    1 1 A literatura é vasta e bem conhecida na sua maior parte. Sobre a controvérsia sobre o realismo veja-se David A. Baldwin (ed), Neorealism and Neoliberalism: the Contemporary Debate. New York, Columbia University Press, 1993. Sobre a paz democrática, veja-se o importante artigo em duas partes de Michael W. Doyle, "Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs", Philosophy and Public Affairs, 12, 1983. Para um esforço recente de formulação de uma perspectiva analítica liberal sobre relações internacionais veja-se Andrew Moravcsik, "Taking Preferences Seriously: a Liberal Theory of International Politics", International Organization, 51, 1997. ) é claro a respeito disso (p. 548). Isso não significa dizer que a literatura analítica careça de motivação normativa. Veja-se, por exemplo, Robert O. Kehoane,
    After Hegemony:
    Cooperation and Discord in the World Political Economy Princeton University Press, 1984, cap. 11; e também "International Liberalism Reconsidered" in John Dunn (ed)
    The Economic Limits to Modern Politics. Cambridge University Press, 1990. Ver também Michael Doyle,
    Ways of War and Peace New York, W.W. Norton, 1997.
  • 4
    John Rawls,
    A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, p. 7.
  • 5
    Veja-se, por exemplo, a distinção por Bull entre concepções "internacionais", "individuais," e "cosmopolitas", de justiça internacional em
    The Anarchical Society. London, Macmillan, 2.a ed, 1995.
  • 6
    David Miller,
    On Nationality. Oxford , Clarendon Press, 1995; John Rawls, "The Law of Peoples" em Stephen Shute and Susan Hurley (eds)
    On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures 1993. New York, Basic Books, 1993; John Vincent,
    Human Rights and International Relations. Cambridge University Press, 1986. Embora somente se refira de passagem à justiça distributiva internacional, Yael Tamir oferece comentários interessantes em
    Liberal Nationalism Princeton University Press, 1993
  • 7
    Miller (ver nota
    6
    ), pp. 75-77, 107-108. Todas as formas de liberalismo precisam especificar algum limiar desse tipo, mas as visões divergem quanto ao seu caráter e sua severidade. Compare-se, por exemplo, as passagens citadas de Miller com Vincent, p. 143-150; and Rawls, p. 76-77.
  • 8
    Deixo de lado outras partes de "The Law of Peoples". Noto também que Rawls também formulou sua teoria com mais minúcias numa monografia com o mesmo título (em vias de publicação).
  • 9
    Em Rawls a idéia de uma sociedade hierárquica bem ordenada visa representar sociedades baseadas em doutrinas "abrangentes" (vale dizer, religiosas). Uma sociedade desse tipo, embora não liberal nem democrática, busca o bem comum do seu povo e respeita direitos humanos básicos.
  • 10
    Para Rawls o direito das gentes é prioritário em relação à justiça interna na medida em que limita a autoridade de estados individuais, não apenas nas suas relações externas mas também, pela exigência de direitos humanos, no tocante ao seu próprio povo. Os direitos humanos, portanto, estabelecem os limites do pluralismo aceitável na sociedade internacional.
  • 11
    Essa passagem no texto de Rawls refere-se explicitamente aos princípios que seriam aceitos pelos representantes de sociedades liberais. Mais adiante ele sustenta que os mesmos princípios seriam aceitos por representantes de sociedades bem ordenadas não-liberais (pp. 64-65).
  • 12
    Destas há duas espécies não exclusivas mutuamente: estados "fora da lei", que não respeitam o direito das gentes (por exemplo, ao não respeitarem a integridade de outros estados ou os direitos humanos de seus próprios povos) e sociedades sujeitas a condições econômicas e sociais desfavoráveis, que por essa razão são incapazes de sustentar instituições bem ordenadas.
  • 13
    Para um exemplo recente da visão padrão, veja-se Alan Gewirth,
    The Community of Rights. Chicago, University of Chicago Press, 1996.
  • 14
    Rawls sustenta neste ponto que pode haver um direito de intervenção pela força, por exemplo, quando é nescessária para defender regimes bem ordenados de regimes "fora da lei" ou ("em casos graves") para defender indivíduos sujeitos a regimes fora da lei que ameaçam seus direitos humanos (p.73).
  • 15
    Mas Rawls também sustenta que todos os regimes bem ordenados deveriam visar satisfazer as necessidades básicas dos seus povos e que portanto os direitos à liberdade e à segurança implicam direitos à subsistência. Embora isso pareça correto como um questão de teoria política, há uma certa tensão relativamente à linguagem da Declaração, que claramente pressupõe uma distinção entre liberdade e bem-estar. Sobre a Declaração de 1948 veja-se Ian Brownlie (ed)
    Basic Documents in International Law. Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 255-261.
  • 16
    Veja-se Fernando R. Teson, "The Rawlsian Theory of International Law" ,
    Ethics and International Affairs 9,
    1995; e Peter Jones, "International Human Rights: Philosophical or Political?" m Simon Caney, David George and Peter Jones (eds.),
    National Rights, international Obligations. Boulder, Westview, 1996.
  • 17
    Rawls sugere numa nota de rodapé que a justiça internacional poderia exigir a redistriuição de benefícios derivados da presença desigual de recursos. Este ponto não é desenvolvido no texto e não há fundamentação clara para esse requisito na teoria.
  • 18
    Essa idéia é compartilhada por outros liberais sociais. Nesses termos escreve Michael Walzer: "Estou inclinado a pensar que, pelo menos por enquanto, princípios morais comuns sobre tratamento humano e ajuda mútua são mais eficientes do que qualquer formulação específica de justiça distributiva internacional". Ver "Response", em David Miller and Michael Walzer,
    Pluralism, Justice and Equality. Oxford University Press, 1995.
  • 19
    Isso é assinalado várias vezes por Rawls em "The Law of Peoples" (por exemplo, pp. 46-47, 48, 65-66 e especialmente 75-76,
  • 20
    Como observa Rawls no mesmo ensaio (p. 75).
  • 21
    Embora essa observação seja feita por Rawls no ensaio citado no contexto de uma discussão dirigida para demostrar porque não há análogo internacional para o princípio da diferença, ela possivelmente não vise explicar porque isso deveria ser assim. Discuto a relevância da observação mais abaixo.
  • 22
    Argumentos a favor de um princípio da diferença global são desenvolvidos em Charles Beitz,
    Political Theory and International Relations. Princeton University Press, 1979, pp. 143-153 e em Thomas Pogge,
    Realizing Rawls. Ithaca, NY, Cornell University Press, 1989, capítulos 5 e 6.
  • 23
    John Rawls,
    Political Liberalism. New York, Columbia University Press, 1993, p. 15
  • 24
    Recorde-se a advertência de Rousseau no
    Contrato Social: Os limites do possível em questões morais são menos apertados do que pensamos. É nossa fraqueza, são nossos vícios e nossos preconceitos que os estreitam".
  • 25
    Rawls admite que em outras questões as partes poderiam aplicar um princípio diferente no caso internacional do que fariam no caso doméstico. Por exemplo, ao explicar porque sociedades hierárquicas insistiriam em um tratamento eqüitativo na posição original internacional embora no plano interno tenham instituições não igualitárias, ele escreve: "Embora uma sociedade careça de igualdade básica, não é insensato para essa sociedade a insistência na igualdade ao fazer reivindicações contra outras sociedades" (p. 65).
  • 26
    John Rawls, "The Law of Peoples", p. 77. De modo análogo, John Stuart Mill sustentava que um povo somente podia esperar sustentar instituições livres se lutasse por alcançar essas instituições para si próprio. Veja-se J.S. Mill, "A Few Words on Non-intervention", em
    Dissertations and Discussions: Political, Philosophical, and Historical. Londres, Longmans, Green, Reader, and Dyer, 1867.
  • 27
    Veja-se Andrew Hurrell and Ngaire Woods, "Globalization and Inequality",
    Millenium 24, 1995; e Stephen Haggard and Sylvia Maxfield, "The Political Economy of Financial Internationalization in the Developing World" in Robert O. Kehoane and Helen V. Milner (eds.)
    Internationalization and Domestic Politics. Cambridge University Press, 1996.
  • 28
    Há esclarecedoras discussões da teoria internacional de Rawls em Stanley Hoffmann, "Dreams of a Just World Order", uma resenha de
    On Human Rights: the Oxford Amnesty Lectures 1993 em
    New York Review of Books, 42, November 2, 1995, e em Darrel Moellendorf, "Constrcting the Law of Peoples",
    Pacific Philosophical Quarterly, 77, 1996.
  • 29
    Robert Nozick,
    Anarchy, State, and Utopia. New York, Basic Books, 1974.
  • 30
    Nozick é o mais conhecido defensor contemporâneo dessa visão.
  • 31
    Abro mão de uma explicação. Há uma boa discussão em G. A. Cohen,
    Self-ownership, Freedom, and Equality. Cambridge University Press, 1995, capítulos 3 e 4.
  • 32
    Hillel Steiner,
    An Essay on Rights. Oxford, Blackwell, 1994. Também "Territorial Justice", em Caney, George, and Jones, cit.
  • 33
    Veja-se, por exemplo. Stephen Luper-Foy, "Justice and Natural Resources".
    Environmental Values, 1, 1992
  • 34
    Isto é matéria de controvérsia. É relevante a restrição lockeana de que a apropriação de coisas não possuídas deveria deixar "o suficiente, e tão bom (...) em comum para outros". Veja-se Locke,
    Two Treatises of Government, edição de Peter Lasslet, Cambridge University Press, 2.a edição, 1967, II, seção 27. Para um comentário, veja-se A. John Simmons,
    The Lockean Theory of Rights, Princeton University Press, 1992, pp. 288-298 e as referências ali citadas.
  • 35
    A informação genética por linha germinativa humana não deve ser confundida com habilidade como usualmente a entendemos, porque a habilidade depende, não apenas do fundo genético mas também do que poderia ser chamado, em termos amplos, "criação".
  • 36
    Locke pode ter mantido uma concepção desse tipo (II, seções 117, 120-121)
  • 37
    Claro que nada em ambas as versões do liberalismo de
    laissez-faire impede transferências caridosas para ajudar a evitar ou para aliviar privações de direitos humanos.
  • 38
    Apresentei um argumento desse tipo em
    Political Theory and International Relations, pp. 136-143. Para uma visão similar, veja-se Brian Barry, "Humanity and Justice in Global Perspective" em B.Barry,
    Democracy, Power and Justice. Oxford, Clarendon Press, 1989, pp. 448-452.
  • 39
    Gustav Ranis, "Toward a Model of Development" in Lawrence B.Krause and Kim Kihwan (eds)
    liberalization in the Process of Economic Development. Berkeley, University of California Press, 1991; e Jeffrey D. Sachs and Andrew M. Warner,
    Natural Resources Abundance and Economic Growth. NBER Working Paper n. 5398. Cambridge, Mass., National Bureau of Economic Research, 1995.
  • 40
    Diogenes Laertius, "Diogenes", em:
    Lives of Eminent Philosophers, Loeb Classical Library, vol.2, 6:63. Baseio-me aqui e no próximo parágrafo no meu artigo "Cosmopolitan Liberalism and the States System", em Chris Brown (ed.)
    Political Reestructuring in Europe. London/NY, Routledge, 1994. Ver também Martha Nussbann em Joshua Cohen (ed.)
    For Love of Country: Debating the Limits of Patriotism. Boston, Beacon Press, 1996
  • 41
    Thomas Pogge, "Cosmopolitanism and Sovereignty".
    Ethics, 103, 1992, p. 49.
  • 42
    Onora O'Neill,
    Towards Justice and Virtue. Cambridge University Press 1996, p. 172
  • 43
    A aplicação dessa concepção é clara na encíclica papal
    Populorum Progressio do Papa Paulo VI.
  • 44
    Robert E. Goodin, "What Is So Special about Our Fellow Countrymen?".
    Ethics, 98, 1988, p. 685. Para a aplicação à justiça distributiva internacional, veja-se Goodin,
    Protecting the Vulnerable. Chicago University Press, 1985, pp. 154-169.
  • 45
    Sobre a visão Rawlsiana globalizada veja-se Beitz, parte 3 e Pogge, cap. 5 e 6 (ambos na nota 22). Sobre a renda mínima global veja-se Philippe van Parijs,
    Real Freedom for All: What (if Anything) Can Justify Capitalism?. Oxford, Clarendon Press, 1995, pp. 223-228.
  • 46
    Henry Shue,
    Basic Rights. Princeton University Press, 1996; Pogge, "Cosmopolitanism and Sovereignty, citado, e "How Should Human Rights Be Conceived?".
    Jahrbuch für Recht und Ethik, 3, 1995; e "Standards of Living within a Global Discourse about Justice: Moral Philosophy and Social Systems".
    Zeitschrift fur Philosophische Forschung ,51, 1997. Sendo as visões descontínuas semelhantes ao liberalismo social de Rawls caberia perguntar se são realmente formas de cosmopolitismo. A resposta é que são, porque explicam a descontinuidade em termos consistentes com a imparcialidade cosmopolita.
  • 47
    Por exemplo, Jeremy Waldron inclui "férias periódicas remuneradas" (Declaração Universal, art. 24) entre os direitos humanos; Waldron,
    Liberal Rights: Collected Papers, 1981-1991. Cambridge University Press, 1993, pp. 12-13. Tanto Shue quanto Pogge argumentam que há um direito humano à participação política.
  • 48
    Uma exploração sutil e complexa dessa idéia pode ser encontrada numa série de artigos por Samuel Scheffler: "Families, Nations, and Strangers".
    The Lindley Lecture, Dept. of Philosophy, University of Kansas, 1995; "Individual Responsibility in a Global Age".
    Social Philosophy and Policy, 12, 1995; "Liberalism, Nationalism, and Egalitarianism", em R. McKim and J. McMahan (eds.)
    The Morality of Nationalism. New York, Oxford University Press, 1997; e "Relationships and Responsibilities".
    Philosophy and Public Affairs, 26, 1997. Existe uma extensa literatura sobre a questão das responsabilidades sociais. Ver Andrew Mason, "Special Obligations to Compatriots",
    Ethics 107, 1997, para referências.
  • 49
    A imposição de condições políticas tanto quanto econômicas à assistência ao desenvolvimento são comuns atualmente. As questões éticas são sérias, como observam Joan M. Nelson e Stephanie J. Eglington no seu livro Global Goals.
  • 50
    De Pogge, além do texto citado na nota 22, veja-se "A Global Resources Dividend", em David A. Crocker and Toby Linden (eds.)
    Ethics of Consumption: the Good Life, Justice, and Global Stewardship. Rowmann and Littlefield, 1997. Este artigo encontra-se traduzido em
    Lua Nova 34/1994: Thomas Pogge, "Uma proposta de reforma: um dividendo global de recursos".
  • 51
    Poucos estudiosos de instituições e regimes internacionais exploraram sistematicamente seus efeitos distributivos. Não há como superestimar a importância do trabalho empírico nessa área.
  • 52
    J.H. Reichman,
    Implications of the Draft TRIPS Agreement for Developing Countries as Competitors in na Integrated World Market. UNCTAD Discussion Papers n. 73 (UNC-TAD/OSG/DP/&#, November 1993); A. Samuel Oddi, "TRIPS: Natural Rights and a 'Polite Form of Economic Imperialism"'.
    Vanderbilt Journal of Transnational Law, 29, 1996.
  • 53
    A tarefa é complicada pela controvérsia quanto à medida em que se pode esperar da tecnologia que ofereça substitutos para recursos naturais não-renováveis. Ver David I. Stern, "The Capital Theory Approach to Sustainability: A Critical Appraisal".
    (Journal of Economic Issues) 31, 1997.
  • 54
    Há uma discussão eloqüente em Geoffrey Best, "Justice, International Relations, and Human Rights".
    International Affairs, 71, 1995, pp. 794-798.
  • 55
    Vincent (ver nota 6) argumentou há mais de uma década a favor do que denominava "prioridade dos direitos de subsistência nas políticas internacionais contemporâneas".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br