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Trabalho e linguagem (para a redialetização do materialismo histórico)

Work and language

Resumos

Contesta-se a tese de Habermas que toma o marxismo como urna variante da filosofia da consciência. O materialismo histórico é reconstruído a partir da inter-relação dialética entre as categorias trabalho e linguagem, abrindo a possibilidade de recuperação da crítica marxista às instituições modernas: o Estado e a empresa capitalista. Argumenta-se que a tentativa habermasiana de escapar das malhas da filosofia da consciência acaba recaindo no que o autor denomina solipsismo social


Habermas' thesis according to which Marxism is a variant of the philosophy of consciousness is contested. Historical materialism is reconstructed on the basis of the inter-relationship between the categories work and language. Thus the possibility is opened of a recuperation of the Marxist critique of the modern institutions: the state and the capitalist firm. It is argued that Habermas' attempt to escape from the mesh of the philosophy of consciousness ends by relapsing in what the Author calls social solipsism


IDÉIAS E DEBATES

Trabalho e linguagem (para a redialetização do materialismo histórico)

Work and language

Fernando Haddad

RESUMO

Contesta-se a tese de Habermas que toma o marxismo como urna variante da filosofia da consciência. O materialismo histórico é reconstruído a partir da inter-relação dialética entre as categorias trabalho e linguagem, abrindo a possibilidade de recuperação da crítica marxista às instituições modernas: o Estado e a empresa capitalista. Argumenta-se que a tentativa habermasiana de escapar das malhas da filosofia da consciência acaba recaindo no que o autor denomina solipsismo social.

ABSTRACT

Habermas' thesis according to which Marxism is a variant of the philosophy of consciousness is contested. Historical materialism is reconstructed on the basis of the inter-relationship between the categories work and language. Thus the possibility is opened of a recuperation of the Marxist critique of the modern institutions: the state and the capitalist firm. It is argued that Habermas' attempt to escape from the mesh of the philosophy of consciousness ends by relapsing in what the Author calls social solipsism.

Na história do pensamento moderno, a relação entre trabalho e linguagem, salvo engano, parece só ter sido explicitamente estabelecida (como apontaram Marcuse, Habermas e, entre nós, Paulo Arantes) pelo jovem Hegel. Com efeito, nas suas lições de Iena, Hegel observa aquilo que Arantes denomina paralelismo entre as categorias trabalho e linguagem. 'Assim como a linguagem — diz Habermas, nesse mesmo sentido — infringe a imposição da intuição e ordena o caos das múltiplas sensações em coisas identificáveis, assim o trabalho infringe a imposição do desejo imediato e suspende, por assim dizer, o processo de satisfação das necessidades" (Habermas, 1987: 25). O nome das coisas e o instrumento de trabalho são, assim, o que permanece das percepções fugazes e das atividades laboriosas, respectivamente; são universais que se fixam pelas regras de sua utilização. Hegel acrescenta a essa concepção duas outras formulações. Em primeiro lugar, ele determina a precedência da linguagem em relação ao trabalho. 'Abstraindo do trabalho social, já o ato solitário do uso de um instrumento está referido à utilização de símbolos, pois a imediatidade da satisfação animal dos impulsos não é interrompida sem um distanciamento da consciência que dá nomes, relativamente aos objetos identificáveis" (idem: 31)1 1 Essa precedência é defendida também por G.H. Mead. Numa passagem de Mind, Self and Society, ele marca posição relativamente aos mestres sociólogos que o precederam, quais sejam, Marx, Weber e Durkheim. "Na sociedade humana, diz Mead, surgem certas formas universais que encontram expressão nas religiões universais e também no processo econômico universal. Isso remete, no caso das religiões, àquelas atitudes fundamentais dos seres humanos frente a seu semelhante como cuidado, ajuda e assistência. Tais atitudes concernem à vida dos indivíduos no grupo, e sua generalização é base de toda religião universal (...). De outro lado, nós temos um processo fundamental de troca da parte de indivíduos, oriundo dos bens dos quais eles não têm necessidade imediata, mas que podem ser utilizados para obter aquilo de que realmente precisam (...). Por trás dessas duas atitudes repousa aquilo que concerne à genuína comunicação. Ela é mais universal do que as atitudes religiosa e econômica em um aspecto, e menos universal em outro (...). O processo de comunicação é mais universal do que a religião universal e o processo econômico universal naquilo em que serve à ambos. Essas duas atividades têm sido as atividades cooperativas mais universais (...). [Mas] o processo de comunicação é, num sentido, mais universal do que esses diferentes processos cooperativos (...) [Não obstante], deve-se reconhecer que ele é um meio para atividades cooperativas (...). Deve haver alguns campos, tais como a religião e a economia, nos quais há algo para comunicar (...)" (Mead, 1950: 58/9; grifos meus - FH). . Em segundo lugar, embora Hegel estabeleça um paralelismo entre trabalho e linguagem, concebe-os como dois vetores de mesma direção, mas sentidos contrários "Os símbolos da linguagem coloquial penetram e dominam a consciência percipiente e pensante, ao passo que a consciência astuta domina, mediante os seus instrumentos, os processos da natureza. A objetividade da linguagem conserva o seu poder sobre o espírito subjetivo, enquanto a astuta superação da natureza, por meio do poder do espírito objetivo, amplia a liberdade subjetiva (...)" (idem: 27). Se, por um lado, a consciência astuta transforma-se em coisa, sujeitando-se à causalidade da natureza, por outro, ao dominá-la, retorna a si mesma da sua coisifícação, libertando-se da sua aniquilação material. Hegel, nesse caminho, só se mostra temeroso em relação à introdução da máquina nos processos de trabalho, pois com ela o trabalhador já não se dirige à natureza como algo vivente, mas ele próprio torna-se algo maquinal. Porém, como sabemos, essas reflexões de Hegel perdem importância no seu pensamento. Os símbolos e os instrumentos de trabalho, na sua filosofia tardia, passam a ser pensados no interior do processo de exteriorização de uma subjetividade ampliada elevada a Espírito Absoluto, processo esse concebido segundo o modelo da auto-reflexão.

O que nos interessa salientar, não obstante, é que, diferentemente do jovem Hegel, a maioria dos marxistas sugere a primazia ontológica do trabalho frente à linguagem. Principalmente a partir de Engels, as abordagens marxistas fazem remontar a gênese da linguagem ao trabalho. Já no título de um dos ensaios de Engels, Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, está implícita a defesa da anterioridade do trabalho em relação à linguagem. O último Lukács leva essa hipótese ao extremo, ao buscar no trabalho o modelo de todas as atividades humanas, inclusive as propriedades estruturais da linguagem. Na sua Ontologia do Ser Social, ele afirma: "No trabalho são tomadas in nuce todas as determinações que, como veremos, constituem a essência de quanto no ser social é novo. O trabalho, consequentemente, pode ser considerado o fenômeno originário, o modelo do ser social; uma vez que evidenciar tais determinações significa ter um quadro preciso dos traços essenciais deste último, parece metodologicamente vantajoso começar com a análise do trabalho. É necessário, entretanto, não esquecer jamais que, considerando assim isoladamente o trabalho, se realiza uma abstração. A sociedade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem, etc. surgem assim do trabalho, não, porém, em uma sucessão temporal que seja bem determinada, mas, ao invés, quanto à sua essência, simultaneamente" (Lukács, 1981:14). Como se vê, entre linguagem e trabalho, Lukács observa não tanto uma anterioridade histórica, mas, mais propriamente, uma prioridade ontológica2 2 Curiosamente, a opinião da maioria dos marxistas não parece ser a opinião do próprio Marx. Quando ele procura pelo critério que distingue o trabalho especificamente humano das primitivas formas instintivas de trabalho animal, ele nos assevera que a diferença básica existente é que no fim do processo de trabalho especificamente humano "aparece um resultado que já existia idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira". Voltaremos a isso. .

Por fim, cabe-nos lembrar que da Dialética do Esclarecimento também se pode extrair uma tese sobre a relação entre linguagem e trabalho. Para eles, a divindade mítica é a petrificação do medo dos homens diante da supremacia da natureza. Essa petrificação do medo é condição da sua superação, pois a desmitologização promovida pelo esclarecimento, que finalmente livra os homens do medo, nada mais é do que um produto da radicalização da angústia mítica. Pois bem, o mito, segundo Adorno e Horkheimer, tem uma relação direta com linguagem e trabalho. Por uma lado, eles observam que "através da divindade, a linguagem passa da tautologia à linguagem". O mito, que nasce do grito de terror que dá nome ao insólito, põe, definitivamente, a diferença entre conceito e coisa. Mas, por outro lado, o mito, ao mesmo tempo, proscreve o princípio da magia: "a natureza não deve mais ser influenciada pela assimilação, mas deve ser dominada pelo trabalho". Há, para Adorno e Horkheimer, sem dúvida, uma conexão entre trabalho e linguagem, na medida em que ambos fundam-se naquele grito de terror que representa a tomada de distância do homem frente a natureza, sem a qual não pode haver nem uma verdadeira consciência que dá nomes nem uma consciência astuta que trabalha. Mas, eles não chegam a defender nem a prioridade ontológica do trabalho relativamente à linguagem nem a prioridade ontológica da linguagem relativamente ao trabalho.

A posição de Habermas, por sua vez, tenta compatibilizar as inferências lógicas do seu estudo do jovem Hegel com a moderna pesquisa antropológica3 3 Cabe lembrar que a Dialética do esclarecimento também mantém um explícito diálogo com a antropologia da época. . Num famoso trabalho preparatório para um congresso hegeliano (1975), Habermas explicita sua posição a respeito da relação entre trabalho e linguagem, previamente tratadas em outros estudos e posteriormente sofisticadas. "Se considerarmos o conceito de trabalho social à luz dos novos conhecimentos antropológicos, podemos ver como ele penetra muito profundamente na escala evolutiva: não só os homens, mas já os homínidas se distinguem dos macacos antropóides pelo fato de se orientarem para a reprodução através do trabalho social e de constituírem uma economia. Os homínidas adultos formam hordas dedicadas à caça que a) dispõem de armas e de instrumentos (técnica); b) cooperam segundo uma divisão do trabalho (organização cooperativa) e c) repartem a presa no interior da coletividade (regras de distribuição)" (Habermas, 1983: 115). Condizente com sua posição anterior que dava razão a Hegel sobre a anterioridade da linguagem em relação ao trabalho, Habermas dirá que esse suposto primeiro modo de produção exige um meio de coordenação que nos obriga a supor como operante uma protolinguagem, ou seja, obriga-nos a supor que as interações, nesse estágio da evolução das espécies, já são mediatizadas simbolicamente, no sentido de Mead. Contudo, ainda não se pode falar de reprodução da vida especificamente humana, sendo que o conceito de trabalho social, na visão de Habermas, seria inadequado para delimitá-la com relação aos sistemas animais. Para completar o quadro do processo de hominização é necessário um passo adicional: esse primeiro modo de produção, o da caça feita em cooperação, era incompatível com o sistema que, de um modo geral, governava as relações sociais, qual seja, um sistema de status, fundado, exclusivamente, na capacidade de ameaça daquele que em cada circunstância detinha determinada posição. Esse problema sistêmico foi resolvido com o surgimento de um sistema de parentesco baseado na exogamia. Com o aparecimento da família, um homem adulto poderia unir um status no grupo masculino de caça e outro no sistema das mulheres e crianças. Nasce o sistema social de papéis, fundado em um conjunto de normas que pressupõe a linguagem integralmente constituída4 4 Assim, só se pode falar de homem, propriamente, quando o sistema de ação está estruturado em termos convencionais, isto é, quando a ação é orientada para papéis fixos e para a conservação da ordem social, e não para a satisfação instrumental das próprias necessidades. Se considerarmos somente um dos níveis de integração social propostos por Habermas, precisamente o nível das estruturas gerais de ação, pode-se dizer que esse sistema convencional de ação se mantém até a época moderna, quando, só então, o sistema de ação é estruturado em termos pós-convencionais, ou seja, quando os princípios prático-morais são escolhidos autonomamente, isto é, independentemente, da autoridade de grupos ou pessoas. .

Habermas resume assim os resultados da sua pesquisa:

"O conceito de trabalho social é fundamental, já que a conquista evolutiva da organização social de trabalho e distribuição é evidentemente anterior ao desenvolvimento de uma comunicação lingüisticamente avançada, e essa, por sua vez, é anterior ao desenvolvimento social de papéis;

"— mas, só é possível caracterizar satisfatoriamente a forma de vida especificamente humana se relacionamos o conceito de trabalho social ao de princípio familiar de organização;

"— as estruturas do agir segundo papel designam, com relação às estruturas do trabalho social, um novo grau de desenvolvimento; não é possível reduzir as regras do agir comunicativo (ou seja, as normas de ação intersubjetivamente válidas e garantidas de acordo com procedimentos rituais) a regras do agir instrumental e estratégico" (Habermas, 1983:118).

Esse conjunto de observações fundamenta a crítica de Habermas a Marx, e permite ao primeiro declarar o último prisioneiro das malhas da filosofia da consciência. Com efeito, Habermas reconhece que Marx entende por produção não apenas as ações instrumentais de indivíduos singulares, mas a cooperação social entre eles. Não só "as ações instrumentais dos diversos indivíduos são coordenadas de modo racional com relação ao fim, ou seja, com relação à finalidade da produção" e "as regras do agir estratégico segundo as quais se realiza a cooperação são uma parte constitutiva necessária do processo de trabalho", mas também "a repartição dos produtos ... exige regras de interação que, a um nível de compreensão lingüística, podem ser intersubjetivamente destacadas de situações particulares e, a longo prazo, serem recolocadas como normas reconhecidas ou regras do agir comunicativo"' (Habermas, 1983: 113). Dessa forma, como salienta o próprio Habermas, "ao lado das forças produtivas, nas quais o agir instrumental se sedimenta, a teoria societária de Marx introduz também, de saída, o quadro institucional: as relações de produção. Ela não descarta na práxis as conexões de uma interação mediada simbolicamente, nem elimina a função de uma tradição cultural, a partir das quais se torna possível entender o que seja dominação e ideologia". Contudo, Marx não concebeu a hipótese de um mundo da vida reproduzido simbolicamente através de um agir comunicativo, cujas regras desenvolvem-se certamente em reação a mudanças no âmbito do agir instrumental, mas que, não obstante, seguem uma lógica própria. Ao contrário, "Marx interpreta aquilo que ele mesmo faz usando o modelo bem mais limitado de uma auto-constituição da espécie a realizar-se única e exclusivamente pelo trabalho" (Habermas, 1982: 59). Assim, diz Habermas, "Marx não explicita efetivamente a conexão entre trabalho e interação, mas, sob o título nada específico da práxis social, reduz um ao outro, a saber, a ação comunicativa à ação instrumental" (Habermas, 1987: 41/2)5 5 De certa forma, a posição de Marx, na leitura de Habermas (contestável como se verá), seria oposta à posição de Mead que, a seu modo, reduz a ação instrumental a um certo tipo de ação comunicativa entre homem e natureza. Com efeito, Mead opta por subsumir o conceito de trabalho no conceito de linguagem, anulando todas as suas diferenças específicas. Sua única ressalva é a de que, na nossa "conversa" com a natureza, esta não pensa e age como nós, como supunham os magos. Segundo Mead, "o objeto físico é uma abstração que nós fazemos da resposta social à natureza. Nós falamos com a natureza" (Mead, 1950: 184). "Um engenheiro - continua ele -, que está construindo uma ponte, está falando com a natureza no mesmo sentido em que nós falamos com ele. Há ênfases e pressões lá que ele encontra, e a natureza retorna com outras respostas que tem que ser encontradas de uma outra maneira. Em seu pensar, ele está tomando a atitude das coisas físicas. Ele está falando com a natureza e a natureza está lhe respondendo. A natureza é inteligente no sentido em que há certas respostas da natureza às nossas ações que nós podemos presenciar e às quais nós podemos responder, e que se tornam diferentes quando nós respondemos. É uma mudança à qual nós podemos responder, e, finalmente, chegar a um ponto ao qual nós podemos cooperar com a natureza" (idem: 185). Não só o trabalho, para Mead, é uma conversa com a natureza como também não visa o seu domínio, mas a cooperação: certamente uma visão ingênua do processo histórico que se afasta das premissas fundamentais do materialismo. Entre nós, J.Á.Gianotti subsume trabalho à linguagem de uma maneira mais interessante. Na sua formulação, assumidamente inspirada em Wittgenstein, o trabalho é um jogo de linguagem não-verbal através do qual os homens conversam entre si, e não com a natureza, o que faz sublinhar o caráter reflexionante do trabalho. Contudo, como se verá, as formulações que pretendo apresentar refutam a possibilidade de subsunção em quaisquer dessas duas versões. .

A essa interpretação, explicitamente fundamentada numa certa leitura dos trechos pertinentes de A ideologia alemã, poder-se-ia opor uma interpretação alternativa, desta vez, fundamentada no famoso "capítulo" dos Grundrisse que trata das formações econômicas pré-capitalistas. Logo no seu início, Marx declara: "a posição do indivíduo como trabalhador, em sua nudez, é propriamente um produto histórico" (Marx, 1973: I, 434). O que cabe sublinhar, em primeiro lugar, é que se o trabalho é ele mesmo uma categoria histórica, isso significa que o "trabalho" anterior ao processo de hominização não interessa a Marx, pois antes desse processo simplesmente não se há que falar em história propriamente, já que o discurso materialista não se ocupa do que poderia ser chamado de história natural6 6 Trata-se, portanto de um primeiro recorte que, como se verá, não será o único: a navalha materialista cortará mais fundo. Cfr. nota 16. .

Pouco adiante, Marx trata do pressuposto fundamental do trabalho. Ele diz: "a terra é o grande laboratório, o arsenal, que proporciona tanto o meio de trabalho como o material de trabalho, como também a sede, a base da entidade comunitária. Os homens se comportam frente a ela ingenuamente, tratando-a como propriedade da entidade comunitária que se produz e reproduz através do trabalho vivo. Cada indivíduo se comporta como proprietário ou possuidor só enquanto membro dessa comunidade. A apropriação real através do processo de trabalho ocorre sob esses pressupostos que não são, eles mesmos, produto do trabalho, senão que aparecem como seus pressupostos naturais ou divinos" (idem: 434). Aqui, vários aspectos a salientar. Em primeiro lugar, a apropriação da terra, ela mesma, não é em si produto do trabalho, embora seja seu pressuposto mais fundamental. Em segundo lugar, a atitude de se apropriar da terra é vista como uma ação necessariamente coletiva: "assim como um indivíduo isolado não poderia ter uma linguagem, tão pouco poderia ter a propriedade do solo; quando muito poderia nutrir-se dele como substância, como os animais" (idem: 445). E como a linguagem é, num aspecto, o produto de uma comunidade, mas, em outro, é a própria existência da comunidade — "como se fosse o ser comunal falando por si mesmo" —, e ainda, como a atitude da apropriação ao mesmo tempo que é pressuposto do trabalho tem a comunidade como pressuposto, tem-se que tanto a propriedade quanto a linguagem são pressupostos do trabalho. Em terceiro lugar — um ponto que nos interessa particularmente —, a relação do homem frente à natureza não é, originalmente, uma relação de dominação. Diz Marx: "propriedade significa originalmente o comportamento do homem com suas condições naturais de produção como lhe pertencendo, pressupostas junto com sua própria existência, comportando-se com elas como com pressupostos naturais de si mesmo que, por assim dizer, só constituem o prolongamento do seu corpo" (idem: 452).

Se a relação entre homem e natureza não é uma relação originariamente contraditória, o ente, até então, não é propriamente coisa, e teriam razão Adorno e Horkheimer quando enfatizam o caráter mágico, mimético da relação homem-natureza que determina, nesse estágio da evolução, tanto o caráter tautológico da linguagem quanto o caráter não dominador da atitude do homem frente a natureza. Nesse sentido, eles afirmam que a linguagem "enquanto imagem [símbolo], deve resignar-se à cópia, [ou seja] para ser totalmente natureza, deve renunciar à pretensão de conhecê-la". Só mais tarde, "enquanto signo [conceito], a linguagem deve resignar-se ao cálculo, [ou seja] para conhecer a natureza, deve renunciar à pretensão de ser semelhante à ela" (Adorno, Horkheimer, 1991: 31)7 7 Não penso que entre símbolo e natureza haja só uma relação de identidade. Prefiro afirmar que, na linguagem por sinais, a diferença ôntica entre ser e ente de alguma forma já está "lá", pressuposta. .

Precisamos, portanto, pesquisar a causa dessa transformação que, nos termos de Adorno, significa a passagem da magia ao mito, e, nos termos de Habermas, a passagem da linguagem por sinais à linguagem proposicionalmente diferenciada. Uma outra questão, a esta relacionada, é a de saber por que não se pode cogitar a hipótese de que o progressivo domínio dos homens sobre a natureza, uma vez iniciado, pudesse ocorrer sem que eles precisassem dominar-se uns aos outros. Devemos explicar a razão pela qual esse caminho mostrou-se historicamente impossível. No final dessa pesquisa, veremos que a resposta às duas questões propostas é exatamente a mesma: a causa que determina o domínio da natureza pelos homens e a causa que determina o domínio de uns homens sobre outros são, de fato, uma só. A decisão dos homens de dominar a natureza confunde-se com a decisão dos homens de dominarem-se uns aos outros: mito8 8 Tanto Weber quanto Durkheim enfatizam que, antes mesmo do mito, já a magia possuía um caráter utilitário. Essa é também a posição de Nietzsche e Freud. Weber, como vimos, denuncia seu racionalismo prático. Durkheim afirma que, "sob o aspecto técnico, a magia teve mais serventia que a religião" (Durkheim, 1989a: 117n). Para Nietzsche, "a meditação do homem que acredita na magia e no milagre visa a impor à natureza uma lei" (Humano Demasiado Humano, #111). Freud atribui à magia uma "confiança inabalável de dominar o mundo". Adorno, sem trocadilho, não lhes tira a razão, mas num golpe de gênio observa, com Horkheimer, que "a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto" (Adorno & Horkheimer. 1991: 25). Na passagem da magia à religião, "a natureza não deve mais ser influenciada pela assimilação, mas deve ser dominada pelo trabalho. (...). A razão e a religião declaram anátema o princípio da magia.(...)" (idem: 32). e sociedade de classes são fenômenos historicamente contemporâneos.

Senão vejamos. O pressuposto lógico fundamental de uma relação de dominação é a percepção de um ente como um outro de natureza distinta. O homem tem que deixar de se sentir como algo propriamente natural, assim como a natureza tem que deixar de ser percebida como algo humano. Nos termos de Mead, os homens devem deixar de conversar com a natureza da mesma forma como conversam entre si. Para que possa haver domínio do homem sobre a natureza, portanto, é necessário que se estabeleça uma relação entre eles que exclua a mimese, cuja razão de ser é um certo sentimento de unidade. O mito rompe esta unidade. Quais os pressupostos materiais dessa evolução?

Adorno e Horkheimer pensam encontrar o fundamento desse fenômeno no medo, enquanto "eco da real supremacia da natureza sobre os homens" (Adorno, Horkheimer, 1991: 29). Mas eles próprios reconhecem que "os homens são suaves, quando desejam alguma coisa dos mais fortes, e brutais, quando o solicitante é mais fraco do que eles" (idem: 202). Portanto, o medo, por si só, teria sido insuficiente para determinar uma postura de enfrentamento conducente ao domínio da natureza pelo homem. Tudo leva a crer que, nesse processo, houve o concurso de um outro elemento ainda mais importante9 9 Durkheim imagina que o simples aumento de volume das sociedades poderia explicar a tomada de distância do homem frente à natureza. O homem pensaria as coisas cada vez mais abstratamente, cada vez mais racionalmente, por não poder mais reportar-se a este ou àquele rio, a esta ou àquela árvore etc. No meu entendimento, penso que uma tal solução é absolutamente insatisfatória. Não vejo motivo para imaginar que um tal evento, por si só, bastasse para provocar o ocaso de um comportamento puramente imitativo. O aumento de volume das sociedades pode até ter sido uma condição necessária, mas não a considero, de maneira nenhuma, suficiente para determiná-lo. .

Façamos o seguinte experimento mental: tomemos duas comunidades distintas que se encontrem no nível evolutivo correspondente à linguagem por sinais. Suponhamos que essas comunidades não tenham a mesma linguagem, não tenham um mundo da vida comum que desde sempre reproduzam cooperativamente, não respeitem os mesmos símbolos religiosos10 10 Durkheim menciona, por exemplo, a existência de totens individuais, totens de clãs, de tribos inteiras, mas não menciona, nem poderia, um totem universal. , numa palavra, não se sintam una. Nos dois casos, não se tem completamente constituído um mundo de objetos manipuláveis, já que, nesse nível de evolução, os elementos descritivos encontram-se fundidos aos elementos imperativos e expressivos, o que impede o distanciamento necessário para que se estabeleça uma relação sujeito-objeto plena. Pois bem, suponhamos que, num certo momento, estes dois mundos da vida irredutíveis um ao outro, no processo de sua reprodução material, interajam, por exemplo, pela disputa por meios de sobrevivência (terras, rebanhos, caças etc.) ou por outro motivo qualquer. Como é que tais grupamentos se percebem um ao outro, ou seja, qual é a natureza das ações inter-comunais que se dirigem mutuamente os indivíduos que as encarnam? Trata-se de ações sociais? Se sim, seriam elas estratégicas ou comunicativas? Se não, tratar-se-ia, então, de ações instrumentais?

Numa passagem marcante de Consciência moral e agir comunicativo, Habermas arrola o seguinte argumento contra o cético que só vê estratégia onde há agir orientado para o acordo: "A possibilidade de escolher entre o agir comunicativo e o agir estratégico é abstrata, porque ela só está dada na perspectiva contingente do ator individual. Na perspectiva do mundo da vida a que pertence cada ator, não é possível dispor livremente desses modos de agir. Pois as estruturas simbólicas de todo mundo da vida reproduzem-se sob as formas da tradição cultural, da integração social e da socialização — e esses processos só se poderiam efetuar por meio do agir orientado para o entendimento mútuo" (Habermas, 1989b: 124). O argumento contra o cético moral é brilhante, mas, no que diz respeito ao nosso problema, o que ele ensina?

As ações inter-comunais não podem ser ações estratégicas, pois uma tal suposição faria supor a existência de um mundo da vida comum às duas comunidades, o que, por hipótese, ainda não existe. Pelo mesmo motivo, elas não podem ser ações comunicativas, pois essas pressupõem, desde logo, um pano de fundo comum que as sustente11 11 No debate com os comunitaristas, que enfatizam a incomunicabilidade entre diferentes mundos da vida, Habermas contra-argumenta que "em todas as línguas e em cada comunidade lingüística, tais conceitos como verdade, racionalidade, justificação e consenso, mesmo se interpretados diferentemente e aplicados de acordo com critérios diferentes, exercem o mesmo papel gramatical". Mas o próprio Habermas assevera: "de qualquer modo, isso é verdade para as sociedade modernas que, com o direito positivo, a política secularizada, e uma moralidade por princípios, moveram-se para o nível pós-convencional de justificação e esperam que seus membros adotem uma atitude reflexiva perante suas próprias tradições culturais respectivas" (Habermas, 1996a: 311/2). O argumento, portanto, não vale para comunidades primitivas. . Tão pouco são elas ações instrumentais, pois a percepção de toda uma comunidades como natureza externa de outra já implica a diferenciação de um mundo objetivo manipulável. A situação sugere uma certa analogia com o exemplo pré-simbólico da gestual briga de cães de Mead, com a diferença de que os organismos que agora interagem são coletivos cujos membros já dispõem de uma linguagem por sinais.

A resposta que eu finalmente daria para o nosso problema soa assim: é justamente o fato de não poderem se comunicar, pela ausência de uma linguagem por sinais comum, o que induz as comunidades a evoluírem para o plano de uma linguagem proposicionalmente diferenciada. É aquela interação onde estão originalmente ausentes as condições que permitem um acordo ou desacordo entre essas partes que são mundos da vida a princípio irredutíveis um ao outro a causa dessa evolução. Com ela, comunidades estranhas umas às outras podem estabelecer entre si relações as mais variadas: podem reconhecer-se como interlocutores, adotando uma postura estratégica ou comunicativa, ou podem tomar-se por objeto de domínio uma da outra. Contudo, seja qual for a decisão, mas principalmente neste ultimo caso, o aparecimento de uma linguagem proposicionalmente diferenciada interverte em contradição a diferença, desde sempre determinada pela linguagem, entre homem e natureza.

Isto significa dizer que a razão é fruto de um certo "desentendimento"12 12 A palavra desentendimento está sendo usada aqui, como ficará claro, num sentido diferente do da palavra dissenso tal como utilizada por Rancière. Cfr. nota 14. . Mas significa também que o trabalho mais original, no sentido marxista do termo, tenha sido a guerra, e o grito de terror de que nos falam Adorno e Horkheimer tenha sido o grito de guerra. Como diz Marx: "o único obstáculo que a comunidade pode encontrar nas suas relações com as condições naturais de produção enquanto elas são suas — isto é, com a terra (se passarmos de um salto imediatamente aos povos sedentários), é uma outra comunidade que a reivindica como seu corpo inorgânico. Por isso, a guerra é um dos trabalhos mais originais a cada uma dessas comunidades que crescem naturalmente tanto para manter como para adquirir a propriedade (Marx, 1973:451 - grifos meus - FH). Não por coincidência, como nos lembram Adorno e Horkheimer, "os cantos de Homero e os hinos de Rigveda datam da época da dominação territorial e dos lugares fortificados, quando uma belicosa nação de senhores se estabeleceu sobre a massa dos autóctones vencidos. O deus supremo entre os deuses surgiu com esse mundo civil, onde o rei, como chefe da nobreza armada, mantém os subjugados presos à terra, enquanto os médicos, adivinhos, artesãos e comerciantes se ocupam do intercâmbio social. Com o fim do nomadismo, a ordem social foi instaurada sobre a base da propriedade fixa. Dominação e trabalho separam-se" (Adorno & Horkheimer, 1991: 28) — assim como dominação e linguagem unem-se13 13 É nesse ponto específico que pode haver uma diálogo profícuo do materialismo histórico com o pós-estruturalimo. Infelizmente, não foi esse o caminho escolhido por Habermas. . "Assim como as primeiras categorias representavam a tribo organizada e seu poder sobre os indivíduos, assim também a ordem lógica em seu conjunto — a dependência, o encadeamento, a extensão e união dos conceitos — baseia-se nas relações correspondentes da realidade social, da divisão do trabalho. Só que esse caráter social das formas do pensamento não é, como ensina Durkheim, expressão da solidariedade social, mas testemunho da unidade impenetrável da sociedade e da dominação. A dominação confere maior poder e força ao todo social no qual se estabelece. A divisão do trabalho, em que culmina o processo social da dominação, serve à autoconservação do todo dominado. Dessa maneira, porém, o todo enquanto todo, a ativação da razão a ele imanente, converte-se necessariamente na execução do particular. A dominação defronta o indivíduo como o universal, como a razão na realidade efetiva. O poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais não têm outra saída, acaba sempre, pela divisão do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido justamente da realização do todo, cuja racionalidade é assim mais uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos por obra e graça de poucos realiza-se sempre como subjugação dos indivíduos por muitos: a opressão da sociedade tem sempre o caráter de opressão por uma coletividade. É essa unidade de coletividade e dominação e não a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedimentam nas formas do pensamento" (Adorno, Horkheimer, 1991: 34/5; grifos meus - FH). Com esse movimento genial Adorno e Horkheimer recompõem, em bases materialistas, o paralelismo de mão e contramão da relação entre linguagem e trabalho.

Talvez a afirmação de que o aparecimento de uma linguagem proposicionalmente diferenciada dependa necessariamente de um intercâmbio inter-comunal seja uma afirmação forte demais, que poderia ser facilmente falseada ou relativizada por estudos antropológicos. O papel da guerra de conquista nesse processo de racionalização talvez tenha que ser melhor apreciado à luz desses mesmos estudos. De qualquer modo, parece-me muito razoável supor, ao menos, que essas relações inter-comunais foram um estímulo muito mais poderoso do que as teorias de Durkheim, Mead e Habermas fazem crer no desenvolvimento da espécie como um todo. Ainda assim, essa posição contém, implicitamente, uma outra hipótese forte. Se tomarmos a distinção entre linguagem como meio para o entendimento e linguagem como meio de integração e socialização, ela sugere a idéia de que, só a partir de um intercâmbio mútuo as sociedades começam a desenvolver formas não instintivas de integração social e formas mais sofisticadas de socialização. Eu poderia, assim, ser acusado de estar buscando causas exógenas para explicar fenômenos como o do aparecimento do Estado, da divisão do trabalho, da individuação etc. Mas, em primeiro lugar, é preciso salientar que já no plano da comunicação simbólica é possível o aparecimento, como resposta a problemas sistêmicos ou não, de formas elementares de religião (ainda não metafísica), de um ordenamento político incipiente (algo como uma grande família) e, portanto, de uma tacanha divisão de tarefas (não propriamente de trabalho) entre camadas (que não propriamente classes), fruto de um processo evolutivo de aprendizagem. Mas não vejo como uma comunidade primitiva possa transformar-se em uma grande civilização sem o concurso da existência de uma outra que com ela interage. Negligenciar essa hipótese é cair numa espécie de solipsismo social14 14 Do qual Rancière também não escapa. . Em segundo lugar, esse modo de ver o processo evolutivo recorre a causas exógenas somente à primeira vista: ele simplesmente procura encarar a evolução da espécie no seu conjunto, adotando a tese de que nunca existiu algo como um mundo da vida universal ou, se existiu, nos umbrais da hominização, fragmentou-se e perdeu sua unidade primeva15 15 Em Gênesis (11: 1-9), conta-se que os descendentes de Noé formavam, por obra do dilúvio, todas as nações existentes e que tinham, por força dessa circunstância, língua e costumes comuns. Para não se espalharem pela terra os descendentes de Noé decidiram construir uma cidade com uma torre que chegasse aos céus. Segundo a narrativa, Deus teria impedido a construção, espalhando-os pelo mundo inteiro e condenando-os a falar diferentes línguas para evitar que se entendessem. A cidade, então, recebeu o nome de Babel, cujo som assemelha-se, em hebraico, ao da palavra atrapalhar. .

Portanto, penso poder afirmar que é só através de um intercâmbio inter-comunal que as antigas comunidades experimentam divisões internas significativas: articulam-se militarmente, reformulam-se institucionalmente, etc. No Ocidente, em que as comunidades, por razões históricas e naturais, tomaram-se reciprocamente como objeto uma da outra, esta contradição, a rigor, só aparece quando uma comunidade finalmente conquista a outra pela guerra e a escraviza, dando origem, efetivamente, ao primeiro modo de produção16 16 Evento que marca o "nascimento" histórico, do ponto de vista materialista, da categoria trabalho. ; ou seja, ela surge, pode-se dizer, com a internalização, numa sociedade ampliada e bipartida, do "desentendimento" a princípio externo entre duas comunidades distintas. Nesse processo, em que a diferença externa se interverte em desigualdade interna, as antigas comunidades dão lugar, evidentemente, às sociedades de classes. O processo continua, mudando de natureza, é claro, em função do fato de que esta sociedade ampliada de classes entra em contato com outras, ou seja, a relação torna-se, agora, inter-societal: Roma e os bárbaros; Ocidente e Oriente, etc. E mesmo nas sociedades capitalistas contemporâneas, onde a desigualdade essencial entre os homens se esconde atrás da aparente igualdade dos indivíduos e a contradição de classe, mesmo revelada, parece independer das relações inter-societais, a evolução dessa contradição está nitidamente associada à existência de uma pluralidade de diferentes realidades normativas, políticas e culturais. Tudo se complica quando, por conta da imigração, do colonialismo, da escravidão moderna etc, diferença e desigualdade convivem numa mesma sociedade, fragmentando as classes dominadas17 17 Essa é a chave para uma critica dialética tanto ao comunitarismo quanto ao liberalismo político que Habermas, por razões a essa altura compreensíveis, não empreende. Caso contrário, teria afirmado, contra o primeiro, que as comunidades são, de fato, sociedades de classes; e, contra o segundo, que os princípios libertários e igualitários não são hierarquizáveis, como pretende Rawls. Infelizmente, Habermas crítica Rawls justamente por ter introduzido um princípio substantivo numa teoria que a seus olhos deveria ter um caráter tão somente procedimental. Rawls deve ter se surpreendido de ter de defender, alindo-se a Robert Dahl (1989) e Joshua Cohen (in Regh, 1998) contra Habermas, que.o substantivo e o procedimental estão irremediavelmente conectados. Daí se explica também por que Habermas passa por alto estudos sobre democracia econômica de autores com quem ele próprio dialoga, como o próprio Dahl (1985). Cfr. Habermas, 1996b; Rawls, 1996. .

Daí o caráter eminentemente internacionalista de um movimento que lute pela superação de todos os antagonismos de classe18 18 Como Weber foi capaz de reconhecer, "a luta permanente, em forma pacífica ou bélica, dos estados nacionais em concorrência pelo poder criou para o moderno capitalismo ocidental as maiores oportunidades. Cada Estado particular havia de concorrer pelo capital, não fixado a nenhuma residência, que lhe prescrevia as condições sob as quais o ajudaria a adquirir o poder. Da coalizão necessária do Estado nacional com o capital surgiu a classe burguesa nacional, a burguesia no sentido moderno do vocábulo. Em conseqüência, é o Estado nacional a ele ligado o que proporciona ao capitalismo as oportunidades de subsistir; assim, pois, enquanto aquele não ceda o lugar a um estado universal, subsistirá também este" (Weber, 1992: 1047). Ver a esse respeito, meu prefácio (Haddad: 19 97c) ao livro A ilusão do desenvolvimento, de Giovanni Arrighi, que, na trilha de Braudel, incorporou esta inescapável hipótese weberiana aos estudos historiográficos de inspiração marxiana. e de toda intolerância19 19 A defesa de Habermas do direito de ingerência de uma nação, em nome dos direitos humanos, imiscuir-se, inclusive militarmente, nos assuntos internos de outra é revelador (Cfr. Habermas, 1997). Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, o procedimental e o substantivo são inseparáveis. Caso não se leve em conta as relações econômicas e as relações de poder entre os Estados, muitas atrocidades continuarão a ser consumadas contra a soberania dos Estados mais fracos, apesar do cenário habermasiano, certamente otimista, de formação de uma esfera pública mundial. . A esperança de Marx, nessa chave interpretativa, teria sido a de que, da mesma forma que a razão foi fruto do "desentendimento", o entendimento de um enfim realizado gênero humano seria fruto da irracionalidade do capital, cuja função histórica teria sido a de consumar o domínio sobre a natureza, criando os pressupostos materiais para que todos, por assim dizer, "falassem a mesma língua" — operação que tem como condição necessária, mas não suficiente, a linguagem conceituai que, por si só, sem aqueles pressupostos indispensáveis, não poderia garantir a emergência de uma comunidade mundial. Em outras palavras, tudo se passa como se o caminho das comunidades "nacionais" em direção a uma comunidade inter-nacional tivesse, pela ausência de um mundo da vida universal, que ser mediado pela emergência das sociedades de classes, cuja dinâmica garantiria o domínio do homem frente a natureza que, por sua vez, seria também, tanto quanto o seu correlato — o pensamento conceituai — a condição necessária, mas não suficiente, do entendimento humano20 20 Nesse ponto fica clara a distinção entre o materialismo histórico e a antropologia estrutural de Claude Levi-Strauss: enquanto essa última está interessada no processo de hominização, enfatizando as estruturas comuns a todos os indivíduos e comunidades humanas, o primeiro está interessado no processo de humanização, enfatizando a desigualdade e a diferença (entre indivíduos e comunidades) que lhe servem de motor. . Como sublinha Marx, numa passagem que estabelece uma derradeira conexão entre trabalho e linguagem, "no próprio ato de produção, mudam não só as condições objetivas, por exemplo da vila nasce a cidade, da natureza selvagem o terreno arroteado etc., mas os produtores se modificam, tirando de si novas qualidades, se desenvolvendo e se transformando através da produção, criando novas forças e novas representações, novos modos de comunicação e nova linguagem" (Marx, 1973: 455 — grifos meus — FH).

À luz dessa nova interpretação, relembremos as críticas de Habermas a Marx: 1) "Marx não explicita efetivamente a conexão entre trabalho e interação, mas, sob o título nada específico da práxis social, reduz um ao outro, a saber, a ação comunicativa à ação instrumental"; 2) Consequentemente, "Marx (...) passa por alto o intrínseco valor evolutivo que possuem os subsistemas regidos por meios".

A essa altura, a primeira crítica pode ser reconsiderada com facilidade. A questão é: teria Marx reduzido a ação comunicativa à ação instrumental ou, preferencialmente, foi Habermas quem reduziu o trabalho à ação instrumental? Dito de outra maneira: a categoria agir instrumental compreende, em toda a sua riqueza, a categoria trabalho, na acepção marxista do termo, como uma modalidade? Talvez no que diga respeito ao intercâmbio entre homem e natureza. Mas, Marx enfatiza explicitamente que o trabalho não muda só as condições objetivas, mas principalmente transforma as próprias condições subjetivas. Habermas comete o equívoco de considerar o trabalho sob o ponto de vista exclusivo do agir instrumental orientado ao êxito. Toma a palavra trabalho no seu sentido grego21 21 Isso foi observado por J.A.Gianotti. Os gregos, pelas limitações de sua sociedade, não conheciam a palavra trabalho na acepção geral que Marx lhe atribui. Ver também Fausto, 1987: 46n. , técnico e, por isso, não atenta para sua função social geral. Daí Habermas utilizar progressivamente a expressão agir instrumental, até que em A Teoria do Agir Comunicativo, obra que consolida suas investigações anteriores, a palavra trabalho praticamente desaparece.

Alternativamente, podemos encarar o trabalho sob outra forma. Da mesma forma que a relação entre trabalho e natureza pressupõe a linguagem, como quer corretamente Habermas, a relação entre agir comunicativo e mundo da vida, tomada dinamicamente, exige trabalho. Com efeito, o trabalho, ao transformar a natureza, cria as condições para a expansão do universo lingüístico. Não me refiro ao fato trivial de que os homens têm que garantir as condições materiais de sua sobrevivência física para reproduzir seu mundo da vida. Refiro-me ao fato de que o trabalho, ao libertar os homens de constrangimentos de ordem material, de fato libera o mundo discursivo. Adequar o mundo às necessidades humanas por meio do trabalho, ou seja, humanizar o mundo, não é outra coisa senão torná-lo legível e dizível. Portanto, a relação entre agir comunicativo e mundo da vida e a relação entre trabalho e natureza não se excluem mutuamente; antes, intercruzam-se e se interpenetram22 22 É fácil perceber que essa formulação escapa às críticas que Habermas faz, em Conhecimento e Interesse, à teoria do conhecimento marxista. Embora o trabalho não tenha um valor referencial de síntese, ele continua uma categoria indispensável da teoria do conhecimento. Sendo assim é preciso reconstruir a teoria do conhecimento a partir do trabalho, que a um só tempo escreve e lê o mundo, e da interação crítica entre os atores sociais, mediada linguisticamente. .

Assim a acusação de que Marx não teria explicitado a conexão entre trabalho e interação cai por terra. Ora, não só Marx explicitou essa conexão, como o fez dialeticamente. Pois Marx jamais viu o processo de trabalho como um processo meramente instrumental entre homem e natureza, mas igualmente como um processo interativo, não apenas estratégico, entre os homens. Dessa forma, não se pode entender o processo social a partir de dualidades: interação social, de um lado, reprodução material, de outro; integração social, de uma lado, integração sistêmica, de outro; mundo da vida, de um lado, sistema, de outro; desenvolvimento moral, de um lado, desenvolvimento cognitivo, de outro; e, finalmente, ação orientada para o acordo, de um lado, e ação orientada ao êxito, de outro. Em todos esses momentos há uma conexão dialética entre essas dualidades que se impõe pela impossibilidade de dissociar a relação entre homem e natureza da relação dos homens entre si. O movimento apresentado em O discurso filosófico da modernidade de substituir a dinâmica entre trabalho e natureza pela dinâmica entre agir comunicativo e mundo da vida é um movimento que mutila a compreensão da reprodução social total.

É nesse sentido que se pode afirmar que há uma conexão entre a discussão sobre a linguagem em Marx e a discussão sobre a linguagem de Marx. Pois a dialética, ela própria, é vista por ele como o resultado do processo histórico de reprodução da vida material. A dialética é uma nova linguagem resultante da atividade de produtores que, através da produção, modificam-se, "tirando de si novas qualidades, se desenvolvendo e se transformando", "criando novas forças e novas representações, novos modos de comunicação" e um novo modo de produção que a reclama. E é essa nova linguagem a mais apropriada para descrever fenômenos sociais complexos como é o caso das instituições que, por um barateamento das formulações de Marx, têm recebido da parte dos próprios marxistas um tratamento insuficiente.

Tomemos os dois casos clássicos: a empresa capitalista e o Estado moderno. No caso da empresa capitalista, é claro que Marx a vê como uma fantasmagoria. Sua emergência histórica tem como pressuposto um processo de violência tremendo que consiste na separação do trabalhador dos meios de produção. Constituída, a empresa capitalista submete o trabalhador, não só à exploração, como também a tarefas alienantes, a uma divisão de trabalho mutilante e a tudo que a literatura marxista está exausta de denunciar. Mas a produção capitalista é uma fantasmagoria num ponto mais sutil e não menos brutalizante. Justamente naquela esfera em que os ideólogos se sentem mais à vontade para defender as proezas do sistema a que servem, a esfera do consumo, que a teoria tradicional teima em desconectar da esfera da produção, como se fossem estanques. Quando o liberalismo defende a tese da soberania do consumidor através da metáfora de que o dinheiro, no mercado, representa um voto para conseguir que sejam feitas as coisas que se desejam (Samuelson), deve-se concordar, mas com uma ressalva: a de que a "democracia no mercado" dos liberais se completará não só quando os consumidores "votarem" no que querem ver produzido em condições mais igualitárias de distribuição de renda, mas também quando os trabalhadores puderem decidir quais serão as "mercadorias-candidatas", ou seja, decidir o que querem produzir. Enquanto isso não acontece, o capitalismo é o reino da insatisfação, pois sustenta-se num padrão que cria mais necessidades do que satisfaz.

Vejamos como isto se dá. O processo de criação de necessidades respeita a seguinte lógica: o consumo põe idealmente o objeto da produção como necessidade; mas quando o consumo se liberta da sua rudeza primitiva e perde seu caráter imediato, o próprio consumo é mediado pelo objeto e a necessidade que sente deste objeto é criada pela percepção do mesmo. Assim, a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Isso significa que aqueles que decidem o que será produzido pela sociedade decidem também o que será desejado por ela, ainda que de diferentes modos pelos indivíduos isoladamente. A decisão do que produzir, por sua vez, leva em conta o padrão de distribuição do produto pelos indivíduos, mas a articulação da distribuição é inteiramente determinada pela articulação da produção. A própria distribuição é um produto da produção, pois o modo preciso de participação na produção determina as formas particulares da distribuição. O padrão de distribuição, por fim, circunscrito pelo modo de produção, contempla mesmo assim inúmeras possibilidades. Uma melhor distribuição, resultante da luta entre as classes, orienta a produção no sentido de uma maior satisfação das necessidades. Mas isso não resolve o problema de que, sob o capitalismo, dada a gestão privada do processo de inovação tecnológica, a correspondência entre a percepção e a possível fruição não acontece, e a própria luta de classes é alimentada pelo desejo insatisfeito de todos23 23 Parágrafo extraído de Haddad (1998: 39/40), cuja redação inspira-se em Marx (1973: introdução). .

Daí Marx afirmar, numa conhecida passagem dos Grundrisse em que compara a posição (ou pressuposição) do homem frente à natureza nos contextos pré-capitalista e capitalista: "assim, a visão antiga em que o homem aparece sempre como a finalidade da produção [pré-capitalismo] — qualquer que seja a sua determinação limitada, nacional, religiosa, política- parece muito mais elevada diante do mundo moderno [capitalismo] em que a produção aparece como finalidade do homem e a riqueza como finalidade da produção. Mas, de fato, quando a forma burguesa é retirada, que é a riqueza senão a universalidade — produzida no intercâmbio universal — das necessidades, capacidades, gozos, forças produtivas etc. dos indivíduos? (...) [Contudo,] na economia burguesa — e na época de produção que lhe corresponde — esta plena elaboração da interioridade humana aparece como um completo esvaziamento, esta objetivação universal como alienação total, a derrubada de todas as finalidades determinadas unilaterais, como sacrifício da finalidade-de-si em benefício de uma finalidade totalmente externa. Por isso, de um lado, o infantil mundo antigo aparece como superior. Por outro lado, ele o é sempre que se buscar uma configuração, uma forma fechada, e uma delimitação estabelecida. Ele é a satisfação de um ponto limitado; enquanto o mundo moderno deixa insatisfeito, ou quando aparece satisfeito de si, ele é vulgar" (Marx, 1973: 447/8).

Enquanto no pré-capitalismo era limitado o controle do homem sobre a natureza, a economia não podia satisfazer as necessidades humanas senão de uma forma limitada. Quando o homem submete a natureza aos seus desígnios, o faz a partir da sua própria alienação, sacrificando o fim, sua satisfação, em proveito das forças de acumulação. O sistema, mantido pelo homem, sobrevive mais às custas da expansão das necessidades do que da satisfação, e a mercantilização de todas as esferas da vida decorrente não é uma mera patologia induzida sistemicamente, mas um fenômeno essencial e incontornável da própria lógica de acumulação capitalista. À primeira vista, portanto, a passagem citada parece fortalecer o argumento de Habermas, pois, em primeiro lugar, ela diz que o pré-capitalismo parece superior ao capitalismo por ter o homem como finalidade da produção e não a produção como finalidade do homem, ou seja, ela admite que a plena elaboração da interioridade humana, sob o capitalismo, aparece como sacrifício do homem como finalidade em benefício de uma finalidade que lhe é externa, quer dizer, como alienação. Mas, em seguida, ela revela o caráter aparente dessa superioridade, pois num plano menos limitado, a riqueza não seria outra coisa senão o desenvolvimento das potencialidades humanas no intercâmbio com a natureza. À luz dessa considerações, pode-se dizer que Marx simplesmente negligencia o intrínseco valor evolutivo que possui a empresa capitalista? Evidentemente que a resposta não é tão simples. É verdade que, por um lado, Marx encara as instituições capitalistas como "formas fantasmagóricas que se tornaram anônimas e se converteram em fetiche", mas, por outro lado, num plano mais geral, Marx parece sugerir que a total alienação é o preço que se paga pelo desenvolvimento humano no intercâmbio universal com a natureza.

Para desatar esse nó, talvez devamos recordar a polêmica entre Habermas e Marcuse acerca da suposta neutralidade da tecnologia que, nesse momento, mostra-se muito instrutiva. Em O homem unidimensional, Marcuse nos oferece algumas reflexões a princípio temerárias. "Sem dúvida - diz Marcuse - a racionalidade da ciência pura é livre de valores e não estipula quaisquer fins práticos, é 'neutra' a quaisquer valores estranhos que lhe possam ser impostos. Mas essa neutralidade é um caráter positivo. A racionalidade científica favorece uma organização social específica" (Marcuse, 1978: 152). E acrescenta: "O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da natureza. A razão teórica, permanecendo pura e neutra, entrou para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica para ambas. Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura" (idem: 154).

O contra-argumento de Habermas a essa tese reza assim: "se, pois, se tem presente que a evolução técnica obedece a uma lógica que corresponde à estrutura da ação racional teleológica e controlada pelo êxito — e isto significa: à estrutura do trabalho — então, não se vê como poderíamos renunciar à técnica, isto é, à nossa técnica, substituindo-a por uma qualitativamente distinta (...) enquanto houvermos de manter a nossa vida por meio do trabalho social e com a ajuda dos meios que substituem o trabalho" (Habermas, 1987: 52).

Embora eu reconheça que Marcuse não tenha sido muito feliz na sua exposição, penso ser possível uma outra leitura das idéias desse grande espírito. Para tanto, bastaria estabelecer uma distinção, que Marcuse não explicita, mas acredito que tenha em mente, entre "tecnologia" e "padrão tecnológico". Se não parece plausível a idéia de que possamos abrir mão da tecnologia, não vejo razão para não acatar a hipótese da possibilidade de uma mudança no padrão tecnológico vigente que, no fundo, sustenta a lógica de acumulação de capital. Se submetermos o processo de inovação tecnológica a um controle social para inibir inovações que expandam as necessidades em benefício daquelas que satisfaçam as necessidades atuais mais prementes, poderíamos conceber uma sociedade que reinverte aquela relação entre homem e produção, estudada por Marx, mas recolocando-a num outro plano. No pré-capitalismo, tínhamos uma situação em que o homem era o objetivo da produção, mas essa produção, em virtude da tecnologia primária que a movia, garantia apenas uma satisfação limitada. No capitalismo, o sofisticado padrão tecnológico que submete a natureza é o mesmo que inverte a relação entre homem e produção, colocando esta como objetivo daquele, e isso em virtude do fato de que um processo de inovação tecnológica, operado sistemicamente, tem como objetivo a maximização do lucro, ou seja, a própria acumulação, e não a satisfação: assim, o padrão tecnológico capitalista garante apenas insatisfação. Qual seria, portanto, a especificidade do padrão tecnológico de uma sociedade socialista? Como aponta com muita pertinência Ruy Fausto: "Como a finalidade da produção nas economias pré-capitalistas é a reprodução dos indivíduos e não a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, nelas os indivíduos são satisfeitos, o que permite estabelecer uma relação entre o pré-capitalismo e o socialismo; mas trata-se de uma satisfação no interior de um círculo limitado. Ao passo que no capitalismo temos a situação inversa: como a finalidade da produção capitalista não é a satisfação dos indivíduos mas a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, no capitalismo o indivíduo permanece insatisfeito. E, entretanto, o princípio do capitalismo é o do desenvolvimento infinito, da derrubada de todas as barreiras e de toda limitação; o que, por sua vez, permite aproximar o capitalismo do socialismo" (Fausto, 1983:45). Numa sociedade socialista, portanto, o padrão tecnológico seria revolucionado, em grandes linhas, subtraindo-o parcialmente, através de estímulos institucionais, da órbita sistêmica, e introduzindo-o na esfera de uma democracia deliberativa por meio da qual o investimento dos recursos disponíveis seria reorientado na direção daqueles projetos tecno-científicos que trariam benefícios, do ponto de vista da satisfação de necessidades, para um maior número de pessoas, respeitados, evidentemente, os limites ecológicos que transcendem a existência de uma geração.

Penso ser esse o sentido das reflexões de Marcuse. Curiosamente, é numa procedente crítica a Marx que esse sentido se faz mais notar. "No capitalismo avançado, diz Marcuse, a racionalidade técnica está personificada, a despeito de seu uso irracional, no aparato produtivo. (...). Nem a nacionalização nem a socialização alteram por si essa personificação física da racionalidade técnica. (...). Na verdade, Marx era de opinião que a organização e a direção do aparato produtivo pelos 'produtores imediatos' introduziriam uma modificação qualitativa na continuidade técnica: a saber, produção visando à satisfação de necessidades individuais livremente desenvolvidas. Contudo, a modificação qualitativa compreende uma modificação na própria estrutura tecnológica" (Marcuse, 1978:41).

Voltemo-nos agora para a questão sobre o Estado, tomando como exemplo, ao invés das interpretações marxistas convencionais, a teoria do Estado na riqueza da interpretação de Ruy Fausto. Fausto extrai da apresentação do conjunto do Livro 1 de O Capital uma teoria do Estado burguês na sua forma clássica pura. Fausto tem em vista os três momentos dessa apresentação: no primeiro momento (seção um), no nível da circulação simples, os agentes econômicos são indivíduos iguais que trocam as mercadorias que possuem, segundo o princípio da equivalência da quantidade de trabalho social médio necessário a sua produção; no segundo momento (seção dois a seis), observa-se uma primeira negação em que há trabalhadores, de um lado, e capitalistas, de outro, que trocam entre si, respectivamente, mercadoria força de trabalho por salário, mas ainda tendo em vista o mesmo princípio de equivalência: com o que recebe o trabalhador garante a reprodução daquilo que vende; no terceiro momento (seção sete), quando se considera o processo de produção como um movimento contínuo, toda a equivalência desaparece: com a transformação da força de trabalho em mercadoria, conseqüência da separação do trabalhador dos meios de produção, o capitalista detentor dos mesmos, apropria-se de trabalho alheio não pago- mais valia.

Como se vê, entre o primeiro e o terceiro momentos, operou-se uma interversão, uma contradição entre a aparência (indivíduos iguais) e a essência (classes como opostos) do modo de produção capitalista. Segundo Fausto, é essa contradição (e não a contradição de classes, como habitualmente se pensa) o ponto de partida para se entender "por que o aparelho de coerção estatal não se constitui como aparelho privado da classe dominante, por que ele se separa desta última e se reveste da forma de um aparelho de poder público impessoal, destacado da sociedade" (Fausto, 1987:291).

Inicialmente Fausto observa que, no nível da circulação simples, há entre os indivíduos não só uma relação econômica, mas igualmente, uma relação de direito, e isso independentemente do Estado: no plano da sociedade civil, os indivíduos já se devem reconhecer reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, portanto, ao contrário do que se costuma inferir da visão dogmática entre base e superestrutura, já se encontra, de alguma forma, na base. Só que aqui, na base, a relação jurídica não está, por assim dizer, "legalizada". O que a legaliza, o que a põe, é justamente o Estado. "O Estado, diz Fausto, põe o direito enquanto direito que emana do Estado. A relação jurídica ligada à relação econômica pressupõe a lei, mas não a põe. A lei enquanto lei é posta pelo Estado. O direito se torna direito positivo" (Fausto, 1987:297).

Sendo assim, perguntar pela necessidade de uma aparelho coercitivo público destacado da sociedade equivale a perguntar por que a relação jurídica pressuposta na base deve ser posta enquanto lei. Ora, a posição da relação jurídica enquanto lei nega o momento da desigualdade das classes, guardando apenas o momento da liberdade dos contratantes. Dessa forma, fixando, na superestrutura, a identidade do primeiro momento com ele mesmo, o Estado, num certo sentido, bloqueia a interversão deste momento naquele, mas ao fazê-lo, concorre para que a interversão se efetive justamente no nível da base material. "O Estado guarda apenas o momento da liberdade dos contratantes negando a desigualdade das classes, para que, contraditoriamente, a igualdade dos contratantes seja negada e a desigualdade das classes seja posta" (idem:300).

Até aqui, a extraordinária originalidade dessa interpretação não contradiz a acusação de que Marx teria negligenciado o intrínseco valor do aparato estatal moderno. Mas Fausto reconhece a possibilidade de um desenvolvimento da teoria do Estado em outra direção, precisamente a que me interessa salientar. Se por uma lado, a sociedade aparece como uma sociedade de contratantes, como a totalidade de átomos ligados pelo laço externo do contrato, numa palavra, como um conjunto de pessoas de direito civil, por outro, a sociedade também aparece como comunidade de cidadãos, como totalidade anterior às partes contratantes, numa palavra, como totalidade pública da qual derivam os indivíduos. "Como se efetua a passagem da universalidade abstrata [sociedade dos contratantes] a essa universalidade concreta [comunidade dos cidadãos]?", pergunta-se Fausto. "De um certo modo - diz ele - essa passagem já está dada pelo próprio fato de que a universalidade abstrata é posta enquanto lei de Estado. A posição da sociedade dos iguais como lei do Estado supõe uma totalidade diferente daquela que ela reconhece pela lei civil. A posição da sociedade dos iguais, da universalidade abstrata, não pode vir da própria universalidade abstrata. É necessário que os átomos tenham sido postos enquanto não-átomos para que a posição da sua totalidade enquanto totalidade dos átomos seja possível" (idem: 306).

Correta a interpretação de Fausto, Marx, longe de sugerir que a comunidade tal como entendida por Mead e Habermas se diluiu ou desapareceu no processo que a transformou numa sociedade de classes, realmente quis fazer ver que numa sociedade de classes, a comunidade é negada — tanto quanto o indivíduo — mas no sentido de só estar presente no nível das pressuposições. Assim, embora as teorias de Mead e Habermas corretamente enfatizem, numa aparente convergência com a teoria de Marx (tal como apresentada por Fausto), que o momento da universalidade abstrata pressupõe o momento da universalidade concreta24 24 Recorde-se a esse respeito, também, a polêmica entre Spencer e Durkheim. O primeiro enfatiza o momento da universalidade abstrata, enquanto o último, o momento da universalidade concreta que a antecede. , o sentido da palavra pressuposição num e noutro caso difere substancialmente: se no primeiro caso, ela deve ser entendida como suposição — portanto, traduzida para o discurso dialético, como posição —, no segundo ela deve ser entendida como não-posição25 25 É no universo da dialética que devem ser lidos alguns juízos controversos que Marx emite nos Grundrisse, tais como, "a própria comunidade aparece como a primeira grande força material", ou, "[o capital] se tornou a verdadeira comunidade que ele [trabalhador] tenta devorai; mas que o devora". . Isto significa dizer que, para Marx, nessas formações, o acordo, o consenso, a compreensão mútua, embora pressupostos, não estão postos enquanto tais26 26 Daí o crescente espaço que ganharam na teoría social as visões funcionalista e sistêmica. , mas ainda permanecem latentes como possibilidades históricas27 27 O que distancia o materialismo histórico do funcionalismo e da teoria dos sistemas. .

Como se vê, as críticas de Habermas a Marx no que se refere à categoria trabalho e às instituições modernas, à luz de um exame mais detido dos Grundrisse, podem ser reconsideradas, pois, da nova perspectiva proposta, nem o desenvolvimento das forças produtivas pelo trabalho social se entende exclusivamente pelas regras do agir instrumental e estratégico, nem as relações de produção cristalizadas nas instituições burguesas se entendem exclusivamente pelas regras do agir comunicativo28 28 Restar-me-ia expor o conjunto de fatores históricos que explica a trajetória escolhida por Habermas, e o que permanece do seu pensamento, supondo procedentes as críticas que lhe foram aqui apresentadas. Comecei a fazê-lo em outro lugar (Haddad, 1996). Contudo, gostaria de antecipar algumas das minhas conclusões sobre esses dois temas. Quanto ao primeiro, ative-me a três fenômenos históricos inter-relacionados, embora cronologicamente dispersos: 1) a incrível capacidade demonstrada pelas instituições capitalistas, no seio de uma democracia de massas, de se adaptarem tanto ao desenvolvimento das forças produtivas quanto às crises desse processo; 2) a internalização da Ciência como fator de produção, despojando o trabalho do lugar de fundamento da riqueza (embora não do valor); e 3) o advento do Welfare State, fenômeno que gerou a ilusão de que sociedade de classes (universalidade abstrata) e comunidade de cidadãos (universalidade concreta) complementar-se-iam reciprocamente, mesmo admitindo-se inevitáveis tensões. Quanto ao segundo, diria o seguinte: tomando distância de Adorno, Habermas defende a factibilidade de um projeto emancipatório e recoloca a Política novamente no centro das atenções. Curiosamente, porém, isso só faz sentido pela razão oposta àquela que ampara a aposta de Habermas, qual seja, o fato de que o mundo administrado perdeu controle sobre si mesmo. Mas isso significa que os desafios práticos e a viabilidade de um projeto emancipatório exige daqueles com ele comprometidos tarefas para além de uma teoria do agir comunicativo fundada numa pragmática formal, já que: 1) sem uma compreensão bastante acurada da Economia Política do capitalismo contemporâneo e das suas possibilidades reais não saberemos o que dizer uns aos outros; 2) sem uma reavaliação da plausibilidade de explicar a sua dinâmica à luz de uma teoria de classes renovada não saberemos com quem dialogar e a quem enfrentar; e 3) sem um estudo, na trilha da Teoria Critica e da psicanálise, dos processos de formação da vontade na esfera pública, não saberemos como dizer o que precisa ser dito (cf. Haddad, 1997a; 1998). .

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  • 1
    Essa precedência é defendida também por G.H. Mead. Numa passagem de
    Mind, Self and Society, ele marca posição relativamente aos mestres sociólogos que o precederam, quais sejam, Marx, Weber e Durkheim. "Na sociedade humana, diz Mead, surgem certas formas universais que encontram expressão nas religiões universais e também no processo econômico universal. Isso remete, no caso das religiões, àquelas atitudes fundamentais dos seres humanos frente a seu semelhante como cuidado, ajuda e assistência. Tais atitudes concernem à vida dos indivíduos no grupo, e sua generalização é base de toda religião universal (...). De outro lado, nós temos um processo fundamental de troca da parte de indivíduos, oriundo dos bens dos quais eles não têm necessidade imediata, mas que podem ser utilizados para obter aquilo de que realmente precisam (...). Por trás dessas duas atitudes repousa aquilo que concerne à genuína comunicação. Ela é mais universal do que as atitudes religiosa e econômica em um aspecto, e menos universal em outro (...).
    O processo de comunicação é mais universal do que a religião universal e o processo econômico universal naquilo em que serve à ambos. Essas duas atividades têm sido as atividades cooperativas mais universais (...). [Mas] o processo de comunicação é, num sentido, mais universal do que esses diferentes processos cooperativos (...) [Não obstante], deve-se reconhecer que ele é um meio para atividades cooperativas (...). Deve haver alguns campos, tais como a religião e a economia, nos quais há algo para comunicar (...)" (Mead, 1950: 58/9; grifos meus - FH).
  • 2
    Curiosamente, a opinião da maioria dos marxistas não parece ser a opinião do próprio Marx. Quando ele procura pelo critério que distingue o trabalho especificamente humano das primitivas formas instintivas de trabalho animal, ele nos assevera que a diferença básica existente é que no fim do processo de trabalho especificamente humano "aparece um resultado que já existia idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o
    projeto que tinha conscientemente em mira". Voltaremos a isso.
  • 3
    Cabe lembrar que a
    Dialética do esclarecimento também mantém um explícito diálogo com a antropologia da época.
  • 4
    Assim, só se pode falar de homem, propriamente, quando o sistema de ação está estruturado em termos convencionais, isto é, quando a ação é orientada para papéis fixos e para a conservação da ordem social, e não para a satisfação instrumental das próprias necessidades. Se considerarmos somente um dos níveis de integração social propostos por Habermas, precisamente o nível das estruturas gerais de ação, pode-se dizer que esse sistema convencional de ação se mantém até a época moderna, quando, só então, o sistema de ação é estruturado em termos pós-convencionais, ou seja, quando os princípios prático-morais são escolhidos autonomamente, isto é, independentemente, da autoridade de grupos ou pessoas.
  • 5
    De certa forma, a posição de Marx, na leitura de Habermas (contestável como se verá), seria oposta à posição de Mead que, a seu modo, reduz a ação instrumental a um certo tipo de ação comunicativa entre homem e natureza. Com efeito, Mead opta por subsumir o conceito de trabalho no conceito de linguagem, anulando todas as suas diferenças específicas. Sua única ressalva é a de que, na nossa "conversa" com a natureza, esta não pensa e age como nós, como supunham os magos. Segundo Mead, "o objeto físico é uma abstração que nós fazemos da resposta social à natureza. Nós falamos com a natureza" (Mead, 1950: 184). "Um engenheiro - continua ele -, que está construindo uma ponte, está falando com a natureza no mesmo sentido em que nós falamos com ele. Há ênfases e pressões lá que ele encontra, e a natureza retorna com outras respostas que tem que ser encontradas de uma outra maneira. Em seu pensar, ele está tomando a atitude das coisas físicas. Ele está falando com a natureza e a natureza está lhe respondendo. A natureza é inteligente no sentido em que há certas respostas da natureza às nossas ações que nós podemos presenciar e às quais nós podemos responder, e que se tornam diferentes quando nós respondemos. É uma mudança à qual nós podemos responder, e, finalmente, chegar a um ponto ao qual nós podemos cooperar com a natureza" (idem: 185). Não só o trabalho, para Mead, é uma conversa com a natureza como também não visa o seu domínio, mas a cooperação: certamente uma visão ingênua do processo histórico que se afasta das premissas fundamentais do materialismo. Entre nós, J.Á.Gianotti subsume trabalho à linguagem de uma maneira mais interessante. Na sua formulação, assumidamente inspirada em Wittgenstein, o trabalho é um jogo de linguagem não-verbal através do qual os homens conversam entre si, e não com a natureza, o que faz sublinhar o caráter reflexionante do trabalho. Contudo, como se verá, as formulações que pretendo apresentar refutam a possibilidade de subsunção em quaisquer dessas duas versões.
  • 6
    Trata-se, portanto de um primeiro recorte que, como se verá, não será o único: a navalha materialista cortará mais fundo. Cfr.
    nota 16 16 Evento que marca o "nascimento" histórico, do ponto de vista materialista, da categoria trabalho. .
  • 7
    Não penso que entre símbolo e natureza haja só uma relação de identidade. Prefiro afirmar que, na linguagem por sinais, a diferença ôntica entre ser e ente de alguma forma já está "lá", pressuposta.
  • 8
    Tanto Weber quanto Durkheim enfatizam que, antes mesmo do mito, já a magia possuía um caráter utilitário. Essa é também a posição de Nietzsche e Freud. Weber, como vimos, denuncia seu racionalismo prático. Durkheim afirma que, "sob o aspecto técnico, a magia teve mais serventia que a religião" (Durkheim, 1989a: 117n). Para Nietzsche, "a meditação do homem que acredita na magia e no milagre visa a
    impor à natureza uma lei" (Humano Demasiado Humano, #111). Freud atribui à magia uma "confiança inabalável de dominar o mundo". Adorno, sem trocadilho, não lhes tira a razão, mas num golpe de gênio observa, com Horkheimer, que "a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto" (Adorno & Horkheimer. 1991: 25). Na passagem da magia à religião, "a natureza não deve mais ser influenciada pela assimilação, mas deve ser dominada pelo trabalho. (...). A razão e a religião declaram anátema o princípio da magia.(...)" (idem: 32).
  • 9
    Durkheim imagina que o simples aumento de volume das sociedades poderia explicar a tomada de distância do homem frente à natureza. O homem pensaria as coisas cada vez mais abstratamente, cada vez mais racionalmente, por não poder mais reportar-se a este ou àquele rio, a esta ou àquela árvore etc. No meu entendimento, penso que uma tal solução é absolutamente insatisfatória. Não vejo motivo para imaginar que um tal evento, por si só, bastasse para provocar o ocaso de um comportamento puramente imitativo. O aumento de volume das sociedades pode até ter sido uma condição necessária, mas não a considero, de maneira nenhuma, suficiente para determiná-lo.
  • 10
    Durkheim menciona, por exemplo, a existência de totens individuais, totens de clãs, de tribos inteiras, mas não menciona, nem poderia, um totem universal.
  • 11
    No debate com os comunitaristas, que enfatizam a incomunicabilidade entre diferentes mundos da vida, Habermas contra-argumenta que "em todas as línguas e em cada comunidade lingüística, tais conceitos como verdade, racionalidade, justificação e consenso, mesmo se interpretados diferentemente e aplicados de acordo com critérios diferentes, exercem
    o mesmo papel gramatical". Mas o próprio Habermas assevera: "de qualquer modo, isso é verdade para as sociedade modernas que, com o direito positivo, a política secularizada, e uma moralidade por princípios, moveram-se para o
    nível pós-convencional de justificação e esperam que seus membros adotem uma atitude reflexiva perante suas próprias tradições culturais respectivas" (Habermas, 1996a: 311/2). O argumento, portanto, não vale para comunidades primitivas.
  • 12
    A palavra desentendimento está sendo usada aqui, como ficará claro, num sentido diferente do da palavra dissenso tal como utilizada por Rancière. Cfr.
    nota 14 14 Do qual Rancière também não escapa. .
  • 13
    É nesse ponto específico que pode haver uma diálogo profícuo do materialismo histórico com o pós-estruturalimo. Infelizmente, não foi esse o caminho escolhido por Habermas.
  • 14
    Do qual Rancière também não escapa.
  • 15
    Em
    Gênesis (11: 1-9), conta-se que os descendentes de Noé formavam, por obra do dilúvio, todas as nações existentes e que tinham, por força dessa circunstância, língua e costumes comuns. Para não se espalharem pela terra os descendentes de Noé decidiram construir uma cidade com uma torre que chegasse aos céus. Segundo a narrativa, Deus teria impedido a construção, espalhando-os pelo mundo inteiro e condenando-os a falar diferentes línguas para evitar que se entendessem. A cidade, então, recebeu o nome de Babel, cujo som assemelha-se, em hebraico, ao da palavra atrapalhar.
  • 16
    Evento que marca o "nascimento" histórico, do ponto de vista materialista, da categoria trabalho.
  • 17
    Essa é a chave para uma critica dialética tanto ao comunitarismo quanto ao liberalismo político que Habermas, por razões a essa altura compreensíveis, não empreende. Caso contrário, teria afirmado, contra o primeiro, que as comunidades são, de fato, sociedades de classes; e, contra o segundo, que os princípios libertários e igualitários não são hierarquizáveis, como pretende Rawls. Infelizmente, Habermas crítica Rawls justamente por ter introduzido um princípio substantivo numa teoria que a seus olhos deveria ter um caráter tão somente procedimental. Rawls deve ter se surpreendido de ter de defender, alindo-se a Robert Dahl (1989) e Joshua Cohen (in Regh, 1998) contra Habermas, que.o substantivo e o procedimental estão irremediavelmente conectados. Daí se explica também por que Habermas passa por alto estudos sobre
    democracia econômica de autores com quem ele próprio dialoga, como o próprio Dahl (1985). Cfr. Habermas, 1996b; Rawls, 1996.
  • 18
    Como Weber foi capaz de reconhecer, "a luta permanente, em forma pacífica ou bélica, dos estados nacionais em concorrência pelo poder criou para o moderno capitalismo ocidental as maiores oportunidades. Cada Estado particular havia de concorrer pelo capital, não fixado a nenhuma residência, que lhe prescrevia as condições sob as quais o ajudaria a adquirir o poder. Da coalizão necessária do Estado nacional com o capital surgiu a classe burguesa nacional, a burguesia no sentido moderno do vocábulo. Em conseqüência, é o Estado nacional a ele ligado o que proporciona ao capitalismo as oportunidades de subsistir; assim, pois, enquanto aquele não ceda o lugar a um estado universal, subsistirá também este" (Weber, 1992: 1047). Ver a esse respeito, meu prefácio (Haddad: 19 97c) ao livro
    A ilusão do desenvolvimento, de Giovanni Arrighi, que, na trilha de Braudel, incorporou esta inescapável hipótese weberiana aos estudos historiográficos de inspiração marxiana.
  • 19
    A defesa de Habermas do
    direito de ingerência de uma nação, em nome dos direitos humanos, imiscuir-se, inclusive militarmente, nos assuntos internos de outra é revelador (Cfr. Habermas, 1997). Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, o procedimental e o substantivo são inseparáveis. Caso não se leve em conta as relações econômicas e as relações de poder entre os Estados, muitas atrocidades continuarão a ser consumadas contra a soberania dos Estados mais fracos, apesar do cenário habermasiano, certamente otimista, de formação de uma esfera pública mundial.
  • 20
    Nesse ponto fica clara a distinção entre o materialismo histórico e a antropologia estrutural de Claude Levi-Strauss: enquanto essa última está interessada no processo de hominização, enfatizando as estruturas comuns a todos os indivíduos e comunidades humanas, o primeiro está interessado no processo de humanização, enfatizando a desigualdade e a diferença (entre indivíduos e comunidades) que lhe servem de motor.
  • 21
    Isso foi observado por J.A.Gianotti. Os gregos, pelas limitações de sua sociedade, não conheciam a palavra trabalho na acepção geral que Marx lhe atribui. Ver também Fausto, 1987: 46n.
  • 22
    É fácil perceber que essa formulação escapa às críticas que Habermas faz, em
    Conhecimento e Interesse, à teoria do conhecimento marxista. Embora o trabalho não tenha um valor referencial de síntese, ele continua uma categoria indispensável da teoria do conhecimento. Sendo assim é preciso reconstruir a teoria do conhecimento a partir do trabalho, que a um só tempo escreve e lê o mundo, e da interação
    crítica entre os atores sociais, mediada linguisticamente.
  • 23
    Parágrafo extraído de Haddad (1998: 39/40), cuja redação inspira-se em Marx (1973: introdução).
  • 24
    Recorde-se a esse respeito, também, a polêmica entre Spencer e Durkheim. O primeiro enfatiza o momento da universalidade abstrata, enquanto o último, o momento da universalidade concreta que a antecede.
  • 25
    É no universo da dialética que devem ser lidos alguns juízos controversos que Marx emite nos
    Grundrisse, tais como, "a própria comunidade aparece como a primeira grande força material", ou, "[o capital] se tornou a verdadeira comunidade que ele [trabalhador] tenta devorai; mas que o devora".
  • 26
    Daí o crescente espaço que ganharam na teoría social as visões funcionalista e sistêmica.
  • 27
    O que distancia o materialismo histórico do funcionalismo e da teoria dos sistemas.
  • 28
    Restar-me-ia expor o conjunto de fatores históricos que explica a trajetória escolhida por Habermas, e o que permanece do seu pensamento, supondo procedentes as críticas que lhe foram aqui apresentadas. Comecei a fazê-lo em outro lugar (Haddad, 1996). Contudo, gostaria de antecipar algumas das minhas conclusões sobre esses dois temas. Quanto ao primeiro, ative-me a três fenômenos históricos inter-relacionados, embora cronologicamente dispersos: 1) a incrível capacidade demonstrada pelas instituições capitalistas, no seio de uma democracia de massas, de se adaptarem tanto ao desenvolvimento das forças produtivas quanto às crises desse processo; 2) a internalização da Ciência como fator de produção, despojando o trabalho do lugar de fundamento da riqueza (embora não do valor); e 3) o advento do
    Welfare State, fenômeno que gerou a ilusão de que sociedade de classes (universalidade abstrata) e comunidade de cidadãos (universalidade concreta) complementar-se-iam reciprocamente, mesmo admitindo-se inevitáveis tensões. Quanto ao segundo, diria o seguinte: tomando distância de Adorno, Habermas defende a factibilidade de um projeto emancipatório e recoloca a Política novamente no centro das atenções. Curiosamente, porém, isso só faz sentido pela razão oposta àquela que ampara a aposta de Habermas, qual seja, o fato de que o mundo administrado perdeu controle sobre si mesmo. Mas isso significa que os desafios práticos e a viabilidade de um projeto emancipatório exige daqueles com ele comprometidos tarefas para além de uma teoria do agir comunicativo fundada numa pragmática formal, já que: 1) sem uma compreensão bastante acurada da Economia Política do capitalismo contemporâneo e das suas possibilidades reais não saberemos
    o que dizer uns aos outros; 2) sem uma reavaliação da plausibilidade de explicar a sua dinâmica à luz de uma teoria de classes renovada não saberemos
    com quem dialogar e a quem enfrentar; e 3) sem um estudo, na trilha da Teoria Critica e da psicanálise, dos processos de formação da vontade na esfera pública, não saberemos
    como dizer o que precisa ser dito (cf. Haddad, 1997a; 1998).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
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